O eterno sexo frágil
A mulher continua responsável pela cozinha e pelos filhos e nunca é levada a sério na economia ou na política
Robert Kurz
(Jornal "Folha de São Paulo", 09/01/2000)
Segundo o mito de criação bíblico, a
mulher nasceu quando Deus retirou
uma costela ao homem.
Essa imagem
patriarcal é dúbia: de um lado, a mulher
parece um simples apêndice do homem;
de outro, porém, subentende-se que o
homem, ao ser "cindido" de sua parte feminina, é ele próprio ferido e sofre uma
perda. O problema, claro, não está no
plano da anatomia. A "pequena diferença" que as crianças descobrem precocemente em seus corpos não diz nada, em
essência, sobre a maneira que as atribuições culturais e sociais são repartidas entre os sexos.
O domínio masculino (patriarcado)
não decorre de caracteres biológicos, antes é um aspecto básico da forma social,
sendo portanto o resultado de processos
históricos. Por isso o patriarcado está
longe de ser verificado em todas as culturas.
Na história sempre houve sociedades que conheceram uma relação bastante igualitária entre os sexos.
E cotejos
interculturais mostram que também
aquelas "qualidades" sociais ou psíquicas, rotuladas com aparente espontaneidade como "tipicamente femininas" ou
"masculinas", podem revelar-se sob formas totalmente contraditórias em épocas diversas, em diversas estruturas sociais e diversos modos de produção.
O universalismo abstrato do moderno
sistema produtor de mercadorias sempre despertou a impressão de que fosse
relativamente neutro sob o prisma sexual. Mercadoria é mercadoria e dinheiro é dinheiro; onde estaria inscrita aí
uma valoração sobre os sexos?
A sobrevivência das estruturas patriarcais na família e na sociedade podia parecer assim, numa análise superficial, um mero
resquício do passado pré-moderno.
Nesse sentido, o feminismo reivindicou desde a Revolução Francesa uma "igualdade
de direitos", tal como a prometia a forma
universal da economia monetária moderna. Desse ponto de vista, a redução
masculina do lema "liberdade, igualdade, fraternidade" era um puro arbítrio da
dominação masculina herdada do passado, devendo ser ampliada para abarcar
não só uma fraternidade entre "irmãos",
mas também entre "irmãs".
Até hoje o feminismo como política
não foi além da exigência de participação
feminina no universalismo do moderno
sistema produtor de mercadorias.
O
"homem abstrato", o átomo individual
da sociedade, pode ser tanto homem
quanto mulher. De outro lado, a pesquisa histórica e sociológica feminista descobriu há tempos que a desvantagem e a
depreciação da mulher na modernidade
não representam nem um "resquício" de
relações pré-modernas nem uma simples vindicação masculina do poder, mas
radicam profundamente nessas próprias
relações modernas.
Isso porque o moderno sistema produtor de mercadorias
não é tão universal como parece ser. Ele
tem de certa forma um reverso, que permanece obscuro na sociologia oficial.
Refiro-me a todos os âmbitos e aspectos
da vida que não se deixam exprimir em
dinheiro. E esse reverso do sistema é tudo menos sexualmente neutro, pois dele
basicamente as mulheres foram feitas
responsáveis.
Trata-se, por um lado, de certas atividades concretas que se dão no horizonte
doméstico, para além da produção de
mercadorias: cozinhar, lavar roupa, fazer
faxina, cuidar dos filhos etc. Por outro lado, essa tarefa definida como "feminina"
transcende a atividade meramente mecânica; a mulher deve ainda criar uma atmosfera agradável e afetuosa, na qual
não impere o tom cortante da concorrência como "na vida lá fora", no espaço
público capitalista da economia, da política e da ciência.
A mulher, portanto, é
responsável pela "dedicação afetiva", de
uma certa maneira, pelo "trabalho amoroso" dedicado ao homem e aos filhos.
Assim, é uma das "virtudes femininas"
ter faro para relações pessoais, ser emotiva e "meiga"; em compensação, o homem deve bancar o intelectual, o durão,
alguém pronto para a concorrência. Para
tanto, não precisa ser bonito, o que por
sua vez é o primeiro dever da mulher.
Ao contrário de opiniões correntes, a
modernização não atenuou o patriarcado, antes o agravou. Foi primeiro a economia capitalista que cindiu de forma
tão extrema homem e mulher, como se
fossem seres de planetas diferentes. Nas
sociedades pré-modernas ainda não havia uma divisão estrita entre a produção
de bens e a gestão doméstica. Por isso as
atribuições sexuais eram também menos
unívocas; as mulheres tinham o seu próprio lugar na produção agrária e artesanal. A moderna economia de mercado,
pelo contrário, transformou a produção
de bens numa esfera economicamente
autônoma, numa esfera da maximização
empresarial abstrata dos lucros, e, com
isso, num aspecto central da esfera pública burguesa dominada pelo sexo masculino. Capitalistas e empresários, como
bem se sabe, assim como políticos, são
sobretudo homens.
Essa nova e agravada repartição funcional entre os sexos na modernidade
não podia ser igualitária. As atividades e
condutas definidas como "femininas", é
verdade, são tão necessárias à sobrevivência da sociedade quanto a produção
de bens, que foi deslocada para o campo
funcional "masculino" da lógica empresarial.
Mas a cota dessas atividades e condutas na produção geral da sociedade
não foi creditada às mulheres. Justamente porque foram feitas responsáveis por
tudo o que, pela sua natureza, não se deixa exprimir em dinheiro e, portanto,
"não tem valor" segundo os critérios capitalistas, a mulher foi considerada, a
exemplo de suas esferas de atividade, de
suas qualidades e virtudes imputadas,
como inferiores e secundárias.
Claro que, na modernidade, mulheres
sempre foram encontradas no ambiente
burguês, tanto nas atividades remuneradas da esfera econômica quanto na política, na cultura etc. Mas o estigma de sua
depreciação sexual perdurou também
nesses âmbitos.
Uma mulher com profissão ou politicamente ativa não se desvencilha das marcas sociais que lhe são
imputadas pela cultura dominante masculina.
Ela continua, em princípio, como
responsável pela cozinha, pelos filhos e
pelo "amor", ou seja, nunca é levada a sério na economia ou na política. E este
não é somente um modelo imposto de
fora, mas também um aspecto psicologicamente introjetado, cuja origem é a socialização feminina. Como todos sabem,
as mulheres são até hoje em menor número que os homens nas atividades profissionais e públicas; muito mais raramente elas alcançam posições de destaque e, em regra, são pior remuneradas.
Aqui vem à tona o dilema do movimento feminista: para realmente superar
o patriarcado, ele teria de pôr radicalmente em dúvida todo o modo de produção moderno; não no sentido, claro,
de uma idealização retrógrada das relações agrárias, mas como exigência de
uma forma de organização fundamentalmente diversa das forças produtivas
modernas. Enquanto a racionalidade
destrutiva e "masculina" da lógica empresarial não for rompida, serão também perpetuadas as formas de atividade
e as pseudoqualidades definidas como
inferiores e relegadas à esfera privada. Só
para além da cisão estrutural entre uma
"lógica do dinheiro", de um lado, e uma
"falta de lógica" da vida doméstica, da
dedicação pessoal e da emotividade, de
outro, poderia florescer uma relação
emancipatória entre homens e mulheres.
Um feminismo, ao contrário, que se limite à exigência de "direitos iguais" no
interior do modo de produção dominante há necessariamente de sucumbir à
forma cindida da vida social.
Sempre caíram em ouvidos moucos o apelo de que
os homens devessem participar em igual
medida das atividades e condutas cindidas no seio da vida pessoal e familiar. Inversamente, a visão feminista estreita-se
cada vez mais, e de forma automática, à
esfera econômico-política. A emancipação feminina não é medida pela mudança dos homens no âmbito privado, mas
pela mudança das mulheres no âmbito
público. O modelo pós-moderno não é
mais a mulherzinha dengosa e de miolo
mole, mas o tipo andrógino da "mulher
de carreira". Ao lado da loiraça oxigenada, da vampe e da mãe extremosa, fiel
dona de casa, surge a banqueira que faz
jogging e surfa na Internet, em cujo caminho de solteira ela passa, feito um homem, por cima de tudo e de todos.
De fato, pelo menos nas metrópoles do
mercado financeiro, parece haver uma
sinistra convergência entre os sexos e
suas atribuições.0 Enquanto a mulher de
profissão é obrigada a demonstrar uma boa dose de rigor e "frieza" emocional
para subir na vida, a gestão pós-moderna descobriu, por sua vez, a chamada
"inteligência emocional" para o cálculo
empresarial e o planejamento individual
de sucesso na luta da concorrência.
Em
livros e em seminários é oferecido um
programa inovador de treinamento para
"empresários sensíveis". "Peritos em
emoção" e "estudiosos da emoção" surgem aos montes, tagarelam sem parar.
Fala-se tanto de uma "cultura da emoção" quanto de um "empresariado estressado". Trata-se, portanto, de manipular e regular funcionalmente as sensações subjetivas e os sentimentos próprios. A emotividade, circunscrita até
hoje à esfera privada e delegada à mulher, deve ser carreada para fins capitalistas e transformada, de certa maneira, numa fórmula de sucesso.
A perversidade desse propósito fica especialmente clara quando a "tecnologia
emocional" aparece como gestão empresarial ou política de subalternos. O economista alemão Hans Haumer, por
exemplo, fala nesse sentido de um "capital emocional" cuja função é render "suficientes ganhos". A medida para tanto é
um "coeficiente emocional de capital",
que indicaria a grandeza com que a "tecnologia humana" da dedicação pessoal
reverte em benefício do lucro da empresa. Implicado nisso está a exigência, pela
"racionalização emocional", da sujeição
dos trabalhadores aos reclamos da flexibilidade empresarial, a aceitação de desmandos de toda espécie e o estímulo da
produtividade individual. O chefe "emocionalmente inteligente" evita atritos
pessoais e passa aos trabalhadores a sensação de que são amados e reconhecidos,
mesmo quando ele os trata feito simples
material humano. O rendimento do "capital emocional" atingiria o auge de eficiência quando as pessoas, comovidas às
lágrimas, agradecessem ao empresário o
fato de serem postas no olho da rua.
É nítida, nesse caso, uma reintegração
das formas de vida e comportamentos
cindidos, mas no sentido errado: o sistema econômico autonomizado começa a
tragar as normas, modelos e "qualidades" reservados até agora ao âmbito doméstico e à intimidade, a fim de instrumentalizá-lo no sentido da lógica do dinheiro. Só dentro desses horizontes os
homens pós-modernos são mais emocionais que no passado, enquanto a mulher pós-moderna pode agora empregar
de modo economicamente funcional
suas "virtudes femininas" a-socializadas.
O que na mídia é sugerido como distensão na batalha dos sexos sob a forma de
futebol feminino, strip-tease masculino
ou casamento de homossexuais, na verdade resulta na redução economicamente funcional da esfera doméstica, antes
um reduto dos sentimentos. A androginia consiste em que indivíduos de ambos
os sexos, em igual medida, mobilizem
"ternura e frieza" para a concorrência e
aliem a competência técnica à competência emocional, a fim de manter a todo
vapor a máquina de fazer dinheiro.
Se no passado a emotividade doméstica da sociedade capitalista era repartida
de maneira desigual, agora ela se acha
para sempre destruída. Pois justo nesse
aspecto vigora ironicamente a lei da escassez. O que é consumido em dedicação
e sentimento pessoal na empresa, no
propósito de manter lubrificada a máquina econômica, perde-se para o âmbito cindido da vida privada e da intimidade.
Se as atividades e condutas "femininas", na qualidade de reverso da produção de mercadorias, não forem superadas juntamente com a economia capitalista, sendo antes tragadas por essa própria economia, então o resultado pode
ser apenas uma nova dimensão da crise.
Os aspectos necessários da vida social,
embora não representáveis em forma
monetária, não serão assim repartidos
igualmente entre homem e mulher;
quando muito, virarão ruínas.
O que hoje dá o tom é o modelo televisivo da "mulher dinâmica", que junta
carreira e família sob o mesmo teto e ainda por cima se embeleza diariamente para arrancar suspiros como "objeto do desejo". Mas para a maioria isso é exigir
muito, algo de todo inviável. A porcentagem das mulheres que consegue esse
malabarismo é infimamente baixa. Só
uma reduzida minoria de "mulheres de
carreira" pode dar-se ao luxo de uma tal
ilusão, delegando o fardo da administração do lar, dos cuidados com os filhos
etc. a empregadas domésticas (imigrantes, negras, desprivilegiadas), que, por
sua vez, deixam de ter tempo para seus
próprios filhos. O grosso das mulheres
está absurdamente sobrecarregado com
a tarefa de responder, ao mesmo tempo,
pelo dinheiro, pelas atividades domésticas e pelo "amor".
Na pós-modernidade
o patriarcado não some, antes "se embrutece" e se estilhaça em formas múltiplas de barbárie, como escreve a feminista alemã Roswitha Scholz. Este é o mundo que transforma crianças em assassinos e psicopatas.
Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor, entre outros, de "O Colapso da Modernização" (Paz e Terra) e "Os Últimos Combates" (Ed. Vozes)..