Formas alternativas e jurídicas da propriedade da terra no Brasil: os quilombos no Vale do Ribeira
Lourdes de Fátima Bezerra Carril*
A luta pela terra no Brasil tem revelado uma grande variedade de situações e expressado sua heterogeneidade não somente em relação aos vários personagens que encampam essa luta como também às tramas relacionadas à terra, às relações sociais envolvidas, aos conflitos ocorridos e também em relação às soluções encontradas.
Sabemos que a reforma agrária continua sendo uma reivindicação e uma bandeira de luta de grande parcela da população rural. No entanto, os esforços realizados nessa direção pelo Estado ainda deixam a desejar e a realização efetiva do sonho da conquista de um pedaço de chão parece estar distante para o camponês que é ainda um personagem marginalizado, caminhando na sociedade brasileira à margem do processo de modernização, muitas vezes, expulso da terra e à mercê da violência das polícias estaduais ou dos braços armados dos fazendeiros e de grileiros.
No emaranhado de situações que têm sido apresentadas na luta pela terra no país, surgem recentemente as comunidades remanescentes de quilombos, outros personagens que emergem no conjunto do campesinato brasileiro e que partem de sua especificidade para também reivindicar o reconhecimento da legitimidade das terras que estão em suas mãos desde o período da escravidão. Ou seja, essas comunidades encontram-se nessas terras há mais de dois séculos. A terra é a herança que seus antepassados pelo direito consuetudinário lhes deixaram da época em que negaram o sistema escravista. No Brasil moderno, tornaram-se visíveis a partir de vários interesses que foram se dirigindo às suas terras ao longo do século XX, especialmente no período que engloba a década de cinquenta em diante, quando o processo de industrialização promoveu novas reorganizações espaciais, sobretudo na questão da integração territorial, sendo que extensas porções de terras sofreram valorização devido à abertura de estradas e foram incluídas no mercado imobiliário.
A constituição das comunidades quilombolas requer que entendamos o princípio subjacente à existência de terras comuns inerentes a esses grupos que há até pouco tempo desconsideravam o significado da terra privada, ao mesmo tempo em que conjugam terra e etnia como fatores que, por séculos vêm traduzindo a resistência ao "mundo branco", onde a negritude tem sido negada sob diversas formas, nem sempre com nuances. Por outro lado, uma outra reflexão deve ser feita, pois essas terras encontram-se agrupadas em determinadas regiões nos estados do Pará, Goiás, Maranhão, São Paulo, Mato Grosso, Rio de Janeiro, Santa Catarina, Maranhão e outros estados brasileiros e são a prova contemporânea da luta e resistência dos negros contra a escravidão, além de terem sido instrumento de aglutinação cultural e que permitiu a união dos grupos ao longo do tempo.
A interpretação do que vem a ser um quilombo no período atual, no entanto, é uma das problemáticas que vem sendo discutida devido à necessidade de titular tais terras. Na medida em que a compreensão de seu campo conceitual parte das construções realizadas durante as épocas filipinas e manuelinas, próprias do período colonial e cristalizadas durante o Império quando ainda vigorava a escravidão e, por conseguinte, as fugas de escravos continuaram a ocorrer, o quilombo passou a representar formas de agrupamentos de escravos fugidos de seus senhores. Assim sendo, Moura (MOURA:1987) aponta a definição jurídica dada pelo Conselho Ultramarino, de 1740 para o quilombo: "toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles." Tal definição, se por um lado, tornou jurídica a questão das fugas de escravos, marginalizando-os, penalizando-os e, sobretudo, definindo-os como aqueles que subverteram as normas, por outro lado, provocou o surgimento de formas de defesa contra o risco da identificação negativa que tal termo traria à população negra evadida do trabalho escravo. Conforme Almeida (ALMEIDA:1997), "Admitir que era quilombola equivalia ao risco de ser posto à margem. Daí as narrativas místicas: terras de herança, terras de santo, terras de índio, doações, concessões e aquisições de terras. Cada grupo tem sua estória e construiu sua identidade a partir dela."
O tema aqui apresentado envolve a terra como base fundamental para a sobrevivência física e cultural do camponês. Porém, trata-se, sobretudo, de refletir a respeito da questão de identidade como conceito revelador das diferentes formas de acesso à terra e das estratégias de conquista do direito à terra, sendo que na situação ora discutida, o fator étnico expressa uma parte da luta histórica do camponês pela terra.
Inicialmente, as pesquisas realizadas sobre os quilombos no Brasil moderno se destacaram na área de conhecimento da Antropologia, cujo instrumental voltado para a pesquisa de campo permitiu a investigação de alguns grupos localizados na região Nordeste e Sudeste. Recentemente, alguns estudos vêm sendo realizados em outros campos de pesquisa, históricos, geográficos e linguísticos. Não há um levantamento completo sobre um número preciso de comunidades existentes no país. Mas, o certo é que os quilombos foram formados em todos os lugares do território brasileiro onde ocorreu a escravidão. A Fundação Cultural Palmares criada em 1988 e vinculada ao Ministério da Cultura encontra-se realizando um mapeamento em todo o país. No Maranhão, por exemplo, foram mapeadas cerca de quatrocentas comunidades remanescentes de quilombos.
As terras de negros no Vale do Ribeira
Realizamos nossa pesquisa sobre as comunidades remanescentes de quilombos no Vale do Ribeira, sul do Estado de São Paulo, entre as cidade de São Paulo e de Curitiba, onde haviam sido identificadas 21 comunidades até o ano de 1995, quando apresentamos a dissertação de mestrado no Departamento de História. Atualmente, admitem-se existirem cerca de 51 comunidades em todo o Vale.
Foram escolhidas para a pesquisa as comunidades de Pilões, Sapatu e Ivaporunduva. Há muitas semelhanças entre estas comunidades e as demais encontradas em outros estados e regiões brasileiras: elas se encontram em áreas de difícil acesso, em serras e vales montanhosos, possuem suas formas próprias de apropriação dos recursos naturais e, ao contrário do que pensamos, as mesmas não estão isoladas, pois mantêm relações comerciais com os municípios e as regiões próximas.
Os escravos foram levados para essa região desde a época em que a mineração se desenvolveu e predominou na economia do Vale a partir do século XVI, se estabelecendo como atividade atrativa, inicialmente por aventureiros e por bandeiras que entraram por Iguape, conhecida como a porta de entrada para o Vale do Ribeira. Em 1702, o ouro era explorado quase sem controle pela Coroa quando foi expedido um Regimento apontando que ao ser descoberta e explorada uma mina, deveria se comunicar o Superintendente das Minas, através do Guarda-Mor, limitando, assim, sobremaneira a ação dos mineradores. Ivaporunduva é considerado o mais antigo dos quilombos no Vale do Ribeira e relacionam-se a ele a formação de outros quilombos como: São Pedro, Sapatu, Pilões, Maria Rosa, André Lopes e Nhunguara. Sabe-se que Ivaporunduva teria se originado com a doação pela Sra. Joanna Maria, das terras à capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, construída pelos escravos. Com o declínio da exploração do ouro de aluvião, muitos proprietários se deslocaram para Minas Gerais, levando escravos e riquezas obtidas com o ouro explorado; outros abandonaram seus escravos nas antigas áreas de minas. A escravidão, no entanto, não acabou; com a prosperidade da cultura do arroz, a mão-de-obra continuou predominando na região.
Esses quilombos permaneceram nessa região praticando a agricultura de excedentes comercializáveis, evidenciando outra característica comum a todos os agrupamentos de quilombos: ao contrário, do que pensamos, os quilombos não ficaram isolados, mantiveram relações comerciais com os povoados próximos ou com comerciantes que passavam próximo dos sítios onde estavam localizados.
As formas de apropriação dos recursos naturais foram, na maioria das vezes, resultado do ambiente em que se encontraram, na medida em que as famílias se refugiaram em áreas de florestas e matas, a montante de cachoeiras ou em serras. No vale do Ribeira, a presença de remanescentes de mata Atlântica propiciou desde o início a prática do extrativismo (como a extração do palmito) e a existência de terras abundantes e livres forneceu as bases para a reprodução física e cultural desses grupos. Estes fatores resultaram num saber sobre os recursos naturais e num vínculo duradouro dos indivíduos entre si e com o território, formando sua territorialidade. A maioria das terras no vale permaneceram, em grande parte devolutas, até a década de oitenta. Porém, na década de cinquenta, a implantação do Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira - PETAR colocou fim à liberdade de plantar dos camponeses negros que lá viviam.
Na década de oitenta, a Área de Proteção Ambiental - APA da Serra do Mar (1984) e, recentemente, a implantação do Parque Estadual Intervales acabaram por aprisionar mais terras dos remanescentes de quilombos, impedindo-os de cultivar a terra da forma que antes faziam e, ao mesmo tempo, colocou esses camponeses na situação de infratores permanentes, uma vez que alguns, desde que perderam terras para o plantio, foram empurrados para a extração clandestina do palmito como alternativa para a sobrevivência. A criminalização ocorre via Polícia Federal por crimes ambientais (eles não têm autorização para desmatar, pois não possuem o título da terra) e outras instâncias como o Departamento de Proteção dos Recursos Naturais - DPRN. Vendem para agroindústrias do palmito e para restaurantes da praça de Santos e de São Paulo, pelos intermediários que fazem esse intercâmbio, a preços irrisórios. De um lado, a agroindústria do palmito e de outro, a bananicultura, incorporaram essa mão-de-obra.
O processo de industrialização do vale do Ribeira, no entanto, acentuou a inserção do Vale do Ribeira, no Estado de São Paulo, como área de reserva de valor, sendo que a especulação imobiliária foi acelerada pela abertura de estradas, pela compra de terras para pastagens ou para projetos de desenvolvimento incentivados com isenções fiscais causando disputas pelas terras de negros. Projetos de construção de barragens têm sido feitos para o rio Ribeira de Iguape, o único rio não barrado no Estado. Três projetos eram de autoria da Companhia Energética de São Paulo – CESP e outro da Companhia Brasileira de Alumínio – CBA, do empresário Antonio Ermírio de Moraes, que se forem realizados, trarão um grande impacto sobre as comunidades e suas terras.
Situação Atual
Para as comunidades negras do vale do Ribeira, os desafios são muito complexos. Elas utilizam, há muito tempo, o uso comum das terras, praticam agricultura familiar, reproduzindo uma vida camponesa, baseada em laços de solidariedade e de ajuda mútua. No entanto, esses elementos que fazem aprte de seu cotidiano não lhes fornecem instrumentos suficientes para enfrentar os vários impactos de interesses distintos à sua lógica, quando estes se instalaram sobre seu espaço. A sua produção agrícola quase não atinge o mercado regional e suas relações sociais internas e externas encontram-se comprometidas pelas mudanças no padrão de trabalho. A insatisfação com o tempo de escassez que se abate atualmente nas comunidades leva os moradores mais velhos a criticarem o ritmo de trabalho das pessoas, por não resultar em benefícios para as mesmas:
"Eu falo mal do pessoal, agora é tudo vadio. Olha, antigamente você pegava, fazia uma roça, plantava, alguma roça nem carpida tava, aquela roça, se era de milho eu mesmo ia buscar, milho verde tinha, se era arroz,... eu tinha arroz prá catar, prá comer, a gente fazia cuscuz de milho novo prá comer, a gente fazia o tal de curau, a gente fazia pamonha, a gente fazia tudo, tudo aquilo era um conforto. Hoje em dia não, nem lavado o cuscuz e diz: mas eu não sei fazer. Criança desse tamanho em diante os pais e as mães deixavam dentro de casa...Quando eles chegavam da roça, o cuscuz estava cozido. Hoje em dia não tem uma mãe que ensine o filho a trabalhar, não tem uma mãe que seja trabalhadeira, os pais com coisa vai tirar palmito, outra coisa vai se empregar, outra coisa vai tentar chão, vai prá outro lugar procurar emprego. Como é que pode ter uma família de trabalhador, o que é que dá uma família dessa? O que é que vira uma família dessa?"(depoimento de Dona Antonia Vitorino da Comunidade de Pilões)
Esse estranhamento mostra a instalação de tempos distintos num mesmo espaço geográfico, sendo que as comunidades remanescentes de quilombos percebem no dia a dia, a alteração do ritmo de suas vidas, a espoliação do trabalho que não garante o mínimo para a sobrevivência, a desagregação dos laços comunitários e a submissão cada vez maior a uma lógica externa na qual são inseridos, mas sem recursos suficientes para a realização de intercâmbios comerciais satisfatórios. Além disso, observam com tristeza o aprisionamento das terras onde plantavam pelos parques estaduais e pelas áreas de conservação:
"O governo não deixa roçar, plantar a restinga do mato...a gente não carecia comprar as coisas do jeito que estão caras...planta lá no sertão escondido e às vezes paga multa, plantam arroz, milho, mandioca, banana...só pode plantar perto de casa, senão tem que plantar escondido...o filho meu fez uma roça, arroz, milho, mandioca, batata, couve...agora o mato cresceu e a terra enfraqueceu e não dá mais nada..."(Dona Antonia Vitorino, Comunidade de Pilões)
O disciplinamento do uso da terra com critérios ambientais acrescido da problemática estrutura fundiária no vale do Ribeira, causaram severo impacto às comunidades negras. As poucas áreas adequadas à lavoura encontram-se em mãos de grandes proprietários. Aos pequenos proprietários e posseiros restam as áreas de terras de menor qualidade e, muitas vezes, impróprias ao cultivo. O tamanho da propriedade, dessa maneira, sobrepôs-se a esse tipo de organização do espaço.
Diante de tantos desafios, a grande maioria das comunidades remanescentes de quilombos no Brasil vêm, assim, requerendo a titulação de suas terras através do Artigo 68 do Ato das Disposições Transitórias da Assembléia constituinte de 1988, aprovado através da pressão de segmentos do movmento negro e que assevera o seguinte:
"Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos."
No entanto, a diversidade de formas de constituição das terras de negros tem sido alvo de discussões, no sentido de efetivar as titulações, uma vez que, conforme já apontamos, a concepção de quilombo de que se parte é a de formação por fugas, como o Quilombo de Palmares. Porém, além das fugas, existiram situações como: doações de terras por antigos proprietários aos seus escravos, decadência da lavoura e a permanência dos escravos nas fazendas após serem abandonados por seus donos, terras doadas a santos e outros.
Alguns títulos de reconhecimento de domínio foram assinados e entregues a algumas comunidades: Pacoval, Boa Vista (Trombetas), Reserva Extrativista Quilombo do Frechal e Quilombo Rio das Rãs.
No Vale do Ribeira, Ivaporunduva é a única comunidade reconhecida pela Fundação Palmares. Os documentos históricos e a tradição oral somaram-se à presença de roças tradicionais, cemitério dos escravos e a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, construída em 1791 e tombada pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico – CONDEPHAT permitiram seu reconhecimento.
O movimento pelo reconhecimento dos quilombos no Vale do Ribeira iniciou-se em fins da década de oitenta. Desde então, o fortalecimento das comunidades cresceu em torno da articulação feita com Igreja, Movimento dos Atingidos por Barragens, ambientalistas e outros setores da sociedade. As várias demandas e temporalidades distintas que se instalaram sobre essas terras impuseram a consciência de que o quilombo é o marco histórico da liberdade e o transformaram num íntimo vínculo entre etnia e terra, agora reforçado pela memória dos mais velhos, pela reconstrução de práticas culturais típicas da população afro-brasileira para o reforço da identidade de quilombos. O medo da perda da terra e do desenraizamento, que na sociedade brasileira significa marginalização, ainda mais forte quando se trata da população negra fortaleceram a luta e a reivindicação de se fazer valer o direito ao Artigo 68 da Constituição.
* professora de Geografia da Escola Técnica Federal de São Paulo e do Colégio Santo Américo - Mestre em História Social, autora do livro Terras de Negros – herança de quilombos. Ed. Scipione. SP, 1997.