Quando as ratoeiras viram gaiolas...

RUBEM ALVES

(Jornal "Folha de São Paulo", segunda, 5 de maio de 1997)


Carpinteiros usam martelos e serrotes, pregam pregos e cortam madeira; cozinheiros usam panelas e colheres e fazem feijão e arroz; a polícia usa cassetetes, algemas e revólveres e produz violência. A função das instituições policiais é a produção da violência.
Os criminosos fazem uso das mesmas ferramentas que a polícia, com o mesmo objetivo de produzir violência. A diferença entre as instituições criminosas e as instituições policiais está em que os criminosos escondem as suas armas enquanto os policiais as exibem.
Os policiais exibem falicamente as suas armas porque o Estado lhes concedeu o direito de usá-las. A polícia tem o direito de produzir violência. Violência policial é violência legítima.
Em filmes antigos de detetive, os policiais batiam nas portas dos lugares onde os criminosos se escondiam e ordenavam: ``Abram a porta! É a lei''. Ao assim falar, eles proclamavam a sua crença na identidade entre polícia e lei, polícia e Estado. Os policiais são os ``vigários'' do Estado - agem como se neles o Estado estivesse incorporado. Por isso mesmo sua violência goza da prerrogativa da impunidade.
Essa cínica descrição que faço da polícia é apenas uma repetição do que disseram Agostinho, Hobbes e Weber. Gosto da descrição hobbesiana. Antes da existência do Estado, era o caos, violência generalizada, guerra de todos contra todos. Cansados dessa guerra, os homens resolveram pôr um fim à violência indiscriminada. Decidiram, então, celebrar um contrato: abririam mão da liberdade para fazer o que lhes desse na cabeça -coisa que sempre terminava em pancadaria e morte- e transfeririam esse poder para um soberano, a quem concederiam o poder absoluto de estabelecer leis e cuidar que elas fossem cumpridas. O ganho seria imenso: perderiam pequenas liberdades, mas ganhariam tranquilidade.
Acontece que esse contrato social idealizado não tinha o poder para transformar o homem: o homem anterior ao contrato social, fera violenta, continuava a existir dentro das pessoas, à espreita, esperando a oportunidade para realizar seus intentos. Para isso, bastava que o Estado se distraísse...
O Estado, assim, teve de criar meios para lidar com esses inimigos da ordem pública. Sabia Hobbes que a fera não era passível de ser convencida pela razão ou pela educação. O criminoso que mora em cada um de nós só entende a linguagem do medo. Por isso o Estado tem de ter a espada na sua mão. Se o Estado não dispuser de instrumentos de violência para impor a lei, ele acaba se transformando num motivo de chacota -como é o caso do Brasil. Quem tem medo do Estado? A psicologia dos envolvidos nos precatórios é a mesma psicologia dos policiais de Diadema.
O Estado, assim, para garantir o cumprimento da lei, tem de ser dotado de instrumentos de violência. O Estado, diz Weber, é a instituição que mantém o monopólio do uso legítimo da violência sobre um determinado território. É a possibilidade de exercício legítimo da violência que dá ao Estado as condições de manutenção da ordem. A polícia é um instrumento do Estado para tal fim.
Santo Agostinho, melhor conhecedor das manhas do coração humano, viu as coisas ao contrário. Não é o desejo de paz que cria o Estado para pôr um fim à violência. A verdade é o oposto. São os bandidos que, valendo-se da violência, estabelecem o Estado para dar legitimidade aos seus próprios crimes. Ao criar o Estado, eles não estabelecem a Justiça, mas simplesmente acrescentam a impunidade aos seus próprios crimes.
Hobbes chamava o Estado de ``Deus Mortal'' porque todos os seus atos são legítimos. Têm de ser legítimos porque é ele, Estado, que estabelece a lei. A polícia, pelo monopólio do uso legítimo da violência, participa dos atributos da divindade. A polícia se estabelece, assim, como uma instituição com as características do sagrado: a sensação de poder, concedida pelo uso das armas; o prazer sádico de infligir sofrimento às pessoas; a arrogância de não haver nenhuma instância superior a que prestar contas; o sentimento de onipotência, concedido pela certeza da impunidade.
Esses são atributos dos deuses. Em cada policial mora um pequeno deus. Isso explica a sua psicologia. Pode ser que essa psicologia venha com o indivíduo. Mas ela só floresce dentro das instituições policiais.
Sugiro que a primeira medida para se amenizar (acabar é impossível) a violência policial seja o exorcismo dos deuses que moram nos policiais e são cultuados nas suas instituições. Polícia não é lei. Ela não é uma continuação do Estado. O lugar institucional da polícia é o mesmo lugar das ferramentas: o Estado precisa de ferramentas para coleta de lixo, ferramentas para a promoção da saúde, ferramentas para a educação dos indivíduos. Precisa também de ferramentas para conter a violência.
Onde há ratos, há de haver ratoeiras. Mas quando as ratoeiras deixam de funcionar, quando as ratoeiras se transformam em abrigos de ratos, quando as ratoeiras são usadas como gaiolas para prender passarinhos, é hora de se livrar delas. Pergunto se a polícia não poderia se transformar num serviço terceirizável...

 


Rubem Alves, 63, educador, escritor e psicanalista, é doutor em filosofia pela Universidade de Princeton (EUA) e professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).