"Terra Nostra" só para os italianos
A mensagem subliminar é a
de uma suposta resignação dos negros à escravidão
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SUELI CARNEIRO
(Jornal "Folha de São Paulo", 27/12/1999)
Em um recente seminário em Brasília, o deputado Aloizio Mercadante comentou sobre o impacto positivo que a
novela "Terra Nostra" tem tido sobre a
auto-estima da comunidade italiana.
Auto-estima que, de tão elevada, estaria promovendo a revitalização das
festas tradicionais da comunidade. Os
negros, ao contrário, permanecem se
defrontando nessa novela com as
questões básicas que envolvem as suas
contradições com a mídia em geral: a
invisibilidade ou a visibilidade perversa, recheada de estereótipos.
O sociólogo Muniz Sodré diz que a
TV brasileira está para o negro assim
como o espelho está para o vampiro. O
negro olha: não se reconhece, não se
vê! Em "Terra Nostra", o barão do café
pondera com seu contratador sobre a
impossibilidade de abrigar os italianos
nas senzalas desertas pela abolição. Diz
ele: "São brancos. Trazem no coração o
espírito da liberdade. Não vão aceitar
essa história de senzala".
Em outro momento da trama, assistimos a o menino Tiziu reclamar de
sua sorte ingrata com a seguinte frase:
"Deus não quis me embranquecer".
Imagine o impacto dessas frases na auto-estima da comunidade negra, especialmente sobre as crianças negras.
Num diálogo entre o negrinho Tiziu
e o italiano Matheu, o menino diz ao
italiano que se ele não se comportar direito o capataz o colocará no tronco
como fazia com os negros. Matheu, o
herói italiano, reage dizendo que, se o
capataz tentar colocá-lo no tronco, será
um homem morto.
Essa é a chave explicativa dessas construções estereotipadas. A mensagem subliminar é a de uma
suposta resignação
dos negros à escravidão, cujo sentido é o
de ressaltar a bravura, o orgulho e a garra do branco imigrante, que jamais se submeteria aos
tratamentos dispensados aos negros.
Garra, orgulho e bravura seriam atributos que só a brancura pode dar.
Considerando que os personagens
negros não têm relevância na trama, a
sua presença e a imagem negativa que
veiculam prestam-se unicamente a ratificar a suposta superioridade do
branco.
A subserviência e o infantilismo dos
personagens negros reiteram a visão
preconceituosa de uma humanidade
incompleta do negro, que se contrapõe
à completitude humana do branco,
mesmo que sejam brancos de classes
subalternas, como é o caso dos imigrantes de "Terra Nostra".
Essa estereotipia justifica a exclusão e
a marginalização histórica do negro.
Ela legitima um projeto de nação que
vem sendo construído nestes 500 anos:
de hegemonia branca e exclusão ou
admissão minoritária e
subordinada de negros, indígenas e não-brancos em geral. E é
esse projeto de nação
que o imaginário televisivo busca consolidar
para o próximo milênio.
Um projeto que faz,
intencionalmente,
uma leitura do passado
que omite a violência da escravidão e
as diversas formas de resistência a ela
desenvolvidas pelos negros, a abolição
inconclusa e o papel da imigração na
estratégia das elites de branqueamento
da nação. E quando reconhece alguma
dessas questões o faz por intermédio
de personagens brancos, consubstanciando uma imagem estigmatizadora
do negro como um ser que tem de ser
tutelado pelo branco.
Um projeto que invisibiliza as lutas
do presente por igualdade de direitos e
oportunidades e pela afirmação da
identidade étnico-cultural, as reivindicações de políticas públicas inclusivas,
os exemplos heróicos de sobrevivência
numa sociedade hostil e excludente
em relação aos negros.
A reflexão do deputado federal Ben-Hur Ferreira (PT-MS) sintetiza o sentido último dessas imagens: "Tendo como pano de fundo, inequivocamente,
as comemorações dos 500 anos, a novela opta por uma leitura do passado
que reforça a violência racial do presente e retira qualquer possibilidade de
futuro em igualdade de condições de
cidadania para milhões de brasileiros
não-brancos".
Sueli Carneiro, 49, filósofa, pós-graduanda em filosofia da educação pela USP (Universidade de São Paulo), é coordenadora-executiva do Programa de Direitos Humanos/SOS Racismo do Geledés Instituto da
Mulher Negra.