VIOLÊNCIA
Rubem Alves
(Da revista: "Tempo e presença", publicação do CEDI, número 246, ano 11, outubro de 1989)
Hoje a moda é explicar a violência. Para exorcizar o seu terror. Porque quando ela é explicada deixa de existir como coisa primeira: é só conseqüência de uma outra, que a provocou. Como se explica um defeito no motor do carro. Na verdade, o motor é perfeito, na sua concepção, uma máquina que funciona sem interrupções. Se parou, é porque entrou um cisquinho no carburador ou uma ligação elétrica se partiu. Como se explica também que o motorista morreu no acidente porque dormiu na direção. Mas como nós nunca dormimos na direção. podemos continuar a viajar de noite, sabendo que nada nos acontecerá. A explicação tem essa função: ela nos garante que, nos seus fundamentos, o mundo está em ordem. Para isto basta evitar ou consertar seus erros acidentais.
E é assim que se explica a violência das pessoas, apontando para suas origens sociais. As pessoas são violentas porque vivem em estruturas violentas. Seu comportamento violento nada mais que uma reação a uma provocação externa. No fundo os homens são bons. São os desvios da história que os fizeram maus. Se consertamos a história e eliminarmos as estruturas violentas, a violência desaparecerá. Pois é claro: se ela nada mais é que o efeito de uma causa, com a eliminação desta o seu efeito não poderá aparecer. Tem também a violência que é resultado de loucura. Mas loucura é quando a pessoa está fora de si. Então, não foi ela que foi violenta, pois nem sequer estava presente na cena. E o juris. com uma lógica impecável, vai absolvendo criminosos sob a alegação de que se encontravam "sob forte comoção" e com "privação de sentidos". Aquela pessoa que está ali como réu, na realidade não foi ela quem matou. De fato, se o seu corpo foi instrumento do crime, não foi a pessoa. Cessada a perturbação, ela voltou a ser o que era. O criminoso, portanto, deixou de existir, Se o seu corpo foi instrumento de violência, foi porque um outro dela se apossou - que nada tem a ver com a pessoa pacífica e arrependida que ocupa o banco dos réus. E temos de admitir que o argumento é válido. Como condenar uma pessoa inteira por um ato que foi apenas uma exceção? Até mesmo os bons podem ser tomados por acessos de loucura. Mas, passada a loucura, como ignorar a sua bondade?
E há também a explicação e justificação da violência como ato de defesa da própria vida- "Legítima defesa": quando a única forma de colocar um fim à violência do agressor é usar violência contra ele.
A violência explicada é a violência que fere mas não coloca em perigo o nosso mundo. Ela é incorporada dentro de nossa compreensão otimista dos homens. No fundo o que existe é a bondade. A violência é nada mais que uma perturbação lamentável desta ordem, que pode ser remediada.
O que é ameaçador é um outro tipo de violência: violência gratuita, pelo puro prazer de fazer sofrer. Até mesmo a violência do criminoso que destrói para roubar é compreensível. Pois se trata de um meio para se atingir um fim. Não é esta a violência da guerra? Agostinho observava que todos os que fazem guerra não fazem guerra pela guerra, mas fazem guerra pela paz, isto é , uma paz que esteja de acordo com os seus interesses. Por absurdo que possa parecer, o fato é que até a guerra pode ser explicada. Ela tem causas; ela tem objetivos. Se os seus objetivos pudessem ser atingidos por outros meios, ela não aconteceria. Mas há uma violência que não é mio para coisa alguma: violência que é um fim em si mesma, violência que dá prazer. E nisto ela está muito próxima da atividade sexual, que não se realiza para o fim da procriação, mas pelo puro prazer do orgasmo.
Já observou que o riso dos desenhos animados é sempre provocado pela violência? Riso sádico. O piano cai sobre o Tom, que se transforma num caranguejo. Ou é a ratoeira que pega o seu nariz. Ou o mergulho na piscina vazia, em que ele se quebra como se fosse louça, para logo depois aparecer ressuscitado, para continuação do festival de sadismo.... Sem isto o desenho não teria graça. É, o sadismo tem graça. Dirão: "Mas é só desenho animado!". Eu sei! O extraordinário é que os desenhos animados tenham descoberto que o sadismo é a forma mais rápida de se provocar o riso. Bondade não faz rir. Faz é chorar...
As brigas de galo. O prazer na violência é tanto que sobre as esporas naturais se colocam outras de ferro, pontiagudas, para que o sangue jorre mais fácil. As touradas , manifestação suprema da cultura esportiva de um povo que aplaude, orgástico, quando as banderillas afiadas entram na carne do pobre bicho. E os especialistas em tal arte sádica de matar aos poucos, para o deleite estético de muitos, são os belos "matadores". Sim, os matadores têm de ser belos, para provocar a inveja dos homens e o amor das mulheres.....
Na escola a meninada gosta de escolher um pato. Via de regra um menino mais fraco, mais feio, esquisito. A forma mais branda da violência é o apelido, que nada mais é que um nome que cutuca a ferida. Apelido só tem graça quando fere. Depois, há as violências que vão das palavras aos fato, e que culminam nos rituais de humilhação chamados "trotes".
Pessoas normalmente pacatas em geral fracas, são transfiguradas nos rituais de linchamento. Todas querem dar o seu murro, sua paulada, sua facada. E dormem com a consciência tranqüila. Quando as pessoas se juntam, o senso moral enfraquece e a besta que estava à espreita, dentro de cada um, pula para fora. E viramos lobisomens.
E a coisa aparece também na política. É improvável que candidatos pacifistas e ecológicos sejam eleitos. Um dos candidatos mais votados no Estado de são Paulo foi um tal de Afanásio, radialista, que diariamente oferecia aos seus ouvintes celebrações de violência em que os "mocinhos", respeitadores da lei, ele, nós, todos identificados como herói que saca sua arma e mata os bandido, liquidavam os inimigos. É bom matar um inimigo. E aí está um segredo para ser eleito: identifique um bandido, sejam os "marajás", sejam os desonestos, sejam os ingleses que tomaram as Malvinas, sejam os judeus ou os negros, e prometa que eles serão liquidados. A vitória é certa. Em torno dos rituais de violência até os inimigos fazem as pazes. Matar junto é um sacramento de fraternidade.
E aí o senso moral pára de funcionar e a razão sai de cena. Não admira que Hitler tenha subido ao poder, e que o povo argentino tenha feito as pazes com os militares na guerra das Malvinas. Se a aventura tivesse dado certo, até hoje estariam de bem. Parece – e isto é terrível – que dentro de nós o ódio gruda muito mais que o amor. Mas a explicação é simples: o amor é fraco e demorado; a violência é forte e rápida. É mais fantástico derrubar uma árvore que levou séculos para crescer, que plantar uma que só crescerá depois que estivermos mortos... É por isto que gostamos tanto dos filmes de guerra e dos Rambos. Identificamo-nos com o homem de metralhadora na mão e ali vamos gozando a volúpia da violência...
Esta violência gratuita nos faz suspeitar que as explicações sejam terríveis. Na verdade, não há explicações.
O cristianismo, para salvar os homens, colocou a violência do lado de fora, no Demônio que vem, invade e toma posse. Mas se a violência é coisa do Demônio, ela não é tão grave assim, pois Demônios se exorcizam com as palavras sagradas. Mais terrível é a sugestão de que a violência seja coisa que moral em nós, focando lá escondida, à espreita, esperando o aparecimento das condições exteriores para a sua manifestação. Não surge nem das condições sociais e nem da privação dos sentidos. Tais condições são apenas a ocasião para a sua revelação. A teologia mais sofisticada, abandonando o auxílio do Demônio, se referia ao "pecado original". Já nascemos portadores de uma perturbação em nossa capacidade de amar. Enamoramo-nos da "coisa ruim": fazemos amor com a morte. E para isto não há explicações. Com o que a psicanálise concordaria, dizendo que somos uma mistura desigual de Eros e Tânatos, vida e morte. E a distribuição não é democrática Alguns recebem muita vida e pouca morte. Outros, pouca vida e muita morte. O que não deixa de se uma versão moderna d doutrina calvinista de "dupla predestinação": antes que tivéssemos feito qualquer coisa, em nossa total inocência, em nós as duas potências já se encontram em sua inexplicável desigualdade.
Talvez a expressão simbólica mais curiosa deste sadismo está no inferno, lugar onde colocamos aqueles a quem marcamos pelo ódio dentro das câmaras de tortura eterna. E se pensam que o inferno não existe dentro, mas em algum lugar do cosmos, teremos então de admitir que o próprio Deus tem um eterno prazer nos gozos sádicos: da felicidade dos céus, contemplando o sofrimento dos perdidos. É claro que esta tem de ser uma visão de felicidade, pois se assim não fosse Deus estaria se condenando a si próprio a um sofrimento sem fim...
Mas a melhor lição sobre a violência eu a encontrei não livro de Orwell, 1984. Lá, na câmara de torturas, o torturador dá esta notável lição ao torturado:
"Não, não o torturamos para saber nenhum segredo. Não há coisa alguma que você nos possa dizer que nós não saibamos. Não somos nós que precisamos aprender. É você. E a lição é simples. O poder. Tiranos de outras épocas foram estúpidos. Pensaram que o poder era meio para algum fim. E repetiam para si mesmos e para outros que eles torturavam e matavam a fim de que, algum dia, houvesse mais prazer e alegria. Somente nós compreendemos a verdade. O poder não é meio para coisa alguma. Não queremos uma sociedade mais juta. Não queremos que os homens e mulheres sejam mais felizes. Não queremos prazeres para nós mesmos. Uma coisa somente é importante: o poder. E é isto que se sente quando o corpo do torturado se contorce, impotente. É bom fazê-lo sofrer. Em meio aos seus gritos, algo de mágico acontece: na medida em que ela fica mais fraco, eu me sinto mais forte. Transfusão de poder. Ele está mais próximo da morte. Eu estou mais próximo dos deuses. Aqui está a simples lição de poder: sentimos mais a volúpia da divindade quando temos poder para fazer sofrer e para matar". Não gosto de ler isto. Mas tenho a impressão de que é verdade....