A IDADE E AS RAZÕES
NÃO AO REBAIXAMENTO DA IMPUTABILIDADE PENAL
Por: João Batista Costa Saraiva*
 
 

 1. INTRODUÇÃO

Afinal, a solução no combate à criminalidade, em especial nos grandes centros urbanos, passa pela redução da idade de imputabilidade penal hoje fixada em 18 anos? Alguns setores dão tanta ênfase a esta proposta que induzem a opinião pública a crer que seria a solução mágica na problemática da segurança pública, capaz de devolver a paz social tão almejada por todos. A linha principal do argumento é de que cada vez mais adultos se servem de adolescentes como "longa manus" de suas ações criminosas, e que isso impede a efetiva e eficaz ação policial. Outros retomam o argumento do discernimento, que o jovem pode votar aos 16 anos e que hoje tem acesso a um sem número de informações que precipitam seu precoce amadurecimento etc.
 

 2. INIMPUTABILIDADE, NÃO IMPUNIDADE

A primeira distinção que impõe seja feita, frente ao torvelinho de idéias que são lançadas, é que é preciso estabelecer a necessária distinção entre inimputablidade penal e impunidade.

 A inimputabilidade - causa de exclusão da responsabilidade penal - não significa, absolutamente, irresponsabilidade pessoal ou social.

 O clamor social em relação ao jovem infrator - menor de 18 anos - surge da equivocada sensação de que nada lhe acontece quando autor de infração penal. Seguramente a noção errônea de impunidade se tem revelado no maior obstáculo à plena efetivação do ECA, principalmente diante da crescente onda de violência, em níveis alarmantes. A criação de grupos de extermínio, como pseudo-defesa da sociedade, foi gerada no ventre nefasto daqueles que não percebem que é exatamente na correta aplicação do ECA que está a salvaguarda da sociedade. Todo o questionamento que é feito por estes setores parte da superada doutrina que sustentava o velho Código de Menores, que não reconhecia a criança e o adolescente como sujeitos, mas mero objetos do processo. Daí crerem ser necessário reduzir a idade de imputabilidade penal para responsabilizá-los. Engano ou desconhecimento.
 
A circunstância de o adolescente não responder por seus atos delituosos perante a Corte Penal não o faz irresponsável. Ao contrário do que sofismática e erroneamente se propala, o sistema legal implantado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente faz estes jovens, entre l2 e l8 anos, sujeitos de direitos e de responsabilidades e, em caso de infração, prevê medidas sócio-educativas, inclusive com privação de liberdade.

 Muitas das críticas feitas à atual legislação da criança e do adolescente, ou os "arreganhos" dos adversários do ECA, assim definidos pelo Ministro Sepúlveda Pertence, podem ser dimensionadas nas palavras de Antônio Carlos Gomes da Costa: "vomitam aquilo de que não se alimentaram".

 Diferentemente do que é bradado, a máxima "com menor não dá nada", está em desacordo com o que preceitua nosso sistema. O Estatuto prevê e sanciona medidas sócio-educativas eficazes, reconhece a possibilidade de privação provisória de liberdade ao infrator, não sentenciado - inclusive em parâmetros mais abrangentes que o CPP destina aos imputáveis na prisão preventiva - e oferece uma gama larga da alternativas de responsabilização, cuja mais grave impõe o internamento sem atividades externas.
 

 3. PRIVAÇÃO DE LIBERDADE DO INFRATOR

 A propósito dessa medida privativa de liberdade - internação na linguagem da lei -, o que a distingue fundamentalmente da pena imposta ao maior de l8 anos é que, enquanto aquela é cumprida no sistema penitenciário - que todos sabem o que é, nada mais fazendo além do encarcerar - onde se misturam criminosos de toda espécie e graus de comprometimento - aquela há que ser cumprida em um estabelecimento próprio para adolescentes infratores, que se propõe a oferecer educação escolar, profissionalização, dentro de uma proposta de atendimento pedagógico e psicoterápico, adequados a sua condição de pessoas em desenvolvimento. Daí não se cogitar de pena, mas sim, medida sócio-educativa, que não pode se constituir em um simples recurso eufêmico da legislação.

 Neste sentido fazem-se notáveis as deliberações tomadas quando da Primeira Reunião de Cúpula do Poder Judiciário Sobre Infância e Juventude, em Porto Alegre, no início de 1995, quando, presentes os representantes de todos os Tribunais do País, juntamente com o Ministro da Justiça Nelson Jobim e Ministros de Cortes Superiores, foi afirmada a prioridade do Judiciário na plena efetivação do ECA, inclusive com a criação de internatos adequados, em uma política nacional que priorize este segmento estratégico ao desenvolvimento da Nação. A propósito, apenas para citar dois exemplos em extremos do País, os Estados de Roraima e do Rio Grande do Sul têm, aquele já concluído, e este em fase de execução, interessantíssimos projetos de construção de unidades para internamento de adolescentes infratores, nos exatos termos preconizados pelo ECA.
 

 4. MEDIDA SÓCIOEDUCATIVA x PENA

 O argumento de que cada vez mais os adultos se servem de adolescentes para a prática de crimes e que por isso faz-se necessária a redução da idade de imputabilidade penal, se faz curioso. Ora, se pretende estender ao "mandado" o mesmo sistema que não alcança o "mandante"? Quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, regra geral do concurso de agentes. Se a questão for de eficácia de sistema; porque o mandante (de regra "pior" que o executor direto) não é responsabilizado? Aliás, reprimido o mandante se exclui a demanda. Na verdade o argumento dos arautos do rebaixamento se faz falacioso. O Estatuto oferece amplos mecanismos de responsabilização destes adolescentes infratores, e, o que se tem constatado, em não raras oportunidades, é que, enquanto o co-autor adolescente foi privado de liberdade, julgado e sentenciado, estando em cumprimento de medida, seu parceiro imputável muitas vezes sequer teve seu processo em juízo concluído, estando freqüentemente em liberdade.
 

5. UMA JUSTIÇA INSTANTÂNEA

Quanto à eficácia e eficiência de ação na área infracional não há como deixar de mencionar os extraordinariamente positivos resultados que vem sendo obtidos no projeto "Justiça Instantânea", implantado no Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, e em vias de ser estendido às maiores Comarcas do Interior. Neste projeto, Polícia, Ministério Público, Defensoria e Judiciário funcionam em unidade integrada, no mesmo prédio, dando solução quase imediata às situações de flagrância trazidas pela Polícia Militar ou pela própria Polícia Civil. O adolescente é ouvido pelo Delegado, forma-se o procedimento, submetido ao Promotor, com assistência de advogado, e, feita a representação, é imediatamente apresentado a Juízo, ouvindo-se vítima e testemunhas, se for o caso. Ali, de regra, são imediatamente solucionados, com sentença.

O funcionamento adequado de um sistema de infância e juventude, preventivo - com ação eficaz dos Conselhos Tutelares - e repressivo, há de fazer parte de uma política de ação. O resultado que se constata em Porto Alegre é a redução da reincidência e até mesmo uma mudança no perfil da "clientela" do Juizado, com muitos jovens de classe média sendo trazidos a Juízo, fato que raramente se cogitava na época da Justiça de Menores, tachada como um Juizado para os pobres.

 A ação efetiva de todos os agentes envolvidos com a questão infracional passa, necessariamente, por um comprometimento de todos os atores deste processo, desde Polícia, em uma ponta, até o Juiz, na outra. Para isso há de existir decisão política e engajamento de todos os poderes, Executivo, Legislativo e Judiciário, fazendo valer a prioridade absoluta preconizada no art. 227 da Constituição Federal. O Estatuto é uma receita que a nós cumpre aviar.
 

 6. O MÓDULO DE INTERNAMENTO

Outra questão que tem sido levantada se refere ao módulo máximo de internamento de um adolescente infrator, fixado em três anos, com limite em 21 anos de idade para sua liberação. A matéria, embora admita avaliação, merece algumas reflexões frente ao conjunto do sistema penal do imputável, apresentado como solução ao controle da criminalidade. Deve-se considerar, por exemplo, que, para um adulto permanecer três anos "fechado", sem perspectiva de alguma atividade externa, sua pena deverá situar-se em um módulo não inferior a dezoito anos de reclusão, eis que cumpridos 1/6 da pena (que são os mesmos três anos a que se sujeita o adolescente) terá direito a benefício. Não se pode desconsiderar, no caso do adolescente, que três anos na vida de um jovem de 16 anos representa cerca de 1/5 de sua existência, em uma fase vital, de transformações, na complementação da formação de sua personalidade, onde se faz possível a fixação de limites e valores.
 
Mesmo aqueles jovens de remoto prognóstico de recuperação merecem tal oportunidade, até porque, adequadamente tratados, são animadores os resultados obtidos.  A experiência que se tem tido nestes mais de seis anos de Estatuto da Criança e do Adolescente é altamente satisfatória, a ponto de se poder afirmar que em um índice de 70 a 80% dos jovens adequadamente atendidos nas medidas sócio-educativas que lhe são impostas, obtém plenas condições de uma completa integração social ao final.
 

 7. O ADOLESCENTE E O VOTO

Outro argumento utilizado na justificação da redução da idade diz respeito ao fato de o jovem poder votar, escolhendo desde Presidente da República até Vereador.
 
Dizer-se que se o jovem de l6 anos pode votar e por isso pode ir para a cadeia é uma meia-verdade (ou uma inverdade completa). O voto aos l6 anos é facultativo, enquanto a imputabilidade é compulsória. De resto, a maioria esmagadora dos infratores nesta faixa de idade sequer sabem de sua potencial condição de eleitores; falta-lhes consciência e informação.

 A questão de fixação de idade determinada para o exercício de certos atos da cidadania decorre de uma decisão política e não guarda relações entre si, de forma que a capacidade eleitoral do jovem aos dezesseis anos - FACULTATIVA - se faz mitigada. Nossa legislação, a exemplo das legislações de diversos países, fixa em 21 anos de idade a maioridade civil. Antes disto, por exemplo, não há casamento sem autorização dos pais, e sómente após se faz apto a praticar, sem assistência, atos da vida civil.

A propósito a legislação brasileira fixa diversos parâmetros etários, não existindo uma única idade em que se atingiria, no mesmo momento, a "maioridade absoluta". Um adolescente pode trabalhar a partir dos 14 anos e, no plano eleitoral, estabelece que o cidadão para concorrer a vereador deve ter idade mínima de 18 anos; 21 anos para Deputado, Prefeito ou Juiz de Paz; 30 anos para Governador, e 35 anos para Presidente, Senador ou Ministro do STF ou STJ. Não há critério subjetivo de capacitação e sim decisão política. Tanto é assim que Jesus Cristo, que morreu aos 33 anos, a par de sua indiscutível capacidade e discernimento, no Brasil não poderia exercer a Presidência da República.

 Assim, mesmo sendo discutível a decisão constituinte de outorgar o voto facultativo aos 16 anos, o fato de per se não leva à conclusão que o adolescente nesta idade deva ser submetido a outro tratamento que não aquele que o Estatuto lhe reserva em caso de crime - mesmo eleitoral.
 

 8. A REDUÇÃO DE IDADE PARA CONCESSÃO DA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO

Quanto à Carteira de Motorista, tão reclamada pelos jovens filhos da burguesia, o que há a ser dito é que as medidas sócio-educativas do ECA são tão ou mais eficazes e rigorosas que as penas que o atual sistema penal reserva aos autores de crimes culposos no trânsito maiores de l8 anos. Não há necessidade de redução da imputabilidade penal para responsabilizá-los, como sustentam alguns, que postulam, como condição à redução de idade para concessão da CNH, o rebaixamento de idade de imputabilidade penal.

 Na forma em que vem sendo conduzida esta questão, inclusive pelo teor de veto lançado pelo ex-presidente Itamar Franco a projeto aprovado no Congresso relativamente ao rebaixamento de idade para obtenção da Carteira de Motorista, neste País onde se afirma mata-se cerca de 50 mil pessoas ao ano em acidentes de trânsito, a idéia é de poder entregá-la para os filhos dos ricos - afinal, no Brasil automóvel ainda é privilégio -, para poder lançar os filhos dos pobres na cadeia.
 

 9. O DISCERNIMENTO

 Outro ponto objeto da argumentação pelo rebaixamento diz respeito ao discernimento. De que o jovem de hoje, mais informado, amadurece mais cedo.
Ninguém discute a maior gama de informações ao alcance dos jovens. A televisão hoje invade todos os lares com suas informações e desinformações, trazendo formação e deformação.

 Considerando o desenvolvimento intelectual e o acesso médio à informação, é evidente que qualquer jovem, aos 16, l4 ou 12 anos de idade é capaz de compreender a natureza ilícita de determinados atos. Aliás, até mesmo crianças pequenas sabem que não se pode matar, que machucar o outro é "feio" ou que não é permitido tomar para si o objeto do outro. O velho Catecismo Romano já considerava os sete anos como a "idade da razão", a partir da qual é possível "cometer um pecado mortal". Esse raciocínio sobre o discernimento, levado às últimas conseqüências, pode chegar à conclusão de que uma criança, independentemente da idade que possua, deva ser submetida ao processo penal e, eventualmente, recolhida a um presídio, desde que seja capaz de distinguir o "bem" do "mal".

 O que cabe aqui examinar é a modificabilidade do comportamento do adolescente, e sua potencialidade para beneficiar-se dos processos pedagógicos, dada sua condição de pessoa em desenvolvimento.

 A experiência dos Juizados da Infância e da Juventude no Rio Grande do Sul tem demonstrado que, aplicadas com seriedade as medidas constantes do Estatuto, diversos adolescentes, internados por infrações gravíssimas, como homicídio e latrocínio, têm logrado efetiva recuperação, após um período de internação. Progressivamente, esses jovens têm passado da privação total de liberdade à semi-liberdade e à liberdade assistida. Muitos passam algum tempo prestando serviços à comunidade, numa forma de demonstrar a si próprios e à sociedade que são capazes de atos construtivos e reparadores.
O Brasil já mandou para o sistema criminal adolescentes. Maria Auxiliadora Minahim, em seu interessantíssimo "Direito Penal da Emoção", onde destaca que a inimputabilidade dos menores de 18 anos é uma conquista que cumpre ser defendida, citando Bento Faria, ao comentar o Código Penal pátrio de 1890, em seu art. 30 (onde se fixa a inimputabilidade dos jovens até 14 anos) traz o relato de uma série de decisões dos tribunais, de mandar soltar meninos recolhidos em prisões de adultos por falta de instituições adequadas.
O jovem de 1890 teria maior ou menor discernimento que hoje? Se a matéria evoluiu para uma atenção diferenciada, em um País em que as diferenças sociais são abissais, isso revela uma evolução de política criminal, conceito dissociado da idéia de discernimento.

 A opção por um tratamento diferenciado ao jovem infrator - conceituado como "delinqüente" na linguagem dos opositores do ECA - resulta de uma disposição política do Estado, na busca de uma cidadania que se perdeu - ou jamais foi conquistada.
Revela a história que a preocupação oficial sobre a questão do jovem, como sujeito de um direito diferenciado, encontra precedente histórico apenas em 1896, em Nova Iorque, quando foi registrado o primeiro processo judicial efetivo tendo como causa maus-tratos causados a uma menina de nove anos de idade pelos seus próprios pais. A parte que propôs a ação foi a Sociedade Para a Proteção de Animais, de Nova Iorque. Dessa sociedade é que surgirá a primeira liga de proteção à infância.
 

 10. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em suma. O "arsenal" de recursos postos à disposição da sociedade pelo Estatuto da Criança e do adolescente prescinde da anacrônica proposta de redução da idade de imputabilidade penal para o enfrentamento da questão atinente à criminalidade juvenil.
Para tanto o que necessitamos é de compromisso com a efetivação plena do Estatuto da Criança e do Adolescente em todos os níveis - sociedade e Estado - fazendo valer este que é um instrumento de cidadania e responsabilização - de adultos e jovens.

 A opção por um tratamento diferenciado ao jovem infrator - "delinqüente" na linguagem dos opositores do ECA - resulta de uma disposição política do Estado, na busca de uma cidadania que se perdeu - ou jamais foi conquistada.
Penso restar demonstrado que inimputabilidade penal não é sinônimo de impunidade ou irresponsabilidade. O Estatuto da Criança e do Adolescente oferece uma resposta aos justos anseios da sociedade por segurança e, ao mesmo tempo, busca devolver a esta mesma sociedade pessoas capazes de exercer adequadamente seus direitos e deveres de cidadania.

 Como já foi possível expressar em outra oportunidade: Reformar a Constituição Federal para reduzir a idade de imputabilidade penal, hoje fixada em 18 anos, significa um retrocesso, um desserviço, um verdadeiro atentado. A criminalidade juvenil crescente há de ser combatida em sua origem - a miséria e a deseducação . Não será jogando jovens de 16 anos no falido sistema penitenciário que se poderá recuperá-los. Mesmo aqueles de difícil prognóstico recuperatório a sociedade tem o dever de investir, máxime porque a porcentagem daqueles que se emendam - dentro de uma correta execução da medida que foi aplicada - faz-se muito maior e justifica plenamente o esforço. Não for pensado assim, amanhã estar-se-á questionando a redução da idade de imputabilidade penal para doze anos, e depois para menos, quem sabe, até que qualquer dia não faltará quem justifique a punição de nascituros, preferencialmente se pobres...

 
B I B L I O G R A F I A

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 *Juiz da Infância e Juventude no RS
Professor de Direito da Criança e do Adolescente
na Escola Superior da Magistratura - RS
 
 
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