A CULTURA LATINO AMERICANA NOS USA
A nova antropofagia
Marcos Flamínio Peres
Jornal "Folha de São Paulo", 20 de maio de 20001
Fusão. Miscigenação. Devoração. Esses termos que definem tão bem o "Manifesto Antropofágico" (1928) do modernista brasileiro Oswald de Andrade foram um anúncio premonitório do fenômeno de proporções inéditas por que tem passado a sociedade americana nas últimas décadas: a latinização. É o que defende o linguista mexicano Ilan Stavans, professor na Universidade Amherst, em Massachusetts.
Para ele, o sucesso de cantores como Ricky Martin, Jennifer Lopez e Christina Aguilera mostra que os hispânicos nos EUA "não estão mais na periferia, mas já são uma parte essencial da paisagem". Outra prova disso, para Stavans, é que a cidade de Los Angeles -a segunda mais populosa dos EUA e com 46% de moradores "chicanos"- poderá eleger no dia 5, pela primeira vez desde o final do século 19, um prefeito de origem latina, o descendente de mexicanos Juan Villaraigosa.
Stavans (leia entrevista) é um especialista na faceta mais dinâmica desse processo, a linguagem. No próximo semestre, deve lançar seu "Dictionary of Spanglish" (Dicionário de Spanglish, Basic Books), o primeiro glossário dedicado inteiramente à língua que funde elementos do espanhol e do inglês, falada nos guetos de Los Angeles, nas ruas do Harlem hispânico -"El Barrio"- ou ouvida nas várias emissoras de rádio e TV espalhadas pelas cidades grandes e médias do país.
Exemplo disso é a FM "La Mega". Com locução quase toda em espanhol salpicado de spanglish, ela conseguiu a proeza de ser a primeira emissora não falada em inglês a liderar o enorme e disputado mercado de rádios de frequência modulada de Nova York.
Por tudo isso, defende Stavans, o impacto do spanglish "é inevitável" e, com a hispanização, irá "nos forçar a reconsiderar a história dos EUA de maneiras ainda não imaginadas".
Stavans, que também criou no ano passado em Amherst o primeiro curso sobre spanglish dos EUA, pretende coligir em seu glossário cerca de 6.000 termos, como "marketa", do inglês "market" (mercado), ou "emilio", e-mail, termo que exemplifica a variante tecnológica da língua, o "cyberspanglish".
Os verbetes são tirados de placas publicitárias, da literatura -de autores como Junot Diaz (leia entrevista na pág. 11) e Abraham Rodríguez- e de letras grupos musicais. Mas também de publicações como a comportada e familiar "Latina", cujo número de abril traz uma matéria sobre como escolher o nome de seu filho: "Choosing your baby's nombres...".
Para Stavans, ao tomar de empréstimo elementos do espanhol e do inglês para criar uma nova forma de expressão, o spanglish acaba interferindo diretamente na morfologia e na sintaxe de ambas as línguas, como na oração "voy a shopear soquetas a la marketa".
O escândalo nacional americano
A crítica mais consistente aos limites da expansão do spanglish e à própria "mestizaje" vem do professor de história da Universidade do Estado de Nova York, Mike Davis. Marxista de formação, Davis tem uma visão orgânica da chamada "latinização dos EUA" que o opõe em vários aspectos ao culturalismo de Ilan Stavans.
Para Davis, há questões de fundo econômico e social que simplesmente banem a maior parte dos hispânicos dos benefícios da sociedade americana.
Ele cita o elevado índice de imigrantes latinos que abandonam os estudos -"um escândalo nacional"-, a resistência cada vez maior ao ensino bilíngue nas escolas - oficializado na polêmica Proposição 227 e defendido pelo movimento "English Only"- e à chamada ação afirmativa -que prevê, por exemplo, reserva de vagas para minorias nas universidades.
Davis também relativiza, com estatísticas, a entusiasmada defesa da miscigenação feita por Stavans: metade dos casamentos inter-raciais nos EUA se realiza entre os próprios hispânicos. Davis, autor de "Ecologia do Medo" (lançado há pouco no Brasil pela ed. Record) e "Magical Urbanism" (Urbanismo Mágico, Verso), afirma que o spanglish é apenas um estágio intermediário até o domínio completo do inglês pelos hispânicos.
Nesse sentido, caminha na mesma direção do professor de literatura comparada da Universidade Yale Roberto González-Echevarría, que chamou o spanglish, em artigo publicado no "The New York Times", de "língua de hispânicos pobres, muitos dos quais analfabetos nos dois idiomas". O spanglish, conclui Echevarría, "indica marginalização, não liberação".
Mas Mike Davis vai mais longe. Vê um sinistro paralelo entre a marginalização das comunidades hispânicas nos EUA e o futuro de todo o continente. A Área de Livre Comércio das Américas (Alca), cujo último round de discussão ocorreu na Cúpula de Quebec, em abril passado, só beneficiará "a mobilidade do capital, da poluição, das drogas e da violência". Como contrapartida, prossegue Davis, "o livre mercado cria mais obstáculos para o trabalho e as culturas ditas marginais".
Como se vê, "devoração", para Ilan Stavans e Mike Davis, carrega sentidos e produz significados diametralmente opostos - para o bem e para o mal.
1 - VISÃO, TEORIA OU MODELO CULTURALISTA
As vozes do spanglish
O professor Ilan Stavans fala sobre o dicionário que está preparando e que compila pela primeira vez a língua falada nas comunidades hispânicas dos EUA |
Pela primeira vez o spanglish - a face linguística da latinização dos EUA- passará a ter estatuto de língua, e não de uma mera derivação corrompida do inglês e do espanhol. Na entrevista abaixo, Ilan Stavans fala de seu "Dictionary of Spanglish" (Dicionário de Spanglish), previsto para sair no segundo semestre. Trata-se do primeiro léxico dessa língua, reunindo mais de 6.000 verbetes tirados da linguagem das ruas, romances, anúncios publicitários e histórias em quadrinhos. Faz, também, um balanço do curso pioneiro sobre spanglish que ministra na Universidade Amherst desde o ano passado e defende que a hispanização não é mais um fenômeno periférico na sociedade americana.
De acordo com ele, o fenômeno irá levá-la a passar por "transformações sociopsicológicas profundas". Isso já seria visível, por exemplo, na enorme popularidade de ídolos pop como Ricky Martin e Jennifer Lopez. Citando a antropofagia de Oswald de Andrade, Stavans crê que a "mestizaje" irá enterrar definitivamente qualquer preocupação com a "autenticidade" que ainda resta na sociedade moderna. (MARCOS FLAMÍNIO PERES)
Qual a importância de um léxico do spanglish?
Meu "Dicionário de Spanglish" é de fato, até onde sei, a primeira tentativa de fixar, em todos os detalhes, as vozes do spanglish. É um léxico histórico em que constam referências desde 1848, quando foi assinado o tratado de Guadalupe Hidalgo, que permitiu que quase dois terços do território do México fossem cedidos aos EUA. Busca refletir as mudanças no vocabulário, na gramática e na sintaxe até hoje.
O dicionário tenta também estabelecer as diferenças entre o spanglish mexicano-americano, o cubano-americano, o dominicano e vários outros. Mostra que o spanglish não é um fenômeno apenas dos EUA, mas que também está vivo na Argentina, no México, na Espanha, no Caribe. No total deverá ter mais de 6.000 verbetes, com uma ou mais definições, pronúncia e exemplos contextualizados, incluindo poemas, romances, quadrinhos, classificados de jornais, letras de música etc. Uma versão menor está disponível no site
A grande popularidade de ídolos de origem hispânica nos EUA, como os cantores Ricky Martin e Jennifer Lopez, representa a ascensão legítima dessa cultura ou apenas sua instrumentalização pela mídia?
Ricky Martin, Jennifer Lopez são um sinal óbvio da aceitação pelos americanos da cultura hispânica. Mas esse não é um fenômeno recente: pense em Ricky Ricardo, Anthony Quinn, Carmen Miranda, Dolores del Rio... A diferença é que hoje a aceitação é mais comum. Esses indícios indicam que os hispânicos não estão mais na periferia, mas estão vindo para o centro da cena - são uma parte essencial da paisagem dos EUA. Paralelamente a isso, a maior aceitação de autores latinos, a exibição de novos programas de TV, a disseminação de emissoras de rádio em espanhol, a proeminência de figuras públicas em todas as frentes, o extraordinário aumento de interesse na mídia pelas questões hispânicas e assim por diante. Um programa compreensivo global que está diminuindo a distância entre Norte e Sul.
Mas nos últimos anos houve casos flagrantes de discriminação contra hispânicos no interior dos EUA, como restrições a placas e anúncios em espanhol. Em nível nacional, há também a Proposição 227, que deseja "banir" o ensino bilíngüe em território americano, e mesmo Estados mais liberais, como a Califórnia, a defendem. Quais são os limites da expansão do spanglish nos EUA?
O spanglish, tal como o conhecemos, certamente irrompeu na consciência coletiva americana como resultado da xenofobia e resistência contra a educação bilíngüe. De acordo com o censo de 2000, há mais de 30 milhões de latinos ao norte do rio Grande (que divide EUA e México). E isso é só o número de imigrantes oficiais, sem incluir os milhões de ilegais. Não importa a acepção que adotemos, o spanglish é não apenas um veículo de comunicação, mas um "estado de espírito". Ataques contra ele, de dentro e de fora da população hispânica, continuarão. Mas a diferença é evidente: agora as pessoas prestam atenção.
Então a criação de um curso de spanglish em uma instituição de prestígio como Amherst é um indício de que ele está entrando no "maistream"?
Isso anuncia que a cultura latina não está mais nas bordas e força os intelectuais a reconhecer a cultura popular não mais como uma manifestação passível de ser esquecida, mas como uma fonte de transformações sociopsicológicas profundas. Uma década atrás e até antes, o spanglish ainda era rejeitado como impuro e ilegítimo. Hoje reconhecemos que seu impacto é inevitável e que, no mínimo, ele requer toda a nossa atenção.
De que exatamente trata seu curso?
O curso é uma tentativa interdisciplinar de entender o fenômeno do spanglish não apenas nacionalmente, mas globalmente, a partir de uma miríade de perspectivas: histórica, demográfica, sintática, linguística, literária, sociológica etc. As aulas não são "em", mas "sobre" spanglish. Os alunos lêem Samuel Johnson, Antonio de Nebrija, Alfonso Reyes, Angel Rosenblatt, Octavio Paz, Fernando Ortiz, Giannina Braschi, Ana Lydia Vega (leia trecho de um conto seu à pág. 9) e vários outros etnógrafos, ensaístas, linguistas, poetas e romancistas. Ele se estende de 1848 até hoje e explora as manifestações do spanglish em países como Argentina, Colômbia, Porto Rico, Espanha e México.
Qual é a origem de seus alunos e o que buscam no curso?
Na primeira turma, no ano passado, houve cerca de 70 pessoas. Menos da metade era de origem hispânica. Havia vários americanos, asiáticos e afro-americanos. O objetivo era explorar o spanglish como um cruzamento de civilizações e linguagens. Os tópicos discutidos incluem portunhol, "franglês", tradução, modernidade, globalização, educação bilíngüe, ação afirmativa, multiculturalismo e colonialismo.
Há distinções entre os falantes de spanglish de acordo com idade, sexo ou origem?
O spanglish não é uma forma homogênea e unificada de comunicação. Há diferenças agudas não só no spanglish falado por porto-riquenhos, cubanos, dominicanos e mexicanos, mas também no que é falado em Miami, San Antonio, Nova York ou Los Angeles. E também entre o spanglish urbano e rural. Do mesmo modo, o spanglish se modificou ao longo do tempo, e as formas usadas em um dado lugar no início do século 20 são diferentes das usadas hoje. O curso e o dicionário tentam explicar e enfatizar essas diferenças. Mas a meta é também mostrar em que medida a mídia e a internet estão criando um certo tipo de síntese "padronizada".
Como o spanglish está modificando a língua inglesa? Apenas semanticamente ou também a morfologia e a sintaxe?
As transformações ocorrem em ambas as direções. Há sentenças como "llamar para tras" ou "voy a shopear soketes a la marqueta", em que a estrutura sintática é basicamente a do espanhol, mas "marqueta" substituiu "supermarket" (supermercado), "soketes", "socks" (meias) e "shopear", "shop" (comprar). Estudos sobre a morfossintaxe do spanglish são cruciais para entender o fenômeno, mas também estudos sobre "code-switching" (troca de códigos). Tudo isso precisa ser visto a partir do contexto em que estão situados os latinos hoje nos EUA, não mais, repito, na periferia, mas no palco central.
O sr. tem afirmado que o spanglish deverá se tornar uma língua utônoma, embora várias pesquisas mostrem que um terço da população hispânica dos Estados Unidos não fala mais nem sequer o espanhol e que isso tende a se acentuar nos próximos anos. Não lhe parece mais provável que o spanglish seja ou assimilado pelo inglês ou simplesmente desapareça?
Eu tenho tido cuidado em não ser transformado em uma espécie de profeta. Meu papel como intelectual é viver "no" presente e reconsiderar o passado por meio do exame das idéias. O espanhol é a segunda língua mais falada dos EUA, mas ela não existe em forma pura, e seu futuro é certamente problemático. Mas é um fato que a Univision e Telemundo são as duas redes de TV que mais crescem nos EUA, à frente da CBS, ABC e NBC. Editoras lançam livros em espanhol para consumo nacional. Os cursos dos departamentos de espanhol nas universidades estão repletos de estudantes.
Esses são sinais óbvios das transformações por que passaram os Estados Unidos na segunda metade do século 20 e um anúncio do rumo que a nação como um todo está tomando.
Às vezes acho que o futuro irá se parecer com a Los Angeles do filme "Blade Runner", de Ridley Scott - uma mistura de espanhol, inglês e mandarim como uma "língua franca". Outras vezes acho que o spanglish será um estágio de transição, extinto quando da "assimilação total" da comunidade hispânica. Mas essa segunda opção me parece problemática, porque os latinos estão vindo para os EUA já há muito tempo, pelo menos desde a primeira metade do século 19. Mesmo o termo "vindo" é problemático, pois muitos mexicanos-americanos não "vieram" em nenhum sentido; ao contrário, foram os EUA que foram até eles, quando foi assinado o tratado de Guadalupe Hidalgo, permitindo que quase dois terços do território do México fossem para "el otro lado". Transição? Estágio de passagem? Novamente sou cético. Seja qual for a resposta, estou certo de que o tipo de espanhol e, em menor extensão, de inglês que falamos hoje será estranho aos cidadãos de amanhã. O que consideramos impuro, contaminado, ilegítimo e desagradável será percebido como convencional por nossos descendentes.
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O spanglish é um fenômeno urbano?
Pelo menos dois terços da minoria latina dos EUA vivem hoje em cidades, mas um número considerável - trabalhadores imigrantes, sobretudo- permanece morando em zonas rurais. O spanglish, em seus vários aspectos, pertence a vários grupos, não somente àqueles das metrópoles.
Há uma arte, música ou literatura em spanglish?
Sim. O spanglish se manifesta tanto no hip hop quanto na poesia e em romances. Tem mostrado sua força em murais e em outras formas pictóricas. A internet também tem sido uma grande promotora dessas manifestações artísticas e culturais. Entre os nomes mais importantes estão os escritores Junot Diaz, Juan Felipe Herrera, Abraham Rodriguez Jr., Juan Luis Guerra ou grupos musicais como o Cafe Tacuba -que funde samba, bolero, polcas e outros ritmos- e os rappers do Chicano 2 the Bone. Eu mesmo já dei palestras e conferências em spanglish.
Por que a língua espanhola tem se mostrado tão mais vigorosa nos EUA - a ponto de dar origem a uma mescla como o spanglish - do que as línguas de outras comunidades de imigrantes, como alemães, poloneses e italianos, que desapareceram?
É uma pergunta complexa que pede uma resposta complexa. Hispânicos são e não são um grupo imigrante tradicional nos EUA. Outras comunidades de imigrantes que os antecederam, já na terceira geração, deixaram seu sotaque. Mas com os latinos, por causa do modo como chegaram aos EUA, é difícil dizer onde a primeira, segunda e terceira gerações realmente estão. Também os EUA - ao menos uma parte significativa de seu território- começaram na Espanha com a chegada dos colonizadores e missionários ibéricos. Além disso, a proximidade do México e da América Central, em contraste com as "distantes" Polônia, Itália ou Alemanha, tornaram a transição um processo ameaçador. Por tudo isso, os latinos podem ser vistos como um grupo imigrante étnico, mas são também uma extremidade da América Latina nos EUA: uma nova nação hispânica, a qual, a julgar pelo seu tamanho, é a quinta maior concentração de hispano-falantes do globo, depois de países como México e Argentina.
O crescimento da minoria latina levou a um outro nível o debate nacional nos EUA sobre "brancura" e "negritude". O conceito de "raça cósmica" de José Vasconcelos e a aceitação, nos anos 60, da categoria de "browness" (derivação de "brown", marrom, usada para designar os hispânicos) pelo Movimento Chicano estão, por razões óbvias, ganhando força hoje em dia e irão nos forçar a reconsiderar a história do país de maneiras ainda não imaginadas.
O sr. conhece a música brasileira?
Conheço mais a literatura do que a música. Sou um entusiasta da obra de Moacyr Scliar, tenho o "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa, na versão espanhola, na cabeceira de minha cama, acho Clarice Lispector mais interessante do que Virginia Woolf, fico impressionado com os ensaios sobre cultura brasileira de Roberto Schwarz e admiro os contos policiais de Rubem Fonseca. E com freqüência invoco o conceito de antropofagia e as pinturas de Tarsila do Amaral para refletir sobre a arte latina.
Mas o sr. acredita que o conceito de antropofagia possa ajudar a entender a "mestizaje" que está ocorrendo hoje nos EUA?
A antropofagia é um conceito muito mais adequado - ligeiramente revisado, talvez - para entender o processo de mão dupla que estamos testemunhando: a hispanização dos Estados Unidos e também a norte-americanização do continente americano. Nós estamos nos devorando uns aos outros. Em outras palavras, somos ao mesmo tempo os criadores e os objetos do mundo transcultural em que vivemos. Nada é puro. A miscigenação reina e aumentará ainda mais. Acho que essa categoria é emblemática pelas implicações que tem em relação à "autenticidade". Nos Estados Unidos, os hispânicos são vistos como uma minoria étnica; na América Latina, são vistos como aqueles que partiram. Esse sentido de adição, de hibridismo, nos faz abandonar qualquer busca pela "autenticidade". Mas nos dias de hoje, com o novo espírito de conquista, o sentido de originalidade - isto é, o de autenticidade na ausência de autenticidade- está vivo.
glossário
trecho
2 - VISÃO, MODELO OU TEORIA MARXISTA
Fronteira do capital
Para o historiador Mike Davis os imigrantes hispânicos fazem da divisa entre EUA e México a utopia das multinacionais, que exploram a mão-de-obra abundante, não pagam impostos e poluem sem controle
O historiador americano Mike Davis é um crítico feroz da chamada Área de Livre Comércio das Américas. Para ele, todo o continente corre sério risco de se tornar uma grande "La Frontera", referindo-se à região que divide EUA e México e é famosa por concentrar multinacionais que exploram a mão-de-obra subassalariada dos imigrantes latinos. Isso é uma verdadeira "utopia para o capital", diz Davis. Ele discorda inteiramente do linguista Ilan Stavans e diz que o spanglish é "sobretudo um fenômeno de fronteira", que tende a desaparecer.
Por outro lado, Mike Davis vê com otimismo a reaproximação entre as lideranças negras e hispânicas para combater os cortes orçamentários do governo de George W. Bush. Ele também atribui à imigração hispânica o renascimento do catolicismo nos EUA. Relativiza, porém: hoje a expansão das religiões pentecostais é muito mais significativa, resultado de uma "corrida pelo pentecostalismo". Nesse aspecto, diz Davis, "Los Angeles é muito parecida a São Paulo ou Rio de Janeiro". (MARCOS FLAMÍNIO PERES)
Apesar de sua crescente importância política e econômica, as estatísticas têm mostrado que, nos EUA, é mais difícil para os latinos subirem na vida do que para alguém de outras minorias. Nos programas das grandes redes de TV também é muito pequeno o espaço para os latinos. A perspectiva de eleição de um prefeito de origem hispânica em Los Angeles pode mudar isso?
A experiência afro-americana sugere que há pouca relação entre a proeminência de lideranças políticas de minorias e estereótipos raciais enraizados na mídia. Se os hispânicos -mexicanos-americanos, sobretudo- são quase invisíveis nos programas das principais redes de TV, por outro lado eles são "pintados de branco" pelas TVs de língua espanhola, que quase sempre descrevem índios ou mestiços como empregados domésticos ou criminosos.
Medidas como a ação afirmativa refletem essas mudanças por que passa a sociedade americana?
O elevado índice de desistência no ensino médio entre latinos -aproximadamente 40% na maior parte das cidades- é um escândalo nacional. Crianças filhas de imigrantes são as principais vítimas do declínio dos sistemas públicos de ensino nas grandes cidades, da resistência ao ensino bilíngue e da neutralização da ação afirmativa. Isso é resultado em grande parte do descompasso entre a demografia dos latinos e sua cidadania. Na Califórnia, por exemplo, os brancos não-hispânicos são 25% da população em idade escolar, mas representam 75% do eleitorado. Eleitores brancos não-hispânicos mais velhos, cujos filhos já cresceram, votam sistematicamente pela redução ou supressão de programas que poderiam beneficiar crianças negras e hispânicas.
Simbolicamente, mexicanos e outras comunidades hispânicas estariam tomando posse do que perderam em 1848, com o tratado de Guadalupe Hidalgo?
O México perdeu boa parte de seu território em 1848 porque não tinha população suficiente para colonizar agressivamente sua fronteira norte. De fato, a catástrofe demográfica da colonização hispânica (estima-se que a população tenha se reduzido de cerca de 20 a 25 milhões em 1521 para 2 milhões em 1580) não foi recuperada até 1940. Já à época da Primeira Guerra, as economias do região Sudoeste dos EUA já eram dependentes de mão-de-obra importada do México. O que é impressionante em relação aos dados divulgados pelo Censo 2000 não é a "reconquista" em curso no Sudoeste dos EUA, mas o crescimento exponencial da população imigrante mexicana em Estados sem ligações históricas com hispânicos: Oregon, Iowa, Carolina do Norte, Illinois etc.
A fusão linguística entre espanhol e inglês -o spanglish-pode representar também uma troca no plano ético-religioso, entre catolicismo e protestantismo? Está ocorrendo uma "catolicização" da sociedade americana?
Há muito pouco intercâmbio entre o espanhol e o inglês em uma cultura tão intolerante com o bilinguismo quanto a americana. Enquanto a imigração latina certamente revigorou o catolicismo nos EUA (Los Angeles é uma das maiores dioceses católicas do mundo), ela, da mesma forma, provocou uma imensa "corrida pelo pentecostalismo". Los Angeles é muito parecida com São Paulo ou Rio de Janeiro: para cada templo da Igreja Católica há dúzias de templos pentecostais cheios de vida localizados em prédios comercias. De fato, o pentecostalismo de língua espanhola é provavelmente o movimento sociocultural mais dinâmico de todo o sul da Califórnia.
Ilan Stavans afirma ser bem provável que o spanglish se torne no futuro uma língua autônoma. O sr. concorda?
Stavans está errado: o spanglish é sobretudo um fenômeno de fronteira. A grande questão, na verdade, é saber quem defenderá e lutará por um autêntico bilinguismo. Nada é mais deprimente do que a covardia dos políticos democratas diante dos apelos nativistas do movimento "English Only". Na maior parte dos casos, o "bilinguismo" é simplesmente uma fase intermediária para a aquisição do inglês, mais do que propriamente um objetivo em si.
Como se relacionam as duas principais minorias da sociedade americana, afro-americanos e latinos?
A antiga coalizão entre negros e latinos pelos direitos civis, construída pela primeira vez em 1940 e renovada temporariamente pelo pastor Jesse Jackson em 1980, entrou em colapso em todo o país nos anos 90. Na medida em que o nó fiscal estrangulava os orçamentos municipais, a crescente comunidade hispânica -faminta por mais controle sobre escolas, trânsito e empregos públicos- acabou rivalizando com as lideranças políticas negras para tentar dividir as perdas. Recentemente, porém, há sinais encorajadores de que ambos os grupos (que representam, juntos, quase um terço da população dos EUA) estejam se reaproximando. As frentes políticas de negros e hispânicos no Congresso estão começando a coordenar a resistência ao governo de George W. Bush.
Por muito tempo, especialmente entre acadêmicos americanos, o Brasil foi considerado um modelo de "democracia racial". É possível compará-la com a "mestizaje" que ocorre nos EUA hoje?
A cidade de Nova York, muito mais do que a região Sudoeste dos EUA (que inclui a Califórnia), é o mais dinâmico exemplo de "melting pot" de identidades do hemisfério Ocidental.
Metade dos casamentos envolvendo latinos é entre hispânicos de diferentes nacionalidades e há uma enorme e vigorosa interação entre afro-latinos, afro-caribenhos e afro-americanos. Os porto-riquenhos -um povo muito mais misturado, em todos os sentidos, que o brasileiro- são o modelo do que ainda está por vir.
As críticas feitas à Alca ressaltam que, se concretizada, as economias latino-americanas ficarão inteiramente à mercê das oscilações da economia americana. O sr. acredita que, como decorrência da integração econômica, algo similar possa ocorrer no plano cultural?
As instituições culturais e educacionais de todo o continente americano estão sob ameaça real da Alca. Do mesmo modo -como a experiência amarga do Nafta dramatiza-, o livre mercado somente reduz barreiras em benefício da mobilidade do capital, da poluição, das drogas e da violência. O livre mercado de fato cria mais obstáculos para o trabalho e culturas ditas marginais. Como outros progressistas americanos, creio mais na "Bolivarização" a partir do sul do continente americano do que na "Disneyficação" a partir do norte.
A América Latina irá se tornar, então, uma grande "La Frontera"?
Partilho o sonho de Whitman, Martí, C.L.R. James e Pablo Neruda -que imaginaram todas as Américas reunidas em uma única celebração da democracia, um carnaval hemisférico de sonhos compartilhados. Mas, para chegar a isso, é preciso o oposto do que propõe a Alca: é preciso um controle estrito do capital e a livre circulação de povos e idéias. O ponto de partida deve ser a mobilização em torno da defesa dos direitos humanos dos imigrantes e contra a violência nas fronteiras.
Como sugere o filme "Traffic", de Steve Soderbergh, o incremento no tráfico de drogas poderá ser, na prática, um dos efeitos mais palpáveis do Nafta?
É difícil dizer qual é a façanha de que mais se orgulha o Nafta: o império da droga da fronteira entre México e EUA, a exploração das indústrias "maquiladoras" ou o envenenamento por produtos tóxicos das comunidades que ali vivem. "La Frontera" é uma espécie de utopia para o capital, onde corporações gigantes não pagam impostos locais, não se preocupam com a poluição que provocam e nunca precisam negociar com sindicatos aumentos salariais. As campanhas de trabalhadores para criar sindicatos independentes nas cidades fronteiriças de Cidade Juárez e Tijuana, no México, têm sido sistematicamente reprimidas pelo Estado.
A "guerra às drogas" constitui, na prática, uma desculpa formidável para militarizar a região de fronteira entre EUA e México.
Simplificações e estereótipos
Já desde seu primeiro livro, "Afogado" (ed. Record), de 1996, o dominicano radicado nos EUA Junot Diaz é considerado pela crítica o principal escritor hispânico do país. "Afogado" acompanha ao longo de várias narrativas a vida de um garoto dominicano cuja família emigra para os EUA. (MARCOS FLAMÍNIO PERES)
Pode-se ver "Afogado" como uma "pequena odisséia", um panorama da condição hispânica nos EUA?
Fico contente por você ter escolhido a palavra "odisséia". Poucos críticos percebem que a história é em certo modo um recontar do mito de Odisseu, só que da perspectiva do filho, Telêmaco, que espera pelo pai. O livro está interessado em um grupo específico de imigrantes dominicanos pobres e mulatos que vive na Nova Jersey central e também estuda a experiência da diáspora, os custos emocional, familiar e espiritual que concernem a esses deslocamentos de imigrantes.
O spanglish é uma expressão legítima da comunidade hispânica nos EUA?
Não sou linguista, mas parece que é comum e natural que duas línguas que estão em contato tão próximo se influenciem. Mas eu duvido que algum dia haja um verdadeiro idioma spanglish.
O sr. acredita que a questão da mestiçagem seja apenas uma construção ideológica?
Latinos, assim como afro-americanos, ainda sofrem a mais ultrajante discriminação nos EUA. Somos discriminados no trabalho, nos negam oportunidades em termos de habitação e tratamento médico adequado, somos discriminados por bancos e brutalizados pela polícia.
Agora, do outro lado da moeda, latinos, como os afro-americanos, também têm uma das mais surpreendentes histórias de resistência organizacional contra essas formas de supremacia branca; organizações latinas têm combatido a marginalização, criminalização e discriminação desde antes de o termo "latino" ser inventado.
Essa na verdade é a comunidade latina à qual pertenço e sobre a qual escrevi. Quando a imprensa "mainstream" fala de latinização, ela não tem interesse nenhum em realidades complexas; em vez disso, ela busca reduzir a comunidade latina a estereótipos ridículos e aos elementos musicais que são os mais facilmente acomodados.
Os latinos escolhidos pela mídia para representar a comunidade são, na verdade, escolhidos por representar melhor essas simplificações. Ricky Martin é um cara ótimo e Jennifer Lopez é bacana também, mas da forma como estão sendo representados atualmente eles são tão latinos quanto uma intervenção militar norte-americana. Uma verdadeira latinização dos EUA ocorrerá quando nossas lutas, nossas preocupações, nossas questões, nossas realidades se tornarem as lutas, preocupações, questão e realidade da própria nação.
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OBSERVAÇÃO: O título principal, os itens 1 e 2, os sublinhados não fazem parte da reportagem original. Foram acrescentados por Laerte Moreira dos Santos para auxiliar em um trabalho de Filosofia.