DE SANGUE E CELULÓIDE

Por Marcelo Moutinho

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Violência. Palavra do dia, ordem do dia, produto. Talvez nunca como hoje este tema venha sendo tão debatido. Ainda que tenha dominado capítulos inteiros na história, poucas vezes mereceu tanta atenção, tantas análises, tanta exposição como nos calcanhares da pós-modernidade. E é no quesito exposição que se pode inaugurar uma interessante discussão. Até porque se pretende partir de uma forma de arte cunhada na época moderna por excelência: o cinema, que, principalmente a partir da década de 80, vestiu sem qualquer ressentimento essa camisa.

Cenas que antes se mostravam pela sugestão, como o famoso assassinato no banheiro em Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, agora só funcionam superexpostas, em planos aproximados. Mas a aceitação da violência nos primórdios da chamada Sétima Arte já começou a se desenvolver segundo uma lógica perversa. Os filmes que sedimentaram a narrativa primeva do cinema seguiam uma narrativa importada do romance literário de folhetim, principalmente os de Charles Dickens. Continham uma violência implícita, até ingênua perto do que se assiste nas telas atualmente.

Na simplificação bom versus mau do cinema tradicional, na maioria das vezes se admitiu sua utilização sem limites, caso se situasse do lado correto. E deste lado geralmente aparecia o do Estado, de onde poderíamos relembrar a fórmula descrita pelo sociólogo Max Weber, localizando o viés de diferença entre a barbárie e a civilização no fato de a última deter, pelas vias legais, o monopólio da violência.

Para o outro lado da moeda, no entanto, o cinema reservou um discurso distinto. Os crimes ou atos violentos praticados pelos bandidos, que "transcendem a ética puritana do capitalismo", como salienta o historiador e crítico Luiz Nazário num estudo sobre A Hora do Pesadelo (1984), recebiam como espaço as reservas de condenação do imaginário de diretores e produtores. A idéia era trabalhar uma aproximação de empatia entre o espectador e o protagonista, e um distanciamento acrítico com relação ao antagonista.

Dentro deste tipo de narrativa tradicional, guarda-se para o final do filme um enfrentamento entre os dois lados, concentrando em uma sequência uma série de investimentos operados durante toda a projeção. O herói, até então sobrevivente das forças do mal, se transforma em extensão do público, na reserva última de esperança na batalha com o perigo, onde se deve antever a possibilidade da morte. A cada crime cometido pelo bandido, cativamos nossa simpatia pelos sobreviventes. Na análise de Luiz Nazário, ele aliena a este elemento o ódio que se desenvolve contra o assassino, "que parece insensível e permanece ameaçador mesmo ferido, queimado, cortado ou descarnado".

Uma segunda linha na história do cinema, bastante influenciada pelo movimento expressionista e que desembocaria no estilo noir, legou à questão da violência uma abordagem psicológica. Trabalhos como A Última Gargalhada, de Friederick Murnau, contando as trágicas mudanças na vida de um velho homem que vê se esvair sua única engendragem de inserção social: a roupa de porteiro, dimensionaram um novo modelo a ser seguido. Paralelamente aos romances folhetinescos com traços maniqueístas traduzidos em lutas corporais, se postavam agora obras claramente preocupadas com os embates com máquinas sociais e entraves psicológicos.

É, entretanto, o primeiro caso que mais nos interessa. Essa ética da violência permitida e ratificada socialmente, com projeções óbvias, tornou-se clichê e, num terceiro momento, provoca mais uma mudança no eixo referencial cinematográfico. A nova postura veio se delineando desde o início dos anos 80, quando uma geração de diretores saída das escolas de cinema colocou em cheque os propósitos do filmar.

Os filmes da década de 80 significam uma retomada ao padrão griffhthiano da narrativa clássica, anterior à revolução estética da nouvelle-vague, mas salpicam na fórmula ressuscitada reflexões que a circundam como objeto. Tratava-se de uma espécie de meta-referência, com a revitalização niilista dos gêneros policial e de suspense, e destaque para uma retrô noir. A reflexão sobre a função do cinema, e ainda mais longe, da imagem, num mundo clicherizado nos chegou através também de trabalhos como A Rosa Púrpura do Cairo (Woody Allen, 1985), Blade Runner - O Caçador de Andróides (Ridley Scott, 1982), O Fundo do Coração (Francis Ford Copolla, 1982) e Paris, Texas (Wim Wenders, 1984), entre outros.

A tendência começaria a murchar nos primeiros anos da década de 90. A retomada de um caráter intimista, expresso já em filmes como Sexo, Mentiras e videotape - a idéia de intimidade está presente no próprio título, cunhado em letras minúsculas - , de 1989, substituiria a elegia à ação, que também se faria presente, mas dentro de um tratamento diferenciado do esquemão bem x mal com garantida satisfação para nossos mocinhos.

Os diretores constróem uma nova forma de final, fora dos moldes do clássico happy-end. O caráter serial de muitos dos filmes lançados durante os anos 80 já era a sua prova concreta. Para garantir a continuação, é preciso que se bloqueie a derradeira sequência e se apresente uma deixa de seguimento para o próximo título.

Mais uma vez é Luiz Nazário quem nos auxilia na análise. Estudioso dos filmes de terror, ele aponta a fórmula usada pelo cinema no período. "Se a história aparenta terminar bem, na cena final o Mal pisca o olho para prevenir o espectador de que a luta continua, de que o alívio não chegou", afirma. Nestes momentos, geralmente colocados estrategicamente nos últimos instantes do filme, o bandido marca sua presença e indica que continua vivo.

O problema é que esta estratégia também se transformaria em clichê com o passar dos anos. E isso foi desmotivando o público de enxergar no mocinho o vencedor no embate constante. Segundo Luiz Nazário, "se dissemina um conformismo total entre os espectadores, que não apenas desiste de lutar contra o novo Mal - múltiplo, devastador, invencível, inevitável - como também passa a desejar, masoquisticamente, o seu triunfo: se não se pode vencer o inimigo, convém juntar-se a ele, sugere toda a produção do horror contemporâneo". O poder de sobrevivência do que antes constituía o inimigo o elevará à potência de herói.



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