AFONSO DE PORTUGAL 11o GRÃO-MESTRE DA ORDEM DO HOSPITAL DE SÃO JOÃO DE JERUSALÉM, E O SÉCULO XII PORTUGUÊS
Por Ariel Castro
Universidade Federal do Rio de Janeiro

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S U M Á R I O

1 - INTRODUÇÃO

2 - A MONJA CHÂMOA GOMES NOS LIVROS DE LINHAGENS

3 - O CONHECIMENTO GENEALÓGICO NO SÉCULO XIII

4 - A HIPÓTESE DO PRESENTE TRABALHO

5 - PRIMEIRA PROVA: Afonso de Portugal, grão-mestre dos hospitalários em 1203, e suas relações com o trovador Raimbaut de Vaqueiras e Mathilde, condessa de Flandres.

5.1 - Afonso em Marselha com Raimbaut de Vaqueiras

5.2 - Afonso em Embrun, a caminho de Corbeil

5.3 - Afonso em Corbeil com sua irmã, a condessa e rainha Mathilde de Flandres

5.4 - Afonso, grão-mestre

5.5 - Pressupostos do título de grão-mestre e a situação pessoal de Afonso

6 - SEGUNDA PROVA: A verdadeira história de Châmoa Gomes

6.1 - Châmoa Gomes e seus "filhos"

6.2 - Indícios da identidade entre Fernando Afonso e Afonso de Portugal

6.3 - Ano e circunstâncias do nascimento de Afonso de Portugal

6.4 - O relacionamento entre Afonso Henriques e Châmoa Gomes

6.5 - Pano de fundo do relacionamento: a questão galega

7 - AS ORIGENS DE AFONSO DE PORTUGAL E SUA DESIGNAÇÃO PARA O GRÃO-MESTRADO DA ORDEM DE SÃO JOÃO DE JERUSALÉM

8 - CONCLUSÃO

APÊNDICE

1 - INTRODUÇÃO

    Vários trabalhos de eminentes pesquisadores, desde Alexandre Herculano, têm servido para colocar, em bases mais sólidas e realistas, os longos anos de governo do primeiro rei de Portugal.

    Acreditamos que, ainda assim, numerosos pontos obscuros precisam ser resolvidos pelo investigador que se proponha abandonar certas verdades mal comprovadas e algumas hipóteses mal fundamentadas. Nesta direção tem trabalhado, com excelentes resultados, o grande historiador contemporâneo José Mattoso e, na pespectiva literária, Luis Felipe Lindley Cintra, Antonio José Saraiva, Magalhães Basto e Monica Blöcker-Walter.

    O primeiro ponto importante, que deve ser ressaltado, é a inequívoca relação entre o mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e os primeiros relatos, politicamente fantasiados, da vida de Afonso Henriques, não sendo de se excluir desse contexto as já comprovadas falsificações de documentos reais ou a eles aparentados, feitas na mesma época.1

    Um segundo ponto, muito pouco esclarecido, é o do surpreendente celibato do primeiro rei português até, pelo menos, os 35 anos de idade, fato incomum não somente no contexto dos costumes reais do século XII, como também no da própria vida familiar dos governantes ibéricos desse século. Não há, praticamente, quem tenha ousado levantar a verdade a respeito desse fato.2

    Também parece pouco convincente a relativa tranquilidade das relações entre Afonso Henriques e seu filho Sancho I relativamente à Santa Sé, de que se tem, como atrito, apenas a correspondência do segundo monarca sobre a questão do censo e sobre o seu relacionamento com o bispo do Porto e a população desta cidade. Afonso Henriques parece ter tido problemas com o legado papal Guido, em 1143. Só há, porém, a este respeito indícios deixados pela saga deste rei.3

    A impressionante falta de documentos ou referências à vida inteira ou parcial dos dois primeiros filhos, ditos ilegítimos, de Afonso Henriques, Fernando Afonso e Afonso de Portugal, principalmente este, bem como a falta de documentos das relações entre Sancho I e sua irmã legítima, Mathilde de Flandres, são, no mínimo, estranhas, dada a importância da ação militar dos dois "irmãos" e, no caso desta princesa, de sua participação na política de Felipe Augusto, dos condes de Flandres, do conde Eudes de Borgonha e dos papas Celestino III e Inocêncio III. As hipóteses de Luciano Cordeiro, a respeito, merecem ser retomadas e examinadas à luz dos mais recentes progressos.

    Permanece, igualmente, obscura a natureza do relacionamento de Sancho I com a Ordem do Hospital de S. João de Jerusalém, quando se sabe que, justamente durante seu reinado, seu irmão ilegítimo, Afonso de Portugal, tornou-se Grão-Mestre da poderosa milícia, que foi um dos dois braços armados do papa Inocêncio III no seu projeto de liberação dos lugares santos das mãos dos infiéis.

    Um último ponto, de inegável importância para a compreensão da política dos reinados de Afonso Henriques e Sancho I, é a difusão e grau de uso do direito canônico na Península Ibérica, em geral, e em Portugal. Afinal, foi o século XII o grande século da codificação das leis de Roma, o período em que as decretais dos papas assumiram o primeito plano nas relações entre os povos e em que os grandes mestres do direito canônico o foram, ao mesmo tempo, do direito, em sentido amplo.

    A determinação, com que o historiador José Mattoso vem apresentando fragmentos da história medieval portuguesa, para permitir a seus leitores identificar peças do enigma em que se constitui esta história, tem sido um estímulo, também, para as pessoas que, de longe, amam o Portugal de suas origens culturais. Neste sentido, a tentativa de montar uma "composição medieval" que seja, ao mesmo tempo, revelação e encontro, tende a ganhar adeptos, mesmo que anônimos.

    Na reconstituição do enigma, reconhece o Mestre que há zonas que ele quer ajudar a identificar, mas para as quais não apresenta peça nenhuma. Um exemplo dessa situação é a repetição que faz da história de Châmoa Gomes, a filha do conde Gomes Nunes de Pombeiro, a qual, depois de enviuvar em 1129 do magnata Paio Soares, "fez-se monja no mosteiro beneditino de Vairão" e teve dois amantes, Mem Rodrigues de Tougues e o rei Afonso Henriques. Deste último, teve um filho, o bastardo Fernando Afonso, "criado na corte e morto em Évora pelos cavaleiros de Calatrava".4

    Uma evidência indireta da história de Châmoa Gomes está na Crônica Geral de Espanha de 1344, sendo razoável a explicação que seu editor dá para a origem hispânica da rainha D. Mafalda, isto é, ter havido erro na transmissão de crônicas. Moliana ter-se-ía confundido com Molina, apesar da dificuldade do deslocamento da sílaba tônica.5

2 - A MONJA CHÂMOA GOMES NOS LIVROS DE LINHAGENS

    Na história de Châmoa Gomes, temos de considerar como mais decisivos dois fatos.

    Em primeiro lugar, o acesso do Conde D. Pedro, autor do Livro de Linhagens que leva seu nome, a uma coleção de fontes referente à família dos Laras, a que pertencia seu grande amigo João Nunes de Lara. O Livro de Linhagens, muito significativamente, realça a ligação dos Laras com os Travas, o que lhe permite colocar a rainha D. Mafalda entre os antepassados de João Nunes.

    Em segundo lugar, temos o fato de que uma sobrinha de Nuno de Lara, trisavô de João Nunes, fora mulher de Afonso Henriques e rainha de Portugal. Chamava-se Mafalda e sua avó, Eva Peres de Trava, casada com Pedro de Lara, era irmã de Fernão Peres de Trava6

    Segundo o Livro Velho, Afonso Henriques teve um filho em "drudaria" com uma filha de Elvira, também irmã de Fernão Peres de Trava. Chamava-se Châmoa Gomes.7

    Significativamente, este fato é omitido no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, muito embora se fale de D. Elvira Peres de Trava no mesmo parágrafo em que se trata de D. Eva. Só é mencionado aí seu primeiro casamento com D. Vela Ponço. O segundo, com D. Gomes Nunes de Pombeiro, não o é.

    Como Mafalda, rainha de Portugal, nada tinha a ver com os Laras, os Molinas e os Travas, fica a impressão de que, na memória da família de João Nunes de Lara, havia a lembrança de alguém, entre os antepassados, que se unira em casamento ao primeiro rei de Portugal. Já que os livros então existentes talvez só mencionassem a rainha D. Mafalda, tomou esta o lugar de uma sobrinha de Fernão Peres de Trava, antepassado da família de João Nunes de Lara. Ao invés da real D. Châmoa Gomes, filha de Elvira, criou-se, conscientemente ou não, uma fictícia D. Mafalda Manriques, sobrinha do antepassado Nuno de Lara, que era casada com uma filha de Fernão Peres, Teresa Fernandes. Esta se tornou rainha de Leão após enviuvar e casar com o rei Fernando II. O pai da fictícia Mafalda, Manrique de Lara, e seu irmão Nuno eram filhos de Pedro de Lara, casado, segundo o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, com Eva, irmã de Fernão Peres de Trava.

    Em nossa opinião, portanto, houve a interferência de uma concreta rainha de Portugal na história dos antepassados de João Nunes de Lara. Para isso contribuíram Fernão Peres de Trava, sua irmã Eva e sua filha, a também rainha Tereza Fernandes. O triangulo real foi constituído de Fernão, sua irmã Elvira e a filha desta, Châmoa.

3 - O CONHECIMENTO GENEALÓGICO NO SÉCULO XIII

    A história de Châmoa Gomes, que começou a ser contada no Livro Velho de Linhagens (LV 1B6-7), composto num meio claramente monástico da penúltima década do século XIII, foi, certamente, muito dependente de sua ideologia e política.8

    Quando esses fatos ocorreram, o gosto do conhecimento genealógico era já velho de muitos anos, porque inserido num meio político-ideológico de valorização da nobreza hereditária e de diminuição do poder do rei. A nova estrutura social desfavorecia a presença de chefes não comprometidos com a consangüinidade. Estes pertenciam ao passado que se procurava substituir,começando a incipiente noção de Estado a ser mais importante que a de magnatas.

    Os livros de linhagens, como sabemos, representam, a conscientização, em determinado momento, da necessidade de fortalecer a família agnática, do parentesco de sangue, para melhor garantia da sucessão hereditária e predominantemente masculina. A velha família cognática, com todo o seu esquema de solidariedade, não podia subsistir em um contexto em que a concepção de Estado se cristalizava paulatinamente.

    Tal mudança, em nossa opinião, não é de fins do século XIII, mas do seu início e é dependente, à distância, dos dois soberanos que lançaram as bases do Estado dos séculos seguintes: Felipe Augusto e o papa Inocêncio III. A concepção germânica de um Estado, ao mesmo tempo terreno e celeste, sob a direção do Imperador, deu lugar à do Estado desvinculado de condicionamento à vontade da Igreja, com o rei no pleno domínio de sua jurisdição temporal. Foi o que fez Felipe Augusto, ao contrário de Inocêncio III, que buscava ocupar o lugar do Imperador.

    Em Portugal, o processo de mudança coincide com o que ocorria na França, não porque tivesse a mesma importância geopolítica mas porque da corte francesa vinham os sinais do processo de mudança, enviados, talvez, por uma irmã de Sancho, Mathilde de Flandres. Estes sinais nem sempre significavam uma solidariedade ideológica com o que ocorria na corte de Felipe Augusto, principalmente depois da ascensão de Inocêncio III ao trono papal. O sentido, porém, do fortalecimento da figura do rei era o que Sancho assimilava e tal fato provocou a instabilidade de seu governo com o mesmo tipo de conflito que ocorria na França: o rei contra a presença do papa em sua jurisdição. Mathilde solidarizava-se com este, porém procurava manter a aparência de laços fortes com o rei. Tal situação pode ter tido repercussão em Portugal a partir do momento em que o conflito de Sancho com a Igreja passou a representar forte contradição entre as ambições efetivas de Mathilde e a ação do rei português na defesa de seu poder. As colônias de flamengos, fundadas em Portugal, e o verossímil estabelecimento de mais portugueses em lugares como Luisetaines (Donnemarie-en-Montois, não muito longe de Provins, em 1202) ou Chateaubleau, Coutençon e Carrois (1203) fazem parte desse contexto, em que a ação é de iniciativa de Mathilde de Flandres.

    Os Annales Domni Alfonsi Portugalensium Regis, cuja redação, pelos crúzios, é de 1183, aliam-se à notícia dos bens de Mendo Muniz, irmão de Egas, para indicar o processo de conscientização do novo papel da nobreza diante do conflito entre os interesses da Igreja e os do rei. Este processo só terminou no fim do governo de Sancho e é dentro dele que é montada a história de Châmoa Gomes e do seu filho Fernando Afonso, havido em "drudaria" com o rei Afonso Henriques.

4 - A HIPÓTESE DO PRESENTE TRABALHO

    A hipótese que aqui apresentamos é a de que a história de Chamôa surgiu em um momento em que era importante para a nobreza preservar a linha hereditária legítima, na sucessão real, contra uma corrente que queria afastar Sancho do trono. Uma série de fatos, pouco claros ainda hoje, mas conhecidos desde o século XIII, depõe em favor da impressão de que o poder esteve, realmente, para fugir das mãos de Sancho I por força da oposição que lhe faziam nobres de provável estirpe galega. O quadro dessa tensão, que provavelmente culminou com a batalha de Trasconho, é emoldurado pela ação subversiva de Pedro Mendes de Poiares e seus adeptos, pelas perseguições de homens de Sancho I a Lourenço Fernandes, de que é prova a famosa Notitia de Torto, já por nós editada (Revista de Portugal, Série A, Língua Portuguesa, número especial, 1972), e pela lenda, ou tradição, que atribui a Afonso de Portugal, grão-mestre da Ordem da São João de Jerusalém, a tentativa de assumir o trono em lugar de Sancho I. Afonso, que não é outro senão Fernando Afonso, voltou a Portugal com essa pretensão depois de galgar, com a ajuda de sua irmã Mathilde de Flandres, os postos cumulativos de prior da Espanha e grão-mestre e em sintonia com a política do papa Inocêncio III.

5 - PRIMEIRA PROVA: Afonso, grão-mestre em 1203, e suas relações com Raimbaut de Vaqueiras e Mathilde de Flandres

5.1 - Afonso em Marselha com Raimbaut de Vaqueiras

    Há um conhecido trovador provençal, Raimbaut de Vaqueiras, que, em sua obra, apresenta intrigantes pontos de cruzamento com a cultura portuguesa: a chanson de femme "Altas undas que venez suz la mar", muito parecida com duas contigas de amigo de Martin Codax, e os versos galego-portugueses do célebre descordo plurilíngue. A respeito desta última composição, além da edição crítica que fizemos, tivemos a ocasião, recentemente, em conferências feitas nas universidades de Cagliari e Padova, de demonstrar que as cinco línguas usadas correspondem às cinco províncias, ou "línguas", então já em vias de serem estabelecidas na organização administrativa da Ordem Militar de São João de Jerusalém pelo novo grão-mestre, justamente o irmão bastardo de Sancho I e Mathilde de Flandres, Afonso de Portugal.9

    O mesmo poeta é autor de três epístolas em verso a seu protetor, o marquês Bonifácio de Monferrato, em que recorda os feitos importantes que empreenderam juntos, com a clara finalidade de ver-se recompensado pelo marquês. Na segunda epístola, depois de lembrar a expedição que fizeram contra a Sicília, em 1194, Raimbaut diz:
 

"E quant anetz per crozar a Saysso,
ieu non avia en cor, Dieus m'o perdo,
que passes mar, mas per vostre resso
levey la crotz e pris confessio;
e era pres lo fort castel Babo,
e no m'avion res forfait li grifo."
 

Na tradução de Martin de Riquer, o sentido é o seguinte:
 

"Y cuando fuísteis a Soissons para
haceros cruzado, yo no tenía ánimos,
Dios me lo perdone, para atravesar
el mar, pero por vuestra fama tomé
la cruz y me confesé; y me encontra-
ba cerca del fuerte castillo Babón, y
en nada me habían sido injustos los
griegos."10

 

    Como se vê, Raimbaut recorda a Bonifácio o tempo em que se cruzara em Soissons, sem que ele, Raimbaut, tivesse tido a coragem de fazer a viagem de ultramar. Todavia devido à fama de Bonifácio, acabou por tomar também a cruz e se confessou. Na ocasião, estava junto ao castelo Babón, assinalando que, jamais, os gregos lhe tinham feito mal algum. Afinal, Raimbaut recordava isso em solo grego.

    O sentido dado ao relato por Martín de Riquer não merece reparo a não ser no trecho " e pris confessio ", que Linskill, o editor de Vaqueiras, e os editores mais antigos da composição interpretaram da mesma maneira:

" I took the cross and made confession"11

    De fato, o sentido de "pris confessio" não pode ser, apenas, o de "fiz confissão" ou "confessei-me". Du Cange, na edição aumentada de Léopold Favre, apresenta confessio, - onis como fidelitas professio, profissão de fé religiosa, e já dá um exemplo desse significado em Orderic Vital, em 1107.12

    O nosso Viterbo exemplifica esse sentido, no Mosteiro de Lorvão, em 919.13

    Em nossa opinião, o poeta não quis dizer que se confessou mas que fez profissão de fé religiosa, que tomou confissão de fé, que fez afirmação pública de fé; enfim, que tomou ordens. A prova disso é dada pela interpolação. presente no manuscrito E, que, na opinião de Linskill,

 

    "... though having links with both these groups (os dos mss. Cj e RSgcv) betrays once again a marked individualism at lines 26, 29, 58 offers divergent and expanded versions which examination reveals to be interpolations."14

A interpolação da linha 29, justamente a que examinamos, é a seguinte:

" e pueis quan fom la deu benesio tornat ab uos sai en uostra reio anc nom uirei per uezer ma maizon".

    Estes versos e dois outros do ms. E têm dado oportunidade a certa discussão, desde Appel até Linskill, passando por Schultz-gora e Crescini. Schultz-gora, por exemplo, vê coloração clerical nesse trecho, que pode significar um relato histórico mais acurado dos eventos apresentados por Vaqueiras.15

    Crescini, por sua vez, nota que se trata de uma alusão histórica precisa, porém incompreensível.16

    Parece-nos que a incompreensibilidade do trecho em questão tem resultado do incorreto julgamento de "deu", como substantivo, e de "ab", em seu sentido normal. Raimbaut de Vaqueiras nunca se mostrou aos modernos filólogos como um poeta que emprega termos sempre com sentido previsível. Linskill apresenta 48 exemplos de palavras ou expressões de significado pouco comum ou de ocorrência rara, presentes na obra do poeta.17

    No caso de "deu", trata-se de forma portuguesa que, por qualquer motivo, apareceu no manuscrito E em lugar de "det", por si só já pouco comum. "Ab", como exemplifica Raynouard na obra de Bernart de Ventadorn, equivale à preposição francesa "par".18

    "Fom", como assinala Bartsch, é variante gráfica possível de "fon", 3a pessoa do singular do perfeito do indicativo do verbo "esser". Por outro lado, "sai" em lugar de "sui" deve ser leitura errada do copista por influência de "lai", presente na segunda oração sob a forma "la". Esta deve ter sido mesmo "lai" no original que esteve diante dos olhos do copista languedociano do século XIV, embora, na verdade, fosse "la i", isto é, o advérbio "la" seguido da conjunção "e".

    A correta leitura, em sintonia com o verso anterior, "levey la crotz e pris confessio", deve ser

"e pueis, quan fom la i deu benesio,
 tornat ab uos sui en uostra reio.
 Anc no.m uirei per uezer ma maizo."

Ou seja:

"e depois, quando ele esteve lá e deu a bênção,
 desviei-me, por vós, para vosso país.
 Jamais retornei para ver minha casa."

Esta interpolação, assim entendida, está inteiramente de acordo com a expressão anterior "e pris confessio", "fiz votos".

"Maizo" não significava apenas "morada" mas, igualmente, como ainda hoje, "convento", "comunidade religiosa".

    O poeta está dizendo que prestou o juramento de cruzado, fez votos religiosos mas, depois de ter sido recebido em sua ordem por alguém que deu a benção, foi para junto de Bonifácio de Monferrato e, a seguir, para o reino de Tessalônica. Não seguiu seus irmãos de profissão religiosa. Preferiu, por causa de sua amizade e lealdade com Bonifácio, ir ter com ele na Grécia. Ao recordar isso, assinala que, desde então, jamais voltou à sua comunidade. Todos esses fatos aconteceram quando ele esteve no castelo Babon, residência do Visconde de Marselha, Hugues de Baux, irmão de Guillaume, que as Vidas de Raimbaut identificam como seu protetor provençal. Antes, tinha ocorrido, conforme o relato, a escolha de Bonifácio, em Soissons, para chefe da Quarta Cruzada. A época histórica desse acontecimento é o período entre fins de agosto e princípios de setembro de 1201, tendo Bonifácio, no outono do ano seguinte, partido para Veneza a fim de dar início à nova expedição contra os infiéis. Como Raimbaut de Vaqueiras não seguiu com ele, é evidente, também pelo próprio relato do poeta, que sua adesão à cruzada e seus votos religiosos ocorreram depois de agosto de 1202.

    Em Provença, na ocasião, era conde Alphonse II, que mantinha relações turbulentas com o protetor de Raimbaut, Guillaume, conde de Forcalquier e irmão do visconde de Marselha, Hugues des Baux. Estavam Guillaume e Alphonse II em conversações sobre suas diferenças justamente no período de junho a novembro de 1202. Afinal chegaram a um acordo e, entre suas condições, estava a colocação da cidade de Gap, à margem do rio Durance, sob a proteção dos templários ou dos hospitalários. Essa paz foi concluída já em 1203.19

5.2 - Afonso em Embrun, a caminho de Corbeil

    Delaville Le Roulx, o editor dos documentos da Ordem dos Hospitalários de São João de Jerusalém apresenta, sob o no 269, ano de 1203, um em que Dragonet de Rame, visconde de Embrun, por ordem de Guillaume IV, conde de Forcalquier - o protetor de Raimbaut de Vaqueiras - doa aos hospitalários de Embrun os moinhos situados na torrente de Vachères, além do rio Durance, bem como o direito ao gado de pasto ali criado.

    O documento é testemunhado por inúmeras pessoas, cujos nomes indicam procedência variada: francesa, belga, provençal e italiana. Entre os signatários, estão um certo W., cognominado Turcopoliero, um Pons de Montelauro, que deve ser o mesmo Pons do poema de Raimbaut de Vaqueiras conhecido como Garlambey, um P. Busca e seu irmão Jacobus, que devem ser originários da cidade de Busca, no norte da Italia, cujo marquês era da família alerâmica, a mesma de Bonifácio de Monferrato, um W. Ugo, um R. Andreas e um W. Chabazoli, que aparece em outros documentos da época e, finalmente, um certo Iterius e um certo R. Anfos, Afonso em provençal.20

    Como se trata de doação feita a hospitalários, é natural que, além do turcopoliero assinalado, nome que se dava, na época, ao chefe da cavalaria ligeira da Ordem de São João, deva haver outros cavaleiros hospitalários.

    Os dois ultimos personagens aqui assinalados chamam particular atenção e aparecem juntos no documento.

    Iterius é nome que aparece na venda que Girard de Ham, condestável de Trípoli, faz a Afonso de Portugal, grão-mestre da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém em dezembro de 1204. No documento do grão-mestre, Iterius é identificado como tesoureiro de Trípoli.21

    Na relação de abades do convento beneditino da cidade artesiana de Ham-lez-Lillers (hoje, Ham-en-Artois, com 321h.), subordinado à igreja de Saint-Omer e situado, desde 1192, nos domínios de herança da condessa Mathilde de Flandres, está Itherius (Itier) de Périgord, irmão de Bernard II, outro e anterior abade que fora protegido do defunto Felipe da Alsácia, conde de Flandres e marido de Mathilde, que era filha de Afonso Henriques.22

    A fonte da Gallia Christiana descreve Itherius como "vir pecuniosus", ou seja, homem rico, endinheirado, o que combina bem com seu posto em Trípoli junto ao condestável Girard, que era também de Ham.

    Ora, não pode haver dúvida no sentido de que R. Anfos e Iterius, do documento no 1169 do Cartulaire, são os mesmos Afonso de Portugal e Iterius do documento de no 1198, ainda mais porque, nesses anos de 1203 e 1204, respectivamente, Ham como aldeia dependente de St. Omer, pertencia aos domínios de Mathilde de Flandres, irmã de Afonso de Portugal. Isso só deixou de acontecer em janeiro de 1212, por ato de força de Louis, filho de Felipe Augusto.

5.3 - Afonso em Corbeil, com sua irmã, a rainha Mathilde

    A dificuldade, no documento de no 1169, está no R. que precede o nome de Afonso. Como explicá-lo?

    Ainda do ano de 1203 é o documento no 1167, produzido em Corbeil, nas vizinhanças de Paris e não muito longe de Luisetaines, uma possível colônia de portugueses. O cronista flamengo Lambert d'Ardres, que foi contemporâneo de Mathilde, refere-se a ela pelo seu nome português "Therasia", usado "apud suos Portugallos" e pelo nome "Mathildis", "apud nos" (M.G.H., XXV, p.641), o que implica admitir a existência, em Flandres, de uma colônia portuguesa.23 No instrumento no 1167, "a rainha Mathilde, condessa de Flandres, outrora esposa de Felipe, conde de Flandres, de piedosa recordação, e filha de Afonso, rei de Portugal" faz conhecer a todos os presentes e às gerações futuras que dá aos Hospitalários, na presença do grão-mestre Afonso de Portugal, os bens que comprara do convento da Charité- sur-Loire, situados em Coutençon, Châteaubleau e Carrois.24

    Esta venda a Mathilde, feita pelo prior do convento, de nome Savari, ocorreu não antes de abril de 1203, pois, em março, Mathilde reentrara em Lille, vinda de Gravelines.25

5.4 - Afonso de Portugal, grão-mestre

    Significam esses fatos que, antes de julho de 1203, Afonso de Portugal esteve na Provença, como R. Anfos e nas vizinhanças de Paris, como Afonso de Portugal. Em 19 de Julho de 1204, os cardeais legados de Inocêncio III na Terra Santa, Sofredo e Pedro, confirmam, em Acre, um testamento em nome de Afonso de Portugal e do grão-mestre da Ordem do Templo, Philippe du Plessis.26

    Em março de 1205, Balduino, imperador de Constantinopla e conde de Flandres, doa à Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, na pessoa de seu grão-mestre, Afonso de Portugal, a quarta parte do Ducado de Neocastro. 27

    Este ducado, vizinho à cidade de Pergamo, na Ásia Menor (Delaville Le Roulx o coloca erradamente na Grécia), fazia parte do segundo lote de possessões atribuído ao Imperador pelo pacto de divisão das futuras conquistas, celebrado em março de 1204 pelos chefes da Quarta Cruzada, Bonifácio de Monferrato, protetor de Raimbaut de Vaqueiras, Balduíno de Flandres e Enrico Dandolo, doge de Veneza. Significa isso que, em março de 1204, estava já Afonso de Portugal como participante ativo da Cruzada, o que explica sua ausência prolongada, até dezembro de 1204, dos documentos da Ordem produzidos na Terra Santa.28

    Afonso de Portugal, pelo que se deduz da carta-relatório que os cardeais Sofredo e Pedro escreveram ao Papa em 1205,29 e outros documentos, foi eleito, ou antes, aceito como grão-mestre estando ausente de Margat, no mês de abril de 1203, após a interinidade de um preceptor geral da Ordem entre 11 de novembro de 1202 e aquele mês de 1203. Seu nome pode ter sido levado ao Papa por Bonifácio de Monferrato, provavelmente a pedido de Mathilde de Flandres. Aos hospitalários, na Terra Santa, o foi por Jean de Nesle, vassalo de Mathilde, e Renaud de Montmirail, enviado de Bonifácio ao Oriente para organizar os cavaleiros ali estacionados com vistas à tomada de Jerusalém depois da conquista de Constantinopla, então planejada. As evidências disso estão na carta há pouco referida. Afonso já era prior da Espanha, conforme se deduz dos documentos coligidos por Demetrio Mansilla (cf., adiante, a nota 39), e passava a acumular este cargo com o de grão-mestre. Chegando a notícia a seu conhecimento, entre abril e maio de 1203, partiu para a França onde, em Corbeil, recebeu a doação de sua irmã e retornou, em seguida, à Provença, de onde partiu para a Terra Santa. O documento, em que assinava como R. Anfos, deve ser de fins de abril ou princípios de maio. O de Mathilde, diante dele, de maio. O descordo plurilingüe de Raimbaut de Vaqueiras, de maio também. Os fatos narrados pelo trovador, em sua epístola ao marquês de Monferrato, ou seja, seus votos de cavaleiro hospitalário, devem ser, pois, de princípios de junho de 1203, quando, então, embarcou para a Quarta Cruzada. O fato de, no trajeto, ter Afonso de Portugal passado por Provença, mas não assinado o documento de Embrun, como grão-mestre, leva à conclusão de que sua designação devia ser, com a concordância do papa, aprovada também pelo rei Felipe Augusto, em cuja corte transitava, de longa data, a condessa Mathilde de Flandres. O rei, na ocasião, tinha relações difíceis com o papa devido ao divórcio, que tentara, de sua mulher Ingeburga. Dentro da complicada política do momento, o apoio a um dos braços militares do Papa, a Ordem do Hospital, devia ter peso considerável em termos de ajuda material.

    Um fato merece igualmente atenção. Por não ser ainda grão-mestre, Afonso de Portugal, no documento de Embrun, assinou como R. Anfos. Em nenhum ato em que interveio posteriormente usou qualquer prenome, inclusive no celebrado com sua irmã.

    Em nossa opinião e tendo em vista que Afonso Henriques não teve filho algum com nome iniciado pela letra r, esta só tem um signigidado: rex.

    Mathilde sempre usava seu título regina, que causava, de início, estranheza a todos que desconheciam essa prática peninsular de chamar rei ou rainha aos filhos de rei.

    Entretanto, Afonso Henriques não teve nenhum filho de sua mulher Mafalda, que tivesse sobrevivido à primeira infância, a não ser o próprio Sancho. Como diz o Livro Velho, teve um filho bastardo de Châmoa Gomes.

5.5 - Pressupostos do título de grão-mestre e a situação pessoal de Afonso

    O cargo de grão-mestre das ordens religiosas, ordens maiores, equivalia ao grau de bispo, privativo de pessoas de legítimo nascimento.30 A dispensa, neste caso, só o papa podia dar. Afonso se tornou grão-mestre e foi recebido por sua irmã legítima como Afonso de Portugal, designação que corresponde a nobres de linhagem real.

    A explicação que oferecemos é a da legitimação.

    A prescrição está no cânon 3 do 11o Concílio Ecumênico ( Latrão, 1179): "On ne doit choisir pour évêque qu'un homme âgé de trente ans et de naissance légitime".31

    Os que escreveram até hoje alguma coisa sobre Afonso de Portugal o põem como filho ilegítimo anterior ao casamento de Afonso Henriques com Mafalda e, provavelmente, irmão de Fernando Afonso, sem descerem a detalhes. Na época que consideramos, era proibida, da maneira mais absoluta, a entrada, nos mosteiros, de bastardos incestuosos ou adulterinos ou, ainda, ex sacrilegio geniti, isto é, filhos de padres ou de pessoas que haviam feito voto de castidade. Nenhuma legitimação lhes poderia franquear a entrada.32 Como, no caso de Afonso de Portugal, sua mãe, Châmoa Gomes, era monja, a dispensa era impossível por ser nula e de nenhum valor a união que tivesse havido entre ela e Afonso Henriques. Voltaremos ao assunto na seção 7.

6 - SEGUNDA PROVA: a verdadeira história de Châmoa Gomes

6.1 - Châmoa Gomes e seus "filhos"

    O Livro Velho de Linhagens não diz nada a respeito de outro filho de Châmoa Gomes com Afonso Henriques, mas identifica a filha do magnata Gomes Nunes de Pombeiro como monja do mosteiro feminino de São Salvador de Vairão. Quem construiu a historia confundiu-se, pois o mosteiro de Châmoa foi o de São Salvador de Grijó, ao qual, em novembro de 1138, ela legou os bens que herdara de sua avó materna, também chamada Châmoa. No Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, há duas passagens em que se fala do avô de Châmoa por parte de sua mãe Elvira Perez de Trava. É o conde D. Pedro Fernandez de Trava, cuja esposa só é identificada como filha do conde D. Hurgell de Valladolid.33 Pelo Livro do Deão, a avó de Châmoa por parte de pai (Gomes Nunes de Pombeiro) foi Sancha Gomes, casada com dom Nuno de Celanova.34 Deste modo, a avó de Châmoa, que se desconhece nos livros de linhagens, é a materna. Aquela que se menciona no documento 29 do cartulário de Grijó35 é a mãe de Elvira Perez de Trava.

    Quanto a seu relacionamento amoroso com Afonso Henriques, pode-se dizer que ensejou o nascimento de apenas um filho, Fernando Afonso, mencionado no Livro Velho e, portanto, em fins do século XIII. Não é mencionado no Chronicon Conimbricensi, que começou a ser redigido em fins do século XII ou princípios do XIII e continuou durante este século. A indicação precisa da morte de Afonso de Portugal, no Chronicon e no verso da sua 6a folha, coincide com o epitáfio primitivo de seu túmulo.

Chronicon: In Era M.a CCa. Xa. Va. VIIIo.Kalendas Martii Obiit Magister domnus alfonsus Hospitalis de ierusalem.

Túmulo: In aera de MCCXXXXV. Kalendis Martii obiit F. Alphonsus Magister Hospitalis Hierusalem.

    No Chronicon, a morte se verificou em 22 de fevereiro de 1207 (o x da data, sendo aspado no original, vale por quarenta anos) ao passo que, no túmulo, o dia é o primeiro de março. No Chronicon, o título "domnus", pela época em que foi empregado, indica que o personagem é da alta nobreza.36 No túmulo, o apóstrofo que se segue ao "F.", que está no lugar de "domnus", foi considerado por Jorge Cardoso, ao examiná-lo de perto, como "mui de espacio", não o convencendo como abreviatura para "frater" ou "filius".37

    Diante desse testemunho ocular tão expressivo, devemos considerar que não se trata nem de "frater" nem de "filius", mas de "Fernandus". Para corroborar essa hipótese basta o depoimento de Bosio, primeiro grande historiador da Ordem do Hospital, que, baseado em seus antecessores do século XVI ou anteriores, diz da crença em ter sido seu nome Ferdinando Alfonso, o mesmo do templário que foi filho de Afonso III e que com ele era confundido.

6.2 - Indícios da identidade entre Fernando Afonso e Afonso de Portugal

    Demetrio Mansilla, o grande investigador dos arquivos do Vaticano, assinala a um Mestre Afonso, de toda a Espanha e entre dezembro de 1198 e janeiro de 1207, quatro documentos da pontifica que, em nossa opinião, envolvem o mesmo personagem, Afonso de Portugal. Este acumulou, entre 1203 e fins de 1206 as funções de Prior da Espanha e grão-mestre da Ordem. Não foi o primeiro a acumular altos postos.38 O documento de 27 de janeiro de 1207 é particularmmmente significativo porque o papa se dirige a alguém, com seus subordinados que, depois da queda de Jerusalém, esteve presente às necessidades da Terra Santa, trabalhando com ele para sua defesa e tornando-se, por isso, credor de sua atenção em momento de adversidade. Em conseqüência, autorizava-o a edificar, junto com seus irmãos hospitalários, igrejas nos lugares desertos e nos limites das terras que confinavam com as dos mouros. Quem melhor se enquadra neste retrato entre os hospitalários, senão Afonso de Portugal? Ao renunciar, deixou este o grão-mestrado, mas permaneceu como prior da Ordem na Espanha, com poderes fortalecidos pela bula de Inocêncio III. Esta bula está em harmonia com a Cronica magistrorum defunctorum, de meados do sec. XIV quando, ao assinalar que Afonso "resignavit et Bullam projecit", está a revelar que Afonso foi feito mestre por bula papal, a esta renunciava e voltava à sua função em Portugal; no caso, nome geográfico que, pela origem do grão-mestre, representava toda a língua da Espanha. Por isso, foi ele o único que incorporou a seu nome o de seu país de origem. Era Afonso de Portugal porque da língua de Portugal. Em suma, foi um interventor do papa na Ordem em momento crucial para os interesses da igreja, o da Quarta Cruzada. Suas funções tiveram início em 1198, ano em que o papa assumiu, e indicam a força de sua irmã e protetora, Mathilde de Flandres. Provavelmente começara a vida religiosa entre os templários da Espanha, passando à Ordem do Hospital de São João de Jerusalém por conveniência política. Porque foi interventor na Ordem, pôde fazer um capítulo geral onde quis e pôs em outras bases, com os novos estatutos, toda a vida da organização. Era altivo porque só devia obediência ao papa. A insatisfação dos hospitalários surgiu como decorrência da insegurança que sobreveio à morte de Balduíno de Constantinopla, que pertencia ao mesmo contexto de Afonso: Igreja e pontífice fortes nos assuntos terrenos.

    Além dessas evidências, há mais as seguintes:

1 - O filho de Châmoa Gomes, Pedro Pais, foi alferes de Afonso Henriques de 1147 a 1169, sendo sucedido, no cargo, por Fernando Afonso, seu irmão, até 1172. Entre 1171 e 1186, foi alferes de Fernando II, de Leão. Em 1172, Fernando chegou a ser alferes de Sancho I, após o que retirou-se provavelmente para Leão, terra do bisavô de sua mãe, Hurgell de Valladolid. Depois desse ano, os documentos silenciam a seu respeito. Enquanto foi mencionado no Livro Velho e nos documentos reais, Afonso de Portugal nunca o foi e só começa a aparecer em 1198.

2 - Afonso de Portugal não é mencionado em nenhum documento português, o que é estranho, principalmente quando se sabe que todos os outros filhos de Afonso Henriques, legítimos ou não, são mencionados. Há, porém, um documento do papa Inocêncio III, de 1198, como já adiantamos, em que comunica a seu legado Rainério que Afonso, mestre dos hospitalários, na Espanha, lhe fez entrega de 500 morabitinos, correspondentes ao censo que o rei D. Sancho I de Portugal devia à igreja de Roma. Ressalte-se que, nesse ano, Inocêncio designara os templários e os hospitalários para receberem as contribuições necessárias à cruzada que resolvera empreender para libertar a Terra Santa.39 Mesmo que Afonso não estivesse em bom relacionamento com o rei D. Sancho, o seu cargo o colocava como representante do papa, não sendo possível ao rei recusar-se a recebê-lo.

3 - O desaparecimento de Fernando Afonso coincide com a associação ao trono de Sancho I, após a derrota de Badajoz, em 1169, e à passagem de Pedro Pais seu meio-irmão para o reino de Leão.

4 - A escolha de Afonso de Portugal para grão-mestre da Ordem do Hospital pressupõe que possuía ele grande experiência e prestigío como guerreiro e cavaleiro. Fernando Afonso foi general dos exércitos de Afonso Henriques.

    Estamos, portanto, convencidos de que Fernando Afonso e Afonso de Portugal são a mesma pessoa, opinião tida, no passado, apenas por frei Lucas de Santa Catarina no Catálogo de Grão-Priores do Crato, que editou como anexo às suas Memórias da Ordem Militar de São João de Malta (Lisboa, 1734, p.2).

6.3 - Ano e circunstâncias do nascimento de Afonso de Portugal

    Quando teria nascido Afonso de Portugal? Por aparecer Fernando Afonso como testemunha em documento de fevereiro de 115940, teria completado 18 anos entre 1158 e fevereiro de 1159.

    Admite-se que os filhos ilegítimos só começavam efetivamente a testar nessa idade. Teria nascido, portanto entre março de 1140 e fevereiro de 1141. Teria sido concebido entre julho de 1139 e junho de 1140. Châmoa Gomes lega bens a seu mosteiro em novembro de 1138. Em março de 1139, se se aceitar o documento correspondente, Afonso Henriques já se intitula rei. A batalha de Ourique foi travada em 25 de julho de 1139.

    Os fatos estão a indicar que o relacionamento amoroso entre Châmoa Gomes e Afonso Henriques, de que fala o Livro Velho, ocorreu em 1139, ano crucial da história portuguesa. Como explicar, à luz dos documentos da época, essa possibilidade concreta?

    A ausência quase completa de documentos de Afonso Henriques no período de julho de 1139 a abril de 1140, justamente no início, segundo a tradição, do funcionamento do novo reino, deve ser conjugada à inexplicável reforma, no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, de documentos reais do punho de Pedro Alfarde, inclusive o de março de 1139, em que Afonso se dá, pela primeira vez, o título de rei, para indicar a verossimilhança desse expurgo e conseqüente controle dos documentos posteriores a este último.41 Em nossa opinião, o expurgo estaria relacionado com o retorno. em junho de 1139, do arcebispo de Braga, João Peculiar, de Roma, onde recebera o pálio e assistira ao II Concílio de Latrão.42

    Durante este conclave, foram aprovados cânones e tomadas decisões que podiam colidir com fatos e interesses, tanto relacionados com a vida e a política de Afonso Henriques, quanto com os interesses de Santa Cruz ou de João Peculiar. Isso teria levado o arcebispo, dentro dos cuidados naturais de quem fora sagrado recentemente, a tomar providências saneadoras imediatas, que podem ter-se completado somente em 1143, quando o legado papal Guido esteve em Portugal. O provável expurgo, nessas condições, serve também para evidenciar que Afonso Henriques tinha mulher por ocasião da batalha de Ourique e de sua aclamação como rei.43 Afonso provavelmente tomou essa mulher, Châmoa Gomes, durante a ausência de João Peculiar, entre março e junho de 1139. O fato de ser ela uma religiosa do mosteiro de São Salvador de Grijó, que Peculiar conseguira, em 26 de abril, pôr sob a proteção do papa Inocêncio II, deve ter-lhe causado grande embaraço, a ponto de decidir-se a agir contra a união imediatamente. De qualquer forma, a resistência do rei teria cessado completamente durante a visita do legado Guido a Portugal, em 1143. Se não fosse assim, não teria sentido a carta de vassalagem Claves regni caelorum, de 13 de dezembro de 1143, pela qual Afonso Henriques submete seu reino ao papa.

6.4 - O relacionamento entre Afonso Henriques e Châmoa Gomes

    O interesse de Afonso Henriques por Châmoa Gomes era inteiramente normal dentro do contexto de relacionamento seu com os grandes magnatas da época. Por ter sido o tio paterno de Châmoa, Sancho Nunes, casado, entre 1127 e 1130, com a irmã mais nova do rei, Sancha Henriques, daí resultando uma filha, Teresa Sanches, compreende-se porque Sancho I, em carta a Martinho Rodrigues, bispo do Porto, refere-se genericamente ao sobrinho deste e seu grande inimigo, Pedro Mendes Poiares, como seu consuprinus. De fato, a avó paterna de Pedro, Orraca Mendes, era sobrinha dessa Teresa Sanches, prima de Sancho. Na época, o parentesco reconhecido pela Igreja estendia-se ao 7o grau. Pedro Mendes de Poiares era, ao mesmo tempo, aparentado aos Travas.44 O parentesco entre Afonso Henriques e Châmoa Gomes, por ser esta sobrinha por afinidade de sua irmã Sancha, não existia, o que obriga à busca de impedimento para a possível união entre Afonso e Châmoa em outro contexto.

    Os pais de Châmoa Gomes, Gomes Nunes de Pombeiro e Elvira Peres de Trava, já estavam casados em 1116.45 Provavelmente casaram-se entre 1112 e 1116. Note-se que Afonso Henriques nasceu em 1111, segundo as maiores evidências. Châmoa tinha uma irmã, Maria Gomes que estava casada com Lourenço Viegas, o grande amigo de Afonso Henriques. Qual era a mais velha? Podem ter nascido em 1113 e 1114. Como o primeiro marido de Châmoa, Paio Soares, faleceu provavelmente em 112946 e deixou-a muito nova, tem-se que, para um casamento no ano anterior, Châmoa teria, no máximo, 15 anos, com nascimento em 1113, o que a colocaria, talvez, como mais velha do que Maria Gomes e, pelo menos, dois anos mais nova que Afonso Henriques. Este convivia familiarmente com ela desde 1127 por ser a irmã dele, Sancha, como foi acima assinalado, casada com um tio legítimo de Châmoa, Sancho Nunes. Por outro lado, tanto o primeiro marido de Châmoa quanto seu pai foram partidários de Afonso Henriques em sua luta contra D. Teresa e Fernão Peres de Trava, o que indica uma afinidade adicional entre Afonso e Châmoa.

    Châmoa Gomes tinha parentesco direto ou por afinidade com algumas das pessoas mais destacadas da corte de Afonso Henriques. Assim, seu tio paterno Afonso Nunes, partidário também de Afonso Henriques, tinha duas filhas: Teresa Afonso, segunda mulher de Egas Moniz e Fronilde, casada com outro partidário do infante, Gonçalo Rodrigues, da casa dos Travas, e cunhada, por isso mesmo, de Mem Rodrigues, que se tornou o segundo marido de Châmoa. Como Egas Moniz era pai de Lourenço Viegas, cunhado de Châmoa, o laço familiar entre estes últimos era maior ainda. O documento acima referido, na nota 2, ganha especial relevo dentro desse contexto familiar pois em 1142, data nele exarada, o tenente do concelho de Armamar, que dera ipsam vacam ... aa reina, não era outro senão Mem Moniz, irmão de Egas Moniz.

    Outro fato que põe Châmoa Gomes no contexto familiar de Afonso Henriques: seu sogro do primeiro casamento, Soeiro Mendes, o Bom, era primo por afinidade do infante.47 Sua mulher, Urraca, era sobrinha de D. Teresa, mãe de Afonso Henriques. Um irmão de Soeiro, Gonçalo Mendes, era sogro de Rodrigo Froyaz de Trastâmara, pai de Mem Rodrigues, segundo marido de Châmoa, e de Gonçalo Rodrigues, acima mencionado.

    O Livro do Deão não diz quem era o pai de Rodrigo Froyaz, mas o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro o faz, dando-o como irmão do conde D. Pedro Fernandes de Trava, avô de Châmoa Gomes. O segundo marido desta, Mem Rodrigues, era, conseqüentemente, seu primo em segundo grau. A descendência de Gonçalo Rodrigues inclui um neto, Martinho Rodrigues, bispo do Porto, a quem o rei Sancho I se dirigiu por carta pedindo que não recebesse na cidade o próprio sobrinho, Pero Mendes de Poiares, filho de sua irmã Urraca Rodrigues. Pero Mendes rebelou-se contra o rei e foi morto na batalha de Trasconho. Poiares era uma aldeia, no século XII e XIII, em que a Ordem do Hospital de São João de Jerusalém possuía inúmeras propriedades, havidas principalmente das netas de Egas Moniz, Elvira e Teresa Gonçalves.48

6.5 - Pano de fundo do relacionamento: a questão galega

    Dois fatos gerais podem ser deduzidos desses dados: um é a persistência de uma questão galega, indissoluvelmente ligada aos Travas, até os inícios do século XIII, seja através dos descendentes de Elvira Perez de Trava e dos casamentos de sua filha Châmoa Gomes, seja através dos de seu irmão Fernão Perez, amante ou marido da rainha D. Teresa; o outro é a ligação de descendentes de Egas Moniz com a Ordem do Hospital. Ao primeiro caso se prende a atuação política de Fernando II, rei de Leão e vencedor de Afonso Henriques na batalha de Badajoz, muito provavelmente influenciada desde cedo por Fernão Peres de Trava, seu aio, com cuja filha, Teresa Fernandes, viúva do conde D. Nuno de Lara, se casou. Influenciada, também, por Pedro Pais, filho de Châmoa Gomes com Paio Soares e alferes de Afonso Henriques no largo período de 1147 a 1169, ano em que se passou para o reino de Leão, onde desempenhou o mesmo cargo de 1171 a 1186. Por coincidência, Fernando Afonso, ou, para nós, Afonso de Portugal, passou-se também para Leão no ano de 1172, ou seguintes, depois de ter sucedido a seu meio-irmão Pedro Pais na função de alferes de seu pai Afonso Henriques até 1172.49

    A questão galega era persistente e existia tanto para o reino de Portugal quanto para o de Leão. Fernão Peres de Trava, depois de fracassadas suas ambições em território português, retirou-se para a Galícia onde o acolheu o imperador Afonso VII, encarregando-o da educação de seu filho menor Fernando e aceitando seu conselho de dividir o reino, futuramente, entre Fernando e seu irmão mais velho Sancho.50 Morrendo o imperador em 1157 e assumindo Fernando o trono de Leão e da Galícia, logo se restabeleceu uma política anti-portuguesa entre os dois reis, Fernando II e Sancho III, de que o tratado de Sahagun, de 1158, é prova eloqüente. Afonso Henriques pôs-se a reivindicar mais fortemente sua jurisdição sobre terras galegas, acabando por invadi-las e ocupá-las em 1163 e 1165.51 A paz de Lérez, de 1165, e o casamento, nela estabelecido, de Fernando II com a filha de Afonso Henriques, Urraca, não fez senão adiar o confronto maior entre as partes, que ocorreu na batalha de Badajoz, em 1169. A magnanimidade com que Fernando II tratou o derrotado rei Afonso Henriques deve ser debitada mais a uma provável ação, neste sentido, do sobrinho-neto de seu já falecido aio, Pedro Pais, alferes de Afonso Henriques e filho, como vimos, de Châmoa Gomes. Indícios veementes disso são a defecção, em 1172 ou logo após, de Fernando Afonso/Afonso de Portugal, o repúdio da rainha D. Urraca em 1175 e o casamento de Fernando II com D. Teresa Fernandes em 1178.

    Do lado português, a questão galega parece agravar-se com as responsabilidades conferidas por Afonso Henriques ao infante Sancho em 1171. A primeira conseqüência é a defecção de Fernando Afonso. Prosseguiu ela, sob outros matizes, até os inícios do século XIII, culminando com a guerra civil no Porto, de que a batalha de Trasconho e as mortes de Pero Mendes de Poiares e Fernando Afonso/Afonso de Portugal são o epílogo, em nossa opinião.

7 - AS ORIGENS DE AFONSO DE PORTUGAL E SUA DESIGNAÇÃO PARA O GRÃO-MESTRADO DA ORDEM DE SÃO JOÃO DE JERUSALÉM

    Voltemos, finalmente, à eleição de Afonso de Portugal para grão-mestre da Ordem de Hospital, em 1203.

    Por ser filho de Afonso Henriques com uma devota, era "ex sacrilegio genitus". Não havia condição neste caso, de se obter dispensa papal. Para se tornar bispo, era preciso que fosse legitimado e que essa legitimação se fizesse "ad temporalia".

    De fato, Inocêncio III foi o primeiro papa a fazer uma legitimação "ad temporalia", embora haja traços de outras anteriormente.52

    Procedeu o pontífice neste sentido relativamente aos filhos de Felipe Augusto e de Guillaume de Montpellier, aquiescendo, no primeiro caso, e negando, no segundo. A razão de ter reconhecido os filhos do rei francês com Agnés de Méranie foi o fato, alegado pelo rei, de que não recebera e, portanto, desconhecia, na época de sua união, o documento do papa Celestino III que lhe proibia um novo casamento após ter repudiado sua esposa legítima Ingeburga. Agira de boa fé casando-se com Agnés porque não lhe chegara às mãos o documento papal. Inocêncio III, na célebre decretal Per venerabilem, reconhece a procedência dessa alegação e constrói uma teoria sobre ela. Ocorreu isso em 1202.

    Afonso de Portugal só pode ter sido reconhecido como capaz, perante as leis e a jurisprudência canônica, de ascender ao grão-mestrado da Ordem de São João de Jerusalém, se pôde comprovar a mesma situação, ou nessa ocasião ou em 1198, primeiro ano de Inocêncio III no trono papal, quando se tornou prior da Espanha. Nesta última hipótese, poderia ter sido seu caso a referência, na mente de Inocêncio III, para legitimar os filhos de Felipe Augusto.

    Até 1139, não havia nenhum cânon conciliar em vigor que impedisse formalmente o casamento das sanctimoniales ou devotas, caso de Châmoa Gomes. A 4 de abril de 1139,iniciou-se o segundo Concílio de Latrão que, em seu cânon 8o, proibiu o casamento das devotas. Assim, ela pode ter-se casado com Afonso Henriques, tornando-se a primeira rainha portuguesa, sem conhecimento, pelo rei, de impedimento canônico. O mesmo concílio, cânons 26 e 27, fez desaparecer a antiga instituição das viduae Deo sacratae, caso de Châmoa Gomes, que, apesar de proferirem voto solene de castidade, permaneciam com o hábito do século em sua própria casa, conservando a propriedade de seus bens. Essa prática persistia ainda em fins do século XII quando Inocêncio III, em 1199 ( texto nas decretais de Gregório IX, livro IV, título VI, capítulo VII ) e em caso concreto, considerou solene tal tipo de voto.

    O preceito conciliar de Latrão II foi repetido, na Espanha, pelo Concílio de Valladolid de setembro de 1143, sob a presidencia do cardeal Guido, legado papal. Ocorreu depois que o cardeal esteve em Portugal. Em 1139, sob o pontificado de Inocêncio II, a igreja de São Salvador de Grijó tinha sido posta sob a proteção papal.

    A união entre Afonso Henriques e Châmoa Gomes, sobrinha de Fernão Peres de Trava, deve ter ocorrido à época do Concílio de Latrão de 1139, sem que o rei tivesse tomado conhecimento de suas decisões. Só em 1143 é que isso aconteceu formalmente, tendo Afonso Henriques resistido à ordem papal de separar-se de sua mulher do que resultara ter sido o novo reino interditado pelo cardeal Guido, legado papal. O documento que melhor indica a existência de uma rainha em Portugal, antes de 1146, é o analisado e publicado pelo incansável A. de Almeida Fernades em seus valiosos e lúcidos ensaios "Guimarães, 24 de junho de 1128" (Revista Guimarães, 88:149) e A honra de Gouviães e sua estirpe, p.96. Todo o episódio do cardeal de Roma, reconstituído por Antonio José Saraiva em seu A épica medieval portuguesa pode ser compreendido à luz dessa resistência. A boa fé de Afonso Henriques teria sido invocada para permitir a legitimação de Afonso de Portugal e, em consequência, sua designação para o grão-mestrado da Ordem do Hospital.

    Esta hipótese explica o "R." que precede o nome de Afonso no documento de Embrun de 1203 bem como o tratamento recebido de sua irmã Mathilde de Flandres pouco depois.

    Retornando de Corbeil, Afonso embarcou em Marselha para tomar parte na Quarta Cruzada. No castelo de Babon, deu a benção a seu amigo Raimbaut de Vaqueiras, que fizera profissão de fé religiosa na Ordem do Hospital de São João de Jerusalém. Foi provavelmente aí que o poeta, antes de ser recebido na Ordem, compôs e apresentou, a um público em que pontificava o grão-mestre Afonso de Portugal, seu famoso descordo plurilíngüe. Nele, os cinco idiomas românicos correspondem às cinco províncias não germânicas, ou "línguas", em que passava a ser dividida a administração da Ordem por iniciativa de Afonso.

    Afonso de Portugal, sabedor da guerra civil que envolvia o reino de seu irmão Sancho I e, talvez, estimulado por sua irmã Mathilde, resolveu renunciar e voltou a seu país, onde a reação de Sancho ocasionou-lhe o assassinato, entre fins de fevereiro e início de março de 1207. Os vencedores da luta civil escolheram para seu epitáfio os seguintes e expressivos dizeres, que parecem referir-se à ambição, em vida, do filho da primeira rainha de Portugal, Châmoa Gomes:

Quisquis ades, qui morte cadis, perlege plora.
Sum quod eris, fueram quod es, pro me, precor, ora.

(Sejas quem fores, que caias pela morte, lê com atenção e chora. Sou o que tu serás, eu tinha sido o que tu és, ora por mim, peço-te)53

8 - CONCLUSÃO

    A conclusão que se pode tirar dos fatos e argumentos apresentados é no sentido de que a ascensão de Afonso de Portugal ao grão-mestrado da Ordem de São João de Jerusalém deveu-se exclusivamente à ação de sua irmã, Mathilde de Flandres, tão rica e poderosa, em sua época, que era capaz de jogar, em seu favor, com forças tão poderosas quanto eram o rei Felipe Augusto, o papa Inocêncio III, o conde de Flandres, Balduíno IX, ou o chefe da Quarta Cruzada, Bonifácio, marquês de Monferrato. As decisões favoráveis, que o papa pronunciou em questões de seu interesse, certamente levavam em conta a generosa dedicação da condessa à igreja flamenga, aos cistercienses e à Quarta Cruzada, projeto do coração de Inocêncio III. Sob esse aspecto se explica, igualmente, a compra por Mathilde, ao convento da Charité-sur-Loire de ricas terras, que doou à Ordem de São João de Jerusalém, na presença de seu irmão, o novo grão- mestre, e sob o beneplácito de Felipe Augusto. Anos mais tarde, fez outras grandes despesas em benefício do rei francês, para obter sua aprovação ao casamento de seu sobrinho Fernando, filho de Sancho I, com a jovem condessa de Flandres, Joana, de apenas 12 anos. Para gastar tanto, não hesitava, desde o início do pontificado de Inocêncio III, em elevar brutalmente os impostos de seus súditos da Flandres galicana e marítima. Daí a guerra que, por longos anos ensangüentou o país flamengo, a dos blavotins e ingrekins. Estes eram os partidários de Mathilde.

    A eleição de Afonso de Portugal foi, certamente, parte - fracassada como as demais - do projeto de vida que se depreende de sua movimentada política, conforme os documentos que chagaram até nós: renovar a dinastia francesa pela linha borgonhesa dos Capetos, de que descendia diretamente. Tal projeto, que pode perfeitamente ter sido inspirado e iniciado por seu primeiro marido, Felipe da Alsácia, foi adotado por ela ao decidir casar-se com Eudes III de Borgonha. Não tendo tido descendência com Felipe, por esterilidade sua, buscou alternativa casando com Eudes e aproximando-se discretamente do papa na questão do divórcio de Felipe Augusto. Vendo a hostilidade de Sancho I contra a Igreja, não hesitou em promover, para agradar ao pontífice, as pretenções de Afonso de Portugal ao trono português. Fracassando seu plano, com o assassinato de Afonso, volta-se para Felipe Augusto e, à custa de muito dinheiro de seus vassalos, consegue sua aprovação para o casamento de Fernando com Joana de Flandres. Dentro desse contexto, deve ter sido a real inspiradora do rompimento de seu sobrinho com o rei francês, sob o pretexto, muito caro aos flamengos, da retomada das cidades de Aire e St. Omer, violentamente tiradas do domínio dos jovens condes de Flandres, no dia seguinte ao seu casamento, pelo filho de Felipe Augusto, o futuro rei Luís VIII. O plano de Mathilde era conseguir, com seu sobrinho, o que seu primeiro marido não conseguira: o próprio trono francês. A tudo isso não foi indiferente o papa.

    Assim, na vida de Afonso de Portugal, cruzaram-se os caminhos e os legados de Raimbaut de Vaqueiras, Mathilde de Flandres, Bonifácio de Monferrato, Felipe Augusto, Inocêncio III, Afonso Henriques, Châmoa Gomes e muitos outros importantes personagens do drama humano do século XII.
 
 

A P Ê N D I C E

1

(Grijó, novembro de 1138)

Châmoa Gomes, famula Dei ou Deo vota (Cf.DURAND, Robert, Le Cartulaire Baio-Ferrado du Monastère de Grijó, Paris, 1971, p. XXXIX), faz doação, em testamento religioso e a seu mosteiro (canonice), de bens havidos de sua avó materna, também chamada Châmoa. Viterbo (Elucidário, s. v.), usando o presente documento, define canonica como mosteiro "em que se vivia, segundo a forma dos sagrados cânones". Situavam-se esses bens na mesma região em que sua mãe, Elvira Perez de Trava, possuía, igualmente, outras propriedades (Cartulaire, doc. 31), que, em dezembro de 1148, doou ao mesmo mosteiro, na qualidade de condessa e como filha do conde Pedro de Trava. Eram seus irmãos, segundo este último documento, Fernando Gomes e Pedro Gomes. O pai de Châmoa, nesse contexto, era Gomes: conde Gomes Nunes, de Pombeiro.

T(estamentum) Flamule Gumez.

In nomine Patris et Filii et Spiritus sancti, amen. Quoniam in hac vita quasi hospites sumus et nemini nostrum ultimam sui horam scire est datum, iccirco ego, famula Dei, Flamula Gomez, jubeo quandam partem mee hereditatis disponere, gratia auxiliante divina. Audivi enim Dominum nostrum per prophetam dicentem: "Ve vobis qui copulatis agrum ad agrum et domum ad domum conjungitis; numquid soli vos habitabitis in terra?". Hec et alia hujuscemodi documenta sepissime audiens, fatio kartam testamenti canonice Sancti Salvatoris de Ecclesiola, de hereditate mea propria quam habeo inter illam stratam et illum montem de Sagittella et ab illa portella de Sancto Martino usque in Laurosela, de omni hereditate quam ibi habuit avia mea aona Domna Flamula, IIIIam partem, tantum dedit inde mihi pater meus. Do et concedo illam vobis ab integro per ubi illam potueritis invenire, suis antiquis terminis determinatam. Si forte aliquis ex meis parentibus aut meis filiis vel extraneis hoc meum factum in aliquo corrumpere volue(rit), pro sola temeritate componat ipsam hereditatem duplatam et quantum fuerit melioratam; et insuper sit maledictus et excommunicatus et cum Juda traditore in profundum inferni demersus. Facta karta testamenti mense novembrio, era M.C.LXX.VI. Ego supradicta Flamula Gomez cum idoneis testibus, sicut superius sonat, robor+o et confirmo. Qui presentes fuerunt: Menendus, ts; Didacus, ts; David, ts. Erus notuit.

(DURAND, Cartulaire Baio-Ferrado, doc. 29)

 

2

(Latrão, 8 de abril de 1139)

7. Suivant les traces de nos prédécesseurs les Pontifes romains Grégoire VII et Pascal, nous ordonnons que nul n'assiste à la messe de ceux qui vivent notoirement dans le mariage ou en concubinage. Pour que la loi de la continence et la pureté qui plaît à Dieu se propage chez les personnes ecclésiastiques et dans les saints ordres, nous décrétons que les évêques, les prêtres, les diacres, les sous-diacres, les chanoines réguliers et les moines, ainsi que les convers ayant fait profession, qui, transgressant leur saint propos, auraient osé contracter mariage, soient séparés de leurs épouses. Nous jugeons en effet que cette sorte de lien, manifestement contracté à l'encontre des règles de l'Église, n'est pas un vrai mariage. Que ceux qui sont séparés l'un de l'autre, s'imposent une pénitence en rapport avec de tels excès.

8. Nous décrétons que cette même règle doit être observée à l'égard des moniales si, ce qu'à Dieu ne plaise, elles osaient se marier.

(FOREVILLE, Raymonde. Latran I, II, III et Latran IV. Décrets du IIe Concile du Latran. Paris, 1965, p. 188-189)

 

 

3

(Valladolid, setembro de 1143)

(8) Ut autem continentia et Deo placens munditia in ecclesiasticis personis et sacris ordinibus dilatetur, iuxta quod a domino papa Innocentio statutum est, et nos innouamus, quatinus episcopi, presbyteri, diaconi, subdiaconi et regulares canonici, monachi atque conuersi professi, qui sacrum transgredientes propositum uxores sibi copulare presumpserint, separentur. Huiusmodi namque copulationem, quoniam contra ecclesiasticam regulam constat esse contractum, matrimonium non esse censemus. Qui etiam pro tantis excessibus abinuicem separati dignam agant penitentiam.

(9) Idem quoque de sanctimonialibus feminis, si quod absit nubere temptauerint, obseruari decernimus.

(ERDMANN, Carl. Papsturkunden in Portugal. Konzil von Valladolid. Berlin, 1927, p. 200

4

(Latrão, 6 de dezembro de 1198)

O papa Inocêncio III comunica a seu legado Rainério, então na Espanha, que Afonso, mestre dos hospitalários nesta província, lhe entregou 500 morabitinos, correspondente ao censo devido por Sancho I à Igreja de Roma.

Fratri Rainerio

Sicut nobis per tuas litteras intimasti, karissimus in Christo filius noster illustris [Sancius] rex Portugalliae nuper nobis pro annuo censu quatuor unciarum auri, quas coram te recognovit, quingentos et quatuor morabutinos fratri A. magistro Ierosolimitani Hospitalis in Hispania nostro nomine assignavit, quos idem hospitalarius nobis nuper sine diminutione transmisit.

(MANSILLA, Demetrio. La documentación pontificia hasta Inocencio III. Roma, 1955, p. 193)

5

(Embrun, fins de abril ou princípios de maio de 1203)

Dragonet de Rame, visconde de Embrun, doa aos hospitalários do lugar, por ordem de Guilherme IV, conde de Forcalquier e protetor do trovador Raimbaut de Vaqueiras, os moinhos situados na torrente de Vachères, afluente do rio Durance. Aceita a doação um turcopoliero e servem de testemunhas, entre outros, R. Anfos e Iterius.

Notum sit omnibus [homi]nibus, tam presentibus quam futuris, quod ego Draconetus, vice comes in partibus Ebreduni, auctoritate [et man]dato domini comitis Forcall[cariensis], asistente michi consiliario W. Sistaricensi preposito atque Vapincensi sacrista, dedi domui Hospitalis Yherosolimitani [de Ebr]eduno molendina que sunt ultra Durentiam in Vacherias, cum omnibus rebus sibi apertinentibus, cum pratis et cum besale per quod transeat aquas (sic) [ad] molendina et ad prata; et dedi et concesi in pascuis de Baleria animalibus suis pascere sine pascherio et absque ullo usatico. Et hut (sic) hec rata haberentur et firmiter tenerentur, actoritate domini W[illelmi] comitis et mandato ipsius, hoc instrumentum suo sigillo munivi et de meo. Hoc autem factum est in domo domine Guitborch, anno ab incarnatione Domini M C[C]III, Innocentio papa in suma sede residente, domino R[aimundo] Ebrebredunensi (sic) archiepiscopo [existen]te. Hoc donum acceperunt P. Fa.... pro......o; Roman[us] Silvester; W. Turcopol.....; Johannes Scriptor. Testes vocati ad testimonium sunt isti: Berardus, canonicus; Bon...., miles; Ugo Romanus; Ugo de Verdu; P. Agni; L. Agni; P. Moreti; Po. de Monte-Lauro; R. Andreas, miles; P. Lumbardi, judex; Agni (?) Brugensis; W. Chabazoli; Guigo Maeuhz; Ugo Ariez; W. Ugo; Aalbertus et filius ejus; P. W. Johannes; P. [M]ontel; W. Rispauz; P. Busca; Jacobus, frater ejus; Mazotus; Andreas Morons; R. Anfos; Iterius; Jacobus Radulfus, et multi alii.

(DELAVILLE LE ROULX, J. Cartulaire général de l'Ordre des Hospitaliers de S. Jean de Jérusalem (1100-1310). München, Omnia Mikrofilmtechnik GMBH, 1980. V. II, p. 20-21)

6

(Corbeil, maio de 1203)

A rainha Mathilde, condessa de Flandres, outrora esposa de Felipe, conde de Flandres, e filha de Afonso, rei de Portugal, faz saber que comprou, com seu dinheiro, da Caridade-sobre-o-Loire as propriedades, que ela agora tem legalmente, em Coutençon, Châteaubleau e Carrois e que, com o consentimento do grão-mestre Afonso de Portugal, presente ao ato, e aprovação de Isembardo, prior da França, também presente, doa esses bens aos Hospitalários, sob reserva de usufruto durante sua vida e sob outras condições, entre as quais o estabelecimento de três capelânias.

Regina M[athildis], comitissa Flandrie, quondam uxor pie recordationis Philippi, comitis Flandrensis, et filia Alfonsi, regis Portugalensis, omnibus hec videntibus et audientibus, bene velle et bene facere. Ne in irritum revocetur quod agimus, presenti scripto notum facio presentibus ac futuris quod ego conparavi de pecunia mea ab ecclesia de Caritate quicquid juris, quicquid possessionis ipsa habuit in omnibus commodis apud Constançons in dyocesi Senonensi et apud Castellum Blihaut, et grangiam de Corileto. Hec omnia, cum suis terminis et pertinenciis, cum suis dominiis et tenementis, et cum commodis ad ipsam spectantibus, emi ego a dicta ecclesia cum eo jure et cum ea libertate in quibus ipsa ecclesia eadem possederat et possidere debebat, et eadem omnia cum omni integritate, de mera et libera voluntate mea, liberaliter donavi in elemosina, pro remedio anime mee et domini mei comitis Philippi et patris mei et antecessorum meorum, Deo et beato Johanni et pauperibus Hospitalis Iherosolimitani. Verum de assensu et voluntate domini Alfonsi, tunc magistri Hospitalis, presentibus eciam et approbantibus preceptore, priore et multis de fratribus Francie, omnia predicta et quecumque in predictis locis deinceps excreverint, sive per me sive per elemosinas fidelium vel quibuscumque modis accrescant, omnia debeo tenere in tota vita mea, et de illis disponere et ordinare pro arbitrio meo; et quecumque ibi ponere voluero, sive fratrem Hospitalis sive aliquam laicam personam, michi de omnibus respondebit sicut de elemosina mea, quandiu vixero; et post mortem meam universa hec cum omnibus incrementis, cum omni integritate mobilium vel immobilium, prout de manu mea remanserint, ad domum Hospitalis sine diminutione aliqua revolventur; et hec omnia, prout hic distincta sunt et prout ego inde ordinavero, et specialiter de tribus capellanis fratribus Hospitalis, quos ego instituo in dictis locis ut ibi celebrent pro fidelibus in perpetuum, exceptis capellanis parrochialibus, qui deservient ecclesie et plebi, et de illa portione hujus elemosine, quam ego constituero mittendam singulis annis post mortem meam ultra mare, quod ad illos usus assignabitur in quibus magis erit necessaria ipsis pauperibus, et quod ista elemosina mea nulla necessitate vendetur vel alienabitur aliquo modo ab Hospitali, concessit dictus magister se firmiter tenere pro parte sua, et quod eadem fratribus et conventui Iherosolimitano faciet inviolabiliter observari. Que ut perpetuam habeant firmitatem, meo sigillo et idonearum personarum testimonio confirmavi. S. magistri Alfonsi. S. Ogeri, commendatoris. S. Isembardi, prioris in Francia. Actum Corbolii, anno verbi incarnati millesimo ducentesimo tercio.

(DELAVILLE LE ROULX, Cartulaire ..., v. II, p. 19)

7

(Marselha, castelo Babon, maio de 1203)

Raimbaut de Vaqueiras, trovador das cortes de Guilherme, conde de Forcalquier, de Hugues de Baux, irmão de Guilherme e visconde de Marselha, e de Bonifácio, marquês de Monferrato, apresenta a uma platéia de cruzados, na presença de Afonso de Portugal, grão-mestre da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, e antes de fazer seus votos de ingresso na mesma uma composição em cinco línguas românicas, para exibir seu virtuosismo de emérito trovador e, principalmente, para homenagear os hospitalários, que se distribuíam em cinco províncias, no território não germãnico, ou, como passavam a ser chamadas por Afonso, "línguas".

Aras cant vei verdeiar
pratz e vergiers e boscatges,
vueilh un descort comensar
d'amor per qu'ieu vauc aratges;
c'una dona.m sol amar
mas camjatz l'es sos coratges,
per qu'ieu fauc desacordar
los motz e.ls sons e.ls lengatges.

E so quel che ben non aio
ni ancor non l'averò,
ni per april ni per maio,
si per mea dona non l'ò.
Certo che, en so lengaio,
sa gran beutà dir non sò:
pu fresca cha fior de glaio
e za no m'en partirò.

Bele, douce, dame chiere,
a vos me doins e m'autroi;
mais non avrai joie entiere
si ne vos ai e vos moi.
Molt estes male guerriere
si je muer par bone foi;
e ja, par nule maniere,
no.m partrai de vostre loi.

Dauna, io mi rend a bos
car, ara, m'etz bon'e bera
- que anc foutz ! - gaillard'e pros,
ab que no.m foussatz tan fera.
Motz abetz, beras faisos
ab color fresqu'e noera.
Bos m'abetz e, si-bs agos,
no.m destrengora fiera.

Ca tan tem' o vostro preito
todo son escarmentado,
per uos ei ben' e mal treito
en meu corpo lazerado.
Aa noit', quando jac'en meu leito,
ei muintas vezes pensado,
e, car ren non mi-a profeito,
falid son en meu cuidado.

Bels cavaliers, tant es cars
lo vostr' onratz seinhoratges,
che cascun iorno m'esglaio.
Hoi me lasso! Che farò?
Si cele, que j'ai plus chiere,
me tue, ne sai por quoi.
Dauna, fe que deig a bos
ni pel cap Santa Quitera,
mon corasso m'aved's treito
e - molt gent faulan - furtado.

"Agora, ao ver verdejar
os prados, bosques e vargens,
de um amor vou começar
um "descort" , pois desespero.
Devia u' a dama me amar
mas mudou sua vontade;
faço, assim, desacordar
línguas, tons, versos rimados.

Eu sou o que bem não tem
nem nunca mais o terá,
nem em abril nem em maio
se em minha dama não o achar.
Em seu linguajar gaio
cantar-lhe o encanto não sei,
mais fresco que flor de "glaio";
dela não me apartarei.

Bela, doce, dama cara
a vós me dou, me consagro;
não terei prazer completo
não vos tendo e vós a mim.
Sereis mesmo cruel guerreira
se eu morrer por boa fé;
mas, de nenhuma maneira,
fugirei de vossa lei.

Senhora, me rendo a vós:
sois p' ra mim boa e sincera
- como nunca! - viva e altiva,
mas não me sejais tão cruel.
Tendes muitos, belos ares
cor viçosa e juvenil.
vós me tendes; se vos tenho,
a mim nada faltará.

Temo tanto vosso preito
que estou todo atormentado
bem e mal eu tenho feito
ao meu corpo magoado.
À noite, estando em meu leito,
muita vez tenho pensado
e, nada tendo em proveito,
sinto engano em meu cuidado.

Bel cavaleiro, é tão caro
vosso honrado senhorio,
que a cada dia me espanto.
Pobre de mim! que farei?
se quem eu mais considero
me mata, e eu não sei por quê.
Senhora, por minha constância,
por Santa Quitéria, digo:
o coração me arrancastes
e, a ser mais gentil, furtastes".

CASTRO, José Ariel. O descordo plurilíngüe de Raimbaut de Vaqueiras no contexto lingüístico-cultural do século XII. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1980, p. 134-136)

8

(Roma, 27 de janeiro de 1207)

Inocêncio III dá autorização ao mestre e aos irmãos do Hospital de São João de Jerusalém a edificar vilas e igrejas e a abrir cemitérios nos lugares desertos, nos afastados de outros mosteiros e, principalmente, nos territórios que se limitem com os dos sarracenos, reconhecendo seus serviços passados na ação de libertar a Terra Santa.

Innocentius ... dilectis filiis magistro et fratribus Hospitalis Jerosolimitani ...

Cum inter ceteros, qui post flendum Ierosolime captivitatis excidium, Terre Sancte necessitatibus astiterunt, specialiter vos pro eius defensione noscamini laborasse, tanto nos convenit utilitatibus vestris, presertim in articulo imminentis adversitatis intendere, quanto, quod vobis ex gratia speciali conceditur, non est dubium in universale Christi hereditatis presidium redundare. Hinc est igitur, quod ad exemplar felicis recordationis Alexandri [III] Lucii [III] et Celestini [III] predecessorum nostrorum Romanorum pontificum, auctoritate vobis presentium indulgemus, ut in locis desertis, que venerabilis vestra domus noscitur ubicumque ac presertim in confinio sarracenorum habere, villas vobis edificare liceat et ecclesias ac etiam ad opus hominum ibidem morancium cimiteria fabricare, proviso tamen, quod abbatia vel religiosorum virorum collegium in illa vicinia non existat, quod ob hoc valeat perturbari. Nulli ergo etc. Dat. Rome, ap. s. Petrum VI kal. februarii, pontificatus nostri anno IX.

(MANSILLA, La documentación ..., p. 381)

9

(meados do séc. XIV)

Cronica magistrorum defunctorum

XII. Postea fuit Magister Alfonsus de Portugalia, cujus tempore confirmatae fuerunt bonae consuetudines per Magistrum Rogerium, editae in Margato. Hic fecit bona statuta, et accidit quod aliquid Conventui suo praecepit; et quia conventus non paruit sibi magisterium resignavit et Bullam projecit; quâ per proceres captâ, ipsi in Magistrum alium assumpserunt. Deinde ipse in Portugaliam pergens, per gentem suam in itinere pocionatus, spiritum exalavit.

(DODSWORTH, Roger & DUGDALE, William. Monastici Anglicani volumen alterum. De canonices regularibus Augustinianis, scilicet Hospitalariis etc. Londini, Typis Aliciae Warren, anno Domini MDCLXI, p. 502)

 

NOTAS

1 - A conclusão de Monica Blöcker-Walter, no sentido de que o exemplar de André de Resende da Crônica dos godos deve ter sido por ele achado no arquivo de Santa Cruz, depõe em favor de ter nascido aí a lenda sobre a origem hispânica da rainha D. Mafalda, a qual passou diretamente para o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro e para a Crônica de 20 reis. (Cf. BLÖCKER-WALTER, Monica. Afonso I, von Portugal. Zürich, 1966, p.14-19)

 

2 - Almeida Fernandes esteve perto do que consideramos verdadeiro: a existência de uma rainha antes de D. Mafalda. (Cf. FERNANDES, A. de Almeida. Guimarães, 24 de junho de 1128 - Revista de Guimarães, 88:143,1978). O original, por ele revelado em A honra de Gouviães e sua estirpe (Braga, 1971, p. 95-96), é, certamente, um dos poucos que devem ter escapado a um possível expurgo de documentos, com menção da rainha, promovido depois de 1143. Seria ele consequência da imposição pela Igreja de Roma, através do legado Guido da separação dos cônjuges reais devido ao caráter sacrilego assumido por sua união perante as determinações de II Concílio de Latrão, de 1139.

3 - A interpolação, carreada por Antonio Brandão, ao texto dos Anais de Afonso Henriques (Cf. BLÖCKER-WALTER, op. cit., p.156-157) indica a natureza dos problemas que teve ele com a Igreja. Todo o acréscimo parece feito para contrastar com uma situação anterior e para mostrar a dificuldade que o rei teve para, em face das circunstâncias do momento, encontrar alguém de boa estirpe disposto a dar em casamento a um monarca, cheio de problemas e não reconhecido pela Igreja, uma filha ou uma irmã.

4 - MATTOSO, José. Identificação de um país. Lisboa, 1985, V.1 p.162.

5 - CINTRA, Luís Fernando Lindley. Crônica geral de Espanha de 1344. Lisboa, 1951, V. I, p. cccl. Dois outros documentos assinalam a existência de uma rainha em Portugal antes de 1146; no caso, D. Mafalda. São eles o de No. 196 dos Documentos medievais portugueses (vol.1, p. 243 e p.691) e o do verbete "apelido" do Elucidário, de Viterbo. São eles de 1142 e 1144, respectivamente. Cada um, isoladamente, tem contra sí anomalias sérias, muito embora o fato de o dos Documentos ter tido como modelo outro documento (verdadeiro) de 1146 não seja suficiente para invalidar-lhe a data. Pode ter havido um documento de 1142 com menção de uma rainha e o falsário, diante do conhecimento de D. Mafalda como única rainha, ter explicitado seu nome. O fato de ter sido fabricado entre 1277 e 1288, mais de um século depois, torna o problema de menor importancia, mas se conforma com a época favorável de nascimento da lenda sobre a origem hispânica de D. Mafalda.

6 - PORTUGALIAE MONVMENTA HISTORICA. Scriptores. Lisboa, 1856, p. 254.

7 - ibidem, p.175.

8 - PIEL, Joseph & MATTOSO, José. Portugaliae Monumenta Historica. Nova série. Lisboa, 1980, V. 1. p.14.

9 - CASTRO, José Ariel. O descordo plurilíngüe de Raimbaut de Vaqueiras no contexto lingüístico-cultural do séc. XII. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1981. 266 p.

10 - RIQUER. Martin de. Los trovadores. História literaria y textos. Barcelona. 1975, v.II, p. 851.

11 - LINSKILL, Joseph. The poems of the troubadour Raimbaut de Vaqueiras. The Hague. 1964, p.310

12 - DU CANGE, Charles Du Fresne, sieur. Glossarium mediae et infimae latinitatis. Paris, 1937. V. II, p. 495.

13 - VITERBO, Joaquim de Santa ROsa de. Elucidário. Porto, 1966. s.v. confissão.

14 - LINSKILL, op. cit., p. 302

15 - SCHULTZ-GORA, O. Die Briefe des trobadors Raimbaut de Vaqueiras an Bonifaz I. Markgrafen von Monferrat. Die Halle. 1893. p.23

16 - CRESCINI, Vincenzo. La lettera epica di Rambaldo di Vaqueiras. Atti e Memorie della Reale Accademia di Scienze, Lettere ed Arti di Padova. Nuova Serie, 18:207-30, 1901-1902.

17 - LINSKILL, op. cit. p.350

18 - RAYNOUARD, François. Lexique romain. Paris, 1844, v.2, p.10.

19 - PREVOST. M. & D'AMAT, Roman. Dictionnaire de biographie française. Paris. 1948. Sub verbo Alphonse II, de Provence.

20 - DELAVILLE LE ROULX. J. Cartulaire général de l'Ordre des Hospitaliers de S. Jean de Jérusalem. Paris, 1897. T.II, p.20-21. R. Andreas, W. Ugo, W. Chabazoli e Pons de Montlaur aparecem em documentos de Forcalquier. As demais testemunhas, não. Cf. TOURNADRE, Guy de. Histoire du Comté de Forcalquier. Paris, 1930, p.229, 232,237 e 243.

21 - DELAVILLE LE ROULX. op. cit., p. 42-43.

22 - GALLIA CHRISTIANA. t. III, col. 509.

23 - Luisetaines é documentada, sob a cota H.1176 por Henri Stein em seu Dictionnaire topographique du Département de Seine-et=Marne. Paris, 1954, p. 326.

24 - DELAVILLE LE ROULX. op. cit., p. 19 e 20

25 - UREDIUS, O. Genealogia Comitum Flandriae. Probationes. T. 1, p.193. Foi confirmada, depois de Julho de 1203, pelo rei Felipe Augusto.

26 - Cf. DELAVILLE LE ROULX, doc no 1197. p. 40-42.

27 - ibidem, doc. no 1213, p. 47 e 48.

28 - TAFEL, G. L. & THOMAS, G. M. Urkunden zur älteren Handels- und Staatsgeschichte der Republik Venedig. Amsterdam, 1964, p. 479.

29 - MIGNE, Patrologia latina, t. 214, col. CLIV - CLV.

30- GENESTAL, R. Histoire de la légitimation des enfants naturels en droit canonique. Mouen, 1905, p.86.

31 - HEFELE, Karl-Joseph von. Histoire des conciles. Paris, 1913, t. v, 2a partie, p. 1090.

32 - GENESTAL, op. cit., p.83

33 - PORTUGALIAE MONUMENTA HISTORICA. Scriptores. Lisboa, 1856, p. 254 e 268.

34 - PIEL, Josephe & MATTOSO, José, op. cit. p. 65. Cf. FERNANDES, A. de Almeida. Revista de Guimarães, 88: 79, 1978.

35 - DURAND, Robert. Le cartulaire Baio-Ferrado du monastère de Grijó. Paris, 1971, p. 40.

36 - BLUTEAU, Raphael. Vocabulário portuguez-latino. Coimbra, 1713, v.3, p.283

37 - CARDOSO, Jorge. Agiologio lusitano. Lisboa, 1666, t.3, p.143

38 - Garnier de Naplouse, por exemplo, foi ao mesmo tempo prior da Inglaterra, em 1189, e grão-comandante da França. Cf. DELAVILLE LE ROULX,J. Les hospitaliers en Terre Sainte et à Chypre (1100-1310). París, 1904, p.415.

39 - MANSILLA, Demetrio. La documentación pontificia hasta Inocencio III. Roma, 1955, p. 193

40 - Documentos medievais portugueses. Lisboa, 1958, v. 1, t. 1, p. 345.

41 - AZEVEDO, Ruy de. Ainda sobre a data em que Afonso Henriques tomou o título de rei. Revista Portuguesa de História, 1: 179-180, 1941.

42 - 26 de abril, no primeiro caso; 3 a 8 de abril, no segundo; cf., a respeito, ERDMANN, Carl. O Papado e Portugal no primeiro século da história portuguesa. Versão portuguesa por J. de Providência Costa. Coimbra, 1935, p. 41 e FOREVILLE, Raymonde. Latran I, II, III et Latran IV. Paris, 1965, p.78

43 - A possibilidade de existência real dessa aclamação foi descoberta por José Mattoso em Fragmentos de uma composição medieval, Lisboa, 1987, p. 222-229. Gonzaga de Azevedo (História de Portugal, Lisboa, 1942, v. 4, p. 27-29) acredita, com razão, que a missão do legado Guido de Vico, do título de S. Cosme e Damião, foi precedida de negociações nos anos de 1141 e 1142 e que tinha como objeto principal o Concílio de Valladolid e a conferência que acabou por se realizar em Zamora. Como acentua o historiador português, muito mais importante, nessa missão, era estabelecer o cardeal relações com o novo rei, embora não haja "nenhuma fonte narrativa que nos conte o que se combinou entre os dois" (AZEVEDO, op. cit., p. 44). Afonso Henriques já teria feito ver ao papa, antes de 1143, que queria ser reconhecido como rei. O pontífice se dispôs a tratar do assunto, mandando um legado, com as condições do reconhecimento, e autorizando um concílio, o de Valladolid, que pudesse ser realizado ao mesmo tempo que a conferência entre as partes envolvidas na independência de Portugal. Quem teria levado ao papa o desejo de Afonso Henriques e quem lhe dera conhecimento sobre a situação política e pessoal do rei? Certamente, dois correspondentes que se opunham, o arcebispo João Peculiar, de Braga, e o bispo Bernardo, de Coimbra. As notícias sobre a pessoa do rei teriam sido dadas por Bernardo, através de emissários, nas queixas deste contra João Peculiar. Indícios dessa situação podem ser encontrados no episódio do Bispo Negro (Cf. SARAIVA, Antônio José. A épica medieval portuguesa. Lisboa, 1979, p. 61-68), em que parece claro ter o rei tomado partido contra o bispo Bernardo, tentando substituí-lo, o que lhe rendeu acusações de heresia, presentes tanto no relato de Santa Cruz, como na Crônica de Vinte Reis (SARAIVA, op. cit., p. 66). O fato de Afonso Henriques se esforçar em dizer ao legado que em Coimbra, sua capital, havia tão bons livros de quanto em Roma está a indicar divergências do rei com a Igreja relativamente aos cânones então vigentes.

44 - Cf. CUNHA, Rodrigo da. Catalogo e historia dos bispos do Porto. Porto, 1623. II. parte do Catálogo, Capítulo VII - De Dom Martinho Rodrigues, 23, Bispo do Porto, p. 52-56.

45 - FERNANDES, A. de Almeida. Guimarães, 24 de junho de 1128. Revista de Guimarães, 88: 79, 1978.

46 - ibidem, p. 72.

47- Livro do Deão, edição de José Mattoso, 6B3.

48 - Cf., para a carta, CUNHA, op. cit. p. 54-56.

49 - MATTOSO, José. A nobreza medieval portuguesa. Lisboa, 1981, p. 216.

50 - GONZALEZ, Julio. Regesta de Fernando II. Madrid, 1943, p. 17.

51 - Ibidem, p. 67

52 - GENESTAL, op. cit., p. 181.

53 - CABEZA, Custódio. Malta e os grãos-mestres portugueses da Ordem de São João de Jerusalém. Lisboa, 1936, p.5-6.

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