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OBRAS DE ARIEL CASTRO

TITULAR DE FILOLOGIA DA UFRJ

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I







O DESCORDO PLURILÍNGÜE

DE

RAIMBAUT DE VAQUEIRAS

(UM ENSAIO DE FILOLOGIA ROMÂNICA PARA COMPREENSÃO DE SUA OBRA, SUA VIDA E SEU TEMPO)












RIO DE JANEIRO

1995













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CCopyright @ José Ariel Castro, 1995.

Capa

Realizada em colaboração com o Centro Internazionale della Grafica, de Veneza. Gravura de escola francesa.



EXEMPLAR








CIP - Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
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CASTRO, José Ariel, 1937 -

O Descordo Plurilíngüe de Raimbaut de Vaqueiras. Rio de Janeiro, Edição do Autor, 1995.

(Obras de Ariel Castro, vol. I. Edição especial, numerada de 1 a 50 e assinada pelo Autor.)

1 - Literatura Provençal - Idade Média. 2 - Filologia - Filologia Românica. 3 - Crítica Textual. 4 - História - Europa - Idade Média - História Cultural - História Política.

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Escrito, digitado e impresso pelo Autor. Permitida a fotocópia apenas para finalidades acadêmicas de estudo e de pesquisa, com menção da fonte.

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Para Ildete



















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De Ariel Castro:

Bibliografia brasileira de literatura. In: Anuário da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro, 1961, p. 199-230; 1963, p. 135-170.

Formação do império colonial anglo-francês na Africa. Cadernos Brasileiros, 4 (4): 37-45.

Regras práticas da língua inglesa. Rio de Janeiro, Editora e Gráfica Miguel Couto, 1969. 2a ed., 1970.

Notitia de Torto. Revista de Portugal,número especial. Lisboa, 1972

O auto de partilhas. Língua e Cultura, 2(3): 207-223, Lisboa, 1972.

Análise da carta 12 do Atlas Prévio dos Falares Baianos. In: XXV REUNIÃO ANUAL DA SOCIEDADE BRASILEIRA PARA O PROGRESSO DA CIÊNCIA - SEÇÃO: LINGÜÍSTICA, Rio de Janeiro, 1973. Anais... In: AZEVEDO FILHO, Leodegário, edit. Interrelacionamento das ciências da linguagem. Rio de Janeiro, Gernasa, 1974, p. 149-164.

A colocação do pronome pessoal átono no português arcaico (século XIII). Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 1974. 280 p. (Publicação interna).

A glotocronologia e o enfoque lingüístico da datação das línguas românicas. Revista Brasileira de Lingüística, 2: 30-52, 1975.

A língua dos trovadores provençais e o português. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE LÍNGUA E LITERATURA, 7º, Rio de Janeiro, 1975. Atas... Rio de Janeiro, Novacultura, 1975, p. 87-99.

Língua literária. Relatório. In: XVIII CONGRESSO INTERNACIONAL DE LITERATURA IBERO-AMERICANA, Atas... Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 1978, p. 189-191.

Projeto do Núcleo de Lingüística e Filologia Aplicadas. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 1980. 30 p. (Circulação interna).

Projeto de elaboração do Atlas Lingüístico do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 1980. 60 p. (Publicação interna).

Fundamentos da história externa do português do Brasil. Zeitschrift für Romanische Philologie, 97 (3/4): 383-402, 1981.

Teoria e prática do trabalho lingüístico ou filológico na área românica. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 1977. 250 p. (Publicação interna).

O Descordo Plurilíngüe de Raimbaut de Vaqueiras no contexto lingüístico-cultural do século XII. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da UFRJ, 1980. 260 p. (Publicação interna).

Apresentação do vocabulário do Atlas Prévio do Falares Baianos. In: FESTSCHRIFT HEINZ KRÖLL. Tübingen, Gunter Narr Verlag, 1984, p. 119-136.

Língua, sociedade e cultura no Brasil. In: MISCELÂNEA DE ESTUDOS LITERÁRIOS. Homenagem a Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro, Editora Vida Doméstica, 1984. p. 319-340.

Formação e desenvolvimento da língua nacional brasileira. In: A LITERATURA NO BRASIL, direção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1986, v. I, p. 258-385.

Inocêncio III e a gênese do espírito inquisitorial. 1º CONGRESSO INTERNACIONAL SOBRE A INQUISIÇÃO. Lisboa, São Paulo, Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Instituto de História da UFRJ, 28 de maio de 1987. (No prelo)

Língua brasileira. In: ENCICLOPÉDIA DE LITERATURA BRASILEIRA, direção de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa. Rio de Janeiro, Ministério da Educação / Fundação de Assistência ao Estudante / Oficina Literária Afrânio Coutinho - OLAC, 1990, v. 2, p. 794-799.

Ação dos jesuítas no processo de formação cultural do Brasil. In: HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, direção de Sílvio Castro. Lisboa, Editora Alfa, 1991. (No prelo).

Literatura e sociedade no Brasil joanino. In: HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, direção de Sílvio Castro. Lisboa, Editora Alfa, 1991. (No prelo).

Afonso de Portugal, 11º grão-mestre da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, e o século XII português. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS, 3º. Atas... Coimbra, 1992, p. 819 - 858.

O movimento academicista e o processo cultural do Brasil Colônia. In: HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, direção de Sílvio Castro. Lisboa, Editora Alfa, 1993. (No prelo)

Contexto político e cultural da Notitia de torto e da Mentio de malefactoria. CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS, 4º. Atas... Hamburg, 1993. (No prelo)






















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Utilização da técnica de investigação filológica para esclarecimento do valor lingüístico e histórico do Descordo Plurilíngüe bem como de sua posição dentro da tradição cultural da Idade Média.
















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Prefácio

A primeira versão deste livro, menor que esta e com outra preocupação, teve caráter exclusivamente acadêmico, com distribuição dos vinte exemplares aos seis membros da banca examinadora do concurso para professor titular de Filologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, à biblioteca da Faculdade de Letras, à biblioteca central da Universidade e a outras pessoas ou entidades que desconhecemos. Desde 1980, iniciamos uma revisão do trabalho, que foi dado a conhecer a alguns colegas, entre os quais, em 1983, o ilustre catedrático da Universidade de Mainz, W. Th. Elwert, que fez valiosas observações ao texto e chegou a oferecer ajuda para sua impressão na Alemanha. Na época, já pensávamos em acrescentar uma parte histórica ao corpo do trabalho com o fim de resolver o problema secular da datação do poema, do estabelecimento do lugar de sua composição e circunstâncias envolventes. Com esse propósito, voltamos a pesquisar em várias bibliotecas européias (Mainz, Heidelberg, Berlin, Veneza, Pádua e Paris), assim como no Arquivo Nacional da França. No Brasil, utilizamos a esplêndida biblioteca do Mosteiro de São Bento, a Biblioteca Nacional e o Real Gabinete Português de Leitura, todas no Rio de Janeiro, a Biblioteca Central da Universidade de Brasília, a biblioteca do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo e a Biblioteca Mário de Andrade, na capital paulista.

Demoramos a editar este trabalho por não haver, no Brasil, condições universitárias para a divulgação de obra filológica especializada. Optamos, então, por aprender editoração eletrônica para nos responsabilizarmos pelo processo completo de produção de um livro, desde a criação intelectual do mesmo até sua divulgação e distribuição, passando pela composição e impressão, que fizemos em casa em nosso computador IBM 386 DX.

Na primeira parte de nosso trabalho, desenvolvem-se considerações sobre problemas teóricos gerais da atividade filológica, e da pesquisa ligada à investigação da lírica trovadoresca. A seguir faz-se uma história minuciosa dos esforços de compreensão da composição de Raimbaut de Vaqueiras. Os fundamentos da paleografia dos manuscritos trovadorescos servem de base à análise crítica dos manuscritos que contêm o Descordo.

Para melhor compreensão da história dos estudos do Descordo, apresentamos um exaustivo quadro de comparação entre os resultados dos mesmos e os alcançados por nós na análise crítica dos manuscritos. Como necessário ponto de encontro dessa investigação preliminar com o esforço que se fará para o estabelecimento de nova leitura do poema, estabelecemos, então, a história de Raimbaut e de seu tempo até o momento provável da produção do Descordo Plurilíngüe.

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A segunda parte é a edição crítica da composição. Nela se relêem as estrofes não lusitanas com base, principalmente, no ms. f, que se mostrou, ao longo da investigação, a fonte mais adequada a essa finalidade. A estrofe galego-portuguesa é examinada minuciosamente e sua leitura se baseia, em grande parte, no ms. a1, muito precioso para esse objetivo e capaz de deixar entrever, até mesmo, situações que contribuíram para gerar a composição.

Na terceira parte, levantam-se as variáveis culturais que propiciaram, ao longo dos séculos anteriores, a produção de um poema tão original. É arrematada com uma identificação do poema como obra literária indissociável da história da cultura.

A solução dos problemas históricos que envolvem o Descordo Plurilíngüe, inclusive a data e o lugar de sua composição é buscada na quarta e última parte.

O livro, como um todo, é um esforço para se esclarecer a biografia do poeta e dar sentido mais definido à sua obra, já que as soluções até agora oferecidas não são satisfatórias. Como o trabalho é de natureza filológica, aproveita-se a oportunidade para se fazer uma revisão de conceitos e se recordar uma série de outros. Da mesma forma, fatos históricos conhecidos são apresentados sob nova perspectiva, enquanto outros surgem pela primeira vez. Os que são trazidos novamente à luz ajudam com sua repetição, à compreensão da moldura mais ampla do trabalho. A parte referente à história da cultura, sem pretensões de originalidade, presta-se, porém, ao papel de conduzir ao verdadeiro sentido de descordo, presente na composição e à real utilização da herança latina, no que diz respeito à tópica, por Raimbaut de Vaqueiras.

Os resultados, enfim, aí estão, para julgamento dos colegas. Se não são bons, fica o consolo, pelo menos, de termos feito, ao longo do percurso, novas e fecundas amizades, de termos fortalecido as antigas e de nos termos distraído, o que, sem dúvida, é a única alternativa para o drama da vida humana. Tal como na Idade Média.

Brasília, novembro de 1993





























"Se eu disser, Apolonio, algûa cousa de má composição, fazei-me tanta mercê que me aviseis, & retratarme-ei logo: que tenho por grande louvor dos bons engenhos conhecerem suas faltas.""(1)















Sumário

Ementa - 5
Prefácio - 7
Epígrafe - 9
Sumário - 11
INTRODUÇÃO - 17

PARTE I

Capítulo 1

Problemas relativos ao estabelecimento de textos críticos da lírica trovadoresca

A obra dos trovadores provençais como corpus filológico - 21

Formação e natureza de um corpus filológico trovadoresco - 22

A investigação contemporânea da atividade trovadoresca em face da Filologia - 23

Cultura e história literária - 24

Século XII e investigação filológica - 25

Bases para um novo conceito de Filologia - 27

O Descordo Plurilíngüe como documento românico - 29

Capítulo 2

Histórico das notícias e estudos sobre o Descordo Plurilíngüe

O Descordo Plurilíngüe na vida de Raimbaut de Vaqueiras - 31

Primeiras repercussões da obra de Raimbaut de Vaqueiras - 31

O Descordo Plurilíngüe nas origens da Filologia Românica

Petrarquismo e primeiros estudos sobre os trovadores - 37

O Descordo Plurilíngüe no Século XVII - 39

O Descordo Plurilíngüe no século XVIII - 40

Crescimbeni - 40

Antonio Bastero - 41

Sainte-Palaye - 42

Sainte-Palaye nas origens da Filologia Românica - 45

Papon - 45

As edições nos séculos XIX e XX

Raynouard - 49

Caráter geral das edições dos séculos XIX e XX - 52

Capítulo 3

Alguns aspectos da paleografia dos textos trovadorescos

Origens das escrituras do final da Idade Média - 56

Nomenclatura das escrituras documentárias - 59

Variáveis no estudo da paleografia dos manuscritos trovadorescos - 60

Capítulo 4

Crítica dos manuscritos que contêm o Descordo Plurilíngüe - 64

Relação dos manuscritos - 64

Classificação das escrituras do Descordo - 65

Manuscrito C

Localização - 66

O problema de sua autoria - 66

Paradeiro - 67

Valor do manuscrito C e suas relações com os demais que contêm o Descordo Plurilíngüe - 68

O manuscrito C diante das três tradições da lírica tro- vadoresca e dos manuscritos E, M, R, f, Sg e a1 - 70

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito C - 78

O manuscrito E

Localização e descrição - 79

Paradeiro - 80

O Descordo Plurilíngüe no Ms. E - 80

O manuscrito f

Localização e descrição - 81

Paradeiro - 82

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito f - 83

O manuscrito M

Localização e descrição - 83

Paradeiro - 84

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito M - 84

O manuscrito R

Localização e descrição - 85

Paradeiro - 86

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito R - 86

O manuscrito Sg

Localização e descrição - 87

Paradeiro - 88

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito Sg 88

O Manuscrito a1

Localização e descrição - 89

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito a1 - 89

Capítulo 5

Confronto entre as edições do Descordo Plurilíngüe e os textos dos diferentes manuscritos

Critérios - 90

Estrofe provençal - 92

Estrofe italiana - 94

Estrofe francesa - 96

Estrofe gascã - 98

Estrofe galego-portuguesa - 100

Estrofe plurilíngüe - 103

Capítulo 6

Mitos medievais e realidade histórica na vida de Raimbaut de Vaqueiras anterior ao Descordo Plurilíngüe

As evidências históricas da vida de Vaqueiras até 1203 - 106

Instrumental bibliográfico - 106

Os dados conhecidos e geralmente aceitos de sua vida - 108

Avaliação da cronologia de Linskill - 109

Ideologia feudal de Raimbaut de Vaqueiras

Ponto de partida - 110

A coragem indômita - 111

Dom divino da coragem indômita - 114

Supremacia entre os pares - 117

Magnificência das cortes meridionais - 122

Ricardo Coração de Leão, os trovadores e Raimbaut - 124

O senhal "Engles", símbolo da ideologia feudal de Raimbaut Vaqueiras - 126

O condado de Forcalquier entre os séculos XII e XIII - 127

O triângulo Forcalquier, Marselha, Monferrato na vida de Raimbaut de Vaqueiras - 131

Os manuscritos mais ligados ao contexto de vida de Raimbaut - 137

PARTE II

Capítulo 1

Línguas do Descordo Plurilíngüe e consciência lingüística ao tempo de Raimbaut de Vaqueiras - 149

Capítulo 2

Os manuscritos preferidos para a edição do Descordo antes de Raynouard - 151

Nostredame, Pasquier, Crescimbeni e Sainte-Palaye - 151

Capítulo 3

História das edições críticas do Descordo e reflexos reais do original de Vaqueiras nos manuscritos - 155

Capítulo 4

Leitura preliminar do Descordo Plurilíngüe

Critérios - 156

Leitura - 157

Aplicação dos critérios à leitura preliminar

Tratamento das estrofes não provençais

Eliminação das leituras provençalizantes - 158

Análise lingüística dos versos corrigidos e dos demais - 160

Estrofe italiana - 160

Estrofe francesa - 164

Estrofe gascã - 166

Estrofe galego-portuguesa - 170

Tratamento da estrofe provençal - 189

Leitura do Descordo Plurilíngüe - 191

PARTE III

Capítulo 1

Textos literários medievais e cultura correspondente

O texto como reflexo do sistema - 199

O texto no espaço - 200

O texto no tempo - 201

O texto na organização social - 201

Capítulo 2

Origens culturais do lirismo trovadoresco

Aspectos gerais - 203

Teoria da influência árabe

Valor que lhe é atribuído - 204

Cultura árabe e produção poética

Defensores e adversários da teoria - 204

Argumentos dos defensores - 205

Argumentos dos adversários - 206

Aspectos da teoria ainda hoje consideradosSeis espaços. - 208

Teoria da tradição popular

Menéndez Pidal e Viscardi, defensores da teoria - 209

Cantos e bailados populares na alta Idade Média - 211

Mímicos e jograis - 212

Novos documentos necessários à avaliação da teoria - 214

O jogral que havia em Raimbaut de Vaqueiras - 217

Sentimento da língua e literatura popular até o século VII - 220

Teoria da unidade latino-clássica-medieval

A latinidade clássica em Raimbaut de Vaqueiras - 224

Conceito de latinidade medieval - 225

Bases da teoria da continuidade latina, lingüística e literária

Continuidade lingüística - 229

Continuidade literária - 231

O sistema de ensino da Idade Média - 233

Origens da reforma educacional carolíngea - 234

A implantação da reforma carolíngea do ensino - 235

Conseqüências da reforma carolíngea - 236

Educação de leigos - 237

Curriculum do ensino medieval - 238

Repercussão do ensino clássico na poesia latina profana - 243

Repercussão do ensino clássico na poesia popular em língua vulgar - 249

As opiniões a respeito - 249

Retórica clássica e técnica literária dos trovadores - 251

Alguns exemplos de utilização direta da herança clássica - 254

Temas populares na poesia latina medieval e na trovadoresca

Caráter mais amplo dos gêneros da poesia trovadoresca e sua relação com a cultura da época - 258

Gêneros trovadorescos e seus correspondentes ou equivalentes latinos - 259

A) Canção - 260

B) Pastorela e temas da primavera e do lugar ameno - 263

C) Outros gêneros - 265

O caso particular do descordo

Os adynata na literatura medieval - 267

Adynaton nos Carmina Burana - 268

Adynaton em Arnaut Daniel - 269

Os adynata de Arnaut Daniel na crítica do Monge de Montaudon - 270

Adynaton em Petrarca - 270

Adynaton em Raimbaut de Vaqueiras - 271

Teoria da tradição litúrgica

Aspectos gerais - 272

Limites da influência da tradição litúrgica - 274

O Descordo Plurilíngüe como manifestação da unidade latino-clássica-medieval - 275

PARTE IV

Capítulo 1

Dados imediatos do contexto histórico do Descordo Plurilíngüe

Introdução - 281

Elementos históricos implícitos - 283

As evidências implícitas - 283

Conseqüências históricas das evidências implícitas - 286

Capítulo 2

O mundo de Raimbaut de Vaqueiras à época do Descordo - 287

A política mundial - 287

A Igreja e sua herança - 288

Reflexos da mentalidade vigente na obra de Vaqueiras

Religiosidade induzida - 291

Religiosidade militante - 293

A Ordem do Hospital de São João de Jerusalém e a militância religiosa de Raimbaut de Vaqueiras - 296

Afonso, a caminho de Corbeil, e Raimbaut, antes de Marselha, em Embrun - 300

Afonso de Portugal, grão-mestre de Raimbaut de Vaqueiras - 305

CONCLUSÃO - 309

BIBLIOGRAFIA - 311

ÍNDICES - 319






Introdução

Dos gêneros cultivados pelos trovadores, ao longo de dois séculos e meio de ininterrupta produção lírica, o descordo é, talvez, o de alcance mais limitado, não somente porque é representado por um número pequeno de composições, mas também porque parece limitar-se a uma época curta da história do trovadorismo.

Por se apresentar formalmente de maneira diversa entre aqueles que o praticaram, o descordo é um gênero cujo estudo ainda está em aberto. Presta-se, em conseqüência, a investigações que, a par da busca de sentido e caracterização de uma composição determinada, podem contribuir para esclarecer um particular momento da história temática e formal dos trovadores dentro da longa perspectiva cultural de sua formação.

Raimbaut de Vaqueiras é o autor de um famoso descordo, em cinco línguas, produzido, ao que se supõe, na primeira década do século XIII. Este poema, por suas características inusitadas, desde logo chamou a atenção dos contemporâneos do poeta e chegou a ser imitado um século depois por Dante Alighieri, apesar de só ter originado duas outras composições do mesmo tipo entre os trovadores provençais, uma de Cerverí de Girona, e outra, de Bonifácio Calvo. Até o século atual, com a única exceção do século XV, o Descordo Plurilíngüe, de Raimbaut de Vaqueiras, tem sido reproduzido e admirado.

Os estudos pormenorizados sobre esse descordo têm sido poucos, havendo, porém, em contrapartida, numerosas reproduções do poema, em que se busca, antes de tudo, editar corretamente cada estrofe em sua língua respectiva. No entanto, uma abordagem aprofundada do mesmo como material filológico ainda está por se fazer, apesar dos meritórios trabalhos de Crescini, Monteverdi e d'Heur.

A composição de Raimbaut de Vaqueiras permite, a nosso ver, a obtenção de dados valiosos nos campos lingüístico, paleográfico, crítico-textual, literário e cultural. Na medida de nossas limitações, é o que nos propomos fazer.

Nosso método consiste em resenhar primeiro as contribuições, ao longo dos séculos, para o conhecimento do poema.

Partimos, depois, do material em si, em sua forma paleográfica e em seu conteúdo lingüístico, ambos associados a fatores histórico-geográficos, para o estabelecimento de uma edição crítica da composição, que corresponda à realidade expressional da época em que o poeta viveu. Em um caso, porém, será necessário incluir na edição uma expressão que devia ser própria de Raimbaut, não da língua que, com grande brilho, procurava usar. A edição passa a ser, então, a base para uma ampla investigação cultural e histórica do poema, o que, de resto, se situa nos verdadeiros limites do discurso filológico.

A finalidade mais ampla da investigação torna-se, em conseqüência, uma tentativa de apreensão da sociedade em que vivia Raimbaut de Vaqueiras, subordinada esta tentativa, tanto quanto possível, à consciência de que, entre Verstehen (compreensão, interpretação) e Vernunft (razão), é necessário, nas conclusões, ficar com esta, como instrumento de descoberta da realidade profunda sob as aparências dos dados apresentados pelo poeta ao longo de sua obra conhecida ou aceita.(2) Isso porque a Filologia, como disciplina totalizante, ou seja, que se desenvolve num campo aberto de investigação, deve buscar identificar o autor do texto em toda a extensão possível de suas afirmações e contradições e dentro da sociedade em que interage, sem se deixar levar pela ilusão de encontrá-lo em sua individualidade plena - inatingível até por ele mesmo.

A utilização de um corpus tão pouco extenso, como é o caso do Descordo Plurilíngüe, pode parecer insuficiente. Como se verá, porém, há por trás dele muito mais do que suspeitaram os eméritos investigadores que nos precederam. As línguas empregadas na composição, sua quantidade, seu entrelaçamento, o notável elenco de variantes gráficas ou lexicais criadas pelos copistas em diferentes épocas, tudo tem um significado, que constitui um desafio para quem se sente atraído pela época em que o poeta viveu, uma das mais complexas da história da civilização ocidental.

A contínua perda de sentido da Filologia, como disciplina da Ciência da Linguagem, estimulou-nos a ser, no estudo, menos lingüista e menos crítico literário. O poema é uma janela que tentamos abrir para ver, com a maior nitidez possível, o mundo de Raimbaut de Vaqueiras. Com ela procuramos, ao mesmo tempo, dar um sentido, que julgamos novo, à atividade filológica.




























PARTE I


















CAPÍTULO 1

Problemas relativos ao estabelecimento de textos críticos da lírica trovadoresca

A obra dos trovadores provençais como corpus filológico

O conjunto das produções dos trovadores provençais, desde o século XI até os inícios do XIV, constitui um material que, distribuído pelos cancioneiros, está à disposição de todos os estudiosos da Ciência da Linguagem para análise com vistas ao levantamento da realidade lingüística e cultural daquele período. Nela se manifesta, em um dos momentos mais altos de sua história, a linguagem humana, que é o objetivo comum de lingüístas e filólogos.

Como investigadores da lírica trovadoresca, podem os cientistas da linguagem, lingüístas ou filólogos, buscar naquele corpus ensinamentos para todos os setores de sua atividade, na medida em que nele procuram a realidade lingüistica em si mesma ou as características dela como reflexo da sociedade, ou, ainda, como fator cultural de seu desenvolvimento. A linguagem humana, em relação à sociedade, é paciente e agente e, nesse sentido, a produção artística de um conjunto de gerações tão importantes como as dos trovadores se apresenta como material a desafiar a argúcia dos cientistas da linguagem.

O objetivo comum imediato de todos aqueles que buscam compreender a linguagem dos trovadores é precisar o significado, o valor e as características das mensagens daqueles poetas. Decodificando essas mensagens, poder-se-á distinguir o valor da contribuição desses poetas para a história cultural das línguas românicas e dos povos que as falam.

Como o material que nos chegou dos trovadores se presta apenas à formação de um corpus filológico lingüisticamente não intencional, isto é, não produzido com a finalidade de servir de base para estudos lingüísticos, a decodificação das mensagens que lhe são correspondentes há de ser um trabalho que buscará um máximo de aproximação com a realidade original da produção trovadoresca. É nesse sentido que a atividade do filólogo se diferencia daquela do lingüista. Este, porque controla, fiscaliza, condiciona o material, em sua formação, à sua intencionalidade, acaba por ter, na realidade, grandes possibilidades de

afirmar e suas afirmações poderão estar em adequação com a realidade porque não se ressentirão de imperfeições difusas e incontroláveis do material.

Já o filólogo precisa dar ao material que investiga melhor rendimento, a partir de um trabalho prévio que consiste em escoimá-lo de todas as imperfeições detectadas. Assim realizado seu ofício, pode, diante do corpus estabelecido, perseguir objetivos semelhantes aos do lingüista ou alguns que lhe sejam próprios, como, por exemplo, o valor desse corpus dentro do contexto lingüístico-cultural correspondente.

Formação e natureza de um corpus filológico trovadoresco

Na formação do corpus filológico muitos problemas se apresentam porque, lidando o filólogo com um material linguisticamente não intencional, tem ele de realizar previamente um trabalho técnico, que é, como vimos, o de escoimar ao máximo os textos que se lhe apresentam de suas imperfeições. Por isso, começa a trabalhar o filólogo, cientista da linguagem, como crítico textual, ou seja, como um técnico. Deve ele, em relação a seus textos, procurar estabelecer todos os pontos que possam vir a ser dados seguros, pontos de referência indubitáveis. Como preparador de textos, o crítico textual é a pessoa que deve analisar o material externa ou internamente. Para isso, procura estabelecer o paradeiro do texto, sua localização atual, suas características paleográficas e ortográficas, pois tudo isso, servindo ao estabelecimento de sua genealogia, pode lhe dar condições de decisão quanto à forma final de que se revestirá o corpus filológico resultante de seu trabalho.

Na lírica trovadoresca esse tipo de atividade reveste-se de extrema complexidade, porque o grande número de cancioneiros existentes (95 ao todo) configura, na imensa maioria dos casos, versões diferentes, em grau variável, para um original que nunca existe. As variantes de versos ou palavras de cada composição apresentam-se, em certos casos, em tal número que somente o conhecimento de todas as variáveis, que entram na história da composição considerada, permitirá uma decisão segura quanto à solução formal a ser adotada.

Sem se ater, estritamente, aos métodos de crítica textual, em uso (de Lachmann ou de Bédier), deve o filólogo, transformado em preparador de texto, considerar que o material que investiga é um meio e não um fim. Daí não dever ele preocupar-se exageradamente com o estabelecimento da história de seu texto, das relações do manuscrito em que está pesquisando com outros, etc. Deve estar alerta para o fato de que seu primeiro objetivo é a fixação de um texto ótimo e de que os objetivos seguintes são os mais correspondentes à sua condição de filólogo.

A investigação contemporânea da atividade trovadoresca em face da Filologia

Ao aproximar-se a Ciência da Linguagem do século XXI, verifica-se um quase total esgotamento do termo Filologia para designar um dos métodos possíveis de investigação dessa ciência. A persistência, entre as pessoas formadas em ambientes conservadores de ensino das humanidades, de um uso demasiado abrangente da disciplina, assim como sua colocação dentro de uma perspectiva de esforço etimológico, na forma e no conteúdo, muito contribuiu para seu desgaste e para a perda de prestígio científico de seus adeptos.

Quando se sabe que o sentido de uma palavra é, antes de tudo, ditado por seu uso contextual, tornam-se irreais e muitas vezes inúteis os verbetes da infinidade de dicionários etimológicos produzidos com enorme esforço por tantos mestres do passado, nos séculos XIX e XX.

Para os que se esforçam, principalmente na Europa, no sentido de manter acesa a chama do trabalho filológico, é necessário conscientizar-se da desvantagem, na proporção de sua maior antigüidade, que existe entre um texto escrito, como material para estudos lingüísticos, e um texto contemporâneo de base oral ou formado sob a vigilância científica de um especialista.(3)

Em meio a essa problemática, situa-se a produção artística ou científica de quem viveu em épocas remotas, como os séculos XII e XIII.

Quanto mais distante, no tempo, o autor de um texto que se necessita investigar, maior a necessidade da consideração das variáveis contextuais de sua produção. É aí que permanece viva a atividade do filólogo, principalmente quando é ele o resultado de um esforço em co­ nhecer voltado para os mais diversos aspectos da cultura.

Não se deve, porém, considerar os filólogos, por estarem voltados para os mais diferentes aspectos da cultura, como cientistas que "sabem algo de muitos campos mas que não sabem muito de nenhum".(4)

Na opinião do ilustre romanista Kurt Baldinger, não é o filólogo que se transporta a todos os campos em que não é especialista, é a língua que faz isso. E dá suas razões:

"E entretanto o filólogo, por mais que isto possa, à primeira vista, parecer estranho, vê-se hoje na necessidade de ocupar-se com muitos campos em que não é especialista, porque a língua o leva a todos os campos do ser e do espírito humano. E isto, precisamente, quando quer ver a língua em relação com o homem, e não como fim independente, como categoria não relacionada com o homem. Dito de outra maneira: quando vê a história da língua como parte da história da cultura. E só então - é este um critério pessoal - parece-me a filologia uma ciência viva." (5)

Para o entendimento adequado do conceito de Filologia é necessário considerar a língua, como instrumento, não como fim. Isso significa que não é o conceito de língua que leva ao de filólogo e Filologia mas, antes, o de cultura.

Cultura e história literária

Para o historiador da literatura ou quem tenha a história literária como fonte de provocação investigativa imediata, deve o conceito de cultura estar presente, para fins de definição, como um conjunto de realidades sucessivas - sincronias - individualmente coerente e capaz de explicar a produção literária correspondente ou decorrente, a menos que tal produção seja uma invenção puramente abstrata, sem nenhum nexo de causalidade com o real cotidiano.

Estabelecida essa preliminar, poder-se-ia dizer que:

"Cultura é o conjunto de rotinas espontâneas, de caráter mental ou habitudinário, que cada indivíduo, relativamente a seu grupo social, e cada grupo, em relação a outros, evidenciam, em maior ou menor grau, mas de forma inconsciente, seja no contexto de liberdade, seja no de coação." (6)

Indivíduo, no caso, é conceito não cambiável com o de pessoa, pois nele está subjacente o sema de liberdade ao passo que neste está o de hierarquia. Movem-se os indivíduos no sentido da preservação do caráter atual do grupo. Este, por sua vez, se move com o propósito espontâneo de preservar o equilíbrio interno.

Assim considerado o conceito, torna-se possível entender contexto lingüístico-cultural, que a ementa deste livro sugere, como aquele conjunto prolongado de ações de contato, coercitivas ou não, porém deliberadas e progressivamente conscientizadas. Havidas, por exemplo, durante a existência de Raimbaut de Vaqueiras, foram por ele promovidas relativamente a pessoas e grupos de seu tempo, ou vice-versa, de modo que ensejaram rotinas que se refletiram, em grau variável, na obra do poeta e, particularmente, em seu famoso Descordo Plurilíngüe.

Século XII e investigação filológica

Durante muitos anos a Filologia se ocupou do século XII. Com o notável desenvolvimento da Lingüística comparada a partir dos trabalhos de Grimm e Diez, em princípios do século XIX, elegeu-se o estado das línguas românicas e germânicas, tal como se apresentava naquele século, como preocupação maior dos especialistas, tendo como pano de fundo as "leis" da evolução dos idiomas indo-europeus.

A motivação essencial desse procedimento lingüístico se encontrava no ideal romântico das origens, em que a realidade era vista subjetivamente como um conjunto de fenômenos mais regulares do que irregulares e, portanto, mais míticos.

Como contrapartida natural, na época, ao trabalho lingüístico, renovou-se, na mesma linha, a investigação literária. O material para isso estava disponível, em escala crescente, desde o século XVI: a produção dos trovadores provençais. Raynouard, ao reunir, no maior esforço de conjunto feito desde Sainte-Palaye, esse material, acrescentou-lhe, adjetivamente, o instrumento lingüístico e apresentou como realidade expressional dos poetas provençais a língua romana, em termos cronológicos de primeira língua românica a preceder as demais.

Com essa postura, de lingüistas e historiadores da literatura, o século XII assumiu o papel de século das origens, onde tudo começou. O conhecimento das origens culturais sempre teve como conseqüência a necessidade de conhecimento das fronteiras finais anteriores, a servir de comprovação dessas mesmas origens. O velho tema dos antigos x mo­ dernos desenvolveu-se, a partir do século XIX, sobre bases científicas cada vez mais seguras e sua abordagem, hoje, deve levar em conta a realidade sócio-cultural que já se pôde levantar das diversas fases da época medieval. Por isso, é válido buscar fatos que possam simbolizar a passagem da antigüidade para o mundo moderno.

O progresso da ciência acabou por colocar os fenômenos, assim vistos, dentro da perspectiva do relativismo. O conceito de origem, todavia, sobreviveu, propiciando ao investigador o desafio da busca do que teria terminado realmente com o século XII e do que teria começado, se é que alguma coisa de transcendental terminou ou começou nesse século.

A resposta a essa indagação, tornou-se possível com o enorme incremento havido nos estudos lingüísticos e literários desde então. A própria Filologia teve de ser gradativamente redefinida, não hesitando muitos lingüistas do século XX a descartá-la como disciplina científica. Outras ciências, com seus métodos próprios, foram sendo utilizadas para o conhecimento do século XII e, de resto, de qualquer outro século, sem nenhum privilégio particular. O latim, em conseqüência, deixou de ser a língua para se tornar uma língua como qualquer outra. A literatura dos trovadores provençais deixou de ser a primeira literatura para tornar-se o que realmente foi, isto é, um instrumento expressional estético, oral e escrito, que, por certas circunstâncias sócio-político-culturais, assumiu, ao mesmo tempo e em determinado período da história da civilização ocidental, o status de literatura da moda e de literatura modelo, em detrimento da que era escrita em latim pelos goliardos e daquela de caráter vulgar, apenas oral, espontâneo e fugaz, que sempre existiu.

Em nossa opinião - e como hipótese de trabalho - o período de vida ativa de Raimbaut de Vaqueiras e, particularmente, os poucos anos que precederam e que se seguiram à produção do Descordo Plurilíngüe, marcam a saída do homem ocidental da antigüidade e sua entrada nos tempos modernos. A composição reflete provavelmente a primeira cons­ cientização política ou cultural, ou ambas, do fim da antigüidade e do surgimento de realidades políticas, as "línguas", a balizarem as relações entre os homens. O século XII, considerado até a primeira década do XIII, torna-se, nesse contexto, o último século daquele período da História e, como tal, continua a oferecer excelente material de investigação para todo aquele que ainda se interessa pelo problema das origens culturais.

A antigüidade, após a queda do Império Romano do Ocidente, continuou a ser vivida, em grau variado e em diferentes partes de seu território, até o século XII. A "Renascença" carolíngea, por exemplo, pôde ser feita com pessoas que ainda viviam, sem solução de continuidade, a cultura da antigüidade. Isto era o que acontecia em muitos mosteiros, desde que São Bento, em 529, fundou sua ordem no convento do monte Casino. A instituição da vida monástica propiciou o surgimento de lugares de meditação e tranqüilidade, onde a literatura religiosa e a língua latina continuaram a ser praticados sem a interferência das variáveis lingüísticas e culturais que advieram das grandes invasões dos chamados povos "bárbaros". Estas pessoas trazidas por Carlos Magno eram, principalmente, da Irlanda ou do norte da Itália. (7) Entretanto, do XIII em diante, não era mais o mundo clássico vivido em nenhum lugar. Passou a ser "retomado", agora no sentido estrito do termo, em um processo que, certamente, não se esgotou, apesar do impressionante progresso tecnológico do século XX e dos tempos atuais. Vivência e retomada, inclusive em seus aspectos cronológicos, são, pois, conceitos operacionais que devem ser aplicados particularmente à história sócio-cultural do Ocidente quando, em última análise, se quer ter como referência a antigüidade clássica. A Filologia continua a ser um valioso instrumento para se esclarecer o problema das implicações desses conceitos. E o século XII permanece como um dos mais estimulantes na investigação filológica.

Bases para um novo conceito de Filologia

A operacionalização dos conceitos de vivência e retomada deve pressupor sua proximidade semântica com os de continuidade e recorrência, mais conhecidos.

A realidade acadêmica já tem indicado, nos últimos cinqüenta anos, preferência acentuada pelos chamados estudos lingüísticos ou estudos do uso lingüístico. Esta preferência influenciou a política de ensino secundário em todo o mundo, tornando-se universal um tipo de educação em que a criança e o jovem mostram-se cada vez menos aptos a viver e a compreender, com maior profundidade, as humanidades.

A origem do "equívoco" prende-se à operacionalização dos conceitos referidos de vivência/continuidade e retomada/recorrência. A ênfase em cada um pressupõe uma postura existencial idealista ou realista, na medida em que se considera a linguagem humana convencional ou não, isto é, com ou sem relação direta entre signo e referente, entre re­ presentação e realidade. Os que crêem na relação acreditam na predominância da convenção, valorizando o que é regular, o que se repete na linguagem. São analogistas. Os que não aceitam essa predominância valorizam o uso. São os anomalistas.

Filólogos são tidos como analogistas, gramaticalizantes no sentido histórico, idealistas. Voltam-se para a recorrência de usos lingüísticos passados para nortear os usos atuais.

Lingüistas são considerados anomalistas, não favoráveis a uma postura gramatical rígida e, principalmente, histórica. São realistas. Inclinam-se para a valorização do uso lingüístico atual, sem a predominância de normas do passado.

É nesse ponto que a Lingüística se distingue mais nitidamente da Filologia. Por se basear em textos lingüisticamente não intencionais, como são os textos do passado, a Filologia fica na contingência de servir-se de um material em que os alógrafos e o uso diversificado de diacríticos (acentos) acabam sendo responsáveis por um rendimento menor em termos de investigação. Isso, porém não é uma situação capaz de colocar a Filologia em desvantagem em todos os campos. Na sintaxe e na semântica, o trabalho filológico pode ter tanto rendimento quanto o trabalho lingüístico propriamente dito. Na morfologia, a desvantagem não é grande. Na fonética e na fonologia é que a Lingüística obtém vantagens realmente nítidas sobre a Filologia.

A lição da História evidencia que o homem tende mais a preservar do que a inovar, porque é um animal que vive em sociedade. Cada inovação sua pode ser retomada permanentemente, no futuro, caso contribua para a identidade do grupo social. Significa isso que, nele, o impulso predominante é o da retomada dos valores que constituem o patrimônio desse grupo. O distanciamento do passado, com a perda da consciência do "histórico", tem contribuído para a subestimação das humanidades, em que se incluem a História, a Gramática e a História Literária, e para levar o homem à angústia existencial, característica maior deste final de milênio e evidência eloqüente de que, filosoficamente ou nos limites precisos das ciências físicas e naturais, é possível a ele a postura realista, mas não nos limites de sua ação dentro da sociedade.

Com base nessas considerações, podemos sugerir uma redefinição de Filologia:

Filologia é uma disciplina histórica, baseada na visão sincrônica da realidade lingüística do texto escrito e voltada para os mais diferentes aspectos da cultura que permeia esse texto.

Sob esse prisma, o Descordo Plurilíngüe é um valioso texto, capaz de propiciar inúmeras abordagens sobre um momento da Idade Média. A realidade lingüística do poema, por exemplo, tal como se apresenta nos diferentes manuscritos, é uma janela para as variadas

visões, nos séculos seguintes, de línguas do tempo de Raimbaut. Por outro lado, o uso de vários idiomas pelo poeta envolve problemas de natureza histórica e cultural porque ele assim não procederia se não estivesse vivendo um momento particularmente valorizador do poliglotismo, principalmente se este estivesse ligado a problemas políticos de relacionamento entre povos que falavam idiomas diferentes.

A perspectiva histórica, inerente à atividade filológica, permite ao historiador profissional pesar a verossimilhança de hipóteses, de modo a criar certezas a partir dessa atividade auxiliar, a filológica, e, em conseqüência, encontrar caminhos antes apenas vislumbrados.

O Descordo Plurilíngüe como documento românico

A composição de Raimbaut de Vaqueiras, completa ou em fragmentos, tem sido inserida em diversas antologias das línguas românicas e em manuais. Neste sentido, a estrofe gascã tem sido geralmente considerada como a mais antiga atestação desse dialeto galo-românico. (8) Após a pesquisa que fizemos recentemente sobre a Notitia de torto, tido até hoje como o mais antigo documento em galego-português, mas que data realmente do ano de 1211(9), a estrofe galego-portuguesa assume, sem dúvida, o posto de primeiro exemplo de uso de nossa língua.

Sobre a antigüidade da estrofe genovesa-monferratina no espaço lingüístico italiano, assim se posicionou uma conhecida antologia:

Chronologically these two poems (O Descordo Plurilíngüe e o Contrasto Bilíngüe, também de Raimbaut de Vaqueiras) are the earliest authentic documents in which both a dialect and an Italian language are adapted to the metrical and stylistic requirements of Provençal poetic art, which the Sicilian and Tuscan poets were later to make their own. (10)10

Razões gerais explicam o fato de ter Raimbaut escolhido também o galego-português para expressão literária.

O lirismo trovadoresco lusitano começa quando a poesia provençal já está em seu segundo período. Provença era um modelo para os trovadores portugueses, como se vê em D. Dinis, o maior deles, em fins do século XIII:

Quer'eu en maneira de Proensal
fazer agora hum cantar d'amor ...

Os poucos trovadores que existiam em Portugal no início desse século não tinham ainda despertado a atenção dos trovadores provençais, apesar do caráter meridional francês da família real portuguesa pela origem, pelos casamentos ou ainda pela atividade religiosa e militar de muitos de seus nobres. Raimbaut parece ter sido quem notou primeiro esses trovadores distantes pois produziu uma estrofe que tem a forma normal de uma composição galego-portuguesa. Deve ter sido ajudado nessa tarefa e isso já indicaria que o poeta encontrou qualidades na produção lusa. As causas do interesse de Raimbaut devem ter sido mais sociais e políticas do que lingüísticas ou literárias. O uso de cinco línguas em uma única composição soa mais como uma homenagem a determinado público do que ao desejo de mostrar proficiência lingüística.

Um fato, porém, chama a atenção do romanista que busca motivações lingüísticas e é o de que não poderia ter-se desenvolvido o interesse de Raimbaut se, também, não houvesse entre a língua de Provença e a do noroeste peninsular um parentesco significativo. Mesmo de uma avaliação rápida do vocalismo e do consonantismo do provençal e do galego-português resulta que a decisão do poeta de compor uma estrofe em galego-português não pode ter resultado apenas de contato social ou de conjuntura política. A língua dos trovadores portugueses, por fazer parte do grupo mediterrâneo ao qual pertence o provençal, devia ser de entendimento razoável por parte dos poetas do Midi e vice-versa. Apesar de falar o idioma de uma cultura de prestígio, Raimbaut certamente alcançou o sentido das composições lusitanas devido à compreensão fácil do galego-português, muito mais do que o falante de hoje teria. Como, além disso, conhecia o francês, o genovês e o gascão, habilitado estava para um manejo razoável da linguagem lírica galego-portuguesa.

Para o romanista, adicionalmente, o material lingüíistico do poema de Raimbaut de Vaqueiras é muito importante não só porque permite, em análise cuidadosa, uma visão comparativa de cinco línguas românicas, nos inícios do século XIII, como até mesmo avaliar alguns aspectos de sua evolução nos dois séculos seguintes através do testemunho qye fornecem os copistas dos sete manuscritos em sua tentaiva de compreender o texto.

Todas essas considerações justificam, portanto, a afirmação de que o Descordo Plurilíngüe é um material que merece uma abordagem aprofundada, como a que se faz neste livro.

Capítulo 2

Histórico das notícias e estudos sobre o Descordo Plurilíngüe

O Descordo Plurilíngüe na vida de Raimbaut de Vaqueiras

O trovador Raimbaut de Vaqueiras, em período muito favorável de sua vida (1197-1203), escreveu várias canções em que demonstra grande afeto por uma dama da corte de Bonifácio, marquês de Monferrato, muito conhecido por ter sido o chefe da Quarta Cruzada.

Escreveu Raimbaut, em um desses anos, dois descordos, dedicados a uma mulher nobre a que se refere pelo "senhal" Bels cavaliers. Em um dos descordos procura o poeta manifestar sua perturbação diante do amor não correspondido, usando estrofes de diferentes rimas, melodias e línguas. Para realçar a discordância formal que reflete sua confusão de espírito, Raimbaut encerra a composição com uma tornada de dez versos em que usa as cinco línguas das estrofes anteriores a cada dois.

Numa época em que as línguas românicas mal começavam a ser usadas, literária e administrativamente, a composição despertou, certamente, grande curiosidade e apresenta-se hoje como um documento único, já que as estrofes em gascão e galego-português constituem o primeiro exemplo do uso literário dessas línguas.

Primeiras repercussões da obra de Raimbaut de Vaqueiras

A principal fonte da época dos trovadores, para conhecimento de suas vidas e das condições em que compuseram seus poemas, é uma coleção de biografias e de textos esclarecedores das circunstâncias de redação desta ou daquela cantiga, chamados, respectivamente, de vidas e razos. Foram vários, certamente, os autores dessas biografias e informações. Compostas depois de 1220, o autor da maioria delas parece ter sido Uc di Saint Circ. A Vida e as quatro razos de Raimbaut de Vaqueiras foram compostas, na opinião de Bruno Panvini, pelo próprio Uc di Saint Circ que, aliás, freqüentou as cortes do norte da Itália, tão conhecidas de Raimbaut de Vaqueiras. Apesar de serem mencionadas na Vida as supostas condições em que surgiu para o poeta o motivo de escolha do senhal Bels cavaliers, não há nela e nas razos referência direta ou indireta ao Descordo Plurilíngüe.

Em 1243, todavia, e trinta e seis anos após a morte do poeta, surge a primeira provável referência indireta ao Descordo. Trata-se da definição de descordo, que aparece no Donatz proensals, versão em língua provençal da gramática de Donato, escrita na Itália, para uso de italianos, por Uc Faidit:

Descors, descortz .i. discordia uel cantilena habens sonos diuersos.(11)

Nesta primeira definição, o descordo se apresenta em termos estritamente musicais, seja pelo uso do substantivo sonos, seja pelo uso da palavra cantilena que, na história da poesia popular da Idade Média, sempre designou uma composição cantada.(12)

No final do século XIII, um escritor anônimo catalão acrescentou às Razos de trobar, do gramático, também catalão, Raimon Vidal de Besalú, uma Doctrina de compondre dictats, já que o trabalho de Raimon Vidal não abordava problemas de versificação e problemas literários mais específicos. Assim é que, a respeito do gênero descordo, diz o anônimo catalão:

Si vols far discort, deus parlar d'amor com a hom qui n'es desemparat e com a hom qui no pot haver plaser de sa dona e viu turmentatz. E que en lo cantar, lla hon lo so deuria muntar, que'l baxes; e fe lo contrari de tot l'altre cantar. E deu haver tres cobles e una o dues tornades e responedor. E potz metre un o dos motz mes en una cobla que en altra, per ço que mils sia discordant.(13)

Ao comentar esta definição de descordo, J. H. Marshall chama a atenção para o fato de que o anônimo catalão, quando diz da possibili-

dade de versos de tamanhos diferentes, esquece que isso era normal na composição de descordos e não uma possibilidade. Além disso, nota que não é certo ter o descordo apenas três estrofes. A razão para esses erros de definição estaria no fato de que, na época de redação da Doctrina, o gênero não era mais praticado.(14)

Ainda nos fins do século XIII, o italiano Terramagnino da Pisa escreveu, na Sardenha, uma adaptação das Razos de trobar, de Raimon Vidal de Besalú. Trata-se da Doctrina d'acort. Embora faça referência a Raimbaut de Vaqueiras, não o faz ao seu Descordo Plurilíngüe. É, porém, a primeira menção ao poeta que chegou até nós, com exceção de sua biografia.

A biografia de Raimbaut - Vida - é posterior a 1220 e seu autor provável é Uc de Saint Circ. Escreveu este numa época em que a Provença era maior do que na passagem do século, incluindo o condado de Forcalquier desde 1209, o que tem importância para uma melhor avaliação dos dados da biografia do poeta.

A menção a Raimbaut, excetuando-se a de Uc de Saint Circ, ocorreu muito tempo após a sua vida e o Descordo levou mais de um século para tornar-se conhecido referencialmente, não sendo mencionado por seu biógrafo. Os primeiros manuscritos que o contiveram não parecem ser anteriores aos fins do século XIII. Os manuscritos existentes mais antigos, R e C, são dos inícios do século XIV, como veremos. Tudo isso está a indicar que não só o poeta esteve fora de sua terra ou da Itália, de um dado momento até a sua morte, mas também que algumas de suas composições, entre as quais o Descordo, permaneceram com ele ou com pessoas que não viviam na Europa.

É no século XIV que se faz a primeira referência ao descordo composto por Raimbaut de Vaqueiras. Tendo a poesia provençal se exaurido, procuraram vários intelectuais de Toulouse, em 1323, com a criação do Consistório da Gaya Sciencia, restaurar a poesia trovadoresca. De sua iniciativa resultou um tratado, escrito por Guilhem Molinier, Las leys d'amors, em que são apresentadas a gramática, a retórica, a estilística e a versificação dos trovadores. Essa obra teve três redações: a primeira, do período entre 1328 a 1337, em prosa; a segunda, entre 1337 a 1343, em verso; e a terceira, de 1355, em prosa. O descordo é definido na primeira redação das Leys d'amors:

La diffinitios de descort. Descortz est dictatz mot divers e pot haver aytantas coblas coma vers aos assaber de. v. a. x lasquals coblas devon esser singulars. dezacordablas. e variablas. en acort. en so. et en lengatges. E devon esser totas dun compas o de divers. E deu tractar damors o de lauzors o per maniera de rancura quar mi dons no mi ama ayssi cum sol o de tot aysso esserms. Quis vol e qui volra far tornada. segua la maniera lassu dicha. can tractem de vers en laqual tornada deu hom tractar quis vol de totz los lengatges losquals dessus ha pauzats ayssi atiera cum los ha pauzatz. E si aysso far li tornava greu. fassa la dicha tornada del lengatge de la derriera cobla. E si la tornada la paria breus per tractar de totz los lengatges pot hom far recorsa del compas de la una de las coblas denan pauzadas. o dautra sol que no passe lo compas so es lo nombre dels bordos que cobla deu haver. E deu tractar de totz los lengatges ayssi cum son estat pauzat dessus atiera e deu haver las acordansas que son en la fi de cascuna cobla.(15)

A definição em verso, redigida entre 1337 e 1343, é a seguinte:

"Discortz es dictatz mot divers
D'aytantas cobblas coma vers,
D'acort, de so dezacordablas
E de lengatges variabblas
E singulars e d'un amas
O totas de divers compas.
E deu mays, segon que us appar
D'amors o de lauzors tractar
O cant hom de sidons se clama
Quar enayssi cum sol no l'ama
O de tot essens que volia
.(16)

Esta definição dá a entender que a composição de Raimbaut era originalmente musicada. A primeira citação de parte do Descordo Plu-rilíngüe (no caso, a tornada) aparece na primeira redação das Leys d'amors, ou seja, a do período que vai de 1328 a 1337:

"Bels cavayers tant es grans.
Le vostre grans senhoratge.
Qum jorno men es mocho.
Oy me lasso que faro.
Si cela que lay pus chiera.
Me tua no say por quo.
Ma dauna he que deyt abos
Ni pen cap santa quitera.
Lo corasso mavestz touto.
E mout dossament furtado."
(17)

Nesta citação, Molinier refere-se à tornada como uma cobla partida, isto é, como uma estrofe de duas ou mais línguas diferentes.

Independentemente das Leys d'amors, redigiram-se no mosteiro de Ripoll, na Catalunha, depois de 1346, dois tratados poéticos conhecidos pelo nome de Tratados anônimos de Ripoll.(18) No primeiro deles faz-se menção a Raimbaut de Vaqueiras.(19)

Da mesma época (1352), o Trionfo d'amore, de Petrarca, refere-se, no capítulo IV, a Raimbaut e a seu amor por Beatriz de Monferrato:

"Fra tutti, il primo Arnaldo Daniello
Gran Maestro d'Amor, ch'a la sua terra,
Anchor fa honor col' dir' polito e bello.

E an'vi quei, qu'Amor si leue afferra,
L'un Pietro, e l'altro e'l men famoso Arnaldo
E quei, che fur conquisi con piu guerra:

I dico l'uno, e l'altro Raimbaldo
Che cantar pur Beatrice in Monteferrato:
El vecchio Pier' d'Aluernia con Giraldo:

Folchetto, ch'a Marsiglia il nome ha dato.
Et à Genova tolto, e a l'estremo
Cangio per miglior patria habito e stato.

Giaufre Rudel, ch'uso'la vela e'l remo
A cercar la sua morte: e quel Gulielmo
Che per cantar ha'l fior de suoi dì scemo.

Amerigo, Bernardo, Ugo, e Anselmo,
Et mille altri ne vidi, a cuila lingua,
Lancia, e spada fu sempre, é seudo, e e'lmo."

Três anos após a composição deste poema, ou seja, em 1355, foi feita a terceira redação das Leys d'amors, onde é novamente citada a estrofe final do Descordo Plurilíngüe:

"Bels chivaliers, tant es grans
Le vostre grans senhoratges,
Q'uno iorno me n'es mocho.
Oy me lasso! que faro?
Si cela que j'ay pus chiera
Me tua ne say por quoy;
Ma dauna, he que deyt a bos,
Ni peu cap Santa Quitera,
Lo corasso m'avetz touto
E mot doussamen furtato."
(20)

Pode-se compreender o conhecimento, por parte de Petrarca, da produção dos trovadores, em geral, por causa dos longos períodos que o poeta italiano passou em Avignon, e, talvez, de Raimbaut de Vaqueiras, em particular, por causa de sua permanência, a partir de 1337, em Vaucluse, terra natal do autor do Descordo Plurilíngüe, segundo interpretação corrente da Vida.(21)

Neste sentido, Vaqueiras era um castelo da região de Vaucluse. Fez parte dos territórios pontificais do antigo Comtat Venaissin, da judicatura de Carpentras e da diocese de Orange. Hoje, com pequena popu-lação, integra o arrondissement de Carpentras e o canton de Beaumes-de-Venise.(22)

Na verdade, com o declinar da poesia provençal nos fins do século XIII, passou ela, gradativamente, a ser cultivada e estudada por poucas pessoas. Foi na Catalunha e Languedoc, de um lado, e na Itália, de outro, que surgiram aqueles que, conscientes do valor da lírica occitânica, procuraram, através de compilações de poemas e de tratados poéticos, preservar os trovadores para a posteridade. Dentro desses esforços é que se constituíram os cancioneiros, principalmente na Itália, e, nestes, certamente pôde Dante conhecer os poetas que menciona no De vulgari eloquentia e na Divina commedia (Peire d'Auvergne, Bertran de Born, Arnaut Daniel, Giraut de Bornelh, Folquet de Marseille, Aimeric de Belenoi e Aimeric de Peguilhan). Os trovadores exaltados por Petrarca no poema que transcrevemos são: Arnaut Daniel, Arnaut Mareuil, Peire Rogier, Peire Vidal, Peire d'Auvergne, Giraut de Bornelh, Raimbaut d'Orange, Raimbaut de Vaqueiras, Folquet de Marseille, Jaufre Rudel, Guilhem de Cabestanh, Aimeric de Peguilhan, Bernart de Ventadorn, Uc de Saint Circ e Gaucelm Faidit.(23)

O Descordo Plurilíngüe nas origens da Filologia Românica

Petrarquismo e primeiros estudos sobre os trovadores

A vida de Petrarca em Provença e suas ligações com a produção literária dos trovadores tornaram-se o ponto de partida para o estudo e a pesquisa da lírica trovadoresca a partir do século XVI.

Pietro Bembo, o grande renovador do interesse pela língua vulgar italiana no início do século XVI, foi imitador de Petrarca e responsável principal pela volta ao petrarquismo, ou seja, pelo gosto da lírica amorosa de que foi expoente, no século XIV, aquele poeta. Inspirando-se em Petrarca, Bembo utiliza várias vezes imagens absurdas, como arder la neve, fermare il sole, volo senz'ali, semelhantes às de Petrarca, como veggio +senz'occhio e non ho lingua e grido, Pascomi di dolor, piangendo rido e outras que o grande poeta do Trecento imitara do trovador Arnaut Daniel.(24)

Por causa de seu interesse por Petrarca, travou Pietro Bembo conhecimento com os poetas provençais. Graças a seu prestígio como o maior intelectual da época, recebia de toda parte, de presente ou para exame, manuscritos de todo tipo.(25) Por isso mesmo, possuiu ou conheceu vários cancioneiros e vidas provençais, inclusive, segundo carta que enviou em 22 de dezembro de 1529 a Federigo Fregoso, arcebispo de Salerno, um manuscrito de uma canção de Arnaut Daniel, mencionada por Petrarca.(26)

Pietro Bembo, em sua atividade de estudo dos manuscritos provençais existentes na Itália, foi acompanhado, com igual zelo, pelo humanista Angelo Colocci, pelo primeiro real provençalista italiano, Mario Equicola, autor do Libro di natura d'amore, e por Alessandro Vellutello, editor das obras de Petrarca. A estes provençalistas seguiram-se Giovanni Andrea Gesualdo, Francesco Alunno, Bernardino Daniello, Anton Francesco Doni, Benedetto Varchi, Lodovico Castelvetro, e Giammaria Barbieri, este, o maior conhecedor dos trovadores e mestre de Castelvetro.(27)

A primeira referência a Raimbaut de Vaqueiras, no século XVI, é feita simultaneamente por Vellutello e Equicola, em 1525,(28) vindo depois Gesualdo, em 1541, que faz um resumo do que disse Vellutello.

A primeira notícia do Descordo Plurilíngüe, desde 1355, é dada, todavia, por um francês, Jean de Nostredame, em 1575. A opinião de Nostredame de que o provençal era uma soma dele mesmo com o catalão, francês e genovês foi certamente haurida do conhecimento que tinha do Descordo. Equicola já pensara o mesmo sobre o provençal em seu Di natura d'amore.(29) Antes de apresentar, de maneira um tanto fantástica, a vida de Raimbaut, Nostredame transcreve o primeiro verso de cada uma das estrofes do Descordo Plurilíngüe, sem a tornada:

Aros quau vei verdeiar;
........................
I son quel che ben non ho;
........................
Belle douce deme chere;
........................
Dauna yeu my rend'a bous;
........................
Mes tan temo vuestro pletto."

O Descordo Plurilíngüe no Século

XVII

Alessandro Tassoni, comentador de Petrarca, faz referência ao Descordo de acordo com a informação de Nostredame e se justifica dizendo não tê-lo encontrado nos códices que possuia. Assim escreveu ele sobre Raimbaut de Vaqueiras:

E nota, che questo modo di fraporre ne' componimenti versi di varie lingue, da Rambaldo di Vacchiero fu prima usato, il quale compose una Canzone meschiata di versi Prouenzali, Toscani, Francesi, Guasconi, e Spagnuoli; secondo, però che riferisce il Nostradama, che ne questa io l'ho potuta vedere".(30)

É na França que aparece, em 1621, a segunda transcrição de versos do Descordo Plurilíngüe. Estienne Pasquier faz considerações sobre Raimbaut de Vaqueiras e seu Descordo no capítulo III de seu livro Des recherches de la France

Car tout ainsi que la Dame auoit changé d'opinion, aussi pour monstrer que le changement luy estoit agreable, il fit une chanson où à chaque couplet il changeoit de langage. Le premier en langue Prouençale, disoit:

Aras quau vey verdeiar.
Le second en langue Toscane,
I son quel che ben non ho.
Le troisiesme en François,
Belle douce Dame chere,

Le quatriesme en Gascon
Dauna, yeux my rend à bous
Le cinquiesme en Espagnol
Mas tan temo vuestro pletto.

Et le dernier couplet fut une meslange de mots empruntez de ces cinq langues. Invention si gaillarde, que si elle eust esté presentée aux Chevaliers e Dames iuges d'Amour, ie veux croire, qu'ils eussent sententié pour le renoüement des Amours de Beatrix avec ce gentil Poete. C'est la chanson par laquelle il prit le dernier congé de sa Dame."(31)

Tanto a referência de Tassoni, quanto a de Pasquier refletem uma leitura do que escreveu Nostredame sobre o poeta, embora Pasquier deixe transparecer leituras adicionais.

Na Itália, em 1685, Francesco Redi, nas suas Anotazioni ao seu ditirambo Baco in Toscana (1ª edição), faz menção a Raimbaut de Vaqueiras sem, todavia, mencionar-lhe o Descordo Plurilíngüe.

O Descordo no século XVIII

Crescimbeni

Neste século, diminui a dependência dos comentadores com relação a Jean de Nostredame.

Giovan Mario Crescimbeni, tradutor do livro de Nostredame, faz às Vies deste anotações (Annotazioni) em que aparecem as referências anteriores a Raimbaut e se apresentam os cancioneiros que continham as obras do poeta (3204, atual K: 3205, atual g; 3206, atual L; e 3208, atual O).

Com relação ao Descordo Plurilíngüe, também transcreve apenas o primeiro verso de cada estrofe, com a diferença de, agora, traduzir para o italiano. Não transcreve a tornada.

Aras quand vey verdejar;
Or quando veggio verdeggiar
..................................
I son quel che ben non ho
..................................
Belle douce Dame chere
Bella dolce Dama cara
..................................
Dauna vey my rend'a tous
Donna vedi mi rendo a tutti
..................................
Mas tan temo vuestro pletto
Ma si temo vostro piato"(32)

Antonio Bastero

Antes desta edição de Crescimbeni, Antonio Bastero, em seu La Crusca Provenzale, de 1724, faz referência à vida de Raimbaut de Vaqueiras. Sobre o conceito de descordo, Bastero assim se pronunciou:

Fu egli (Garins d'Apchier} il primiero, che desse principio alla sudetta sorte di composizione chiamata cosi descorts, non da sdegni, o differenzie come interpetrò il Crescembeni, ma dalla diversit`à della Musica, come spiega il Glossario MS. Provenzale Latino della Libreria Laurenziana in questa guisa: Descors. discordes. discordia. v. cantilena habens sonos diversos. Sicchè la voce Descors ha tre significati; il primo del verbo Discordare; cioè della seconda persona del dimostrativo presente; il secondo del nome Discordia; e il terzo, che è questo, cioè una Canzone dissonante, o avente diversi suoni."(33)

Como bem assinalou Richard Baum, em importante trabalho, esse trecho do dicionário de rimas que está apenso ao Donatz Prouensals, por nós já estudado, será invocado durante todo o século XIX pelos autores que escreveram sobre o gênero descordo.(34)

Sainte-Palaye

Em 1756, Jean-Baptiste La Curne de Sainte-Palaye, notável provençalista, ao estudar o francês dos séculos XII e XIII, refere-se a Raimbaut de Vaqueiras e a seu , definindo o gênero a partir do dicionário de rimas acima citado e acrescentando que o poeta não se contenta com a desordem das rimas e da música porém exprime ainda mais sua perturbação de espírito usando línguas diferentes:

Notre poëte, encore plus troublé qu'un autre, ou voulant le paroître, ne se contente pas du désordre des rimes & de la musique, qui varient à chaque strophe; lorsqu'il passe de l'une à l'autre, il prend toujours un langage différent, pour mieux exprimer l'égarement de son esprit..."(35)

Cabe a Sainte-Palaye a honra de ter apresentado o Descordo Plurilíngüe em verso quase integral. Fez isso em comunicação publicada no tomo 24, ano de 1756, das Mémoires da Academia Real de Inscrições e Belas Letras de Paris.

Depois de afirmar a existência de traços de semelhança e conformidade muito fortes entre as línguas francesa, italiana e espanhola, Sainte-Palaye ressalta que praticamente não se pode estudar a história de uma sem se instruir ao mesmo tempo na história de suas companheiras. Julga-as mesmo línguas irmãs. Em sua opinião, basta remontar aos antigos monumentos dessas três línguas para descobrir a origem daquela lín- gua que é objeto da curiosidade do investigador.(36) Ao assim comparar o francês, o italiano e o espanhol, Sainte-Palaye se antecipa aos romanistas do século XIX.

Identifica Sainte-Palaye as línguas do Descordo como provençal, italiano, francês, gascão e espanhol e descreve a tornada do ponto de vista de utilização dessas línguas pelo trovador. Vejamos a primeira leitura do Descordo Plurilíngüe de Raimbaut de Vaqueiras:

I - II -

Aras quan vey verdeyar Jeu sui selh que be non ayo,
Pratz e vergiers e boscatges, Ni enqueras non l'avero
Vuelh un descort comensar Per abrilo ni per mayo,
D'amor per que vauc aratges. Si per ma dona non l'o.
C'una dona m sol amar, E entendo son lenguaio;
Mas camiatz lés son coratges; Sa gran beutat dire non so,
Per qu'ieu fauc dezacordar Plus fresca es que flor de glayo,
Los motz els sos els lengatges. E ia no m'en partirò.

III - IV -

Belha, doussa, dama chera, Dauna io ni rent à bos,
A vos mi don e m'autroy, Quar eras m'es bon e bera.
Ja n'aurai mes joy entera, Ancse es Guallard' e pros,
Se ne vos ai e vos moi. Ab que no'm fossets tan fera.
Molt estes mala guereya, Mont abetz beras faissos
Se ja muer per bona foi. Ab color fresqu'e novera,
Mas per nulha maniera Bos m'abetz e si eu bs ag os,
No ni partrai de vostra loi. No'm fo franchera fiera.

V -

Mas tan temo vostre pleido,
Todon soi escarmentado.
Per vos a pen e maltreito,
E mon corpo lazerado.
La nueit quan jatz e mon leito,
Soi mochatz ves resperado.
Pro vos cre e non proferto,
Falhit soy en mei cuidado,
Mais que falhir non cuideyo"
(37)

Ao introduzir o Descordo Plurilíngüe, Sainte-Palaye desenvolve considerações sobre o gênero descordo. Para ele os antigos poetas ranceses do século XII fizeram uso desse tipo de poesia e lhe deram o nome. Declara que, em sua época, ainda restavam vários descordos de Adans le Boçus, Adans de Givenci, Gaces Brullé, Gautiers d'Argies e Gilles ou Guillaume li Winiers. É evidente que está a falar de poetas franceses, principalmente, pois fala, a seguir, em nota, das relações entre descort e lai:

Les poetes Provençaux parlent de même de leur descort, qui souvent se confondoit avec le lai.(38)

Sainte-Palaye foi o mais notável conhecedor da língua e da literatura da França medieval no século XVIII. Sobre ele escreveu um seu amigo, Joseph de Bimard, barão de La Bastie-Monsaléon, em carta de 10 de abril de 1737:

(Paris, ce 10e avril 1737)... M. de Sainte-Palaye... est un garçon {37 anos, nessa data} d'une douceur admirable et d'un travail immense. Son dessein avoit d'abord été de s'instruire à fonds de tout ce qui concernoit l'histoire de France; pour cela il se jeta dans les manuscrits de la Bibliothèque royale, et il a déjà fait la notice de plus de 2000. Il veut tâcher de tirer au clair nos moeurs, coutumes, usages, soit civils, soit politiques, armes, habillement, goõt, etc. La langue, les arts, les ouvrages d'esprit entrent dans ce plan, et les origines de notre langue et de notre poésie sont un des principaux objets de ses recherches. Il a fait copier ou extrait tout ce que nous avons de plus ancien en langue françoise et en provençal; et comme une besogne telle que celle qu'il a entrepris, ne peut se faire que par parcelles, à cause que c'est de la connoissance des différents sujets particuliers que résulte celle du total, il nous donne à l'Académie successivement divers morceaux sur les anciens autheurs françois."(39)

Sainte-Palaye nas origens da Filologia Românica

Apresentamos este insuspeito depoimento da época para deixar clara a nossa opinião sobre o papel de Sainte-Palaye na formação do embrião da Filologia Românica, principalmente ao tecer as considerações, que acima citamos, sobre as lições a extrair do Descordo Plurilíngüe de Raimbaut de Vaqueiras. É nesse sentido que o Descordo Plurilíngüe se situa nas origens da Filologia Românica. A opinião de Sainte-Palaye sobre as línguas românicas, surgida do exame do Descordo, se identifica com a do primeiro romanista, Friedrich Diez e, por ter sido contraditada diretamente por Papon, uma das fontes de Raynouard, presta-se ao entendimento da posição deste quando expresa la teoria completamente errónea de que estas {as línguas românicas} derivan de una "lengua romana" que se habría hablado entre los siglos VII y IX, y que Raynouard identifica con el provenzal y llama "langue romane"(40)

Estes fatos colocam Sainte-Palaye na linha de Diez e seus discípulos, ao passo que seu respeitoso crítico, Papon, se põe na linha, afinal não consagrada, de Raynouard.

Sainte-Palaye apresentou, com grandes detalhes, a vida e parte da obra de Raimbaut de Vaqueiras dezoito anos mais tarde, em sua Histoire littéraire des troubadours.(41)

Papon

O primeiro provençalista a traduzir o Descordo Plurinlíngüe, de Raimbaut de Vaqueiras, foi o historiador J.-P. Papon. Este erudito, em sua Histoire générale de Provence, seguindo de perto Crescimbeni e J.-B. La Curne de Sainte-Palaye, não somente traduziu o poema para o francês, mas também fez considerações quanto às lições a tirar dele, tomando como ponto de partida para tudo isso a leitura de Sainte-Palaye e as opiniões deste.(42)

Após salientar que "Le langage est une affaire de mode où l'esprit se peint mieux que le coeur et chaque siècle a le sien,(43) Papon afirma que os trovadores tinham a sua, assinalando, ao mesmo tempo, que um belo exemplo de sua opinião é Raimbaut de Vaqueiras. Ressalta, porém, que:

Ces poëtes se copioient les uns les autres, et avec des motifs bien différens, ils disoient souvent la même chose.(44)

O importante é que considera a língua provençal uma das mais educadas e brilhantes da Europa, sendo capaz de permitir aos poetas fazer passar para seu idioma expressões de outras línguas. Neste sentido, é de opinião que a língua provençal apresenta uma espécie de universalidade.(45)

É interessante notar que Papon, nessa linha de pensamento, acreditava que o provençal tinha produzido a diversité d'idiome que reinava em sua época.(46) Essa opinião se inseria em um contexto de preocupação com respeito à formação dos idiomas românicos, já aceitos como de origem latina, porém por via do provençal, o que está na base da futura doutrina de François Raynonard, o imediato precursor da Filologia Românica como disciplina autônoma, mas em oposição ao que dissera Sainte-Palaye:

Cependant il (Sainte-Palaye) laisse entrevoir une opinion dont je m' écarte avec d`autant plus de regret, que penser comme lui sur ce qui regarde les moeurs et la littérature de nos peres, c`est presque une preuve qu`on a découvert la vérité. Il regarde la pièce qu`on vient de lire comme un monument de la conformité des cinq langues. Il nous semble, au contraire, qu`elle prouve seulement que les poëtes italiens, français, espagnols et gascons, faisoient des vers en provençal. Quelle apparence, en effet, que l`italien, le français, le provençal et l`espagnol, au commencement du treizieme siecle ne diférassent entr`eux que par la conversion de quelques lettres en d`autres, telles que nous l`offrent les diverses dialectes d`une même langue, qu`ils eussent les mêmes mots, les mêmes phrases, les mêmes tours?(47)

Por essas palavras, se compreende a idéia de Papon sobre a universalidade da língua provençal. Esta universalidade, para Papon, resultou do fato de que

...le provençal prit insensiblement dans chaque nation des tours et des inflexions particuliers; il y prit même l`empreinte du caractere national, et se mela aux différentes dialectes qu`on y parloit, et qui s`eloignant de plus en plus de leur source, à mesure qu`elles se sont enrichies et perfectionnées par le goõt, les lumieres et les decouvertes des hommes de génie, se sont élevées par la succession des tems, au rang des langues savantes, et ont laissé bien loin derriere elles la nôtre, qui les avoit tirées de la barbarie, et leur avoit appris à former les premiers accens poétiques.(48)

Quando diz Papon que o Descordo Plurilíngüe prova somente que os poetas italianos, franceses, espanhóis e gascões faziam versos em provençal e que este se assenhoreou de características das outras, deixa-nos a convicção de que não tinha ainda, como, de resto, seus contemporâneos, a consciência dos erros dos copistas, acreditando que a forma do poema, tal como se apresentava nos manuscritos diante de seus olhos, fosse a forma de composição original. Assim, versos como Belha, doussa, dama, chera seriam, para ele, apropriações que a língua provençal fizera de outras línguas, no caso, o francês, e não, como é a realidade, um simples caso de transcrição errada.

Raynouard deixou-se levar por essa opinião que, afinal, se explicava pela não existência, na época de sua formação, da consciência do que pudesse ser uma crítica textual objetiva e metódica.

Ao introduzir o Descordo Plurilíngüe, Papon o faz como se esta composição fosse um exemplo da universalidade do provençal. Identifica as línguas do poema (provençal, italiano, francês, gascão e espanhol), e dele faz a seguinte tradução:

I - II -

Lorsque je vois reverdir, Je suis celui qui nul bien n'ai,
les prés, les vergers e les bois, et encore ne l'aurai,
je veux commencer un discord ni pour avril ni pour mai,
d'amour dont je suis forcené. si par ma dame je ne l'ai,
Une dame, de qui j'étois aimé, et j'entends son langage.
a changé pour moi son coeur; La grande beauté dire je ne sais;
ainsi je fais désacorder plus fraîche elle est que fleur de glaïeul,
la rime, les airs et le langage. et jamais je ne m'en séparerai.

III - IV -

Belle, douce, dame chere, Dame je me rends á vous, /vraie
à vous je me rends et m'octroy. puisqu'à présent vous m'êtes bonne et
Jamais je n'aurai joie entiere, toujours vous futes gaie et honnête,
si je ne vous ai et vous mois. si vous ne m'aviez eté si cruelle.
Bien m'êtes cruelle ennemie, Vous avez les manieres franches,
si je meurs pour mes bons services;
avec couleur fraîche et nouvelle.
mais en aucune maniere, Vous m'avez et si je vous avois vous,
je ne me détacherai de votre empire je ne manquerois pas ma foire,
(c'est-à-dire, je ferois bonne emplette).

V -

Mais je crains tant votre colere,
que j'en suis tout consterné.
Par vous j'ai peine et tourment,
Et mon coeur tout déchiré.
La nuit, quand je suis dans mon lit,

souventes fois j'en suis réveillé.
Je vous aime beaucoup, et je n'y gagne rien
Je suis trompé dans mes espérances,
plus que je croyois être trompé.
(49)

Como Sainte-Palaye não transcrevera a tornada, Papon não apresentou tradução da mesma.

O Descordo Plurilíngüe, de Raimbaut de Vaqueiras, de acordo com o que demonstramos acima, se insere na história da Filologia Românica como, talvez, o primeiro corpus capaz de demonstrar o parentesco entre realidades lingüísticas românicas, ou seja, o provençal o italiano, o francês, o gascão e o espanhol (ou galego-português, como se provou mais tarde).

As edições nos séculos XIX e XX

Raynouard

As opiniões de Raynouard sobre o descordo, em geral, e sobre o Descordo Plurilíngüe de Raimbaut de Vaqueiras estão em sua antologia da poesia trovadoresca.(50) e em seu dicionário de provençal.(51)

Para Raynouard, a palavra descordo significa mais propriamente discordância e foi aplicada às peças irregulares que não tinham em cada estrofe, como na maioria dos casos, rimas semelhantes, mesmo número de versos ou medida igual.(52) Segundo ele, quando não havia divisão em estrofes, o descordo se destacava por possuir versos de medidas diferentes. No caso de ter estrofes, podia ser cantado e ser escrito em idiomas diferentes.

Com relação à definição latina do dicionário de rimas do Donatz Prouensals (cantilena habens sonos diversos), Raynouard a interpreta como uma espécie de poesia que avait couplets inégaux, lesquels avaient chacun une musique différente.(53)

Assinala Raynouard que o Descordo de Raimbaut de Vaqueiras não oferece nem o mesmo número de versos nem o mesmo idioma e segue a opinião de Crescimbeni no tocante às línguas da composição: provençal (românico, na terminologia de Raynouard), toscano, francês, gascão e espanhol. Pela primeira vez surge o Descordo Plurílingüe completo, inclusive com tradução:

Eras quan vey verdeyar Maintenant quand je vois reverdir
Pratz e vergiers e boscatges, Prés et vergers et bocages,
Vuelh un descort comensar Je veux un descort commencer
D'amor, per qu'ieu vauc a ratges; D'amour, par quoi je vais à l'aventure;
Q'una domna m sol amar, Vû qu'une dame a coutume de m'aimer,
Mas camjatz l'es sos coratges, Mais changé lui est son coeur,
Per qu'ieu fauc dezacordar C'est pourquoi je fais discorder
Los motz e'l sos e'ls lenguatges. Les mots et le son et les langages.

Ieu sui selh que be non ayo, Je suis celui qui bien n'ai
Ni jamais non l'avero Ni jamais ne l'aurai
Per abrilo ni per mayo, Par avril ni par mai,
Si per mia dona non l'o; Si par ma dame je ne l'ai;
Certo que en son lenguaio, Certain qu'en son langage,
Sa gram beutat dir non so: La grande beauté dire je ne sais:
Plus frequ'es que flors de glayo, Plus fraiche elle est que fleur de glayeul,
E ja no m'en partiro. Et jamais je ne m'en séparerai.

Belha, doussa, dama chera, Belle, douce, dame chère,
A vos me don e m'autroy; A vous je me donne et m'octroie;
Ja n'aurai ma joy enteira, Jamais je n'aurai ma joie entière,
Si je n'ai vos e vos moy; Si je n'ai vous et vous moi;
Molt estes mala guerreya, Moult vous êtes méchante ennemie,

Si je muer per bona foy; Si je meurs par bonne foi;
E ja per nulha maneira Et jamais par nulle manière
No m partrai de vostra loi. Je ne me séparerai de votre loi.

Dauna, io me rent a bos, Dame, je me rends à vous,
Quar eras m'es bon' e bera; Car maintenant vous m'êtes bonne et vraie;
Ancse es guallard'e pros, Toujours vous êtes gaillarde et brave,
Ab que no m fossetz tan fera; Pourvu que vous ne me fussiez si cruelle;
Mout abetz beras faissos Moult vous avez vraies façons
Ab coror fresqu' e novera; Avec couleur fraiche et nouvelle;
Bos m'abetz, e s'ieu bs aguos, vous m'avez, et si je vous avais,
No m sofranhera fiera. Ne me manquerait foire.

Mas tan temo vostro pleito, Mais tant je crains votre querelle,
Todo'n soy escarmentado; Tout j'en suis châtié;
Por vos ai pena e maltreyto Par vous j'ai peine et tourment
E mei corpo lazerado; Et mon corps lacéré;
La nueyt, quan soy en mey leito, La nuit, quand je suis en mon lit,
Soi mochas vez resperado Je suis maintes fois réveillé
Por vos, cre, e non profeito; Par vous, je crois, et ne profite;
Falhit soy en mey cuidado, Trompe je suis en mon penser,

Mais que falhir non cuydeyo.

Belhs Cavaliers, tant es cars Beau Cavalier, tant est cher
Lo vostr'onratz senhoratges La votre honorée seigneurie,
Que quada jorno m'esglayo Que chaque jour je m'effaie.
oy! me, lasso, que faro, Oh! moi, hélas! que ferai-je,
Si seli que g'ey plus chera Si celle que j'ai plus chère
Me tua, no sai por qoy? Me tue, je ne sais pourquoi?
Ma dauna, fe que dey bos, Ma dame, foi que je dois à vous,
Ni peu cap sanhta Quitera, Et par le chef de sainte Quitère,
Mon corasso m'avetz trayto, Mon coeur vous m'avez arraché,
E mout gen faulan furtado. Et en moult bien parlant dérobé.(54)

Raynouard não indicou os manuscritos que usou para fazer sua edição do poema. Entretanto, muitos de seus sucessores - mesmo alguns tão antigos quanto Rochegude - indicaram os manuscritos de que se serviram. Este último, por exemplo, usou os manuscritos atualmente denominados pela crítica como C, E, M, e R, correspondentes à numeração antiga como 7226, 7698, 3794 e 2701.

Caráter geral das edições dos séculos XIX e XX

Desde Raynouard, em 1817, a J.-M. d'Heur, em 1973, várias edições e alguns estudos sobre o Descordo Plurilíngüe se fizeram. Os estudos sobre a composição inteira foram poucos: de Crescini, em 1923, e Monteverdi, em 1952. Houve, todavia, estudos de estrofes específicas como, principalmente, os que se fizeram sobre a quinta. Apresentaremos as edições verso a verso, segundo a lista seguinte:

1817 - Raynouard.(55)

1819 - Rochegude.(56)

1826 - Diez (só o último verso da 5ª estrofe).(57)

1829 - Galvani.(58)

1846 - Mahn.(59)

1861 - Fontanals (só a 5ª estrofe).(60)

1877 - Meyer.(61)

1878 - Balaguer.(62)

1881 - Luchaire (só a estrofe em gascão).(63)

1889 - Monaci.(64)

1895 - Appel.(65)

1897 - Michaëlis (só a 5ª estrofe).(66)

1904 - Michaëlis (só a 5ª estrofe).(67)

1907 - Massó y Torrents.(68)

1911 - Bertoni.(69)

1922 - Crescini.(70)

1937 - Bertoni.(71)

1952 - Monteverdi.(72)

1956 - Bergin.(73)

1957 - Menéndez Pidal (6ª edição revista; só a 5ª estrofe).(74)

1964 - Linskill.(75)

1973 - d'Heur (só a 5ª estrofe).(76)

Edições como as de Dionisotti,(77) Viscardi,(78) Toja,(79) Riquer,(80) Ugolini,(81) Brittain,(82) e Hill-Bergin(83) não são relacionadas porque, declaradamente, dizem reproduzir outros editores. Além disso, as edições de Galvani e Mahn, embora não o declarem, são, quase sempre, reprodução da de Raynouard. Monaci segue quase inteiramente a edição de Meyer. Monteverdi, Bergin e Linskill seguem bem de perto a edição de Crescini. Não relacionamos, também, as reproduções de trechos do Descordo ou a composição inteira quando a intenção do estudioso não foi a de fazer crítica textual mas tão somente a de abordar o poema literária, cultural ou historicamente. Trabalhos como os de Brugnolo e Tavani(84) são exemplos desse tipo de abordagem. Serão considerados ou citados ao longo do livro.

Das edições do Descordo, que escolhemos para cotejo, somente a de Crescini corresponde a uma investigação desejadamente minuciosa, que envolve os aspectos métricos e, parcialmente, lingüísticos, da composição e a comparação das variantes dos manuscritos. Infelizmente, porém, Crescini não discutiu a tornada e, ainda menos, a estrofe provençal. Baseado em critérios mais literários do que lingüísticos, Crescini não se preocupou em estabelecer uma relação entre os manuscritos existentes e a vida de Raimbaut de Vaqueiras.

Ao realizar seu trabalho elegeu o manuscrito C como básico a partir de uma opinião geral no sentido de ser esse manuscrito o de maior potencialidade em termos de leitura de composições trovadorescas. Crescini, como os demais editores, à exceção de Jean Marie D'Heur, não considerou o fato de que, tendo sido o Descordo escrito em um dos primeiros anos do século XIII, precisa se revestir, ortográfica e gramaticalmente, da forma que é comum aos textos de fins do século XII e princípios do XIII, como os documentos provençais da região de Avignon-Orange, os textos gascões do século XII e, principalmente, do XIII, os textos franceses de meados do XII a princípios do XIII, (Tristan de Béroul, Pregações de Bernard de Clairvaux), a própria Chanson de Roland e outros. Em relação ao galego-português, também não fizeram os editores, com a exceção única de Jean Marie D'Heur, o cotejo do texto do Descordo com as produções literárias do século XIII. Na verdade, um trabalho desse tipo é o que deve ser feito, pois editar criticamente um texto é tentar reconstituir sua forma primeira e original. Não se pode, lingüística ou literariamente, tomar em consideração uma edição do Descordo, composição tão importante para a Filologia Românica, com aspecto de texto do século XIV ou XV, se se sabe que reflete realidades lingüísticas da segunda metade do século XII.

Outro aspecto que deve ser considerado na edição do Descordo é o problema dos dialetos das estrofes. Parece claro, antes de qualquer investigação mais aprofundada, que Raimbaut de Vaqueiras tenderia, naturalmente, a dar à sua koiné expressional um caráter mais condizente com os hábitos lingüísticos da região provençal de sua formação. No norte da Itália, onde viveu, havia, na época, independência lingüística com relação a outros centros italianos, pois, no século XII, não surgira ainda qualquer região que tivesse alçado seu dialeto à condição de língua de prestígio. Com relação ao francês, o franciano já se afirmava, mas com respeito ao galego-português e ao gascão, principalmente o primeiro, já se torna mais difícil, à primeira vista, uma constatação dialetal. De qualquer forma, este é um aspecto que não se deve descurar numa edição do Descordo porque não se pode aplicar o conceito de línguas literárias posteriores a realidades que ainda não se apresentavam como tal.

Em função dessas considerações, é que faremos, após o estudo dos manuscritos, o confronto dos mesmos com as edições indicadas.

Capítulo 3

Alguns aspectos da paleografia dos textos trovadorescos

Origens das escrituras do final da Idade Média

As escrituras européias originaram-se todas da capital arcaica dos antigos romanos que, assumindo os aspectos livresco e cursivo, resultou, no primeiro caso, numa capital rústica ou normal, em oposição a uma forma elegante. Foi dessa capital rústica que surgiram as formas minúsculas dos séculos III e IV, as quais, em seu conjunto, são conhecidas como minúscula primitiva. Com o advento dos reinos bárbaros, desenvolveu-se grandemente a necessidade de se adaptar a minúscula primitiva à redação de documentos, de um lado, e de composição de livros de outro. No primeiro caso, transformou-se essa minúscula primitiva documentária em uma minúscula essencialmente cursiva, ao passo que a minúscula primitiva livresca assumiu aspectos mais estáticos, conhecidos pelos nomes de escritura uncial e semi-uncial. Foi das chamadas minúsculas cursivas tipicamente documentais que surgiram as chamadas escrituras nacionais: insular (Inglaterra) merovíngea (França), visigótica (Espanha), beneventana (Itália meridional) e minúscula pré-carolina (França, Itália e Alemanha). A diversificação dessas escrituras nacionais acabou por levar a uma consciência de unificação que, embora não atingida em toda parte e ao mesmo tempo, gerou a chamada minúscula carolíngea, que vigorou nos séculos VIII e IX.

A minúscula carolíngea modificou, com o tempo, suas formas primitivas até assumir, em fins do século XII, um tratamento mais angu-

loso, que lhe mudou o caráter arredondado, transformando-a nas várias formas da escritura gótica.(85) Foi ela universalmente usada na França, Alemanha e Itália setentrional e central. É de se notar que, paralelamente, na Itália central continuou sendo usada a escrita beneventana, que tinha como centro de irradiação o mosteiro de Monte Cassino. Em relação à difusão e uso da minúscula carolíngea no território italiano, menos intensa foi essa difusão em comparação com o que aconteceu na França, Alemanha e Suiça, em vista de a Itália setentrional ter sido, entre os séculos IX e XII, muito afetada pela política expansionista de franceses e alemães. Enquanto isso, em Roma e nas áreas sob sua influência, os manuscritos, embora numerosos, não se distinguiam por um estilo gráfico particular. Todavia, nos séculos XI e XII, afirmou-se, em contraste com a minúscula carolíngea do centro-norte da Itália e com a beneventana dos mosteiros da Umbria, já em fase que se poderia chamar de perfeição, uma escritura minúscula romana, que foi usada na região de Roma e em vários locais da Itália central, mais diretamente situados na esfera de influência romana.

A escritura gótica, usada pelos humanistas italianos em oposição à minúscula carolíngea (antiqua, segundo eles) desta deriva diretamente e começa a ser exemplificada em alguns manuscritos do século XII, que apresentam letras de forma angulosa e ornamental. A gótica cursiva passou a ser a escritura preferida para os documentos em língua vulgar e para todos os documentos mais ligados à vida do dia a dia. Usada largamente nos códigos do tempo das grandes universidades, a escritura gótica caracteriza os séculos XIII e XIV, embora tenha aparecido em fins do século XII e se tivesse prolongado, com menor ímpeto, nos séculos XV e XVI. Na Alemanha, perdurou até o século XX, pois não acolheu a reforma humanística do século XV.

Petrarca, no século XIV, deplora a escritura gótica, feita mais para ornar do que para ler, mais obra de pintores do que de escritores.(86) Como a escritura minúscula carolíngea, dos séculos IX a XII, era conhecida entre os humanistas pelo adjetivo antiqua e se confundia com a cultura dos romanos, tão buscada por eles, pregou-se uma volta à verdadeira escritura antiga e, da imitação resultante, acabou por se constituir a escritura humanística. Esta muito lembra, em sua forma livresca, o caráter arredondado da minúscula carolíngea e, na forma cursiva, uma maior clareza, que provinha da eliminação dos ornamentos e abreviaturas da gótica. Isso, não obstante a manutenção do aspecto de verticalidade, relativa angulosidade e tendência à ligação dos caracteres.

É importante salientar que a minúscula carolíngea do século XII era especialmente usada onde não tinham sobrevivido as antigas formas da minúscula cursiva e onde não se tinha o uso documentário de uma escritura nacional. É de se notar ainda que a minúscula carolíngea apresenta traços da minúscula livresca semiuncial dos primeiros tempos e suas formas são mais livres, quando cursivas.

Já a minúscula gótica cursiva, que deriva da minúscula carolíngea, se prestava largamente ao uso em códices como escritura livresca, especialmente para textos em língua vulgar. Nela, as letras das palavras são traçadas com continuidade de escritura e uso contínuo de ligações, o que favorece o desenvolvimento de hastes altas com pequenos olhos e traços voláteis. As letras tendem a inclinar-se à esquerda e à direita. O adorno é muito usado com o b, l, h, d e g.. O f e o s descem da linha, bem como a última perna do m e n. O r é pequeno, de uma só forma, e o s, que pode ter forma redonda em fim de palavra, é, na maior parte das vezes, longo.

Antes de se fazer a descrição dos manuscritos, é importante assinalar o valor dos sinais de pontuação na Idade Média, porquanto diferem do sistema atual. Seguimos aqui os ensinamentos de Guido Battelli.(87)

Nos manuscritos antigos e medievais, o uso dos sinais de pontuação era diferente, relativamente aos textos modernos, porque eles serviam mais propriamente para distinguir os componentes rítmicos do período e não os elementos lógicos e gramaticais.

Na chamada ars dictandi do século XIII, segundo Battelli, havia os seguintes sinais principais:

Para pausa breve: !

para pausa média: . ou ..

para pausa final: ;

Esses sinais de pontuação correspondem, no primeiro e segundo casos, ao que Santo Isidoro chamava de comma e colon (pausa breve e pausa média, respectivamente) e periodus (pausa final), no terceiro caso.

É de se notar que, no século XI, a pausa breve era indicada por um ponto a meia altura (.) e a pausa final por um ponto seguido de vírgula (.,) ou por um ponto e vírgula (;) ou, ainda, por dois pontos sobre uma vírgula (:,).

Os acentos foram usados como ápices sobre monossílabos longos e, como sinais de tonicidade, são freqüentes na Inglaterra e na Espanha. Estão particularmente presentes na Itália durante os séculos XI e XII.

O ponto de exclamação é raro e teve várias formas. Na Espanha é representado por um pequeno círculo com um ponto no centro.

O sinal de parágrafo foi primeiro um gama maiúsculo; depois, um C ou um K. Do C minúsculo, no século XIII, derivaram os sinais impressos para o parágrafo, inclusive o atual. Como sinal de cancelamento se usou geralmente um ponto por debaixo de uma ou mais letras, de modo a não perturbar com o cancelamento demasiado evidente a elegância da página escrita. Para cancelar mais palavras ou um trecho longo, se anulava o texto com uma linha, acrescentando-se a advertência vacat (va-cat)

Quando, por erro, o copista omitia algumas palavras do texto e, depois, as punha à margem, encontra-se, em regra, um sinal de chamada para indicar o lugar de omissão e um outro posto junto às palavras acrescentadas.

No início, para remediar omissões ou se fazer intercessões, usava-se na Itália hd e hs (hic deorsum e hic sursum). A partir do século IX, foram usados sinais convencionais, simples, sem regra.

Nomenclatura das escrituras documen-tárias

Três dos mais renomados tratados de paleografia, de Prou e Boüard,(88) de Bretholz(89) e de Battelli,(90) são unânimes em considerar que a expansão da escritura romana antiga é, antes de tudo, um fato de civilização ...auquel les historiens veulent bien prêter de plus en plus d'attention.(91)

Desde o século XI, com o surgimento de uma administração mais centralizada, tanto na Igreja quanto nos Estados, com o crescimento das cidades e com a participação cada vez maior de pessoas formadas na administração pública e na justiça, pôde afirmar-se gradativamente uma nova renascença, que apresenta dois aspectos: latino, no século XII, e vulgar, no XIII. Com este desenvolvimento da curiosidade intelectual, multiplicou-se o número de pessoas que procuravam atender à crescente demanda por parte dos papas, prelados, príncipes e administradores, de livros e documentos. Daí o florescimento das profissões de copista, tabelião, arquivista etc.

Foi nesse ambiente que se pôde realizar o trabalho de colecionar em livros as folhas soltas que continham as composições dos trovadores provençais. Na segunda metade do século XIII, com a conscientização do patrimônio literário que possuiam, decidiram as pessoas importantes da França e da Itália preservar os monumentos da literatura provençal, então em decadência, para a posteridade. Os cancioneiros provençais apareceram, então, em grande número e muitos deles chegaram até nós.

O problema da paleografia das composições dos trovadores está no fato de serem os cancioneiros cópias de épocas e lugares diferentes. Alguns deles são reproduções feitas já no século XVI e, nem por isso, deixam de ter valor porque, em alguns casos, foram feitas a partir de originais desconhecidos. Isso significa que a crítica textual das composições dos trovadores pode, freqüentemente, ter de lidar com sistemas de escrituras que vão do século XIII ao XVI.

Assim caracterizada, em linhas gerais, a história da escritura até o século XVI, resta o problema de conciliar a terminologia usada, que é a de Battelli, com a situação concreta de certas escrituras de manuscritos trovadorescos não suficientemente determináveis. Neste sentido, a proposta do paleógrafo Bartolini é a mais realista. Quatro elementos deverão ser considerados toda vez que um documento não se enquadrar na terminologia, já assinalada, de Battelli: ductus cursivo ou semi-cursivo, caráter da escritura em relação ao ofício do escriba (curial, notarial etc), o que não é o caso, exatamente, das escrituras dos cancioneiros, escritura usual de base (carolina, gótica, pré-carolina etc), lugar de origem e século da mesma.(92)

Exemplo de Bartolini, em sua comunicação:

...scrittura notarile corsiva del secolo VII semicorsiva notarile senese di tipo precarolino del secolo VIII.(93)

Variáveis no estudo da paleografia dos manuscritos trovadorescos

Os manuscritos dos cancioneiros trovadorescos datam de meados do século XIII, em diante. Chegaram até nós noventa e cinco deles, que se designam, por convenção, com as letras do alfabeto, maiúsculas, minúsculas e combinações das mesmas, entre si ou com números. Alguns são também designados pelas letras do alfabeto grego. Avalle(94) dá conta da existência desse total de noventa e cinco, mas Riquer(95) dá quarenta e cinco como os mais utilizados e Jeanroy,(96) setenta e um.

Dos noventa e cinco cancioneiros, cinqüenta e dois são de origem italiana, dez catalães, quatorze franceses e dezenove occitânicos. O fato de os mais antigos datarem já da segunda metade do século XIII depõe em favor de duas teorias:

1 - a transição, nos inícios e no apogeu da lírica occitânica, se fez oralmente;

2 - a própria existência de cancioneiros e o fato de distribuirem-se eles principalmente por território não occitânico dão-lhes o significado de bem de importação cultural, ao qual se alia o sentido da preservação dessa cultura.

O problema da edição crítica de textos trovadorescos é, antes de mais nada, o da contaminação, ou seja, do aparecimento, neste ou naquele documento, de formas que não se harmonizam com o conteúdo dos mesmos ou representam neles o papel de empréstimos. A contaminação é um problema praticamente insuperável na crítica textual trovadoresca, já mesmo em conseqüência do caráter predominantemente oral das transmissões das cantigas até a primeira metade do século XIII. Embora haja muitas evidências de que os trovadores faziam cópias para seu próprio uso, deve-se considerar que a transmissão das composições, mesmo durante a vida dos mesmos, era feita por cantores ou recitadores profissionais. Certamente havia um grande número de profissionais desse tipo, que tinham a capacidade de decorar um grande repertório. Por isso mesmo e por força da repetição e das situações particulares, muitas pequenas substituições, diversas pequenas alterações e numerosos acréscimos, ao longo dos anos, se foram introduzindo nas composições originais, dando forma a cópias que, mesmo sob o sentimento de fidelidade, iam alterando, em maior ou menor grau, a cantiga primitiva. Se se acrescentar a isso o fato de que a lírica trovadoresca se propagava em terras dialectológica ou lingüisticamente diferentes da do original, é fácil avaliar a natureza dos obstáculos que se apresentam na reconstituição de um texto. Não é impossível, igualmente, que, em alguns casos, até mesmo variantes redacionais estivessem na base da diferenciação textual dos manuscritos correspondentes.

Toda essa problemática levou o crítico Joseph Bédier a colocar, dentro de um contexto de relativismo, o método de Lachmann de crítica textual, francamente apoiado no conceito de erro, e a dar maior valor ao conceito de "bom manuscrito". A esse respeito são muito importantes as seguintes palavras de István Frank:

Dans la tradition des chansonniers lyriques, ce meilleur manuscript peut avoir ses faiblesses, voire ses fantaisies (cf.prov. C), mais ce n'est jamais, dans l'ensemble, un texte certainement corrompu.(97)

Esse conceito de melhor manuscrito, como base para a apresentação de textos medievais, é, antes de tudo,uma reação ao método antigo de comparar erros, variações ou inovações comuns capazes de, na opinião dos seguidores de Lachmann, permitir ao investigador a identificação de relações, mais próximas ou mais afastadas, e a configurar uma árvore genealógica, ou stemma, cuja base é o arquétipo comum, ou seja, o original procurado.

O problema todo, entretanto, é a questão da existência real desse arquétipo comum. Na edição de textos líricos, pode-se, até mesmo, considerar como hipótese de trabalho, a existência de duas ou mais versões de uma composição, aceitas pelo próprio autor. O que não se dirá, então, das variantes que naturalmente resultam do trabalho de transmissão dos recitadores? Essas situações devem ser consideradas para que se possa entender a afirmação de muitos críticos do método de Lachmann no sentido de que o resultado de sua aplicação podem ser textos que, afinal, nunca tenham realmente existido.

Os princípios de Lachmann e os preceitos de Bédier configuram duas atitudes opostas na busca daquilo que seria o texto original: de um lado, tudo corrigir; de outro, tudo conservar. Em outras palavras, uma audácia extrema em oposição a uma timidez excessiva.(98)

No método de Lachmann, todavia, a recensão de todos os textos existentes (recensio) é uma etapa que, de qualquer forma, acaba sendo usada pelos seguidores de Bédier, quando procuram o melhor texto. A própria comparação entre os textos existentes, com vistas à obtenção de um primeiro texto básico, é também operação dos seguidores de Bédier, só que, nesse caso, param tais seguidores aqui mesmo e consagram o texto resultante como aquele que deve representar o arquétipo do método lachmanniano. Há, todavia, um terceiro método, o das lições comuns, que pode servir de auxiliar útil para o esclarecimento das relações entre manuscritos, na fase da recensio, mas não de base para a obtenção do melhor texto. H. Quentin foi quem o desenvolveu.(99) Fora da utilidade apontada, não passou este terceiro método de uma grande ilusão, pois a tentativa de estabelecimento de um stemma inteiro a partir das semelhanças globais entre diversos manuscritos, substituindo o conceito de erro comum pelo de lição comum, significou um débito ao cálculo estatístico e, portanto, à matemática e não logrou nenhum resultado convincente. Para o estabelecimento do parentesco é, porém, como dissemos, útil, desde que se estejam buscando, preliminarmente, as constelações de manuscritos.

A nós nos parece mais adequado distinguir, entre os manuscritos, aquele que contém o texto que deve ser considerado como básico. Isso só se alcança com o feeling do filólogo, com sua sensibilidade para a detecção de padrões culturais sincrônicos. Pelo estabelecimento das constelações, na base de uma análise estatística das combinações, podem ser colhidos os indícios capazes de permitir a realização, neste texto básico, de correções (emendatio) prudentes, que atendam à preocupação de verossimilhança lingüística e cultural. Tais correções só provam ser necessárias naquelas passagens em que razões gramaticais, métricas ou estilísticas estão a exigi-las.(100)

O manuscrito principal, a ser usado para uma nova edição crítica do Descordo Plurilíngüe, deve resultar, pois, de uma avaliação dos diferentes manuscritos, uns em relação aos outros, levando-se em conta as variáveis de localização, eventual autoria, paradeiro e quaisquer outras que possam servir ao propósito de seu conhecimento. Tais variáveis podem , em muitos casos, tornar mais clara a ligação deste ou daquele manuscrito até mesmo com o contexto de vida do trovador estudado. A cronologia relativa dos manuscritos que contêm uma composição ou parte dela pode, também, lançar luz sobre aspectos da vida de seu autor. O fato, por exemplo, de certos poemas de Raimbaut de Vaqueiras só aparecerem em manuscritos mais recentes pode significar que sua redação se deu por ocasião de ou após sua partida para a Grécia.

A data dos manuscritos do Descordo ou, mais precisamente, a época em que foram produzidos já é matéria assentada entre os que os estudaram. O mesmo não se pode dizer das alterações e acréscimos feitos aos textos sucessivamente copiados. Neste caso, há alterações incapazes de provocar confusão ou dificuldade de identificação, e há aquelas que refletem um contexto de opinião literária próprio de um copista que tenha vivido em época diferente da do poeta, embora ligado a um contexto de opinião lingüística não muito diverso do da época de Raimbaut, como adiante enfatizaremos. Por isso, é preciso desprovençalizar formas estranhas das estrofes não provençais do Descordo, bem como adaptá-las e as demais ao que efetivamente era praticado nas áreas lingüísticas respectivas. Não faz sentido editar ecleticamente uma composição que se distingue justamente pelo seu propósito lingüístico particular, mesmo sob o risco de se eleger alguma forma não usada pelo poeta apenas por desconhecimento pessoal. No Descordo haver]a, porém, uma exceção na estrofe galego-portuguesa e outra, na tornada, por razões que apresentaremos ma ocasião.

Capítulo 4

Crítica dos manuscritos que contêm o Descordo Plurilíngüe

Relação dos manuscritos

O Descordo Plurilíngüe, de Raimbaut de Vaqueiras, aparece em sete dos noventa e cinco manuscritos provençais existentes: C, E, f, M, R, Sg e a1.

No manuscrito M, repete-se a estrofe 1, na folha 251. Nos manuscritos das Leys d'amors, reproduz-se a estrofe final (tornada).

Para se entender a razão do surgimento dos cancioneiros em época tardia da história da lírica provençal, é preciso considerar que, no declínio dessa literatura, foi ela preservada em centros que se mantiveram isolados: as cortes de Afonso X de Castela, de Jaime I e Pedro III, reis de Aragão, e na dos duques de Este. Na fase seguinte do declínio, manteve-se ela em pequenas cortes, as dos condes de Rhodes, dos viscondes de Narbonne e dos condes de Foix.

Assim, o ulterior encorajamento da poesia provençal foi recebido fora de seu território principal. Esses fatos são importantes porque indicam uma contínua diminuição, territorial e cultural, do raio de ação da poesia de Provença, surgindo os idiomas ou dialetos dessas áreas mais restritas como elemento complicador na tentativa de manutenção dos padrões clássicos de tal poesia. Embora fossem essas línguas e dialetos aparentados ao provençal, eram suficientemente distantes para gerarem incompreensões semânticas e empobrecimento expressional motivados por sucessivas interpolações na transmissão de originais. Nas cortes assinaladas, pôde-se manter, mal equilibrada, a tradição provençal com as contínuas imigrações que, durante um século, a partir da morte do trovador Blacatz (1236 ou 1237), se fizeram de poetas provençais da fase da decadência. Por isso, se compôs em langue d'oc na Lombardia e na Catalunha, nos séculos XIII e XIV.(101)

Quando os últimos poetas provençais, em inícios do século XIV, desapareceram, os poetas da Catalunha ou da Lombardia retomaram sua própria língua e da poesia provençal restou somente a tradição clássica que se procurou preservar em cancioneiros ou antologias. Toulouse, que protegera os trovadores até então, foi tomada, em 1249, por um irmão do rei da França, o que já acontecera com o condado de Provença em 1246. Os pequenos feudos, assinalados acima, mantiveram o gosto pela poesia provençal até inícios do século XIV. Depois, só mesmo na Catalunha e na Lombardia, assim mesmo na base de um culto aos trovadores provençais clássicos. É nesse sentido que se deve entender o papel de Petrarca na preservação dos ideais trovadorescos. Foi nesse ambiente de segunda metade do século XIII e do século XIV, que surgiram os cancioneiros. A prova de que nesse período se procurava, antes de tudo, preservar os trovadores clássicos antes que valorizar a produção dos mais recentes poetas, é o fato de só ficarem, destes, poesias nos cancioneiros C e R, ambos do sul da França. Em todos os outros 93, feitos na França, na Catalunha ou na Itália, só se encontram poetas anteriores a 1250. Com relação a Raimbaut de Vaqueiras, é interessante notar que os manuscritos que contêm o Descordo Plurilíngüe são principalmente franceses (C E R f).

Classificação das escrituras do Descordo

As escrituras dos manuscritos do Descordo vão do século XIV ao XVI. Delas, as mais antigas parecem ser, pela ordem, as dos manuscritos R e C. As duas pertencem ao século XIV, da mesma maneira que as escrituras E, M, f e Sg. A escritura de a1 é do século XVI.

As escrituras dos manuscritos C e E classificam-se como minúscula gótica francesa do século XIV. A escritura de f deve ser classificada como uma minúscula gótica cursiva da primeira metade do século XIV.

A escritura de M é uma minúscula gótica librária italiana do século XIV. No manuscrito R, tem-se igualmente uma minúscula gótica francesa de inícios do século XIV. No manuscrito Sg a escritura é a chamada semigótica ou redonda da Catalunha, do século XIV. O manuscrito mais recente, a1, é exemplo de humanística cursiva do século XVI, já com perda de suas características artísticas devido ao fato de, com a invenção da imprensa, ter deixado a escritura de ser um meio de difusão da cultura.

Manuscrito C

Localização

Sem dúvida um dos mais famosos cancioneiros provençais, o cancioneiro C encontra-se na Biblioteca Nacional da França e tem o número 856. Foi copiado em Narbonne, no século XIV. Não é um cancioneiro luxuoso, mas se destaca pela grande quantidade de cantigas originais. Segundo Jeanroy, se não tivesse ele escapado às inúmeras possibilidades de destruição por que passou, o conhecimento da antiga literatura provençal, que hoje se possui, ficaria notavelmente diminuído.(102)

Era ele originalmente ornamentado com vinhetas e iluminuras. Em época desconhecida, porém, teve suas ornamentações raspadas, o que chegou mesmo a afetar trechos de composições que não existem em outros cancioneiros. Acha-se despojado, no fim, de um número indeterminado de folhas.

O problema de sua autoria

Em seu livro sobre os manuscritos provençais, Gustav Gröber emite a opinião de ter sido o cancioneiro C compilado por Matfre Ermengaud, poeta de fins do século XIII e príncípios do XIV, que é conhecido, principalmente, por sua longa obra didática, o Breviari d'amor.(103)

A razão de tal atribuição é a existência de numerosas citações, no Breviari, que se aproximam bastante, tanto no texto quanto na atribuição, do conteúdo do cancioneiro C. Em um estudo sobre o assunto, Frank Chambers inclina-se a concordar com a opinião de Gröber.(104)

Chambers assinala, em seu trabalho, que Matfre cita cerca de 176 poemas provençais e que, destes, 147 aparecem no cancioneiro C. A concordância com os manuscritos A, D e IK se restringe a um número menor, ou seja, de cem composições cada um. Ressaltando a evidência do grande conhecimento que Matfre tinha da lírica trovadoresca, Chambers assinala a probabilidade de ter o poeta feito, para seu próprio uso, uma antologia de poemas provençais e que a língua e a data do manuscrito C, quando comparadas com o conteúdo do Breviari, são evidências de que Ermengaud seria o compilador.

Em artigo aprofundado, Jacques Monfrin, diretor da seção de manuscritos provençais do Centre National de la Recherche Scientifique,(105) discute a hipótese de Gröber e a convicção de Chambers no sentido de ser Ermengaud o autor do manuscrito C.(106)

Por suas conclusões, Matfre "ne peut en aucun cas être le compilateur de C."(107) Sua opinião é no sentido de ser o manuscrito de Narbonne e não de Béziers, terra de Matfre e onde este sempre viveu. A análise que faz é de caráter lingüístico e, por ela, o manuscrito só pode ter sido redigido em Narbonne.

Ermengau conhecia muito bem os trovadores, sendo sua a mais antiga citação (feita após 1288) dos versos 25 e 26 do poema Savis e fols, humils et orgoillos, o que permite avaliar um aspecto pouco conhecido da vida de Raimbaut, como veremos mais tarde.

Paradeiro

O manuscrito C, que contém 396 folhas de pergaminho e em que as composições são apresentadas pelos nomes dos autores, sem distinção de gênero, foi executado no sudoeste da França. Fez parte, até o século XVI, da biblioteca dos condes de Foix e dos viscondes de Béarn. Depois disso, tornou-se propriedade de Guillaume Castel, que morreu em 1626, e de seu sobrinho Puymisson, morto em 1631.

Segundo Jeanroy, o manuscrito é dos primeiros vinte ou trinta anos do século XIV, pois a essa conclusão o conduziu o aspecto lingüístico da anotação da página 281v. É justamente em Béarn que exerciam seu poder os condes de Foix. O manuscrito foi conservado, primeiro, em Orthez e, depois, em Pau. A certeza disso adveio da informação de Antoine Thomas,(108) sobre um inventário de objetos do castelo de Pau, redigido em 1533. Sobre o número 12 desse inventário aparece a indicação seguinte: Un livre de chansons, escriptes en parchemen, commensant: Folquet de Marceille.(109)

O manuscrito apresenta três outras anotações: nas folhas 321r, 321v e 322. Nelas se faz uma indicação da família dos Baux por meio das palavras "del baus", escritas por mão de fins do século XV. Jeanroy acredita que o leitor que fez essas anotações era provençal.

Foi no século XVIII, todavia, que o manuscrito passou a interessar àqueles que se dedicavam a investigações sobre a história de Provença. Como se disse acima, Guillaume de Catel, até 1626, e Jacques Puymisson, até 1631, foram seus proprietários, tendo sido o manuscrito consultado, durante o século XVII, pelos historiadores Dominicy, Caseneuve e Hauteserre.

De Puymisson, passou o cancioneiro C à propriedade do cardeal Mazarin e, com a morte deste, entrou para o acervo da Biblioteca do Rei, posteriormente Bibliothèque Impériale, e, na época republicana, Bibliothèque Nationale.

Valor do manuscrito C e suas relações com os demais que contêm o Descordo Plurilíngüe

O manuscrito C é o preferido dos editores de textos trovadorescos juntamente com o manuscrito A. Raynouard editou sua antologia uniformizando a grafia dos textos com base no manuscrito C. É considerado um cancioneiro hipercorreto, de escritura clara e legível, bem como de lições facilmente inteligíveis. Antes de Raynouard, foi usado por La Curne de Sainte-Palaye e Papon, mas não se tem certeza se por Nostredame. Aparentemente, nenhum dos provençalistas italianos leu a transcrição do Descordo no manuscrito C. Embora Nostredame pudesse tê-lo utilizado, tinha à sua disposição outros cancioneiros que contêm o Descordo. Tanto Pasquier quanto Crescimbeni copiaram certamente os versos citados por Nostredame. Tassoni declara expressamente não ter encontrado a composição em seus códices.(110)

O certo é que o primeiro a se basear no manuscrito C para a edição do Descordo foi Raynouard. Papon, embora tivesse tido em mão esse manuscrito, copiou o Descordo Plurilíngüe de La Curne de Sainte-Palaye e este utilizou outros três manuscritos que contêm a composição: E, R, M. Não é possível, por enquanto, dizer qual foi o manuscrito básico para sua edição do Descordo. Quanto aos editores independentes posteriores, todos consideraram o manuscrito C na edição da composição de Raimbaut de Vaqueiras.

Já dissemos acima das dificuldades que existem no trabalho de estabelecimento de relações entre manuscritos trovadorescos. Os críticos textuais italianos são, atualmente, quase que os únicos a utilizar com convicção o método lachmanniano. Entre eles está D'Arco Silvio Avalle, que transcreve de uma tese de Pietro Cerati, também seguidor da ecdótica genealógica, esta árvore, com 4 dos 7 mss. do Descordo:

w
/ \
/ \
/ \
/ \
grupo grupo
oriental ocidental
/\ / | \
/ \ / | \
/ \ / | \
/ \ / | \
/ \........ / | \
a b Sg Cv
/ \ / \
/ \ / \
/ \ / \
C J E R

Este stemma foi feito para o caso da Epístola Épica, de Raimbaut de Vaqueiras. Dos seis cancioneiros nele mencionados (C, Narbonne, séc. XIV; J, E e R, Languedoc, séc. XIV; Sg, e Cv, Catalunha, mesmo século), E e R são estreitamente aparentados e sua fonte é ligada à de C, constituindo, em seu todo, um grupo francês a se opor a um grupo catalão. O arquétipo w é languedociano-catalão.

Embora não tenhamos tido acesso à tese de láurea de Cerati,(111) as informações de Avalle nos permitem extrair um sentido crítico-cronológico do contexto languedociano-catalão de w, arquétipo da Epístola Épica, para confronto com o contexto genealógico dos manuscritos M, a1 e f, que apresentam o Descordo, mas não a Epístola. Antes, porém, passemos em revista os resultados do confronto genealógico entre os manuscritos que contêm o Descordo e os demais da lírica trovadoresca.

O manuscrito C diante das três tradições da lírica trovadoresca e dos manuscritos E, M, R, f, Sg e a1

Vejamos, em primeiro lugar, um caso de reflexo, no manuscrito C, de um contexto cultural anterior ao códice em cerca de meio século.

Seguindo Jeanroy (nota 102), constatamos que o manuscrito C é dos primeiros vinte ou trinta anos do século XIV, pois a essa conclusão o conduziu o aspecto lingüístico da anotação marginal da página 281v. Em C, porém, como em todos os manuscritos, há diferentes grupos de composições que refletem outros diferentes estratos criativos da lírica trovadoresca, correspondentes a épocas e contextos culturais diversos entre si. Uma prova imediata é dada pelo stemma de Cerati, no qual se inclui o manuscrito C, e em que se vislumbra um fato cultural importante de meados do século XIII, o hibridismo cultural. Consistia este, numa fase de transição, em se ter como ideal de expressão justamente a mistura de hábitos concorrentes, lingüísticos, literários e rítmicos: língua franco-provençal ou galego-portuguesa, literatura franco-vêneta, galego-portuguesa ou sículo-toscana e versos decassílabos-alexandrinos, otonários-novenários, etc. No caso da Epístola Épica, a substituição do decassílabo original de Raimbaut de Vaqueiras, em muitos versos da estrofe em -o do manuscrito C ou do J, pelo alexandrino representa simplesmente a incorporação ao arquétipo, pelo copista da fonte a de C, de seu ideal rítmico, qual seja, o uso de alexandrinos, então muito em voga graças à popularidade do Roman d'Alexandre, composto por Lambert le Tort e Alexandre de Bernay.

O fato, aliado às características da crítica interna do manuscrito C, aponta para o surgimento do arquétipo da Epístola no período inicial da segunda metade do século XIII. Em outras palavras: o conjunto dos eventos da vida de Raimbaut de Vaqueiras só se tornou conhecido de um público mais amplo, através de cancioneiros, apenas na segunda metade do século XIII. Antes disso, existiria a Epistola somente em folhas volantes ou rotuli (Liederblätter), sozinha ou acompanhada de outra ou outras composições de Raimbaut. Esta situação tem significado para a vida do poeta, pois a incorporação da obra em um conjunto geral de composições trovadorescas pode significar que ela, naquele instante, estava sendo descoberta e que esta pressupunha um largo período de desconhecimento devido a diferentes fatos e variáveis, ligados aos movimentos do trovador ou ao processo de disseminação de sua obra conhecida. Um dos fatos seria ter Raimbaut vivido a ultima parte de sua vida e morrido em lugar distante daqueles (norte da Itália, Provença, Gasconha, França ou Catalunha) em que vieram a circular os rotuli. Ou seja, que o original ou cópia teria aparecido em alguma dessas regiões apenas nessa época. Se a hipótese puder ser aplicada a outras composições de Raimbaut, poderemos estar diante de um indício veemente ou, até mesmo, de uma certeza. Por isso, cabe a pergunta: E com o Descordo Plurilíngüe, teria acontecido o mesmo?

O stemma de Cerati sugere-nos utilizar outros relativos aos manuscritos do Descordo, a fim de possibilitar a busca do momento em que a composição teria passado para o domínio público, isto é, dos admiradores da obra de Raimbaut que não tinham necessariamente participado de seu contexto de vida. Fazemos isso aqui por se tratar o manuscrito C do preferido de quase todos os editores para a leitura do Descordo Plurilíngüe e para se ter, quando da abordagem dos demais manuscritos, uma imediata noção do significado crítico e cronológico de cada um deles relativamente às edições da composição. Para esse fim, todavia, é necessário acompanhar os resultados obtidos na genealogia dos códices dos trovadores.

Analisemos agora, numa perspectiva mais ampla, o conjunto desses códices.

Como se sabe, nenhum manuscrito, hoje existente, vai além da segunda metade do século XIII. Embora os trovadores escrevessem ou ditassem suas composições, faziam-no para difundi-las em seu tempo e não propriamente para preservá-las para a posteridade. Como homens da Idade Média, priorizavam o presente e deixavam o futuro para a Providência Divina. Isso fez com que o destino de seus poemas, musicados ou não, passasse a depender muito mais da ação e da memória dos jograis do que de um plano deliberado dos autores de conservar fisicamente sua produção. O público dos trovadores, por conseguinte, em termos prospectivos, era muito menos deles e, muito mais, o relacionado com os diferentes estratos, culturais e sociais, de que provinham ou em que atuavam esses jograis.

Em belo livro do ano de 1992, Maria Luisa Meneghetti, professora de literatura provençal da Universidade de Pavia, sintetiza o problema da transmissão, no interesse do público, da produção dos trovadores:

È insomma il variare dei livelli di trasmissione, tanto nell'oralità quanto nella scrittura, a consentire il formarsi di un pubblico molto vasto, a far sí che un testo possa essere accettato anche da un ricevente dalle caratteristiche sociali, o culturali, o ideologiche assai diverse da quelle del destinatario ideale del testo stesso.(112)

Para termos uma noção da dependência parcial do manuscrito C relativamente ao manuscrito a,(113) utilizado por Matfre Ermengau e existente antes de 1288, lembremo-nos de que, baseando-se no trabalho de Gröber (Liedersammlungen), na prática e em outros editores de textos provençais, István Frank(114) assim se manifesta sobre a cronologia dos principais códices:

On peut utiliser ... la classification suivante ...: ABDIKadCERfMUETSPQGOa1Uc ... Nous obtenons le tableau suivant (nous laissons de côté les manuscrits postérieurs au Moyen Age):

A Italie (XIIIe s.) S Italie (XIVe s.)
B Provence (XIIIe s.) P Italie (XIVe s.)
D Italie (XIIIe s.) Q Italie (XIVe s.)
I Italie (XIIIe s.) G Italie (XIVe s.)
C Languedoc (XIVe s.) O Italie (XIVe s.)
E Languedoc (XIVe s.)
R Languedoc (XIVe s.) U Italie (XIVe s.)
f Provence (XIVe s.) c Italie (XVe s.)
M Italie (XIVe s.)
U Italie (XIVe s.)
T Italie (XIVe s.)"

Jacques Monfrin(115) considera esse quadro coerente, pois obtido com o confronto de fatos estabelecidos de forma independente, e capaz de apoiar sua idéia sobre a importância das tradições locais sem, com isso, obrigá-lo a desconsiderar o parentesco entre C e o manuscrito a, de Matfre Ermengau, como aspecto particular de um fenômeno geral, o das tradições mais amplas da transmissão dos textos trovadorescos. Se prevalecesse a opinião de Gröber e Chambers, acima apresentada, de ter sido Matfre Ermengau o autor do manuscrito C, teríamos de considerar como certo que ele conhecia o Descordo e, muito possivelmente, as circunstâncias que o geraram. Se não houvesse essa autoria, mas simples relações, o conhecimento por Ermengau do Descordo seria apenas uma possibilidade. Por isso, veremos o que diz sobre Raimbaut.

Outra relação de dependência do manuscrito C, incluindo o Descordo, é a que existe com o Livro de Michel de la Tor, autor da Vida de Peire Cardenal, a qual precede as poesias deste nos manuscritos IK. Para Gröber,(116) assim ocorreu parte da transmissão das poesias trovadorescas a partir da utilização por copistas do Livro de Michel de la Tor:

Michel
/ \
/ \
/ \
/ \
y r6
/ \ / | \
/ \ / | \
A k J1 R6 r6'
/ \ / \
/ \ / \
/ \ / \
I K C r6''
/ | \
/ | \
/ | \
M Db T

Nesta árvore, r6, r6'e r6'' são considerados grupos de composições interpostos após Michel porque, deste, só em CM o sirventês Las amairitz começa com a estrofe Prop a guerra; razões do mesmo tipo valem para J1R6Db e T;(117) y e k são outros grupos de composições interpostos após Michel e presentes em AIK.

No trabalho de Gröber, portanto, r6 é um grupo de composições presente no manuscrito R , e entre elas está o Descordo (nº 529); r6'é um grupo presente em C e r6''(= m = soma de r2, r5, r6'e l3), em M; y está em A e k; este, como grupo interposto, está em I e K. Tais grupos indicam conjuntos de composições com características formais próprias de modo a caracterizar-lhes, dentro do cancioneiro, individualidade distinguível. Trazidos ao manuscrito-cancioneiro por um ou mais copistas podem representar fontes e épocas diferentes.

Gröber indica que o manuscrito R contém uma parte, R6, que abrange as cantigas 430 a 649 (com o Descordo sob o nº 529) e sua fonte é um códice r6. No caso presente, por gerar r6 tanto r6' quanto r6'', torna-se veículo em momentos distintos da presença do Descordo Plurilíngüe em R, C e M respectivamente, o que é um indício de anterioridade de R em relação a C e deste em relação a M. O conteúdo de r6 o torna um sucedâneo imediato do Livro de Michel de la Tor. Este, por ser uma coletânea de composições de Peire Cardinal, organizada por Michel entre a morte do trovador e a do rei Jaime I, o Conquistador, de Aragão, deve ter sido redigido entre 1272, ano da última composição de Peire, e 1276, o que significa que o conhecimento do Descordo, em função da genealogia dos manuscritos RCM, pode ter ocorrido neste período ou logo após, a partir da incorporação à fonte deles do conteúdo de folhas volantes. Estas, naturalmente, são mais antigas, porém podem ter-se originado tanto na França, principalmente entre Forcalquier e Marselha, quanto no Oriente. O próprio Peire Cardinal, que Michel de la Tor, muito provavelmente conheceu pessoalmente, reúne condições de vida para ser tido como proprietário de algumas dessas folhas volantes mais antigas pois, ao morrer quase centenário, exibia uma produção poética que começara em 1205, quando Raimbaut de Vaqueiras era vivo. Além disso, esteve vinculado aos condes de Toulouse e há indícios de que frequentou a corte dos Baux.(118)

Como o cancioneiro de Bernart Amoros é estreitamente aparentado a M e E a R, tem-se um grupo RCEMa1 a confirmar o grupo oriental do arquétipo w, evidenciado por Cerati em sua tese e posto em oposição ao grupo ocidental, ou catalão, que contém o manuscrito Sg.

O caso do manuscrito f parece ser mais importante para esclarecer a época de aparecimento do Descordo em cancioneiros. De acordo com a opinião de Gröber, f faz parte de um grupo de fonte talvez mais antiga (da primeira metade do século XIII), que é o HLOPf.(119) Embora distinga quatro grupos de cantigas no códice, o terceiro grupo, que chama de f3 e que contém o Descordo, teria uma fonte incerta, f3', não presente em outros manuscritos mas aparentada a alguns deles. Esse ponto de vista, em Gröber, reforça-lhe a suspeita da existência de uma terceira tradição, que remontaria, pois, à primeira metade do século XIII. Características dos grupos p1-p3, presentes nos manuscritos S e U e na fonte q de GQ, mostram-se independentes e apontam também para um códice antigo, daquela época. H, com seu complicado sistema de contaminações, reflete contextos bem antigos, como, por exemplo, a Vida original e um duvidoso poema de Raimbaut, Tuich me pregon, Engles, que vos don saut. As contaminações dos códices, que contêm grupos independentes, também não impedem Avalle de vê-los em CGMQRTf, DE, IKNa1, A e H e, por isso, considera válida a hipótese de os arquétipos, que ele chama de h2 e m, estarem presos a duas tradições, há muito reconhecidas, e ligados, através do "códice antigo" a uma terceira, como se pode ver em seu stemma, como cânone, a seguir apresentado:(120)

CÂNONE

Tradição III Tradição I Tradição II
| \ | /
| \ h2 /
| \ "arquétipo" /
| \ /\ /
| \ / | \ /
| \ / | \ /
| \ / | \ /
| \ / | \ /
| \ / | \ /
| "códice H
m
| antigo" /
| __________|________ /
  | | | /
|
a b /
| / \ /
|/ \ /
y (= m, de Gröber)
e(=x1, de Gröber),
® ®
matriz de CGMQRTf matriz de DE, IKNa1 e A.(121) (separados estão estes dois últimos grupos por corresponderem a tradições distintas.)

O variado grau de contaminação, evidenciado neste stemma de Avalle e aqui expresso pelo símbolo , põe em relevo o fato de não ser questão mais importante a data do manuscrito mas sim a época possível de constituição de seus clusters ou conglomerados gráficos, isto é, grupos de um ou mais caracteres e/ou sinais que tenham individualidade em termos de mensagem e relativamente aos demais caracteres ou sinais vizinhos. Mais ainda: a ecdótica genealógica deve estar voltada inicialmente, como é feito por Cerati e outros e enfatizado por Avalle, para a filiação da composição ou composições que são objeto de investigação do filólogo, tornando-se os cancioneiros, por sua complexidade de estrutura, referências gerais, sujeitas a reavaliações periódicas. O manuscrito f exemplifica bem essa situação por apresentar clusters praticamente não redutíveis a outros códices devido ao fato provável de serem, na ocasião do início do trabalho do copista, material inédito.

De acordo com o exposto e para a compreensão da genealogia dos manuscritos que contêm o Descordo Plurilíngüe, parece relevante e realista considerar como mais próximo das últimas folhas volantes que o continham o manuscrito f e que sua fonte f3', usando a nomenclatura de Gröber, é contemporânea à formação de fontes imediatas dos manuscritos CERM. Em outras palavras: não era o Descordo, em relação ao grande público, conhecido antes de 1272, ano mais remoto a que se pode atribuir a compilação do Livro de Michel de la Tor, que constituiu parte do imediato r6, onde já se encontrava a composição e que gerou a parte R6 do manuscrito R. Esta constatação é coerente com o fato de não haver, na Vida e nas quatro razos de Raimbaut de Vaqueiras,(122) referência direta ou indireta ao Descordo, que também não ocorre nas Razos de trobar, de Raimon Vidal de Besalú, e na Doctrina d'acort, de Terramagnino da Pisa, obra de fins do século XIII. Se o Descordo já fosse conhecido, chamaria logo a atenção desses autores. Só em 1328, por ocasião da primeira redação das Leys d'amors é que aparece parte dele.

O exame da genealogia dos manuscritos trovadorescos parece demonstrar, portanto, que o conhecimento do Descordo só ocorreu nos fins do penúltimo quartel do século XIII. A independência da parte do manuscrito f, que contém a composição, aliada ao fato de indicar o stemma de Cerati para a Epístola Épica que o arquétipo desta é datável do período inicial da segunda metade do século XIII, parece apontar para a existência de alguma folha volante, de conhecimento muito restrito, desde o princípio do século, em Provença e para a permanência, durante três gerações e fora do eixo occitânico-provençal-genovês, do original ou cópias seguintes, geradoras do posterior conhecimento geral da composição. Onde? Na Grécia ou, como se dizia na época, na Romania.

Há um outro fato que consideramos significativo. Três poemas são considerados por Linskill como compostos na Grécia: XX (Conseil don a l'emperador), XXI (Seigner Coine, jois e pretz et amors) e XXII (No m'agrad'iverns ni pascors). Em nossa opinião, é pouco provável que o de número XXI tenha sido composto no Oriente, principalmente no verão de 1204. Os acontecimentos da Quarta Cruzada, na ocasião, sucediam-se em grande velocidade e em meio a uma tensão contínua, não só com respeito às relações com os gregos mas também à dos barões entre si. A prova disso são as inúmeras deserções e as dissenções entre Balduíno, o imperador escolhido pelos cruzados, e Bonifácio, o chefe da expedição, logo após a conquista de Constantinopla. Não vemos como organizar-se uma corte tão distensa que desse oportunidade, na prática, a Raimbaut, simples ex-escudeiro e cavaleiro hospitalário, como veremos, de trocar um partimen com Conon de Béthune, o principal diplomata de Balduíno.

O poema XXXI, de atribuição duvidosa a Raimbaut, envolve um clima psicológico muito coerente com o do XXII, que pode ser explicado como um desabafo do trovador diante de uma grande aflição, provavelmente a morte de Bonifácio, com a conseqüente renúncia definitiva à vida de poeta, com todas as suas lembranças, e a dedicação total a outro tipo de vida. Como, entre a chegada de Raimbaut ao Oriente e a morte de Bonifácio, decorreram quatro anos, nada impede que tenha sido neste período que o poeta tenha pessoalmente composto duas peças que, aparentemente, destoam de seu trabalho, as composições XXIV (Altas undas que venez suz la mar) e XXV (Gaita be, gaiteta del chastel). O que há de comum entre essas quatro composições? É sua presença predominante nos manuscritos a1, Sg e Ve.Ag., estes últimos catalães. Vejamos a distribuição:

XX - a1

XXII - a1,Sg,A,B,C,Da,Dc,I,K,M,N2,P,R,S,T,U

XXIV - Sg

XXV - Sg

XXXI - Sg, Ve.Ag

O caráter predominante não se deduz aqui dos dados estatísticos propriamente ditos mas da ocorrência solitária dos poemas XX, XXIX, XXV e, praticamente, XXXI. A conclusão deve ser no sentido de que o arquétipo (ou arquétipos) de a1 e dos cancioneiros catalães para os poemas orientais (ou ao Oriente ligados) de Raimbaut (inclusive o Cv, da Biblioteca Ventimigliana de Catania) é o mesmo e situa-se em um contexto grego. O Descordo Plurilíngüe parece estar no limiar deste. O ms. C insere-se, como os demais, excluindo-se o f (pelas razões assinaladas), em um período de redação posterior. Historicamente, pois, os mss. mais confiáveis para uma edição do Descordo, são f e a1, ficando o ms. C, por seu caráter eclético, já ressaltado, como o terceiro em ordem de importância. O uso dos demais deve ter caráter supletivo, principalmente em relação à estrofe galego-portuguesa, que, para os copistas, era um real problema lingüístico, com soluções muito mais dependentes de suas opiniões pessoais do que do conteúdo dos mss. que tinham à sua disposição. Uma avaliação lingüística subjetiva dessa estrofe ocorreu até os fins do século XIX e levou não poucos editores a identificar o castelhano como sua língua. O stemma de Avalle, adaptado ao caso do Descordo, daria, com base em Gröber, Avalle e Cerati, o seguinte cânone:

CÂNONE POSSÍVEL DO DESCORDO

Tradição III Tradição I Tradição II
|\ | /
| \ h
2 /
| \ "arquétipo" /
| \ / \ /
| \ / | \ /
| \ / | \ / contexto grego
| "códice H
m / |
| antigo" / / |
| _______|________/ / |
| | | | / |
|
a b f3 f |
| / \ |
y (=m, de Gröber)
e (=x1, de Gröber) w
® ® |
matriz de CMR matriz de E e a1 ®
grupo ocidental Sg

Onde:

Contexto grego - conjunto de mss. produzidos na Grécia após 1203 ou levados para lá por participantes da IV Cruzada.

Grupo ocidental - conjunto de mss. catalães dependente, em grau variado, da vida grega de famílias catalãs após 1203.

w - arquétipo, no contexto grego.

- influências mútuas.

Tradição I, II, III - Expressões de Avalle.

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito C

No manuscrito C, o Descordo Plurilíngüe se apresenta nos folios 125r, até moutz abetz, da estrofe gascã e 125v, desde beras faissos até o fim da tornada. É precedido pela composição Kalenda maia e seguido pela composição Las frevols venson lo plus fort ("Calendas de maio" e "Os fracos vencem o mais forte"). Eis o texto do manuscrito:

........... ra
Eras ymbaut de vachei
quan uey uerdeyar. ras
pratz e uergiers e bos
catges. uuelh un descort
comensar. damor per qeu uauc
aratges quna donam sol amar.
Mas cam jatz les sos coratges.
per qeu fauc dezacordar. los motz
el sos els lenguatges.

I eu suy selh que be non ayo.
ni enqueras non lauero. per a
brilo ni per mayo. Si per mia do
na non lo. e entendo son lengua
io. sa gran beutat dire nozo. plus
fresques que flors de glayo e ia
no men partiro.

Belha doussa dama chera. auos
merrant e mautroy. ia nauraí
mes ioyentera. si no uos ai e
uos moy. molt estes mala guer
reya. si ia muer per bon esfors.
eia per nulha manera. nom par
trai de uostre los.

Dauna io me tenc a bos. qar
eras mes bone bere ancse es
guallarde pros. ab que nom .
fossetz tan fera. moutz abetz
beras faissos. ab color fresque
nouera. uos mabetz esseps a
gues. non sofranhera fiera.

Mas tant temo uostro plaito.
todon soy escarmentado. p uos
ai pen ae maltreyto. e mei corpo
lazerado. la nueyt quan soy en
mey leito. soy mochas ues res
perado. pro uos cre e non pro
ferto. falhit soy en mey cuidado.
mais que falhir non cuydeyo.

Belhs caualiers tant es cars. lo
uostronraty senhoratges. que
quada iorno mesglayo. ho me
lasso que faro. si seli que gey
plus chera. mi tua no sai por qoy.
ma dauna fe que dey bos. ni peu
cap sanhta quitera. mon coras
so mauetz trayto. e mout gen
faulan furdado.

O manuscrito E

Localização e descrição

O manuscrito E encontra-se na Biblioteca Nacional da França e tem o número 1749. No fundo antigo dessa biblioteca, tinha o número 7698. Foi copiado no Languedoc no século XIV. Contém canções, biografias, tensões e partimens, em um total de 231 páginas. As folhas são de pergaminho.

O primeiro trovador que nele é reproduzido é Folquet de Marseille e Raimbaut de Vaqueiras é representado por 16 cantigas, entre as quais o Descordo Plurilíngüe, que se encontra na página 187, precedido pela cantiga D'una dona.m tueill e.m lais (Fugi de uma dama) e seguido da cantig Las frevols venson los plus fortz (Os fracos vencem os mais fortes). A biografia de Raimbaut de Vaqueiras, nesse manuscrito, é a de número 21, da página 208.

Paradeiro

O manuscrito E fazia parte, no século XV, da Biblioteca d'Este. Parece ter sido propriedade, no século XVI, de Pietro Bembo. De Bembo passou a Lodovico Beccadelli, provençalista do século XVI. Eleonora de Vincenti(123) acredita que Giammaria Barbieri também o utilizou no século XVI. Foi um dos cancioneiros utilizados por La Curne de Sainte-Palaye que, como dissemos, realizou suas pesquisas nas bibliotecas francesas e italianas.(124)

O Descordo Plurilíngüe no Ms. E

Eras quan uei uerdeiar. pratz eu
ergiers eboscatges. uueill un desc
ort comensar. damor perquieu uauc
aratges. cuna donam sol amar. mas
camiatz les sos coratges. perquieu fauc
dezacordar. los motz els sos els lengatges

Cu soi selo que ben non aio ni enq^ras
non lauero. per abrilo ni per maio. si
per ma dona no lo. entenho son len
gatio. sa gran beutat dire no so. plus
fresca es que flor de glaio. e ia nome
partiro.

Bella dousa dona chera. auos mi do
emautroi. ia non aurai maioenteira.
si uouos ai euos moi. molt estes mala
guerreia. si ge muer per bonafoi. eia
per nuilla maneira. nom partrai de
uostre loi.

Dauna io me rent abos. q~r eras mes
bone bera. ancse es gaillarde pros. ab
que nom fossetz tan fera. mout abetz
beras faisos. ab color fresca nouela.
bos mabetz esieubs agos, nom sofr
aisera fiera.

Mas tan teme uostre pleito. todon soi
escarmentado. por uos ai pene maltrei
to. emei corpo letzerado. la nueit quan
soi enmeu leito. soi mochas uetz repa
rado. por uos ero non perferto. faillitz
sui emei cuidado. mais que faillir no
cuideio

O manuscrito f

Localização e descrição

Este manuscrito se encontra na Bibliothèque Nationale da França e tem o número 12472. No catálogo do antigo suplemento francês tinha o número 5351, sendo, também, conhecido como cancioneiro Giraud, do nome do doador.

O manuscrito f é da primeira metade do século XIV e seu material é o papel de algodão. Como se sabe, as letras minúsculas são usadas para designar os manuscritos de papel, enquanto as maiúsculas são reservadas para os de pergaminho. Contém o manuscrito 73 folhas das quais duas são de rosto e estão parcialmente escritas. O tamanho de cada folha é de 28 cm x 20 cm. A paginação do cancioneiro corresponde a duas épocas diferentes. A primeira é, provavalmente, do século XV, e vai, sem interrupção, até a metade do manuscrito. É muito irregular. Começa no algarismo 4 e vai até o 79, pulando os números de 1 a 3, 43 a 45 e 70 a 71. No fim, faltam folhas em número indeterminado. A segunda paginação é do século XVI: vai do algarismo 4 a 79, faltando, igualmente, as páginas 1 a 3, 43 a 45 e 70 a 71. Como o manuscrito tem 73 folhas, o total é de 146 páginas. As duas folhas de rosto correspondem, naturalmente, a 4 páginas, das quais 3 não são numeradas. O Descordo Plurilíngüe encontra-se na folha 69v, correspondente à numeração antiga 77r; é precedido e seguido por duas das três outras cantigas de Raimbaut de Vaqueiras, que esse cancioneiro contém: Leu pot hom pretz e gaug aver ("É fácil se ter alegria e mérito") e Nuls homs en ren non failh ("Homem algum falha nisso"). Esta última é atribuída a Vaqueiras na maioria (13) dos manuscritos (18, no total). Três dão como autor Aimeric de Belenoi, um atribui a Peirol e outro a dá como anônima. Linskill é de opinião que não pertence a Raimbaut. A quarta cantiga, atribuída a Raimbaut pelo manuscrito f, é Savis e fols, humils et orgoillos ("Sou sábio e tolo, humilde e orgulhoso").

O manuscrito f foi escrito por uma só mão, em linhas longas. A escritura, como dissemos na seção de classificação das escrituras do Descordo, é uma minúscula gótica cursiva da primeira metade do século XIV, sem pinturas, letras ornadas ou rubricadas.

Paradeiro

Segundo Paul Meyer, que seguimos nessas considerações ao lado da observação própria que fazemos de fotos nossas, a Biblioteca de Carpentras encerrra, entre as adições à coleção de Peiresc (aquele mesmo historiador da primeira metade do século XVII, que recusou para si a doação do manuscrito C por Guillaume Catel), um conjunto de notas sobre assuntos variados de história e arqueologia. Entre elas, 50 folhas dizem respeito à história de Provença. A escritura, de meados do século XVI, ou de pouco após, parece idêntica à da tentativa de uma lista de trovadores, que as folhas de rosto de f contêm. Para Lambert, antigo bibliotecário de Carpentras, que Paul Meyer conheceu (feu Lambert), essa escritura seria de Jean de Nostredame. Poder-se-ia provar a propriedade se houvesse, de Nostredame, manuscritos certos e convincentes. Há, porém, fatos que confirmam a hipótese. Embora no prosseguimento da discussão do problema, Paul Meyer tenha concluído pela impossibilidade de se afirmar com certeza a posse por Nostredame do cancioneiro f, no fim de seu trabalho, nas adições e correções,(125) retifica a opinião e afirma que, revistas as notas da coleção de Peiresc e comparada a escritura dela com as notas espalhadas em f, são elas as mesmas de Nostredame.

Entre o século XVI e a época da Revolução Francesa, não há traços do manuscrito f. Durante a Revolução, todavia, esteve com a família da marquesa de Simiane. Naqueles dias difíceis, os nobres tomavam muitas precauções para resguardar seus bens. Foi o caso da família Simiane. Os arquivos desta foram enterrados no pátio do castelo, junto a uma oliveira e o manuscrito f ficou nesta situação por muitos anos. Somente as bordas dele revelam um pouco a permanência demorada no subsolo. Em 1836, a marquesa ofereceu-o ao senhor Charles Giraud, intelectual da primeira metade do século XIX, o qual comunicou o fato, nesse mesmo ano de 1836, a Raynouard, sem que este grande provençalista pudesse dele tirar maior proveito, pois morreu em 27 de outubro.

Em 1859, Charles Giraud doou o manuscrito à Biblioteca Imperial onde se inscreveu sob o número 5351 do suplemento francês e, ao ser este reunido ao fundo antigo, tomou o atual número 12472.

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito f

aras_ cãt uei uerdeiar-pratz euergiers eboscages-uueilh un descort come~sar-damo
rs pquieu uauc arages - cuna donam sol amar-mais camiat les sos corages - p quieu fauc
desacordar - los mots els sons els lengages

io soquelo - q-- ben nõ ayo - ni encora nõ lauero p aprilo ni p mayo - si p mia dõna non lo -
enteinho son lengaio - sa gran beutat dire nõ so - plus fresques que flor de glaio - eia
nõ men partiro -

belle douse dame chiere - auos mi don e mautroi-mais nõ aurai ioientiera - si ne uos ai et
uos moi - mot estes mala guerrieere - si ge muer p bone foy - eia por nulle maniere
nom partrai de uostre loi

Dauna io mi re~d abos - car eras mes bone bera anc se es guailharde pros - ab q- nõ fossatz
tan fera - motz abetz beras faissos - ab color fresque noera - bos mabetz esibs agos nom
sofraissera hiera -

mais tãt temo uostre pleto - don soi escaramentado -p uos ai pene maltreito - emie cor
po lazerado - la neit cãt soi enmie leito - soi mochas ues resperado - pro uos era nõ pro
feito - failhit soi en mõ cuidado mes q- failhir non cudeio-

bels caualiers tãt es grãs - la uostromrat seinhorage - q- niento nõ mesglayo -hoi me
lasso q- fairo - si sele q- iai plus chiere - mi tue ne sai porquoi - dauna eq- deig abos - ni peu
cap santa quitera - mon corasso maues traito - emõ ient faulan fortado

O manuscrito M

Localização e descrição

O manuscrito M pertence à Bibliothèque Nationale da França e tem o número 12474. No suplemento francês dessa biblioteca, tinha o número 2033 pois viera da Biblioteca Vaticana, onde estivera numerado como documento 3794. Foi copiado na Itália, é pequeno (22 x 17cm) e de pergaminho. A cópia foi feita no século XIV e tem 10 + 269 folhas. A folha 269 constitui um manuscrito à parte, embora encadernado em M. É de mão diferente, também italiana. Trata-se do manuscrito Ab, copiado, ao que parece, pela mesma pessoa que produziu o manuscrito B.

O Manuscrito M possui canções (folhas 1-205), sirventeses (207-247), descordos (249-251) e tenções (252-268).

O Descordo Plurilíngüe está contido na folha 108r,v. Reaparece, apenas com a primeira estrofe (assim mesmo sem uma parte do último verso), na folha 251r, o que está a indicar que o copista não terminou seu trabalho, por alguma razão. Nessa folha 251r, última das que contêm descordo, há todo um espaço em branco na coluna à direita, que só apresenta duas linhas escritas (iatz lhes sos corages. per qieu / uueilh desacordar lo motz.). A cantiga que precede o Descordo, na folha 108r é Truan, mala guerra ("Guerra vil e má"). A cantiga que o segue, também de Raimbaut de Vaqueiras, é Ja non cujei vezer ("Jamais pensei ver"). Não contém o manuscrito M a tornada.

O cancioneiro M tem miniaturas e anotações italianas à margem. Duas cópias de M são os manuscritos g1 (Vaticana 3205), que pertenceu a Pietro Bembo, Angelo Colocci e Fulvio Orsini, e g2 (Bolonha, Biblioteca Universitária, 1290), ambos do século XVI. Segundo Gröber,(126) o manuscrito M, sob vários aspectos, se apresenta como um manuscrito independente de todos os outros.

Paradeiro

Pertenceu o manuscrito M a Benedetto Gareth, conhecido como Chariteo, poeta que morreu por volta de 1514. Sua viúva o vendeu ao humanista Angelo Colocci que, por sua vez, o doou ao Vaticano. Em 1799, foi confiscado por Napoleão e, por isso, pertence à Bibliothèque Nationale. Quando teve como proprietário Angelo Colocci, este lhe apôs numerosas notas resultantes de cotejo com o manuscrito N. É nessas notas que Colocci faz alusões a manuscritos provençais que foram de propriedade de Mario Equicola.(127)

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito M

Raimbaud de uaq-ras
Ara qan uei uerdeiar
pratz e uergers e bo
scages. uueilh un descor com~s
sar. damor per qieu uauc ara
ges. qar ma donnam sol amar.
mas camiatz lles sos corages.
per qieu uueilh desacordar. los
motz els sons els lengages.

Qieu son qel qe ben non aio. ni
iamai non lauero. ni p abril
ni per maio. si p madõna nolo.
certo qen nisun lengaio. sa grã
beuta dir no so. çhu fresca qe
flor de glaio. per qe no me~ par
tiro.

Belle douce dame cheire. a uos
mi domt e motroi. ie naurai
mes ioentera. si ie nai uos e uos
moi. mon etes mala guerrere.
se ie muer per bone foi. mes
ia per nulle maniere. nom par
trai de uostre loi.

Dome io mi rend abos. qar sotz
lames bon ebera. qanc fosega
ilhard e pros. ab qe no fosses
tan fera. moch aues beras fa
sos. e color fresce nauera. bo
stre so e sis agos. nom destre
gora fiera.

Mas tan temo uostro pletto.
tadem son estarmentado. per
uos ei pana maltrato. el
meo corpo lazerado. la not qa ias
en moleito. so motas ues esp
nado. e qar noca ma porfeto.
falit ei e mon cuidado. mais
qe failhir nõ cuideio.

TEXTO DE M1:

Descort.
Ara qan uei uerdeiar.
pratz e uergiers e bo
scages. uueilh un de
scort comensar. damor per
qieu uauc arages. qar ma
donnam sol amar. mas cam
iatz lhes sos corages. per qieu
uueilh desacordar. lo motz.

O manuscrito R

Localização e descrição

O cancioneiro R faz parte do acervo da Bibliothèque Nationale da França. Seu número atual é 22543, correspondente ao antigo 2701. É conhecido também como Cancioneiro La Vallière ou Cancioneiro d'Urfé. Tem 43 x 30 cm. em um conjunto de 148 folhas de pergaminho, com um índice nas de número 1 a 3. É de começos do século XIV.

Trata-se de um manuscrito importante porque, além de conter cerca de 1090 composições, entre cantigas e estrofes, encerra ainda quase 60 peças de caráter didático e narrativo, inclusive em prosa. Apresenta, igualmente, a música de numerosas cantigas (160) e 27 biografias.

Segundo Gröber, o cancioneiro R mostra semelhanças com f e parece ter sido escrito na parte oriental do Languedoc. Suas cantigas podem ser datadas até cerca de 1300.

O Descordo Plurilíngüe se encontra na folha 62, indicado no manuscrito pelo número 520. É precedido da cantiga Non puesc saber perquem sia destreg ("Não posso compreender porque estou atormentado"). A cantiga que vem a seguir, de número 521, é Leu pot hom gaug e pretz aver ("É fácil se ter alegria e mérito"). Ambas são de Raimbaut de Vaqueiras. A cantiga, embora tenha a primeira estrofe lançada numa pauta, não apresenta, infelizmente, notação musical. Isto é um indício de que o Descordo tenha tido música correspondente. No manuscrito R, há, na situação do Descordo, numerosas composições, inclusive na mesma folha, o que demonstra ser ele um cancioneiro inacabado, que iria incluir muitas outras notações musicais.

Segundo Avalle, o amanuense de R se serviu, para seu trabalho, do mesmo códice levado à França meridional nos fins do século XIII e do qual sairam os manuscritos E e J.(128) Por isso, coloca-o como parte do grupo oriental e mais aparentado com E do que com C.

Paradeiro

O cancioneiro R pertenceu ao marquês de Valbromey, Honoré d'Urfé, conhecido novelista e poeta francês, que viveu entre 1568 e 1625. O manuscrito permaneceu com seus descendentes e passou à propriedade do duque de La Vallière. Após a morte deste, passou, em 1783, à Biblioteca Real. Foi o manuscrito utilizado por La Curne de Sainte-Palaye, não se sabendo se, antes do século XVI, teria sido usado por Nostredame.

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito R

Ara can uey uerdeyar pratz e uergiers e boscatges.
uuelh un descort comensar. damors p quieu uauc araties
car ma donam sol ama. mas camiat les sos coratges. p
quieu uuelh desacordar. los motz els sos els lenguaties.

E so sel q- be~ nõ aio. ni iamais nõ lauero. ni p abril ni p
mayo. si p ma dona nõ lo. pus fresca q- flor de glayo. p q- no
me~ partiro. serto q- e~ sõ le~guayo. sa grã beutat dir no so.

B ela dossamia chera. a uos mi don emautroy. ie naurai
mes ioy entieira.si ie nay uos e uos moi.mot estes mala

gueriryey. si ie muer p bona foy. mais ia p nulh manieira
nom partrai de uostraloy.

D auna io mi rent a bos
coar es la mas bone bera. co anc fos e garde pros. abq-
nõz fossetz tã fera. mot abetz beras haisos e coror fres
q- noera. Bostes soy e sibs agues nõz sofranguera fiera.

Car temo uostre pleyto. todõ soy escarmentado. p uos
ay pene maltraito. e mõ corpo latzerado la nueg can iatz
e mo leito. sos mochas fes espessado e car nõ clamey profeito. falhit ay a mõ caidado.

B els
cauayers tãtes cars uostre ricx senhoraties.q- cada ior~ nom esglaio. oy me lasso q- faro. se seleyq- geyra pus chieira me
tua no say p coy. ma dauna fe q- dey bos ni pel cap santa
kiteyra mon corasso mabetz trayto e mot gen faulã. forn fur
tado.

O manuscrito Sg

Localização e descrição

O manuscrito Sg pertence à Biblioteca Central de la Diputación Provincial de Barcelona (Biblioteca de Catalunha), onde tem o número 146. Junto com Ve e Ag faz parte do grupo de cancioneiros catalães descritos por Jaume Massó Torrents.(129) É um manuscrito de 23 x 16 cm, de pergaminho, composto na Catalunha no século XIV. Tem 165 folhas e apresenta numerosas poesias da chamada Escola de Toulouse (Joan de Castelnou, Raimón de Cornet e outros) bem como biografias e cantigas de trovadores da época clássica.

O Descordo Plurilíngüe acha-se, no manuscrito Sg, na folha 50, recto e verso. É precedido pela estampida Kalenda maya (Calendas de maio) e seguido pela composição Ar pren cangat per tostemps de chantar (Agora deixo para sempre de cantar). Esta última, segundo Linskill(130) e Lewent,(131) não deve ser de Raimbaut de Vaqueiras, o que é encarado apenas como hipótese por Fassbinder:

"Ob der in den katalanischen Handschriften unter Raimbauts Namen gebrachte Planch Ara pren comjat per totztems de chantar von ihm herrührt und wenn ja, ob er auf Biatritz zu deuten ist, bleibt vorläufig ungewiss."(p. 157)

"Das dritte Lied, das hier in Frage kommt, ist der Planch Ar pren comgat, von dem in Raimbauts Leben schon gesprochen ist. Stilistisch usw. würde es Raimbaut nicht widersprechen. Es bleibt nur die ungelöste Frage, auf wen es sich bezieht."(p. 168).(132)

A estudiosa alemã não vê nada contra a autoria de Raimbaut. Considera como questão não resolvida a identidade da mulher a quem o poeta se refere na composição, que o autor declara ser a última que faz. Trataremos do assunto na parte histórica deste trabalho.

Paradeiro

Pertenceu ao professor Pablo Gil y Gil, de Saragossa, e, comprado de sua viúva, foi oferecido por dez doadores ao Institut d'Estudis Catalans. Daí passou à Biblioteca Central de Barcelona.

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito Sg

Eras can uey u-deyar. prats e ùgers eboscatges. uuyl un
descort comensar. damor p cuy uay erratges. cuna
don am sol amar. mas camgat le sos coratges. p q-u fas desa
cordar. los mots els sos els lenguatges.

Eu son sel q- ioy non ayo. ne unq- non lauero. ne por abril ne por ma yo. si de madona nom lo. crtes en. i. sol lengatyo. sa gran boutat dir no
ho. pus fresq-s q- flor de glayo. p que no men partiro.

Bela dous dama xera. auos me don e mautroy ye non auray ioyenti
ere. si ge nous e e uos moy. trop estes mala guerriera. si nous e p bona foy
p negun altremaynera no herrey uostra loy.

Dauna q-u mi rent abos. car es la maiya bon ebera deumon e gay
arde pros. sol q- nom hossetz tan heyra. trop abetz beras hayssos e color
hresca noera bostre son e sius agues nom sobrcera çihera

Tanto temo uostre p ito todo son escarmentado. por uos he pene mal
treyto e mi corpo lasserado. la nuyt con iac en mi leyto. en ay mantes
uetz penado. e can noy trob nuyl profeyto. suy falido al cuydado. pus que
falir no cuydey.

Bels caualrs tan tenc car uostre honrat seyratges q- cascun iorno
mesglayo oy me lasso q- faro si celuy q- ie pus xera metria nom se percoy
dauna e que dey abos. no peu cap sta kyteyra. mon corasso mauetz treyto
e molt gent faulan furtado.

O Manuscrito a1

Localização e descrição

Este cancioneiro, chamado de a2 por A. Jeanroy,(133) é conhecido como Cancioneiro de Bernart Amoros - Complemento Càmpori. Encontra-se na Biblioteca Estense, em Modena, sob a seguinte indicação de catálogo: Càmpori, N, 8, 4; 11, 12, 13. É um manuscrito em papel, que constitui as páginas 252-616 da cópia feita, em 1589, por Jacques Teissier de Tarascon para o literato italiano Piero di Simon del Nero a partir do original de um cancioneiro, organizado, em fins do século XIII ou princípios do XIV, pelo monge de Saint-Flour (Auvergne), Bernart Amoros. A primeira parte da cópia está na Biblioteca Riccardiana, de Florença e constitui o cancioneiro a1 de Jeanroy.

A cópia feita por Teissier está cheia de erros, que Simon del Nero procurou remediar através de uma revisão. O original, de Bernart Amoros, está hoje perdido. Paul Meyer era de opinião que o cancioneiro, em dois volumes, do Conde de Sault não tinha nada de diferente do original de Bernart Amoros.(134) Foi Giulio Bertoni, grande filólogo italiano, quem achou a segunda parte da cópia de Teissier, editando-a em 1911, como já assinalamos em outra parte deste trabalho. O Descordo Plurilíngüe está na página 334 do manuscrito.

O Descordo Plurilíngüe no manuscrito a1

Lan can vei verdeiar. prats e vergiers e boscages. voil un des
cort comenzar. damor qim ten arratges. cuna donam sol amar.
mas camiatz les sos coratges. p qiem fes desacordar. los motz el
son els lengatges.

Car anc non pos auer gaujo, ni anqier non lauero. ni p abril
ni p maio. si p ma dona non lo. certo e negun lengatjo. sa grã
beutat dir non so. genzer es qe flors de glaio. p qieu no me partiro

Bella douza dama chera. a uos me don emautrei. molt mestes
mala guerriera. car eus am per bona foi. la vostr amors mes sobreira
se ieus am e uos no moi; e ia en nula maneira nõ partrai de vostre loi

Dauna ia me rent abos. car es damar bona e bera, molt foras gailli
arde pros. sami non fossatz tan fera molt auetz bellas faissos. e color
fresc e naueira. boster son et sil cazos. nostrenc ora si uera.

Qe tan ten el vostre pleito. don soi escarmentado. p vos el ben
el mal traito. e mon corpo lei serrado. La noit can iatz e men leito. ei
mainta vezes pensado. e car re nomi profeito. faillitz son e mon cuidado
p qieu no men partirei.

Capítulo 5

Confronto entre as edições do Descordo Plurilíngüe e os textos dos diferentes manuscritos

Critérios

A comparação entre as edições do Descordo Plurilíngüe e os textos paleográficos dos diferentes manuscritos torna-se, com o desenvolvimento da presente investigação, um fator essencial ao objetivo do estabelecimento de uma nova edição crítica capaz de atender às exigências de verossimilhança que a composição naturalmente pressupõe.

Permite a disposição das leituras críticas em ordem cronológica que se tenha uma idéia das dificuldades progressivamente vencidas e, principalmente, evidencia a dependência de cada editor ou de grupos deles relativamente a certos manuscritos. Tais débitos tornam-se, em conseqüência, uma referência importante para uma reavaliação crítica dos caminhos a serem tomados num esforço de apresentação daquilo que seria o melhor texto do Descordo, ou seja, daquele texto que deve efetivamente ter sido produzido pelo poeta em função de sua experiência existencial, cultural, literária e lingüística.

São mantidas as abreviaturas usadas pelos copistas, bem como seus diacríticos e conglomerados gráficos. A pontuação dos editores não é indicada, ao fim de cada verso, para não sobrecarregar o confronto com um número excessivo de leituras diversas. A ordem dos versos é a da crítica moderna, mantidos, porém, na posição de cada manuscrito, os que destoam desse critério. O nono verso da quinta estrofe é mantido, apesar de seu notório caráter espúrio e de sua finalidade, que foi a de glosa ao verso anterior. Como se verá, foi aceito, sem maior rigor crítico, por inúmeros editores. Os copistas que não o produziram certamente denunciam estar diante de original mais próximo da forma saída das mãos do poeta.

As edições são as já assinaladas: de Raynouard (1817), Rochegude (1819), Diez (1826), Galvani (1829), Mahn (1846), Fontanals (1861), Meyer (1877), Balaguer (1878), Luchaire (1881), Monaci (1889), Appel (1895), Michaëlis (1897 e 1904), Massó Torrents (1907), Bertoni (1911), Crescini (1922), Bertoni (1937), Monteverdi (1952), Bergin (1956), Menéndez Pidal (1957), Linskill (1964) e d'Heur (1973). Algumas, como as de Diez, Fontanals, Luchaire, Michaëlis, Menéndez Pidal e d'Heur, foram utilizadas parcialmente, por interessarem só a determinadas estrofes.

Todas as edições foram esforços importantes para a compreensão do poema de Raimbaut de Vaqueiras. Na avaliação delas, é oportuno lembrar o fato de que também as lições de cada um dos sete manuscritos foram, a seu modo, edições críticas porque os copistas se propunham restituir textos que lhes pareciam ou obscuros na forma empregada pelos que os precederam ou alterados de modo a estimular-lhes o ânimo de restabelecer o que julgavam poder ter sido o original de Raimbaut. É preciso, pois, que, com base em tudo isso, se ponha de lado qualquer preconceito, seja com editores modernos, seja com copistas do século XIII. Uma palavra inteiramente esdrúxula pode, com a aplicação de seguro método, desvendar a realidade do original, de conteúdo ou de forma.

Para identificação dos editores, basta procura-lhes o nome, a partir da data que aparece entre parênteses à esquerda do confronto, na seção deste capítulo 2 que tem como título "Caráter geral das edições dos séculos XIX e XX e sua utilização neste trabalho".

Estrofe provençal

1 -

Eras quan vey verdeyar Eras quan uey uerdeyar C

(1817, 29, 46, 95, 1922, 52, Eras quan uei uerdeiar E

56, 64) Aras cant uei uerdeiar f

Aras cant vei verdejar (1877, Ara qan uei uerdeiar M

89) Ara can uey uerdeyar R

Eras can vey verdeyar (1907) Eras can uey -udeyar Sg

Lan can uei uerdeiar (1911) Lan can vei verdeiar a1

Eras, quan vei verdejar (1819) Ara qan uei uerdeiar M1

Aras cant vei verdeiar (1937)

2 -

Pratz e vergiers e boscatges pratz e uergiers eboscatges C

(1817, 19, 46, 77, 89, 95, pratz euergiers eboscatges E

1922, 37, 52, 56, 64) pratz euergiers eboscages f

Pratz e vergers e boscatges pratz e uergers e boscages M

(1829) pratz e uergiers e boscages M1

Prats e vergers e boscatges pratz e uergiers e boscatges R

(1907) prats e ùgers e boscatges Sg

pratz e uergiers e boscages pratz e uergiers e boscages a1

(1911)

3 -

Vuelh un descort comensar uuelh un descort comensar C

(1817, 29, 46, 95, 1922, 52, uueill un descort comensar E

56, 64) uueilh un descort com~esar f

Volh un descort comensar (1819) uueilh un descor co-mssar M

Voil un descort comensar (1877, uueilh un descort comensar M1

89) uuelh un descort comensar R

uoil un descort comenzar (1911) uuyl un descort comensar Sg

Vuyl un descort comensar (1907) voil un descort comenzar a1

4 -

D'amor, per qu'ieu vauc aratges damor per qieu uauc aratges C

(1895, 1922, 37, 52, 56, 64) damor perquieu uauc aratges E

D'amor, per qu'ieu vanc a ratges damors pquieu uauc arages f

(1829, 46, 77, 89) damor per qieu uauc arages M

D'amor, per cui vauc aratges damor per qieu uauc arages M1

(1819) damors pquieu uauc araties R

D'amor per cuy vay erratges damor p cuy uay erratges Sg

(1907) damor qim ten arratges a1

damor qim ten arratges (1911)

5 -

Qu'una domna'm sol amar quna donam sol amar C

(1829, 1922, 52, 56) cuna donam sol amar E

Q'una domna m sol amar (1817, cuna donam sol amar f

19, 46) qar ma donnam sol amar M

C'una domna'm sol amar qar ma donnam sol amar M1

(1877, 89, 1937) car ma donam sol ama R

C'una dona'm sol amar (1907, cuna donam sol amar Sg

1911) cuna donam sol amar a1

quar ma domna'm sol amar (1895)

q'una dona'm sol amar (1964)

6 -

mas camjatz l'es sos coratges mas camjatz les sos coratges C

(1817, 29, 46, 77, 1911, 22, mas camiatz les sos coratges E

37, 52, 56, 64) mais camiat les sos corages f

mas camiatz l'es sos coratges mas camiatz lles sos corages M

(1819, 95) mas camiatz lhes sos corages M1

mas camgat l'e sos coratges mas camiat les sos coratges R

(1907) mas camgat le sos coratges Sg

car camjatz l'es sos coratges mas camjatz les sos coratges a1

(1889)

7 -

per qu'ieu fauc dezacordar per qieu fauc dezacordar C

(1817, 29, 46, 95, 1922, 52, perquieu fauc dezacordar E

56, 64) p quieu fauc desacordar f

per qu'ieu fauc desacordar per qieu uueilh desacordar M

(1819, 77, 89, 1937) per qieu uueilh desacordar M1

per qu'eu fas desacordar (1907) p quieu uuelh desacordar R

per qiem fes desacordar (1911) p ~qu fas desacordar Sg

p qiem fes desacordar a1

8 -

los motz e'ls sos e'ls lenguatges los motz el sos els lenguatges C

(1895, 1907, 22, 52, 56, 64) los motz els sos els lengatges E

los motz e'l sos e'ls lenguatges los mots els sons els lengages f

(1817, 29, 46) los motz els sons els lengages M

los motz els sons els lengatges lo motz M1

(1877, 89, 1937) los motz els sos els lenguaties R

los motz e'ls sos e'ls lengatges los mots els sos elslenguatges Sg

(1819) los motz el son els lengatges a1

los motz el son els lengatges

(1911)

Estrofe Italiana

1-

Ieu sui selh que be non ayo I eu suy selh que be non ayo C

(1817, 29, 46) Eu soi selo que ben non aio E

Ieu so quel que ben non aio io so quelo -q ben nõ ayo f

(1877, 89) Quieu son qel qe ben non aio M

Io son quel que ben non aio E so sel -q b~e nõ aio R

(1922, 52, 56, 64) Eu son sel -q ioy non ayo Sg

Eu soi cel que ben non aio Car anc non pos auer gaujo a1

(1819)

Eu son quel qe ben non aio (1895)

Eu son sel qui joy non ayo (1907)

Car anc non posc auer gaujo (1911)

é son quel que ben non aio (1937)

2 -

ni jamai non l'averò ni enqueras non lauero C

(1922, 37, 52, 56, 64) ni en^qras non lauero E

ni jamais non l'avero ni encora nõ lauero f

(1817, 29,46) ni iamai non lauero M

ni encora non l'averò (1877, 89) ni iamais nõ lauero R

ni enqueras non l'averò (1819) ne un-q non lauero Sg

ni ia mai non l'averò (1907) ni anqier non lauero a1

ni anqier non l'auero

3 -

Per abrilo ni per mayo (1817, per abrilo ni per mayo C

19, 29, 46, 77, 89) per abrilo ni per maio E

ni per abril ni per maio (1895, per aprilo ni per mayo f

1911, 1937) ni per abril ni per maio M

ni per april ni per maio ni per abril ni per mayo R

(1922, 52, 56, 64) ne por abril ne por mayo Sg

ne por abril ne por mayo (1907) ni p abril ni p maio a1

4 -

si per madona non l'ò (1922, Si per mia dona non lo C

52, 56) si per ma dona no lo E

si per mia dona non l'ò (1817, si per mia dõna non lo f

29, 46) si per ma dõna no lo M

si per ma dona non l'ò (1889, si per ma dona nõ lo R

1911) si de madona nom lo Sg

si per ma donna non l'ò (1964) si p ma dona non lo a1

si per madona non l'ò (1937)

si de madona no'm l'ò (1907)

si per ma dona no l'ò (1877)

si per madono no l'ò (1819)

5 -

certo que en so lengaio (1922, e entendo son lenguaio C

52, 56, 64) entenho son lengatio E

certo que en son lenguaio enteinho son lengaio f

(1817, 46) certo qen nisun lengaio M

e s'entendo son lengaio (1877, serto -q ~e sõ l~eguayo R

89) certes en i sol lengatyo Sg

certo que en son lengaio (1819) certo e negun lengatjo a1

certo que en son lenguajo (1829)

certo qe'n nisun lengaio (1895)

certo q'en nisun lengaio (1937)

certes en .j. sol lengatyo (1907)

certo e negun lengatjo (1911)

6 -

sa gran beutà dir non so (1895, sa gran beutat dire nozo C

1922, 37, 52, 56, 64) sa gran beutat dire no so E

sa gran beutat dir non so (1817, sa gran beutat dire nõ so f

19, 29, 46, 77, 89, 1911) sa grã beuta dir no so M

sa gran bontat dir non hò (1907) sa grã beutat dir no so R

sa gran boutat dir no ho Sg

sa grã beutat dir non so a1

7 -

Çhu fresca qe flor de glaio plus fresques que flors deglayo C

(1895, 1922, 52, 64) plus fresca es que flor deglaio E

Chu fresca qe flor de glaio plus fresques que flor de glaio f

(1937, 56) ,chu fresca qe flor de glaio M

Plus fresqu'es que flor de glaio pus fresca -q flor de glayo R

(1819, 77, 89) pus fres-qs -q flor de glayo Sg

Plus fresqu'es que flors de glayo genzer es qe flors de glaio a1

(1817, 46)

Plus fresqu'es que flor de glayo (1829)

Pus fresqu'es que flor de glayo (1907)

genzer es qe flors de glayo (1911)

8 -

per qe no m'en partirò (1922, e ia no men partiro C

37, 52, 56, 64) e ia no me partiro E

per que no m'en partirò (1819, e ia nõ men partiro f

1907) per qe no m~e partiro M

E ja no m'en partirò (1817, p -q no m~e partiro R

29, 46, 77) p que no men partiro Sg

e ia no m'en partirò (1889) p qieu no me partiro a1

per qieu no men partirò (1911)

Estrofe Francesa

1 -

Belle douce dame chiere Belha doussa dama chera C

(1922, 52, 56, 64) Bella dousa dona chera E

Belha, doussa, dama chera belle douse dame chiere f

(1829, 46, 1917) Belle douce dame cheire M

Bele douse, dame chiere Bela dossa mia chera R

(1877, 89) Bela dous dama xera Sg

Bella, doussa dama chera (1819) Bella douza dama chera a1

Bele douce dame chiere (1895)

Bela dous dama xera (1907)

Belle douse dame chiere (1937)

Bella douza dama chera (1911)

2 -

a vos mi doin e m'otroi (1895, a uos merrant e mautroy C

1922, 37, 52, 56, 64) a uos mi do e mautroi E

a vos me don e m'autroy (1817, a uos mi don e mautroi f

29, 46, 1907) a uos mi domt e motroi M

a vos mi don e m'otroi (1877, 89) a uos mi don emautroy R

a vos me rent e m'autroi (1819) auos me don e mautroy Sg

a uos me don e mautroi a uos me don emautrei a1

3 -

je n'avrai mes joi 'entière ia naurai mes ioyentera C

(1895, 1922, 52, 56, 64) ia non aurai ma ioenteira E

ja n'aurai ma joy enteira mais nõ aurai ioientiera f

(1817, 46) ie naurai mes ioentera M

ja n'aurai mais joi 'entière ie naurai mes ioy entieira R

(1877, 89) Ye non auray ioyentiere Sg

ja non aurai joi enteira (1819) la vostr amors mes sobreira a1

ia n'aurai ma joy enteira (1829)

molt mestes mala guerriera (1911)

ja n'avrai mais joi 'entière (1937)

4 -

si je n'ai vos e vos mois (1819, si no uos ai e uos moy C

95, 1922, 37, 52, 56, 64) si no uos ai e uos moi E

si je n'ai vos e vos moy (1817, si ne uos ai et uos moi f

29, 46) si ie nai uos e uos moi M

si ne vos ai e vos moi (1877, 89) si ie nay uos e uos moi R

si ge no'us é e vos moy (1907) si ge nous e e uos moy Sg

car eus am per bona fei (1911) se ieus am e uos no moi a1

5 -

mot estes male guerriere (1922, molt estes mala guerreya C

52, 56, 64) molt estes mala guerreia E

molt estes male guerriere (1877, mot estes mala guerrieere f

89, 1937) mon etes mala guerrere M

molt estes mala guerreya (1817, mot estes mala gueriryey R

29, 46) trop estes mala guarriera Sg

molt estes mala guerreira (1819) molt mestes mala guerriera a1

mout estes male guerriere (1895)

trop estes mala guarriera (1907)

la vostr amors mes sobreira (1911)

6 -

si je muer par bone foi (1877, si ia muer per bon esfors C

89, 95, 1922, 37, 52, 56, 64) si ge muer per bona foi E

si je muer per bona foy (1817, si ge muer per bone foy f

29, 46) se ie muer per bone foi M

si je muer per bona foi (1819) si ie muer p bona foy R

si no'us e'per bona foy (1907) si nous e p bona foy Sg

se ieus am e uos no moi (1911) car eus am per bona foi a1

7 -

mes ja par nulle maniere (1922, eia per nulha manera C

52, 56) eia per nuilla maneira E

mais ja par nule maniere (1877, eia por nulle maniere f

1937) mes ia per nulle maniere M

E ja per nulha maneira (1817, mais ia p nulh manieira R

29, 46) p negun altremaynera Sg

mais ja per nuilla maneira (1819) e ia en nula maneira a1

mais ja per nule maniere (1889)

mes ja par nule maniere (1895)

per negun altre maynera (1907)

e ia en nula maneira (1911)

mes ja per nulle maniere (1964)

8 -

no'm partrai de vostre loi nom partrai de uostre los C

(1877, 89, 1922, 37, 52, 56, 64) nom partrai de uostre loi E

no'm partrai de uostra loi nom partrai de uostre loi f

(1817, 29, 46) nom partrai de uostre loi M

non partirai de vostre loi (1819) nom partrai de uostraloy R

ne'm partrai de vostre loi (1895) no herrey uostra loy Sg

no henrrey vostra loy (1907) nõ partrai de vostre loi a1

non partrai de uostre loi (1911)

Estrofe Gascã

1 -

Dauna, io me rent a bos (1817, Dauna io me tenc a bos C

29, 46, 77) Dauna io me rent a bos E

Dauna, io me tenc à bos (1819) Dauna io mi r~ed a bos f

Dauna, io mi rent a bos (1881, Dome io mi rend a bos M

89, 1922, 37, 52 56, 64) Dauna io mi rent a bos R

Dauna, io mi rend a bos (1895) Dauna -qu mi rent abos Sg

Dauna, qu'eu mi rent a bos Dauna ia me rent abos a1

(1907)

Dauna ia me rent a bos (1911)

2 -

Qar eras m'es bon'e bera (1817, qar eras mes bone bere C

29, 46) -qr eras mes bone bera E

Coar es la mas bon'e bera car eras mes bone bera f

(1877,81, 89) qar sotz la mes bon e bera M

coar sotz la mes bon'e bera coar es la mas bone bera R

(1895, 1922, 52, 64) car es la maiya bon ebera Sg

Qoar es la mes bon'e bera (1819) car es damar bona e bera a1

Car es la maiya bon e bera (1907)

car es damar bona e bera (1911)

Coar sotz la mes bon'ebera (1956)

Coar setz la mes bon'e bera (1937)

3 -

Ancse es guallard'e pros ancse es guallarde pros C

(1817, 29, 46) ancse es gaillarde pros E

C'anc fos, e gaillard'e pros ancse es guailharde pros f

(1877, 81, 89) qanc fos e gailhard e pros M

q'anc hos, e gaillard'e pros co anc fos e garde pros R

1922, 52) deumon e gayarde pros Sg

C'anc fos, e gaillard'e pros molt foras gailliarde pros a1

(1937, 64)

Anc sees, gaillard'e pros (1819)

q'anc hos, e gailhard'e pros (1895)

Deu mon, e gayard'e pros (1907)

molt foras gaillarde pros (1911)

Q'anc bos, e gaillard'e pros (1956)

4 -

Ab que no m fossetz tan fera ab que nom fossetz tan fera C

(1817, 29, 46, 77, 81, 89, 1937) ab que nom fossetz tan fera E

ab que no'm hossetz tan hera ab -q nõ fossatz tan fera f

(1895, 1922, 56, 64) ab qe nõ fosses tan fera M

Ab que no m fosetz tan fera ab-q nõz fossetz tá fera R

(1819) sol -q nom hossetz tan heyra Sg

Sol que no'm hossetz tan heyra sami non fossatz tan fera a1

(1907)

sami non fossatz tan fera (1911)

ab que no'm hossetz tan fera (1952)

5 -

Mout abetz beras faissons (1817, moutz abetz beras faissos C

29, 46) mout abetz beras faisos E

Mout avetz beras faissons (1819) motz abetz beras faissos f

Mout abetz beras haisos (1877, moch aues beras fasos M

81, 89, 95, 1937) mot abetz beras haisos R

Trop abetz beras hayssos (1907) trop abetz beras hayssos Sg

molt auetz bellas faissons (1911) molt auetz bellas faissos a1

mout abetz beras haissos (1922,

52, 56, 64)

6 -

Ab coror fresqu'e novera (1817, ab color fresque nouera C

46) ab color fresca nouela E

Ab coror fresca novera (1819) ab color fresque noera f

Ab coror fresq'e novera (1829) e color fresce nauera M

Ab color fresqu'e noera (1877, e coror fres-q noera R

81, 89, 1937) e color hresca noera Sg

e color hresqu'e noera (1922, e color fresc e naueira a1

52, 56)

e color hresc'e nabera (1895)

E color hresca noera (1907)

e color fresc e naueira (1911)

e color hresc'e noera (1964)

7 -

Bos m'abetz, e s'ieu bs aguos uos mabetz esseps a gues C

(1817, 29, 46) bos mabetz esieubs a gos E

Bos m'abetz, e sibs agos (1877, bos mabetz esibs a gos f

81, 89, 1937) bostre so e sis a gos M

boste son, e si'bs agos (1922, bostes soy e sibs agues R

52, 56, 64) bostre son e sius agues Sg

Bostes sui, e sibs ag os (1819) boster son et sil cazos a1

boste so, e si'bs agos (1895)

Bostre son, e si'us agués (1907)

boster son et sil cazos (1911)

8 -

No m sofranhera fiera (1817, 29, nom sofranhera fiera C

46) nom sofraisera fiera E

Nom sofraisera hiera (1877, 81, nom sofraissera hiera f

89, 1937) nom destregora fiera M

no'm destrengora hiera (1922, nõz sofranguera fiera R

52, 56, 64) nom sobrãcera çihera Sg

No m sofraisera fiera (1819) nostrenc ora si uera a1

no'm sofraisera hiera (1895)

No'm sobrancera çihera (1907)

nostrenc ora si uera (1911)

Estrofe Galego-Portuguesa

1 -

Mas tan temo vostro pleito Mas tant temo uostro plaito C

(1817, 19, 29, 46, 77, 89, 97, Mas tan teme uostre pleito E

1904, 37) mais tãt temo uostre pleto f

Mas tan temo vostre pleito Mas tan temo uostro pletto M

(1861, 78) Car temo uostre pleyto R

Mas tan temo vostro preito Tanto temo uostre -pito Sg

(1895, 1922, 52, 56, 64) Qe tan ten el vostre pleito a1

Tanto temo vostre preito (1907)

Qe tan ten el vostre pleito (1911)

Mas tan temo vostro pleyto (1957)

Ca tan tem'o vosso preito (1973)

2 -

Todo'n soy escarmentado todon soy escarmentado C

(1817, 46, 1957) todon soi escarmentado E

Todo'n soi escarmentado (1819, don soi escaramentado f

61, 77, 78, 89, 97, 1904) tadem son estarmentado M

todo'n son escarmentado (1895, to dõ soy escarmentado R

1922, 52, 56, 64) todo son escarmentado Sg

Tod'n sui escarmentado (1829) don soi escarmentado a1

Todo son escarmentado (1907)

don tot son escarmentado (1911)

todo soi escarmentado (1937)

tod'eu son escarmentado (1973)

3 -

Por vos ai pena e maltreyto per uos ai penae maltreyto C

(1817, 29, 46) por uos ai pene maltreito E

Por vos ai pena e maltreito per uos ai pene maltreito f

(1861, 78) per uos ei pana maltreito M

Por vos ai pen'e maltreito p uos ay pene maltraito R

(1877, 1957) por uos he pene maltreyto Sg

por vos ei pen'e maltreito (1895, p vos el ben el mal traito a1

1904, 22, 37, 52, 56, 64, 73)

Par vos ai pen'e maltreito (1819)

per vos ai pen'e maltreito (1889)

Per vos hei pena, e maltreito (1897)

Por vos é pen'e mal treyto (1907)

per vos el ben el mal traito (1911)

4 -

E mei corpo lazerado (1817, 19, e mei corpo lazerado C

29, 46, 61, 78) e mei corpo letzerado E

E mio corpo lazerado (1877, 89, e mie corpo lazerado f

1937) el meo corpo lazerado M

e meo corpo lazerado (1895, e mõ corpo latzerado R

1922, 52, 56, 57, 64) e mi corpo lasserado Sg

é meu corpo lazerado (1897, e mon corpo lei serrado a1

1904, 1973)

E mi corpo lasserado (1907)

e mon corpo lei serrado

5 -

La nueyt, quan soy en mey leito la nueyt quan soy en mey leito C

(1817, 29, 46) la nueit quan soi en meu leito E

La not cant jatz en mio leito la neit cãt soi en mie leito f

(1877, 89) la not qa ias en mo leito M

la noit, can jaç'en meu leito la nueg can iatz e mo leito R

1922, 56) la nuyt con iac en mi leyto Sg

La nueit quan jatz en mei leito la noit can iatz e men leito a1

(1819)

La nueit quan soi en mei leito (1861)

la nueit cuan soi en mei leito (1878)

la noit quant iaz en mo leito (1895)

La nueit quan soi (oder jaç') en meu leito (1897)

A noite quando jazc en meu leito (1904)

La nuyt con jac en mi leyto (1907)

la noit can iatz e meu leito (1911)

La noit, cant jatz en mio leito (1937)

la noit, can jaç'en mei leito (1952)

la nueit can soy en meu leito (1957)

la noit, can jatz en meu leito (1964)

De noit'eu jaç'en meu leito (1973)

6 -

Soi mochas ves resperado soy mochas ues resperado C

(1817, 29, 46, 61, 78) soi mochas uetz reparado E

Soi mochas vetz resperado soi mochas ues resperado `f

(1877, 89) so motas ues esp...nado M

so mochas vetz resperado (1922, sos mochas fes espessado R

52, 56, 64) en ay mantes uetz penado Sg

Soi mochas vetz respetado (1819) ei mainta vezes pensado a1

so mochas vetz resperado (1895)

Sou mucha vez despertado (1897)

sou muita vez espertado (1904)

En ay mantes vetz penado (1907)

ei manta vezes pensado (1911)

Soi moitas vesez penado (1937)

soy mochas vezes penado (1957)

son muitas vezes penado (1973)

7 -

Por vos, cre, e non profeito pro uos cre e non proferto C

(1817, 29, 46) por uos ero non perferto E

Per vos, cre, e non profeito pro uos era nõ profeito f

(1861, 78) e qar noca ma porfeto M

e car nonca m'aprofeito (1922, e car nõ clamey profeito R

52, 56, 64) e can noy trob nuyl profeyto Sg

E car nonca m'a profeito (1895, e car re nomi profeito a1

1937, 1957)

Por vos ero non porfeito (1819)

Por vos era non porfeito (1877)

per vos era non porfeito (1889)

por vos, creio, non por feito (1904)

Per vos, crede-o sou tolheito (?) (1897)

E can no y trob nuyl profeyto (1907)

e car re no mi profeito (1911)

e ca nunca mi-a proveito (1973)

8 -

Falhit soy en mey cuidado falhit soy en mey cuidado C

(1817, 29, 46) faillitz sui e mei cuidado E

Faillit soi en mei cuidado failhir soi en mõ cuidado f

(1819, 78) falit ei e mon cuidado M

Falhit soi en mei cuydado falhit ay a mõ caidado R

(1861, 97) suy falido al cuydado Sg

Faillit soi en mon cuidado faillitz son e mon cuidado a1

(1877, 89)

falid'ei en meu cuidado (1922,

52, 56)

falid'ei en mo cuidado (1895)

falir ei en meu cuidado (1904)

Suy falido al cuydado (1907)

faillitz son e mon cuidado (1911)

Faillit ei en mon cuidado (1937)

falhit soy en mon cuidado (1957)

falid'ei en mon cuidado (1964)

falid'é en meu cuidado (1973)

9 -

Mais que falhir non cuydeyo mais que falhir non cuydeyo C

(1817. 29, 46) mais que faillir no cuideio E

Mais que faillir non cuide io mes -q failhir non cudeio f

(1877, 89) mais qe failhir nõ cuideio M

mais qe faillir non cuidé io pus que falir no cuydey Sg

(1895, 1937) p qieu no men partirei a1

Mais que falhir non cuidé yo (1826)

Mas que falhir non cuydeyo (1861)

mas que fallir non cuydeio (1878)

Pus que falir no cuydey (1907)

per qieu no men partirei (1911)

Estrofe Plurilíngüe

1 -

Belhs Cavaliers, tant es cars Belhs caualiers tant es cars C

(1817, 29, 46) bels caualiers tãt es grãs f

Belhs Cavaliers, tant es car Bels cauayers tãt es cars R

(1922, 52, 56, 64) Bels caualrs tan tenc car Sg

Bels Cavaliers, tant es cars

(1819, 95, 1937)

Bels Cavaliers, tant es ars (1877, 89)

Bels Cavalers, tant tenc car (1907)

2 -

Lo vostr'onratz senhoratges lo uostronraty senhoratges C

(1817, 29, 46, 77, 89, 95, la uostromrat seinhorage f

1922,37, 52, 56, 64) uostre ricx senhoraties R

Lo vostr'onrat senhoratges (1819) uostre honrat seyõratges Sg

Vostre honrat seynoratges (1907)

3 -

Que quada jorno m'esglayo que quada iorno mesglayo C

(1817, 29, 46) -q niento nõ mesglayo f

que cada iorno m'esglaio (1877, -q cada io-r nom esglaio R

89, 95) -q cascun iorno mesglayo Sg

que cada jorno m'esglaio (1922,

37, 52, 56, 64)

Que quada jorno m'esglaio (1819)

Que cascun jorno m'esglayo (1907)

4 -

Oy! me, lasso! que faro (1817, ho me lasso que faro C

29, 46, 1907) hoi me lasso -q fairo f

Oimè! (oi me) lasso, que farò? oy me lasso -q faro R

(1819, 77, 89, 95, 1937, 56) oy me lasso -q faro Sg

oi me lasso! que farò (1922, 52, 64)

5 -

Si seli que g'ey plus chera si seli que gey plus chera C

(1817, 29, 46) si sele -q iai plus chiere f

si cele que j'ai plus chiere se seley-q geyra pus chieira R

(1877, 89, 95, 1922, 37, 52, 56) si celuy -q ie pus xera Sg

Si celi que j'ai plus chera (1819)

Si celuy que j'é pus xera (1907)

si sele que j'ai plus chiere (1964)

6 -

Me tua, no sai por qoy? mi tua no sai per qoy C

(1817, 46) mi tue ne sai por quoi f

me tue, ne sai por quoi? (1877, me tua no say p coy R

89, 95, 1922, 37, 52, 56, 64) metria nom se per coy Sg

Me tua ne sai por quoi (1819)

Me tua, no say por qoy? (1829)

Me tria, no'm sé per coy? (1907)

7 -

Ma dauna, fe que dey bos ma dauna fe que dey bos C

(1817, 29, 46) dauna e -q deig a bos f

ma dauna, he que dei bos ma dauna fe -q dey bos R

(1877, 89, 95, 1937) dauna e que dey abos Sg

ma dauna, he que dey bos (1922, 52, 56, 64)

Ma dauna, fe que dei bos (1819)

Dauna, e que dey a bos (1907)

8 -

Ni peu cap sanhta Qiutera ni peu cap sanhta quitera C

(1817, 29, 46) ni peu cap santa quitera f

Ni peu cap santa Quitera (1819, ni pel cap santa Kiteyra R

77, 89, 95, 1922, 37, 52, 56, 64) no peu cap sta kyteyra Sg

No peu cap santa Kyteyra! (1907)

9 -

Mon corasso m'avetz trayto mon corasso mauetz trayto C

(1817, 29, 46) mon corasso maues traito f

Mon corasso m'avetz traito mon corasso mabetz trayto R

(1819, 77, 89) mon corasso mauetz treyto Sg

Mon corassó m'avetz treito (1878,

95, 97, 1922, 37, 52, 56, 64)

Mon corassó m'avetz trayto (1861)

Meu coraçon m'avedes treito (1904)

Mon corassó m'avetz treyto (1907)

10 -

E mout gen faulan furtado e mout gen faulan furdado C

(1817, 19, 29, 46, 61, 78, 97) e mõ ient faulan fortado f

e mot gen favlan furtado (1877, e mot gen faulã forn furtado R

89, 95, 1922, 37, 52, 56, 64) e molt gent faulan furtado Sg

mui docemente furtado (1904)

E molt gent faulan furtado (1907)











Capítulo 6

Mitos medievais e realidade histórica na vida de Raimbaut de Vaqueiras anterior ao Descordo Plurilíngüe

As evidências históricas da vida de Raimbaut de Vaqueiras até 1203

Uma reavaliação da vida do poeta antes da produção do Descordo Plurilíngüe se faz necessária não só para o entendimento deste como limite entre as duas vidas de Raimbaut, a leiga e a religiosa militante, como também para o estabelecimento mais preciso, em termos cronológicos, de sua produção.

Instrumental bibliográfico

A melhor história de conjunto da vida de nosso poeta continua sendo a de Linskill.(135) Klara Fassbinder fizera anteriormente uma extensa abordagem biográfica, deixando pontos controvertidos.(136) Schultz-Gora, ao editar a Epístola Épica de Raimbaut de Vaqueiras assentou fatos, de forma permanente, com base em suas próprias pesquisas e nas anteriores.(137) Giosuè Carducci, na mesma época, publicou os resultados de suas investigações, muito importantes.(138) Nelas, colhe-se rica bibliografia sobre Raimbaut e os Aleramici.

Somos de opinião que a vida de Raimbaut de Vaqueiras ainda comporta muita investigação. Por isso, vamos nos socorrer dos esforços de nossos eminentes antecessores e, à luz das fontes da história medieval, dos manuais e estudos relativos à época, dos repertórios cronológicos e do testemunho dos trovadores, presente em tantas composições, tentaremos definir com mais clareza a vida do poeta. A finalidade desse novo esforço é permitir, ao fim desse livro, situar historicamente o Descordo Plurilíngüe e confirmar ou alterar não só a lista de poemas, aceita e editada por Linskill, como também as circunstâncias históricas até aqui acatadas pela crítica.

Ao lado dos trabalhos mais recentes e consagrados da história medieval, não hesitaremos em recorrer, com todas as cautelas possíveis, à Art de vérifier les dates(139) e ao Trésor de la chronologie.(140) Segundo Louis Halphen, trata-se o primeiro de:

Vieux livre, très dépassé, dont les auteurs se sont proposé de donner un résumé chronologique de toutes les histoires. On le consulte encore, faute de mieux, pour la chronologie des maisons féodales de la France médiévale; mais, même en cette matière, les dates qu'il fournit ne peuvent, bien entendu, être acceptées que sous bénéfice d'inventaire.(141)

Quanto ao Trésor, assim se manifesta aquele notável medievalista:

L'ouvrage est moins poussé que celui des Bénédictins et n'est le plus souvent qu'un simple recueil de listes chronologiques empruntées à d'autres livres, eux aussi en partie périmée aujourd'hui. Ces listes marquent néansmoins, dans bien des cas, un progrès notable sur celles de l'Art de vérifier les dates.(142)

Recentemente, surgiu nova obra de conjunto sobre a cronologia das casas feudais francesas.(143) Por outro lado, a importância histórica das referências presentes nas obras dos trovadores foi ressaltada por Martin de Riquer(144) e Marti Aurell i Cardona.(145) As fontes da história política, cultural e literária do século XII podem ser reavaliadas, então, com base nos conceitos da obra de Raimbaut de Vaqueiras - especialmente a Epístola Épica e os sirventeses - e permitir um conhecimento melhor da vida do poeta.

Os dados conhecidos e geralmente aceitos da vida do poeta

Segundo a cronologia fixada metodicamente por Linskill,(146) Raimbaut de Vaqueiras nasceu entre 1155 e 1160 em Vaqueiras, perto de Orange, que pertencia a Guilherme IV, senhor de (ou des) Baux, príncipe de Orange.

Entre 1179 e 1182 fez sua primeira visita a Monferrato, norte da Itália, onde prestou serviço de armas a Bonifácio que, em 1183, assumiu o governo do marquesado, do qual Casale era uma espécie de capital. As atividades do poeta, entre 1182 e 1188/89 são incertas porque o marquês, entre 1181 e 1183, parece ter estado na Grécia, dando assistência política e militar a seu irmão Rainier, que se encontrava em Salonika; sobre os anos posteriores, o poeta silencia.

Em 1189, Raimbaut estava na Provença mas, no ano seguinte, reaparece na Itália, em uma segunda visita, que durou quatro anos, e na corte do marquês Obizzo II Malaspina. A presença em Provença coincidira com a retomada dos conflitos entre Raymond V, conde de Toulouse, e Alfonso II, rei de Aragão, defendendo Raimbaut a causa dos Baux.

Participou da campanha da Sicilia, em 1194, ao lado de Bonifacio, mas, em 1195 e 1196, estava de novo na Provença. Em inícios de 1197, esteve o poeta, pela terceira vez, em Monferrato, onde permaneceu até 1202, quando Bonifacio partiu para o Oriente.

Em 1203, estava na Provença e em 1204 na Grécia, de onde não retornou e onde terminou sua vida com uma "final tragedy".(147)

Se inseridas essas datas em períodos, têm-se os seguintes:

1 - de 1155/60 a 1179: Raimbaut em Provença, em lugar desconhecido, mas que a Vida, sem o apoio de Linskill, identifica como a corte de Guilherme IV de Baux;

2 - de 1179 a 1182: Raimbaut em Monferrato;

3 - de 1183 a 1188/89: Raimbaut em lugar incerto;

4 - em 1188/1189: Raimbaut em Provença;

5 - de 1190 a 1194: Raimbaut em Monferrato e adjacências;

6 - de 1195 a 1196: Raimbaut em Provença, no condado de Forcalquier;

7 - de 1197 a 1202: Raimbaut em Monferrato e adjacências;

8 - de 1202 a 1203 ou só em 1203: Raimbaut em Marselha, na Provença;

9 - de 1204 em diante: Raimbaut na Grécia.

O cotejo desses períodos leva às seguintes constatações:

a) São certos, na vida adulta de Raimbaut, 13 anos em Monferrato e lugares de interesse do Marquês Bonifacio e 3 anos, correspondentes a 3 períodos, na Provença.

b) São incertos 5 anos (de 1183 a 1188/89) após um período em Monferrato.

Avaliação da cronologia de Linskill

Como, anteriormente a 1179, nada se conhece dos movimentos de Raimbaut, a não ser o que é apresentado na Vida, que foi escrita por um italiano, já entrado o século XIII em sua terceira década, acreditamos que a estrutura básica da vida do poeta, estabelecida por Linskill, não é correta. Ou seja: não fez Raimbaut "visitas"(148) à Itália; a Provença é que foi visitada em três ocasiões.

Por razões que buscaremos estabelecer, Raimbaut de Vaqueiras era um provençal estabelecido desde a mocidade em Monferrato, terra de sua adoção, e um poeta assumido que sentiu a necessidade, a partir de certo momento, de visitar, de vez em quando, sua terra natal (a Provença, em termos genéricos, e, provavelmente, a região em que realmente nasceu) para associar-se à vida típica que levavam os trovadores contemporâneos e que consistia em produzir sirventeses, os grandes panfletos políticos da época, e poesias amorosas.

Colocada inicialmente a vida do poeta sob esse ângulo, fica mais fácil compreender certas aparentes incoerências de sua vida. Por exemplo: se era simplesmente um poeta provençal que costumava visitar a Itália, por que começou a produzir tão tarde, em 1188/89, quando já teria entre 30 e 34 anos de idade? Como começaria a produzir justamente com uma composição de alta técnica, como é o Garlambey, sem nenhuma produção menor anterior? Como explicar uma produção lírica redigida, em grande maioria, em Monferrato? Se era um poeta baseado no Midi, por que os grandes temas políticos, como os conflitos entre Alfonso II de Aragão e Raymond V de Toulouse ou os feitos de Ricardo Coração de Leão, só aparecem em sua obra como ecos distantes ou fatos em projeção, nunca fatos em si mesmos, enquanto os temas de Monferrato ocupam seu presente, seu passado e seu futuro?

Vamos tentar responder a essas questões, a partir da definição da ideologia feudal de Raimbaut como transparece de trechos de sua obra.

Ideologia feudal de Raimbaut de Vaqueiras

Ponto de partida

A Epístola Épica, de nosso trovador, deve ser o ponto de referência obrigatório para toda reavaliação de sua biografia anterior ao Descordo, inclusive quanto ao aspecto existencial. Sua abertura é, por isso mesmo, expressiva e reveladora:

Valen marques, senher de Monferrat
a Dieu grazisc quar vos a tant onrat
que mais avetz conques e mes e dat
c'om ses corona de la crestiantat;
(149)

La Curne de Sainte Palaye, apresentando a Epístola Épica, retrata o poeta como um homem que se gaba dos serviços prestados ao Marquês e solicita novas recompensas. Destaca a existência de elogios a um e ao outro, todos saídos, de maneira cândida, da boca de Raimbaut e revestidos de imagens novas. Assim interpreta os versos em sua tradução:

Vaillant marquis, seigneur de Monferrat
je remercie Dieu dont vous avez reçu tant d'honneur.
Car nul chrétien, portant couronne,
n'a plus conquis, plus dépensé, plus donné que vous
.(150)

Martín de Riquer, por sua vez, apresentou a seguinte tradução:

Valiente marqués, senor de Monferrato,
doy gracias a Dios porque os ha honrado tanto
que habéis conquistado, gastado y dado
más que cualquier hombre sin corona de la cristiandad;
(151)

Linskill, na mesma linha, assim traduziu:

Valiant Marquis, Lord of Montferrat,
I thank God that He has granted you such honour
that you have conquered and dispensed and bestowed
more than any uncrowned man in Christendom;
(152)

Em português, poderíamos dizer os versos da maneira seguinte:

Valente Marquês e Senhor de Monferrato,
Agradeço a Deus, que tanto vos tem honrado,
Pois ninguém não coroado, da cristandade,
Mais que vós tem vencido, despendido e dado;

Estes quatro versos de Raimbaut podem ser tidos como ponto de referência básico para a avaliação do sentido de sua vida, antes da produção do Descordo Plurilíngüe, por que nos dizem muito de sua postura existencial: valorização da coragem pessoal indômita, dom divino dessa coragem, supremacia entre os pares, Igreja e ações cavaleirescas integradas, saldo positivo nos resultados objetivos destas ações, munificência e, finalmente, esbanjamento de riquezas como qualidade e não defeito.

Tal era o retrato do perfeito cavaleiro para Raimbaut depois de mais de vinte anos a serviço de um. Examinemos com detalhe cada um desses aspectos.

A coragem indômita

Bertran de Born, o trovador-guerreiro da corte de Henrique II e de seu filho Ricardo Coração de Leão, esteve também atento à vida dos Aleramici, de que Bonifácio de Monferrato se tornou um dos expoentes, pois celebrou, em 1190, Conrado de Monferrato, seu irmão.(153) Devido à fama crescente de Bertran, iniciada em 1181, a presença de Raimbaut em Provença, durante os últimos anos dessa década, pode estar relacionada com uma atração do poeta do castelo de Hautefort sobre ele, bem como de Ricardo Coração de Leão, já então a maior personalidade da nova geração de nobres que atuavam no sul da França.

As idéias de Raimbaut sobre o que devia ser o mais distinto cavaleiro compunham, de modo geral, a teoria que os trovadores tinham a respeito. Raimbaut, porém, e Bertran de Born davam especial destaque à coragem indomável como principal virtude guerreira, procurando, eles mesmos, destacar-se neste setor.

Sob esse aspecto, Bertran de Born é um dos poucos que parecem exercer influência sobre Raimbaut em seus primeiros tempos de poeta. Este fato não deve ser desprezado na fixação das composições de nosso poeta em 1189 ou anos anteriores. Trata-se, basicamente, de influência sobre a mentalidade guerreira de Raimbaut. Deixa ele transparecer isso em sua obra, como passamos a ver.

Na canção XII, posterior a 1197,(154) nosso trovador, imediatamente antes de dizer à bem-amada que, por não ter nascido em berço de ouro, não pode rivalizar com sua nobreza, diz, imitando Bertran, que não pode desistir de amá-la:

..... empero no.m recre
de vos amar, que vassals, puois derreia,
deu poigner tant tro fassa colp honrat,
per q'ieus enquis pois m'aguetz conseil dat
.(155)

..... mas não desisto de te amar
pois o cavaleiro, apenas saído das linhas,
deve dar nas esporas até golpear com honra;
por isso procurei teu amor depois de teu conselho.

Bertran de Born assim dissera:

que nuls hom non es re prezatz,
Tro qu'a maintz colps pres e donatz.
(156)

que nenhum homem é apreciado em nada,
até que tenha dado e recebido muitos golpes.

A canção VIII, composta, segundo Lecoy, no verão ou outono de 1196,(157) é uma composição bem na linha ideológica de Bertran de Born pois, nela, Raimbaut põe a atividade guerreira acima do próprio amor a uma dama, dizendo que se manterá a serviço de quem precisar para se destacar nas ações com a lança e a espada, entre reis e imperadores, em Monferrato ou em Forcalquier, à maneira de um mercenário.

Parece certo este tipo de influência de Bertran de Born sobre Raimbaut de Vaqueiras porque, em seus aspectos mais gerais, ela extravasa tais limites existenciais para cobrir a própria técnica versificatória do poeta, como se comprova no poema IX, um partimen que se apresenta com o mesmo esquema metrico e as mesmas rimas da composição XXVI de Bertran de Born,(158) segundo observação judiciosa de Linskill.(159) Também o uso de poitevinismos (fey e mey) no Garlambey, versos 6 e 8, depõe, dentro desse contexto, em favor da influência assinalada e não de uma dívida para com o primeiro trovador, Guilherme IX, de Poitiers, como quis Appel.(160)

Para completar o quadro da valorização das virtudes guerreiras dentro das afinidades ideológicas entre o poeta de Monferrato e o do castelo de Hautefort, lembremo-nos de que Linskill considera que a hesitação de Raimbaut em tomar a cruz, tal como ele expressa no verso 74 de sua canção de Cruzada Ara pot hom conoisser e proar (XIX), repete igual manifestação de Bertran de Born em composição de 1189. Isso é possível, mas a nós nos parece que tal hesitação não é provocada pelo fato em si de haver uma cruzada e de estar o protetor de Raimbaut como chefe dela, mas pela profunda reavaliação existencial que o poeta fazia diante do retrospecto de sua vida de combatente, que ele confunde com a de seu protetor, e da desilusão amorosa com a dama nobre que pretendia e que dele cada vez mais se distanciava.(161)

Todos esses fatos e respectivos indícios depõem em favor de ter estado Raimbaut de Vaqueiras sob a ação da ideologia guerreira de Bertran de Born antes de 1189. Foi a valorização contínua e extremada da coragem indômita, como parte dessa ideologia, que o fez crer, por muitos anos, na própria capacidade de conquistar o que quisesse a partir de sua atividade militar, inclusive uma mulher nobre de berço.

Dom divino da coragem indômita

O momento mais apropriado que teve Raimbaut para exprimir sua crença no dom divino da coragem foi aquele em que soube que seu protetor, Bonifácio de Monferrato, havia sido escolhido para chefe da Quarta Cruzada, em substituição ao jovem Thibaut, conde de Champagne, falecido repentinamente aos 23 anos. Escreveu, então, uma canção de cruzada, cuja primeira estrofe define com perfeição seu entendimento das razões mais profundas dessa escolha:

Ara pot hom conoisser e proar
que de bos faitz rend Dieus bon guizerdon,
c'al pro marques n'a faich esmend'e don
q'el fai son pretz sobre.ls meillors pojar
tant qe.il crozat de Frans' e de Campaigna
l'an quist a Dieu per lo meillor de totz
e per cobrar lo sepulcr' e la crotz
on Jhesus fon, q'el vol en sa compaigna
l'onrat marques, et a.il Dieus dat poder
de bons vassals e de terr' e d'aver
e de ric cor per far miels so que.il taigna.
(162)

Para ele, as qualidades que Bonifácio exibira, ao longo de sua vida, foi um dom de Deus e, por isso mesmo, tinha de ser tido como o melhor entre seus pares, o único capaz de recuperar para Deus os símbolos da fé que tinham sido subtraídos pelos infiéis. A prova dessa condição de eleito de Deus está, para Raimbaut, no fato de os cruzados da França e da Champagne, ao orarem a Deus para que lhes inspirasse um nome, tiveram a revelação de que este era o do marquês de Monferrato. A inspiração da escolha indica a Raimbaut que as qualidades de seu protetor são um dom divino. Desfila, então o poeta o complemento ocasional desse dom permanente: grandes e corajosos vassalos, entre os quais teria o próprio poeta de se considerar incluído, patrimônio, dinheiro e coração magnânimo para levar a cabo a empresa.

É interessante notar que o poeta, um dos bons vassalos do Marquês, sente-se obrigado a engajar-se na Cruzada chefiada por seu protetor, justamente por ser seu vassalo, o que implica estarem afetadas as qualidades de todos, Raimbaut e os outros bons vassalos, também pelo dom divino que pertence originalmente ao Marquês:

Nostre Senher nos mand' e.ns ditz a totz
qu'anem cobrar lo sepulcr' e la crotz;
(163)

Mas Raimbaut hesita, apesar de saber que o prêmio da participação, indo à Terra Santa e matando os infiéis, será o Paraíso:

e qui volra esser de sa companha
mueira per lui, si vol vius remaner
em paradis, e fassa som poder
de passar mar e d'aucir la gen canha.
(164)

Hesita quando, na estrofe final, dirige-se à sua inspiradora, a Bels Cavalliers:

Bels cavalliers, per cui fatz sos e motz,
non sai si.m lais per vos o.m leu la crotz,
ni sai cum an ni sai comen remaigna ...
(165)

Esses versos revelam que, por ocasião da eleição de Bonifácio para chefe da Quarta Cruzada, Raimbaut de Vaqueiras estava atormentado por três problemas: continuar com sua solidariedade espiritual relativamente ao marquês de Monferrato, encarar a Cruzada em função da atitude para com ele da mulher amada e, em qualquer hipótese, em que condições permanecer na Europa ou situar-se no Oriente.

A primeira conclusão a que se chega quando se coteja o conteúdo desses versos com os do Descordo Plurilíngüe é a de que a composição da Canção de Cruzada é anterior à do Descordo pois, neste, não nutre o poeta mais nenhuma ilusão sobre a possibilidade de seu amor vir a ser objetivamente correspondido pela Bels Cavaliers. Linskill coloca a composição depois do Descordo Plurilíngüe, do descordo Engles, un novel descort e do Carros. O conteúdo desses poemas depõe em favor de outra ordem:

Truan, mala guerra (Carros) - XVIII
Ara pot hom conoisser e proar (Canção de Cruzada) - XIX
Aras cant vei verdeiar (Descordo Plurilíngüe) - XVI
Engles, un novel descort - XVII

Na primeira, Raimbaut está no auge da ilusão da conquista do coração de Beatriz, filha de Bonifácio e inspiradora do poeta como a Bels Cavaliers.

Na segunda, como vimos, o poeta está em plena dúvida sobre a correspondência desse amor que sente.

Na terceira, a desilusão é total, daí a mente conturbada de quem compõe um descordo em cinco línguas.

Na quarta, a certeza resignada do amor não correspondido, porém com manutenção da lealdade e amizade a seu pai, o Marquês, e com a disposição da permanência nas lides guerreiras.

Estavam postas, em conseqüência, as variáveis necessárias a uma decisão sobre a mudança de vida sugerida na Canção de Cruzada.

Qual o significado disso tudo para a compreensão da evolução do conceito de "coragem indômita" e de "dom divino dessa coragem" na mente de Raimbaut?

Em primeiro lugar, não vemos porque não identificar a Bels Cavaliers com Beatriz, filha de Bonifácio de Monferrato.

Acreditamos que o poeta, após a sagração de Bonifácio como chefe da Quarta Cruzada, tomou conhecimento da decisão de Beatriz de não corresponder a seu amor. Diante do fato, que significava desmoronar a pretensão do poeta de associar a condição de cavaleiro à de homem casado com mulher nobre (o que seria, para ele, a ascensão social completa), Raimbaut canalizou suas convicções de perfeito cavaleiro do plano da vida mundana para o da vida religiosa. E isso foi coerente com a sua visão de um tipo de vida, que sempre exaltava. Afinal, o "mal de amor" sempre existiu, não sendo crível que Raimbaut tivesse inventado, apenas no plano literário, uma paixão, quando, em sua época, a realidade do dia-a-dia da maioria dos trovadores era a luta pelo amor concreto.

Supremacia entre os pares

Na ideologia feudal de Raimbaut de Vaqueiras, o conceito de coragem indãmita se aplicava a todos os homens que tinham o privilégio, como ele, de servir a um senhor de qualidades excepcionais, inclusive por tê-la sempre em grau superior à de seus vassalos. Todos, neste contexto, tinham de ter essa coragem, mas só o senhor a tinha como dom divino. Esta era sua crença sincera.

Como decorrência, apresentava-se a um vassalo, como Raimbaut de Vaqueiras, a questão de situar seu senhor relativamente a outros também possuidores do dom divino da coragem indômita. Era aí que a estrutura hierarquizada do feudalismo do território hoje ocupado pela França se mostrava mais claramente.

De fato, se todos os grandes senhores eram dotados do dom divino da coragem, alguém tinha de se destacar mais do que os outros para justificar a ideologia, que era de todos. Com a consciência difusa disso, os grandes senhores passavam a viver em grande movimentação, sempre em competição com os demais, do que resultavam infindáveis lutas a pretexto de qualquer coisa. Para ter sucesso nesta competição de alto nível, necessitavam de qualidades adicionais, nem sempre concomitantes: bravura, sorte, ferocidade e estratégia nas guerras, mas não necessariamente magnanimidade ou piedade. Não havia outra ética nessas lutas senão a da vitória. Se havia inimigos pela frente, o dever era destruí-los, mesmo que entre eles estivessem mulheres e crianças. Na derrota, os adversários não tinham mais bens, daí os saques e a destruição em nome da glória do senhor feudal e do orgulho de seus vassalos.

Era preciso, pois, que um grande senhor, aos olhos de seus súditos, fosse superior a seus pares.

O imigrante Raimbaut saiu de Monferrato, após 1183, para conhecer de perto o mundo fervilhante de emoções de que ouvia falar e que estava do outro lado dos Alpes.

Um dos indícios mais fortes dessa primeira viagem é o próprio poema Garlambey, que Linskill apresenta como primeira composição do poeta. O conhecimento, que este demonstra, em seu conjunto, da personalidade ou da situação social relativa de cada um dos personagens apresentados pressupõe uma já longa familiaridade e, mesmo, convivência com a política vigente no sul da França, onde pontificavam as desavenças entre os plantagenetas e os capetos e entre as casas de Aragão e de Toulouse, isso sem contar a presença efetiva ou prestigiosa do Imperador, que era suserano da casa de Monferrato, protetora de Raimbaut. Hierarquicamente, o primeiro plano era ocupado pelas relações entre plantagenetas e capetos ou de cada um deles com o Imperador. Mais abaixo vinha o relacionamento de Aragão e Provença com Toulouse. Todo o resto era decorrência destes dois planos e Raimbaut de Vaqueiras devia seguir naturalmente, na execução de seu projeto pessoal de vida, as tendências de seu protetor.

Onde, em Provença, ficou Raimbaut exatamente, não se sabe, mas, como veremos, certamente viajou para a terra em que nascera, no condado de Forcalquier. Lá travou conhecimento com a obra de trovadores de seu tempo e com as ações dos nobres e cavaleiros.

Quando Raimbaut chegou, Henri, o jovem rei, irmão de Ricardo I, o "Coração de Leão", já certamente morrera. O pai deles, Henrique II, designa Ricardo para seu sucessor, mas lhe retira a Aquitânia, o que faz o filho entrar em luta novamente contra ele, no que é ajudado pelo rei Felipe Augusto, da França. A guerra dura até a morte de Henrique II em 1189. Mas não é só contra o pai que Ricardo combate. Volta-se, igualmente, contra os barões da Aquitânia, contra Bertran de Born e contra Raymond V de Toulouse, um homem que vinha há anos, por causa de suas guerras contra o rei Alfonso II, de Aragão, perturbando a vida das famílias senhoriais a que Raimbaut se ligava, a dos Baux e a do conde de Forcalquier.(166)

A simpatia que Raimbaut dedica a Alfonso II, de Aragão, pode ser deduzida de seu poema II, Leus sonetz, quando se refere ao jovem conde, que não pode ser outro senão o filho de Alfonso II:

Si.l contetz
de l'orguoill
qe.l coms li vai mostran
non fai meillor deman,
ben sapchatz q'ieu non sui
dels sieus, anz lo refui,
c'uoimais es bels e grans
e per semblans
als enemics salvatges;
e.l poders e.l paratges
taing c'a bon pretz s'engaill,
e gerrei e baraill
com joves estrunatz.
(167)

Se estes versos estivessem nesta quarta estrofe do poema apenas para compor a invenção do poeta, não teriam maior sentido para a compreensão de sua ideologia. Ao contrário, precedem eles os quatro versos finais (Mals e braus ... cal li platz.) que, como assinalamos acima, indicam a ideologia da coragem indômita que Raimbaut de Vaqueiras compartilha com Bertran de Born.

O contexto em que se insere, pois, a referência ao filho do rei de Aragão, ao lado de alusões indiretas ao mesmo rei, presentes na obra de Vaqueiras, demonstra que ele estava com Alfonso II e, coerentemente, contra o conde Raymond V de Toulouse, inimigo, porém senhor, dos Baux e do conde de Forcalquier, amigos de Raimbaut. Demonstra, sobretudo, a simpatia e admiração relativamente ao aliado mais poderoso de Alfonso II, o jovem e já famoso Ricardo Coração de Leão.

Em 1184, a aliança entre Sancho, conde de Provença e irmão de Alfonso II, com os genoveses - de acordo, sem dúvida, com Raymond V de Toulouse e contra toda a política então praticada pelo rei de Aragão - constituiu para Alfonso uma autêntica traição, o que o levou a substituir Sancho pelo filho no ano seguinte. Entre as conseqüências do episódio esteve a celebração de um acordo, em Najac de Rouergue, perto de Toulouse, entre Alfonso II e Ricardo I para preparar uma ação decisiva contra Raymond V de Toulouse. Do lado de Alfonso ficou Peire Vidal, com quem Raimbaut provavelmente já tinha relacionamento pessoal e que esteve, mais tarde, em Monferrato durante todo o ano de 1195.(168)

Em 1186, o duque Ricardo Coração de Leão irrompe no Toulousain, devasta todo o seu interior e se torna senhor de vários castelos. Raymond responde, no ano seguinte, com a prisão de inúmeros comerciantes da Guienne que operavam em seus domínios, ao mesmo tempo em que Geoffroy de Lusignan, um dos que lhe davam apoio, mata um dos mais íntimos amigos de Ricardo. Este, que nos anos anteriores, em sua luta contínua contra os senhores rebeldes da Aquitânia, dera mostras de grande ferocidade nos combates, devastando campos e destruindo castelos, volta a lutar com o furor conhecido, logo depois da campanha vitoriosa que empreendeu contra La Rochelle. Vinga o amigo, invadindo o Quercy e tomando, com o auxílio de brabançons e outros mercenários e ladrões, nada menos que dezessete castelos toulousanos.(169)

É neste momento, em nossa opinião, que Ricardo Coração de Leão, louvado agora por Bertran de Born, aliado de Alfonso II e inimigo de Raymond V de Toulouse, torna-se, para Raimbaut, o modelo ideal do cavaleiro, aquele que persegue a glória a qualquer preço, fazendo com que o apelido com que era conhecido, Inglês, se tornasse para o poeta sinônimo de coragem, intrepidez e primazia guerreira. Ricardo é visto por Raimbaut como o primeiro entre seus pares.

E não está sozinho nesta visão. Por essa mesma ocasião, o autor dos adendos à Crônica de Ricardo de Poitiers, escreve o seguinte retrato do futuro rei inglês, que Augustin Thierry colheu nos Scriptores rerum gallicarum et francicarum, tomo XII, p. 420:

Malheur aux traîtres qui sont en Aquitaine! car le jour du châtiment est proche. La Rochelle redoute ce jour; elle double ses murs et ses fossés; elle se fait ceindre de tous côtés par la mer, et le bruit de ce grand travail va jusqu'au delà des monts. Fuyez devant Richard, duc d'Aquitaine, vous qui habitez ce rivage; car il renversera les glorieux, il brisera les chars et ceux qui les montent; il anéantira, depuis le plus grand jusqu'au plus petit, tous ceux qui lui refuseront l'entrée de la Saintonge!(170)

Na terceira parte de sua Epístola Épica, Raimbaut de Vaqueiras, quando fala dos fatos da juventude de Bonifácio de Monferrato e da sua própria, assinala que o primeiro impulso de um jovem de linhagem é decidir se quer manter os grandes méritos, as grandes ações, como características de sua vida, ou não se importar com elas:

car prim punh es de jove ric triar
si vol gran pretz mantener o laissar,
(171)

Para ele, Bonifácio não só manteve esses méritos, que marcavam sua família, como os expandiu ao longo de sua vida. A mesma idéia é encontrada em Bertran de Born:

Quar joves rics cui non platz messios
Cortz ni guerra no pot en pretz mantar.
(172)

É interessante notar que essa idéia de escolha, de opção de vida, posta em meio a recordações da Epístola Épica, corresponde a pensamento de Raimbaut tal como é apresentado em seu segundo poema, de 1189, classificado por Linskill como "enigmático".(173) Sua estrofe 4 assim termina:

Mals e braus es doptatz,
e cel deseretatz
q'es humils ni vol patz
er prenda cal li platz.
(174)

O conceito raimbautiano de cavaleiro está implícito nessa escolha entre a valentia, a dureza e o espírito guerreiro e o conformismo, pelo nobre, com sua situação de berço. Trata-se, na verdade, de maior valorização do cavaleiro audaz, intrépido, que, assim, vai ombrear-se com o nobre nos anos seguintes. Ou, como assinalou J. Flori, em trabalho recente e luminoso:

Les chevaliers étaient-ils inclus dans cette catégorie? Étaient-ils perçus, au XIIe siècle, comme faisant partie de cette "noblesse"? La réponse est évidente, si l'on pose comme principe de base qu'à ce moment la noblesse, fondée sur le sang et le linage, n'existait pas encore et que la chevalerie tout entière constituait un ensemble cohérent, une noblesse de fait qui se muera, au XIIIe, en noblesse de droit sur les critères de l'adoubement d'abord, puis de la naissance désormais mieux contrôlée. On voit au contraire que, si tous les membres de l'aristocratie sont bien en effet nommés chevaliers (comme l'on nomme aussi miles, de plus en plus souvent dans les chartes et dans les textes latins les membres de l'aristocratie, des châtelains jusqu'aux princes), cette désignation n'implique pas l'assimilation de la chevalerie à la noblesse. Les nobles se disent chevaliers. L'inverse n'est pas vrai.(175)

Tal situação, na perspectiva de Flori, indica o grande favor em que era tido, então, o termo cavaleiro e, em conseqüência, a atividade guerreira que ele cobre. Raimbaut de Vaqueiras, em nossa opinião, foi daqueles que acreditaram que tornar-se cavaleiro audaz, cavaleiro de coragem indômita, significava ascender à nobreza e conquistar a glória. Enganou-se e, quando se conscientizou disso, após verificar a total impossibilidade de vir a ter sua Bels cavaliers (a filha de Bonifácio), mudou de vida. O Descordo Plurilíngüe anuncia essa mudança, que ocorre logo após.

Magnificência das cortes meridionais

Raimbaut de Vaqueiras, ao iniciar sua assim chamada Epístola Épica, endereçada ao Marquês de Monferrato, dá uma demonstração sucinta, como vimos, de seu ideal de senhor de corte nobre - magnifico, liberal e protetor - com os versos, já citados, e os que se lhes seguem:

que mais avetz conques, mes e dat"

c'om ses corona de la crestiantat;

já que nenhum cristão, não coroado,

mais que vós tem vencido, gasto e dado;

e laus en Dieu quar tan m'a enansat
que bon senhor ai molt en vos trobat,
que m'avetz gent noyrit et adobat,
e fait gran be e de bas aut pojat,
e de nien fait cavalier prezat,
grazit en cort e per donas lauzat."

louvo a Deus, que tanto me tem alçado
por ter em vós um bom senhor achado,
que com nobre amparo me tem criado,
prestado grã bem, do nada elevado
e feito cavaleiro admirado,
na corte ilustre e das damas louvado.

A partir daí, mostra o quanto foi fiel ao marquês, correspondendo tanto ao ambiente encontrado em sua corte quanto às excelsas qualidades pessoais do nobre cavaleiro Bonifácio:

Et ieu vos ai servit de voluntat,
de bona fe, de bon cor e de grat,
que mon poder vos n'ai ben tot mostrat;
et ai ab vos fait maint cortes barat,
qu'en maint bel luec ay ab vos dompneyat;
et ai ab vos per guerra cavalguat,
et ab armas perdut e guazanhat,
e pres maynt colp er ab vos n'ai donat,
e gen fugit et ab vos encaussat,
vensen l'encaus, et en fugen tornat,
e sui cazutz et ai enderrocat.
Et ai en ga e sus en pon jostat,
e part barreiras ab vos esperonat,
et envazit barbacan'e fossat,
e sus en guarda et en aut luec anat,
vensen grans coytas; et ai vos ajudat
a conquerre emperi e regnat
et estas terras et yllas e duguat,
e reys a penre, princeps e principat,
et a venser maint cavalier armat.

Servido vos tenho, em tanto cuidado
boa fé, bom coração e bom grado,
que de pronto o poder tenho mostrado:
convosco muito tenho cortejado
e em mui belos lugares doneado.
Convosco tenho nas guerras montado,
pelas armas perdido e conquistado,
muitos golpes aparado e dado,
fugido com prudência e afugentado,
vencendo o encalço, da fuga tornado.
Muito tenho caído e derrubado.
em vaus ou em pontes tenho justado
e convosco além barreira esporeado,
tomado barbacanas e fossados
e por guardas e elevações andado
com grande aflição. Vos tenho ajudado
a conquistar impérios e reinados,
e estas terras, e vilas e o ducado,

A prender reis, príncipes e principados

e vencer muito cavaleiro armado.(176)




Ricardo Coração de Leão, os trovadores e Raimbaut

Raimbaut de Vaqueiras demonstra, em dois de seus poemas, a grande impressão que lhe causavam a magnificência das cortes medievais e o saldo positivo nos resultados objetivos das ações cavaleirescas.

No primeiro caso está o poema conhecido como Garlambey e datado por Linskill como de 1188-89. Nele descreve um torneio entre os mais destacados cavaleiros de Provença.

O segundo caso, é o poema Truan, mala guerra (Guerra infame e cruel), em que celebra sua amada Beatriz, a Bels Cavaliers, como heroína de outro torneio, agora fingido,, por ser travado por diversas damas do norte da Itália. Nesta composição, de magnífica invenção, não falta nem mesmo a figura de um Engles, a lembrar - ao lado das ações, de verdadeiro cavaleiro, de sua amada - sua admiração por alguém que era a origem desse senhal.

A ideologia da coragem indômita está presente em ambos, embora entre eles haja uma distância de, pelo menos, treze anos.

Vejamos, com outros detalhes, a projeção da figura de Ricardo I no sul da França e na penúltima década do século XII.

Raimbaut de Vaqueiras, conforme as deduções de Schultz-Gora,(177) teria nascido entre 1155 e 1160. Isso o torna personagem da mesma geração de Bonifácio de Monferrato, seu protetor, cuja época de nascimento é posta por Brader(178) entre 1153 e 1154, de Ricardo Coração de Leão (1157), de Alfonso II, Conde de Barcelona e Rei de Aragão (1154, segundo Martin de Riquer(179)), de Guilherme de Forcalquier (por volta de 1150, segundo Tournadre,(180) e, muito provavelmente, de Guilherme de Baux, Hugues de Baux e Alberto de Malaspina, todos personagens importantes da segunda metade do séc. XII e amigos ou conhecidos de nosso poeta.

As figuras literárias usadas por Raimbaut e as evidências históricas contidas em sua obra levam-nos a acreditar que, desses personagens, Ricardo Coração de Leão e Bonifácio de Monferrato são os mais significativos para a compreensão da ideologia de Raimbaut, e, em consequência, para a reavaliação de sua obra relativamente ao momento de produção do Descordo Plurilíngue. Consideramos o senhal Bels Cavaliers, presente no Descordo, como semanticamente dependente de Engles e este diretamente relacionado com a figura de Ricardo Coração de Leão.

A figura de Ricardo I tornou-se, desde os primeiros momentos do aparecimento do rei inglês no cenário político da época, especialmente sedutora para todos quantos, naquele momento da história do feudalismo, desempenhavam o papel de prosélitos dentro do esquema de poder dos príncipes e barões. Tal papel era particular e deliberadamente atribuído por estes aos trovadores e jograis, principalmente quando aliavam talento à capacidade de louvar.

A carreira de Ricardo Coração de Leão desenvolveu-se, antes de 1189 de modo a imbricar para todos os setores que contribuiam para a solidificação da ideologia feudal. De temperamento arrebatado mas, principalmente determinado, Ricardo, ainda na adolescência, soube aliar-se aos irmãos que se rebelavam contra o pai. Com a mesma rapidez com que a eles se aliou, afastou-se para, como Conde de Poitiers tornar-se arbitrário senhor dos barões do sul da França, bem como implacável senhor das guerras. Dele tornaram-se famosas as guerras contra o conde Raymond de Toulouse, grande inimigo, declarado ou disfarçado, da família dos Baux, com a qual Raimbaut de Vaqueiras se relacionava. Como consequência de sua personalidade e intensa atividade guerreira, Ricardo Coração de Leão tornou-se, na penúltima década do séc. XII, uma espécie de ponto de referência no jogo de poder dos grandes governantes: Henrique II, da Inglaterra, Felipe Augusto, da França, Frederico Barba-roxa, Imperador alemão, e Alfonso II de Aragão e Raymond V de Toulouse.

De temperamento imprevisível e atrabiliário, Ricardo exercia forte atração sobre os trovadores provençais, desde Bertran de Born até Peire Vidal, passando por Arnaut Daniel, Bertran d'Alamanon, Folquet de Marseille, Guiraut de Borneil, Guiraut de Calanson, o Dauphin d'Auvergne, o monge de Montaudon e Gaucelm Faidit.(181)

Raimbaut de Vaqueiras não menciona diretamente a Ricardo Coração de Leão, mas este conhecido personagem histórico está presente no senhal Engles, usado pelo poeta.

De fato, a fama de Ricardo era total na década de 80. Em meio as suas lutas contra o próprio pai, contra os barões da Aquitânia e contra o conde Toulouse, Ricardo era uma força motriz em todo o sul da França. Quando Raimbaut, no partimen Senher N'aymar, chauzes de tres baros troca coblas com Adémar de Poitiers, repetindo um relacionamento evidenciado pelo sirventês Leus sonetz, composto em 1189, não está fazendo outra coisa senão confirmar a presença inspiradora de Ricardo por trás do conflito havido entre o conde Raimundo V de Toulouse e Alfonso II de Aragão, aliado de Ricardo. Adémar havia se afastado dos Baux e se aproximado do conde Raymond, que lhe conferira os direitos sobre o condado de Diois em troca de homenagem e lealdade. A posição de Raimbaut de Vaqueiras, na linha das simpatias para com os Baux, era a favor de Alfonso II de Aragão, inimigo do conde Raymond, isso porque a vassalagem a Alfonso era, para todos, muito mais distante - quase igual à vassalagem ao Imperador. Com Raymond, a situação seria sempre diversa.

O senhal "Engles", símbolo da ideologia feudal de Raimbaut Vaqueiras

As palavras, como assinalam Ogden e Richards,(182) nada "significam" por si mesmas. Só quando um pensador as usa, enfatizam os dois lingüistas ingleses, é que elas representam alguma coisa, têm "significado". Deste modo, apenas quando há um pensamento, ou "referência", as palavras, como símbolos, dirigem e organizam, registram e comunicam.(183) Daí surge que a forma simbólica varia com a variação da referência:

Além de simbolizar uma referência, as nossas palavras também são sinais de emoções, atitudes, humores, índole, interesse ou estado de espírito em que as referências ocorrem.(184)

Este enquadramento psicológico da palavra, enquanto símbolo, ajuda-nos na compreensão do uso do senhal pelos trovadores. Trata-se de uma ação lingüística contextual, no sentido de que, para a existência dele, senhal, concorrem as emoções, atitudes e estado de espírito do trovador. No caso de Raimbaut, em particular, compreende-se que, a partir do conhecimento de um contexto externo provocador do "eu" não ainda conscientizado, o poeta passa a ser capaz de distinguir fora de si mesmo aquilo que se harmoniza com o seu "eu" então sentido contextualmente. Quando foi à Provença, em 1183/1184, Raimbaut se encontrou e iniciou verdadeiramente sua caminhada existencial. A descoberta do apelido "Engles" o fez encontrar-se ideologicamente. Por isso, não tardou a projetá-lo existencialmente aplicando-o, já agora como senhal pleno de sentido, àquele, que, socialmente, era sua referência para a ascensão social.

Devido a essa situação, é perfeitamente explicável que o termo "Engles" tenha sido primeiro aplicado por Raimbaut a Guillaume de Baux no poema Tuich me pregon, Engles, qe vos don saut, sem dúvida de sua autoria. Aí, era apenas o emprego, provavelmente irônico, de um apelido dado a um homem famoso por sua coragem, Ricardo I. Retornando a Monferrato, o poeta passa a usá-lo verdadeiramente como um senhal, pois, para ele, Bonifácio de Monferrato encarnava todas as virtudes que eram atribuídas a Ricardo Coração de Leão.

Vale a pena transcrever aqui um testemunho do epíteto então aplicado a Ricardo:

"Namque et relatum mihi, Anglum (Ricardum scilicet) isto die, arreptâ Rastâ impetum in nostros dedisse, universam aciem ab extrema dextra ad extremam sinistram percurrendo, neque quemquam adversus ipsum processisse. Iratus igitur ab oppugnatione se avertit sultanus, etc."(185)

O apelido por que era conhecido Ricardo em seu tempo era esse: Inglês. Raimbaut usou-o para aplicar, com ironia, a Guilherme de Baux. Depois, com plena consciência das qualidades que via e admirava no rei dos ingleses, utilizou-o como a melhor maneira de honrar seu protetor, Bonifácio de Monferrato.

O condado de Forcalquier entre os séculos XII e XIII

Guillaume II, filho mais velho de Bertrand I e de Jausserande, foi o último conde de Forcalquier.(186)

Começou a reinar por volta de 1150, sob a regência de sua mãe. Manosque, neste ano, foi doada aos Hospitalários. Ao longo da segunda metade do século XII e de inícios do XIII, os hospitalários foram uma presença constante na região. Adolescente, insurgiu-se contra Barbaroxa, que sustentava o antipapa Victor contra Alexandre III, e criou-lhe inimigos. Os imperadores já vinham possuindo, não sem resistência, todas as terras desde o Durance até o mar e desde os Alpes até o Ródano, conforme divisão feita com Alfonse, conde de Toulouse. Para acertar as resistências, enfeudou o condado de Provença e o condado de Forcalquier a Raymond Bérenger III, sobrinho de Raymond Bérenger II, conde de Barcelona. O condado vinha dos antecessores de Raymond Bérenger II, mas o Imperador para tornar mais fácil o ato, numa época em que as mulheres eram moeda de troca, deu sua sobrinha Richilde como esposa a esse novo conde de Provença, Raymond Bérenger III. Para arrematar, ordenou a Guilherme de Forcalquier que prestasse homenagem ao novo conde como se fosse a ele, fazendo-lhe pagamento anual em marcos de ouro e um pagamento imediato de outras quantias ao próprio Imperador , à Imperatriz e à corte imperial. Obrigava-o, ainda, a aceitar o antipapa. Concedeu também as terras de Baux ao novo conde de Provença e marcou o dia 18 de agosto de 1162 para virem à sua presença, em Turim, tanto Guillaume II de Forcalquier quanto Hugues II de Baux a fim de prestarem homenagem a ele e ao conde. Guillaume não compareceu. O conde de Provença não reagiu logo à recusa, mas em 1165 aliou-se ao conde de Toulouse contra o conde de Forcalquier, prometendo casar sua filha única, Douce, com o filho mais velho do conde de Toulouse. O dote dela seriam os condados de Forcalquier e Melgueil e a parte da cidade de Avignon que pertencia a Guillaume de Forcalquier. Puseram-se em guerra contra este, mas logo desistiram diante da impraticabilidade de entrar em seus domínios, que tinha defesas naturais muito importantes, principalmente perto de Forcalquier. Anos mais tarde, em 1174, resolveu Guillaume reclamar pessoalmente ao Imperador a reinvestidura plena no condado de Forcalquier com a revogação das alienações feitas de suas propriedades. O Imperador concordou inteiramente com o pedido e fez dele seu vassalo direto.

Assim, não tendo Guillaume prestado homenagem ao Imperador em 1162, tornou-se vassalo imediato do conde de Provença. Recusando homenagem a este, perdeu de direito seu condado, mas não de fato. Vindo perante o Imperador, foi reconhecido, em 21 de dezembro de 1174, como senhor de suas terras, com o restabelecimento "in plenitudine honoris" de seus direitos.

Depois desses fatos, o condado de Provença passou às mãos dos príncipes aragoneses da Casa de Barcelona, na pessoa de Alfonso I, que passou a intitular-se rei de Aragão, conde de Barcelona e marquês de Provença, e ainda bateu o conde de Toulouse em 1176. Neste ano, todos estavam submetidos a ele, inclusive os senhores de Baux, menos o conde de Forcalquier, fortalecido com sua investidura recentemente feita pelo Imperador. Alfonso I, em 1177, vendo Guillaume sem aliados, resolveu enviar-lhe dois dos principais senhores de sua corte, Hugues de Baux e Raymond de Villeneuve, reclamando a homenagem sob o argumento da enfeudação feita pelo Imperador a Raymond Bérenger III. Guillaume recusou. Alfonso I chamou-o, então, a Aix, para prestar pessoalmente a homenagem. Guillaume mandou seu arauto, que disse a Alfonso ter o Imperador reconhecido a precipitação do ato de enfeudação de 1162 e restabelecido seus direitos em 1174

Alfonso, julgando-se possuidor do direito da força, iniciou a guerra com numeroso exército e, atravessando o Durance, apoderou-se de Pertuis e várias outras localidades até vir a pôr cerco em Forcalquier, capital do condado. Exortou de novo Guillaume a fazer a paz, enviando-lhe, ainda, Hugues de Baux e Raymond de Villeneuve. Guillaume, diante da força, resolveu negociar por intermédio de amigos mútuos, como os arcebispos de Arles, Aix e Embrun, os bispos de Fréjus, Sisteron, Apt e Marseille, os senhores de Sault, Hugues II de Baux e muitos outros barões. O acordo consistiu em Guilherme jurar fé e lealdade a Alfonso II e instar seus amigos e aliados a não se insurgirem contra este. Alfonso se comprometeu a não castigar os que tinham ficado ao lado de Guilherme. Tratou-se uma entrevista entre os dois, que se realizou no castelo de Sault em setembro de 1178. Concordaram, então, que a homenagem seria feita por procuração. Guillaume cumpriu o acordado e seu procurador, no castelo de Sault, de propriedade de Loup d'Agout, e diante de testemunhas como Hugues de Baux e Raymond, seu filho, declarou Guilherme homme lige e vassalo de Alfonso.

Em resumo, quando, em 1162, estava obrigado à homenagem, não a prestou; em 1178, quando, por direito, não estava obrigado a prestá-la, prestou sob a ameaça da força.

Em 1181, Alfonso I deu o condado de Provença a seu irmão Sancho em detrimento do direito de seu filho Alfonso. O ato foi desfeito em 1185 por ocasião de tratado de paz que fez com o conde de Toulouse, após arbitragem de Guillaume de Sabran e Raymond d'Agout. Ao mesmo tempo decidiram socorrer-se mutuamente, menos contra os reis da França e de Leão e contra o conde de Forcalquier. De fato, após a paz de Sault, de 1178, o conde de Forcalquier não se submeteu, na prática, a Alfonso, do que resultaram escaramuças, sem se entrar em guerra aberta. Essa resistência de Guillaume, advinda da noção de seu direito, o fez aproximar-se do conde de Toulouse, sempre um inimigo potencial de Alfonso I, rei de Aragão. Acabaram os condes de Toulouse e de Forcalquier por celebrar uma aliança, em 1191, de renúncia a pretensões às terras de um e outro. O tratado foi celebrado diante de Raymond d'Agout, bispo de Cavaillon, e de Giraud Amic.

Diante da situação de fato, constatada ao longo dos anos por Alfonso II, da não submissão de Guilherme de Forcalquier, procurou aquele uma nova maneira de incorporar o condado a seus domínios. Propôs casar seu filho, o conde de Provença Alfonso com a neta de Guilherme, Garsende de Sabran, filha de sua filha única Garsende e de Reinier de Sabran. Os barões de Guilherme o instaram a aceitar a proposta, de modo que foi celebrado um contrato entre eles, em julho de 1193, sendo Garsende menor. Sobrevindo violação do mesmo por qualquer das partes um conselho de arbitragem de seis personalidades, entre as quais Raymond d'Agout, resolveria as questões decorrentes. Pelo tratado, celebrado em Aix, Guillaume dava o condado de Forcalquier a Garsende como dote, reservando-se, porém o usufruto do mesmo enquanto vivo e excluindo do acordo a parte baixa do mesmo, que ficaria com o irmão e a irmã de Garsende. Para ele mesmo, separou várias terras acima de Sisteron. Alfonso I prometeu, de sua parte, que seu filho manteria para sempre Garsende como esposa e que ele restituiria a Guilherme três castelos em caso de não implementação do tratado. O casamento foi celebrado em inícios de 1196 e, em abril, morria Alfonso I.

Com a morte de seu pai, o jovem conde de Provença resolveu exigir do avô de sua mulher o preito de homenagem, o que foi recusado por Guilherme sob o mesmo argumento levantado contra Alfonso I, ou seja, o de sua investidura como conde de Forcalquier pelo Imperador Frederico Barbaroxa. Alfonso II inicia a guerra, tal como o fizera antes seu pai, e toma Sisteron. Guilherme é defendido por seus barões e aliados, entre os quais Raymond de Baux, que assalta o território de Aix. Dão-lhe apoio, também, o conde de Toulouse, os viscondes de Marselha, os príncipes de Orange e os outros senhores de Baux. A guerra prossegue além de 1202, unidos Guilherme II de Forcalquier, Guillaume e Hugues de Baux, Arnaut Flotte, Bertrand de Villemus e muitos outros. Após junho de 1202, sobrevém uma trégua, durante a qual as partes envolvidas, juram tomar sob sua proteção e guarda todas as igrejas de suas terras, inclusive com favorecimento aos cavaleiros do Templo e do Hospital de São João de Jerusalém. É nesse contexto que se insere um documento de doação de terras, às margens do Vachères, aos hospitalários.

Todos esses episódios explicam a preferência de Raimbaut de Vaqueiras por ficar em Forcalquier por ocasião de suas idas a Provença. O espírito independente, corajoso e, politicamente, s]abio de Guilherme II de Forcalquier, senhor das terras em que, provavelmente, nascera o poeta, transmitia a este a segurança de que necessitava para pôr-se em contato com diferentes cortes, como a dos Baux, em Marselha, e a do próprio Guilherme, em Forcalquier. Nelas, tomava conhecimento do grande mundo de Provença, sem correr o risco de estar em meio a algum fogo cruzado, como era o caso de Bertran de Born. Suas qualidades pessoais e o certo prestígio que já teria, desde jovem, por participar de aventuras e campanhas ao lado do senhor de Monferrato, tornavam-no um "estrangeiro" em condições de receber influências ideológicas e de deixá-las transparecer em seus poemas.

O condado de Forcalquier deve ser tido como um dos dois polos principais da vida de Raimbaut de Vaqueiras, sendo o outro Monferrato. Dos nomes geográficos franceses que o poeta apresenta em sua obra como lugares em que efetivamente esteve, dois referem-se a cidades desse condado (Foncalquier, poema VII, 37; Gapenses, poema V, 39) e um a Marselha (Babo, o castelo Babon em Marselha, Epístola Épica, II, 30). Os outros são apenas indicadores das terras dos nobres provençais, sem nenhuma conotação de presença física do poeta nos mesmos. São meras referências. Orange e Montélimar (Aurenga e Monteil), indicados em conjunto em X, 34 da edição de Linskill, apresentam-se como referência genérica à Provença, como terra natal, opinião de Zingarelli, de que partilhamos, seguindo Linskill. Quando já estava na idade madura, um terceiro polo se afirmou na vida do Raimbaut: Marselha. Vejamos.

O triângulo Forcalquier, Marselha, Monferrato na vida de Raimbaut de Vaqueiras

Os fatos históricos, há pouco apresentados e colhidos nos livros de Tournadre(187) e J. Roman,(188) aliados a certos detalhes da vida de Raimbaut de Vaqueiras, colhidos diretamente em sua obra e não em fontes indiretas, podem servir para esclarecer pontos ainda bem obscuros da mesma e ajudar à fixação dos aspectos históricos do Descordo Plurilíngüe. Observemos alguns dos mais importantes.

A menção de Raimbaut de Vaqueiras a Folquet de Marseille, no poema VI, linha 20 (numeração da edição de Linskil), indica uma tendência do poeta à desilusão amorosa e à religiosidade, e, ao mesmo tempo, revela influência passiva relativamente a aspectos da vida e da produção do trovador de Marselha. Este se tornou bispo de Toulouse, em 1205, depois de ter levado existência mundana, nas cortes de Barral, visconde de Marselha, e de Raymond V, conde de Toulouse. Sua vida religiosa começou na condição de abade cisterciense de Toronet, em 1198.

Em estudo sobre os poemas de amor de Raimbaut de Vaqueiras, Lecoy afirma que Bonifacio - e, com ele, Raimbaut - não retorna a Monferrato senão pelo fim do verão de 1195.(189) Foi Raimbaut, logo depois, a Forcalquier, certamente para estar presente ao casamento entre a neta do conde Guilherme II de Forcalquier e Alfonso, filho de Alfonso I de Aragão, conde de Barcelona e de Provença. Seu nome, como vimos, era Garsende de Sabran. Futura poetisa, tornou-se também protetora de trovadores e regente de Provença, Estas bodas, preparadas durante a menoridade de Garsende pelo tratado, já citado, de julho de 1193,(190) foram celebradas provavelmente em princípios de 1196, poucos meses antes da morte de Alfonso II, ocorrida em abril desse ano.(191) Constituíram-se elas no acontecimento político mais importante da época, pois selavam uma aliança entre Guillaume II de Forcalquier e Alfonso, iniciada com a submissão forçada daquele, em 1178, após dura guerra, pelo tratado de paz de Sault, castelo do poderoso senhor Loup d'Agout.(192)

Todas as quatro canções, estudadas por Lecoy, têm um tema comum: desapontamento e raiva do poeta por seu malsucedido empenho em conquistar uma certa dama, do que resulta anunciar sua intenção de renunciar ao amor e passar a dedicar-se apenas à vida militar. Um exame das evidências internas do poema demonstra, segundo Lecoy, que:

1 - nos de no V e VI, o poeta ameaça deixar a Provença e, mais particularmente, a região de Gap e ir para Tortona caso sua dama não volte a enternecer-se por ele; no poema V o poeta diz que está residindo em Gap, uma das cidades do condado de Forcalquier, mencionado em VIII. Uma alusão contida em VI mostra que o poema não foi composto depois do fim de 1195.

2 - no poema VII, há certa hesitação na decisão de se dedicar só às armas, mas em VIII a decisão está firmemente tomada. Neste poema, Raimbaut expressa a intenção de engajar-se na carreira de mercenário em Forcalquier mesmo, aludindo a seu status de cavaleiro e ao ano que passou fazendo a corte a uma dama que não lhe dava resposta.(193)

Com base nesses dados, Lecoy conclui que os poemas foram compostos em Forcalquier entre fins de 1195 e fins de 1196. A dama permanece não identificada e não há um senhal para ela. O texto deixa claro que não pode ser a dama de Tortona, como acreditaram Schultz-Gora (194) e Fassbinder.(195)

Foi nessa época, também, que Raimbaut trocou o partimen IX com o trovador Perdigon e com Adémar ou Aymar II de Poitiers, conde de Valentinois e Diois (1189-1230), reprovando a este por ter abandonado seus aliados, os senhores dos Baux. Aymar fora feito conde de Diois, em 1189, pelo conde de Toulouse, Raymond V, que vinha se aproximando de Guilherme de Forcalquier. As relações do poeta com os Baux, como se depreende do partimen, existia dentro de um contexto que não era o das propriedades desses senhores. Não menciona ele os Baux nas quatro cantigas que compôs durante essa visita. O fato enfatiza o erro da Vida em dizer que o poeta tinha relações estreitas com Guilherme de Baux, Príncipe de Orange. As relações existiam não com Guilherme, que Raimbaut certamente conhecia, mas com seu irmão Hugues, visconde de Marselha em 1193, que fazia parte da corte de Guilherme II de Forcalquier. Os senhores de Baux e os de Sault, como vimos, tinham relações importantes com Guilherme II desde que este assumiu o condado de Forcalquier e não foram poucas as vezes que atuaram como intermediários entre ele e o rei de Aragão.

Finalmente, certas alusões em VI e VIII parecem apontar para um relacionamento de Raimbaut com Folquet de Marseille nesse período. No poema VI, linhas 19-20,(196) há um eco das linhas 32-33 da Canção de Cruzada XIX de Folquet de Marseille como concluiu Stronski.(197) Vejamos:

Folquet de Marseille:

Hueimais no.y conosc razo

(De hoje em diante não conheço razão)

Cantiga de Cruzada, decorrente do desastre militar de Afonso VIII de Castela em Alarcos a 19 de julho de 1195, linhas 30-33:

Pes quex de cor s'ieu dic vertat o no
e pueys aura d'anar mellor talen;
e ja no
.i gart paubreira nuls hom pros:
sol que comens, que Dieus es piatos
.

(Pense cada um de coração se digo ou não verdade
e logo haverá de ter o melhor desejo de partir
[partir para a Cruzada])

Raimbaut de Vaqueiras, poema VI, linhas 19-20:

No puesc saber per que.m sia destregz

(Não consigo saber porque estou atormentado):

et er m'a far lo conort del bertau,
cum selh que ditz en chantan en Folquetz
qu'a Tortona, lai part Aleixandrina,
queyra merce, mas say no truep refuy;

(e eu terei de fazer uso do consolo dos pobres,
tal como Sir Folquet diz em sua canção,
pois eu podia procurar esse consolo em Tortona
ou mais além de Alessandria,
já que aqui não acho refúgio;
)

O poema VI de Raimbaut, também por essa razão, não deve ter sido escrito depois de 1195. Folquet, em sua canção, convida pobres e ricos a tomar a cruz e Raimbaut parece sensibilizar-se com o apelo, adaptando-o à situação amorosa sua, no grupo da "renúncia" (V, VI, VII, VIII), em que termina dizendo que vai dedicar-se somente às armas. Também a linha 44 do poema VIII parece ser uma reminiscência de Folquet, XII, estrofe 5, composto circa 1191.(198)

Diante desses dados e em nossa opinião, um triângulo geográfico parece preencher a existência de Raimbaut de Vaqueiras entre 1195 e o início da Quarta Cruzada, em 1204. Em um vértice, Monferrato; em outro, Forcalquier; no terceiro, Marselha. O primeiro parece indicar a terra de adoção; o segundo, a terra natal; o terceiro, o destino. Marselha era o principal porto de embarque para o Oriente. Demonstremos esta hipótese.

Não há indicação, na obra de Raimbaut de Vaqueiras, de nenhuma relação concreta com Guilherme de Baux, príncipe de Orange de 1182 até a sua morte em 1218, e senhor do castelo de Vaqueiras, no Vaucluse. A alegação de ter Guilherme armado cavaleiro a Raimbaut de Vaqueiras carece de fundamento pois já apontara Fassbinder(199) ser muito improvável que o poeta não tivesse mencionado isso em sua Epístola Épica ao Marquês de Monferrato, se já fosse nobre quando chegou à sua corte. Ao contrário, na Epístola, ele insiste em dizer de sua origem humilde, a fim de sensibilizar a magnanimidade de seu protetor, Bonifácio, no sentido de lhe conceder o grau de cavaleiro. É mais provável, portanto, como assinala Linskill,(200) que a afirmativa do biógrafo da Vida, inclusive no contexto do recebimento de Raimbaut na corte dos Baux pela esposa de Guilherme IV, longe de implicar uma honra conferida ao poeta, é uma forma imaginativa de transferir ao pai a dignidade conferida ao filho, uma transferência sugerida talvez pelo título en que precede Peirols nas coblas referidas no poema XXVII e trocadas entre Raimbaut e um certo Engles, que os mss. DH identificam como Guilherme des Baux.

Como também assinala Linskill,(201) a maneira de a Vida referir-se às faculdades mentais do pai de Raimbaut (louco) não é aceita por R, que a omite, e por Sg, que diz justamente o contrário: estiers era el bos e savis.

Além disso, seguindo igualmente Linskill,(202) o uso do mesmo senhal - no caso, Engles - para dois personagens diferentes (Bonifacio de Monferrato e Guilherme des Baux) é inusitado entre os trovadores. Tudo parece indicar que a história toda da Vida até a menção de Monferrato é invenção do biógrafo, baseada em confusões geográficas e históricas. Já dissemos anteriormente(203) que nåo nos convence a atribuiçåo, pela Vida, do castelo de Vaqueiras como lugar de nascimento de Raimbaut. Também enfatizamos, ao fim da seção em que tratamos do Condado de Forcalquier entre os séculos XII e XIII, o fato de existir um documento da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém pelo qual foram doadas terras aos hospitalários nesse condado, às margens de um rio de nome Vachères. Como se explicariam as confusões geográficas e históricas do biógrafo da Vida relativamente ao lugar de nascimento de Raimbaut?

Em nossa opinião e em primeiro lugar, é preciso destacar o fato de que tinham o mesmo nome - Guilherme - o príncipe de Orange, da família dos Baux, com jurisdição sobre o castelo de Vaqueiras, e o conde de Forcalquier, que tinha jurisdição sobre as terras adjacentes ao rio Vachères (Vacherias, no latim das cartas de então). sobre o val Queyras, nos limites dos Hautes-Alpes com o Dauphiné e a Lombardia medieval, bem como sobre a localidade de Vachères, entre Reillane e Forcalquier. Esta era a "capital" do condado deste segundo Guilherme, o qual se estendia de sul a norte, desde o rio Durance, abaixo de Apt et Manosque, até a extremidade do Embrunais, na fronteira com a Lombardia, incluindo Sault, Sisteron, Rosans, Gap, Embrun e outras localidades.

Em segundo lugar, é importante ter em mente que Forcalquier já tinha finalmente passado ao domínio do conde de Provença em 1209, após a morte de Guilherme II, e este Conde de Provença passou a usar também o título de conde de Forcalquier, enquanto o principado de Orange - na época, com Guilherme IV de Baux - continuava como feudo do conde de Toulouse, que era também marquês de Provença. Outros feudos deste eram o Diois, Tricastin, Venaissin, a margem direita do Beaucaire e parte de Avignon. Não é de se admirar, pois, que o biógrafo de Raimbaut, provavelmente Uc di Saint Circ, ao fazer seu trabalho na Itália, depois de 1220, acostumado com a menção a Guilherme IV de Baux, príncipe de Orange, feudatário dos marqueses de Provença e recentemente morto espetacularmente por degola seguida de esquartejamento (1218), se confundisse diante de Guilherme II de Forcalquier, senhor, anteriormente, das terras do rio Vachères, da localidade de Vachères, junto a Forcalquier, do val Queyras e das outras mencionadas acima. Estas terras foram vividas afetivamente por Raimbaut de Vaqueiras e incorporadas, como dissemos, aos domínios dos marqueses de Provença a partir de 1209.

Como conseqüência dessa confusão, um castelo de Guilherme IV de Orange, de nome Vaqueiras, pode perfeitamente ter-se cruzado semanticamente com as terras do rio Vachères (Vacherias), com a localidade de Vachères (Vaqueriis) e com o val Queyras, possuídas pelo também Guilherme, porém II, de Forcalquier. Indício veemente dessa confusão é o fato de Raimbaut jamais mencionar Vaqueiras, no Vaucluse, principado de Orange e só de modo muito distante e impessoal o conde Guilherme IV des Baux (poema I, verso 17). Menciona, porém, explícita ou implicitamente, mas com afeto ou interesse, Gap, bem perto das terras do Vachères, e Forcalquier, bem junto à localidade de Vachères, nos poemas de V a VIII. Lá manifestou-se apaixonado, durante algum tempo por uma dama, que não correspondeu a seu amor e provocou-lhe, com isso uma tendência à religiosidade militante. Por tudo isso, é mais verossímil considerar as terras do Vachères, perto de Gap, ou a localidade de Vachères, junto a Forcalquier, como o país natal de Raimbaut de Vaqueiras. Sua natural tendência ao deslocamento, como homem de origem pobre, em direção à vizinha Lombardia, a leste, e Marselha, ao sul, tornam mais plausível, talvez, as terras do rio Vachères, cujo nome latino, Vacherias, favoreceria a denominaçåo. A dificuldade estaria no fato de os nomes dos trovadores normalmente incluírem a localidade de origem. Há exceções: Arnaut Catalan, Guiraut d'Espanha. É possível que, em vida, o poeta tenha sido simplesmente conhecido como Raimbaut, do mesmo modo que Albertet, Alegret, Blacasset, Blacatz, Cercamon, Gavaudan, Peirol e outros. Isto não seria estranho, já que Raimbaut passou a maior parte de sua vida fora de Provença e de suas cortes. O nome completo originou-se, neste caso, da Vida, escrita provavelmente por Uc di Saint-Circ. A terra natal do poeta pode ser, em conseqüência, tanto a localidade de Vachères quanto a região do rio Vachères.

Um documento de 1203, o de nº 1169, publicado por Delaville Le Roulx,(204) é, em nossa opinião, o único que aponta para uma presença física de Raimbaut de Vaqueiras por perto. Trataremos dele na parte deste livro que aborda o contexto histórico do Descordo Plurilíngüe.

É no triângulo Forcalquier, Marselha, Monferrato que parecem estar as fontes existenciais de Raimbaut e os arquétipos contextuais dos manuscritos de suas composições devem ser buscados nesse triângulo.

Os manuscritos mais ligados ao contexto de vida de Raimbaut

Como vimos acima, somente um dos manuscritos que contêm o Descordo Plurilíngüe foi redigido na região de Provença. Trata-se do manuscrito f, que data da primeira metade do século XIV.

Por outro lado, o autor do Descordo Plurilíngüe seria natural, segundo afirmação da Vida, já por nós discutida, do castelo de Vaqueiras, hoje cantão de Baumes-de-Venise, no Vaucluse. Segundo as evidências que apresentamos, o provável é Raimbaut ter nascido na localidade de Vachères, junto a Forcalquier, capital do condado do mesmo nome ou na região do rio Vachères, afluente da margem esquerda do Durance, que neste desemboca perto de outra importante localidade da época, Embrun.. Aliás, o poeta foi chamado de Raimbaut de Vachères em documentos muito antigos e em manuscritos.

Não há dúvida de que Raimbaut esteve ligado aos Baux durante boa parte de sua vida. Vale, porém, voltar a abordar o grau das ligações, o ramo da família Baux ao qual ligou-se nosso trovador e a buscar identificar época ou épocas em que realmente ocorreram tais relações em face dos únicos dados concretos que possuímos, ou seja, da presença de Raimbaut nos domínios do conde de Forcalquier e não necessariamente nos dos senhores de Baux. Neste caso, já apontamos a provável relação com Hugues de Baux.

De imediato, surge uma evidência: a presença dos Baux desde meados do século XII na corte de Forcalquier, ora como intermediários entre o rei de Aragão, Alfonso I, e Guilherme II de Forcalquier, ora como aliados deste contra as pretensões do rei, que era também conde de Provença, ora contra as do sucessor deste, seu filho Alfonso II, que se tornou marido da neta de Guilherme. Em toda a segunda metade do século XII, o papel político de Forcalquier foi superior à dos domínios dos senhores de Baux, relativamente à Provença. Entre as duas cortes, Forcalquier era mais importante, dentro do jogo político da Provença.

A Vida de Raimbaut de Vaqueiras, dá ênfase a seu relacionamento com a família Baux, porém o faz com respeito a Guilherme IV, príncipe de Orange de 1182 a 1218. Isso não pode ser comprovado, de modo algum, com os dados explícitos e implícitos da obra do poeta. Seu relacionamento com os Baux era, segundo todas as evidências, com Hugues, irmão de Guilherme e visconde de Marseille, dentro de um contexto que abrange o eixo Forcalquier-Marseille.

Não há prova histórica da presença de Raimbaut na corte de Orange, mas há várias provas dela na corte do outro Guilherme, o conde de Forcalquier.

Entre 1180 e 1183, o poeta estave na corte de Monferrato, conforme se depreende das recordações que faz nas 12 primeiras linhas de sua Epístola épica, parte III. O silêncio da Epístola sobre os anos seguintes certamente indicam uma não presença no norte da Itália, já que não haveria motivo para o poeta não apresentar eventos em tão largo período junto ao nobre de quem conquistara a amizade, Bonifacio de Monferrato. É certo, porém, que Raimbaut, em fins da década de 80, estava na Provença, como se vê do conteúdo do poema Garlambey, hápax do poeta para designar torneio. Não se sabe em que corte. Linskill acredita que tenha sido a de Hugues de Baux.(205)

O que houve de politicamente importante na década de 80 no principado de Orange, de Guilherme IV de Baux, e no condado de Forcalquier?

Como enfatizou muito bem A. Jeanroy em conhecido artigo, os mais antigos trovadores eram grandes viajantes.(206) A crer no relato de sua Vida, Raimbaut de Vaqueiras começou a sê-lo muito cedo e, como seus colegas, conheceu gente muito importante. Há, porém, uma contradição entre esse fato e a cronologia de seus poemas, estabelecida por Linskill. Sendo, praticamente, certo, pelas alusões das linhas 16 e 22, que o poeta deve ter nascido entre 1155 e 1160,(207) é estranho que o autor de uma composição magistral, como é o Garlambey, tenha começado a poetar justamente com ela entre os 29 e os 34 anos de idade. Nesta faixa de idade, nos tempos medievais, os homens já tinham um longo passado de vida adulta. Por isso mesmo, é muito improvável que algumas das composições, rejeitadas por Linskill em sua bela edição, não sejam de Raimbaut.(208)

Entre outros personagens a que se referiu, direta ou indiretamente, estave Alfonso I de Aragão, nomeado por Jeanroy e outros como Alfonso II. Deste e de Raymond V, de Toulouse, falam abundantemente os trovadores.

A rivalidade de Bertrand I, pai de Guilherme IV de Baux e príncipe de Orange, com seu suserano, o conde de Toulouse Raymond V, acabou por levar este a mandar assassiná-lo em 1181. Guilherme, cognominado del Cornas, sucedeu ao pai. Seu irmão mais velho, Hugues, casou-se com Barrale, filha de Barral, e tornou-se, pelo casamento, visconde de Marselha. O outro irmão, Bertrand, ficou como senhor de Berre, Meyrargues, Puyricard e Marignane.

Em 1189, Raymond de Toulouse conferiu a Aymar II o Diois, mas permaneceu o problema da validação dessa concessão.(209) A propósito desse fato, diz Raimbaut em II, linhas 18 a 34, que Linskill, acertadamente, afirma ter sido composta em 1189:

Per so dreitz
non acuoill
c'om sos amics soan
per gerra, co.l Bautz fan
lor paren dui e dui;
que n'Azemars lor fui,
de Peitieus, tot enans,
tant l'es affans
gerra e metra gatges;
mas del plaich fon messatges,
puois tolc se de trebaill.
En Girautz, al miraill,
Ademars sos coignatz
(mas Bar'es derocatz)
l'en blasm', et eu si fatz,
car del comt' es privatz
qe.il tol sas eretatz.

A justiça não pode admitir
que alguém abandone um amigo
em tempo de guerra,
como estão fazendo, uns com os outros,
os parentes dos Baux.
Sir Ademar de Poitiers
ilude-os desde o início,
tanta experiência tem ele
em fazer guerra e oferecer fiadores.
Oferece acordo e se livra do problema.
Vendo isso, Sir Gerald Ademar,
seu cunhado, o censura
desde que Barri foi destruída,
e eu também o faço
pois Sir Ademar é grande amigo do Conde
que privou Sir Gerald de seu patrimônio.

O amigo a que se refere Raimbaut é Guilherme de Baux. Criticando quem trai esse amigo, o poeta indica a possibilidade de ter com o traído algum relacionamento e isso se evidencia, ainda em 1189, quando Raimbaut, estando certamente na corte de Guilherme, a este se refere em um poema, como alguns acreditam, sob o pseudônimo Garlambey. A alta probabilidade dessa presença, viável por ser Guilherme de Baux, na época, menos importante politicamente que Guilherme II de Forcalquier, leva à conclusão de ter o poeta estado em contato com outras famílias nobres, entre as quais as de Agoult ou Agout e Sault. Estas duas famílias são fundamentais para a compreensão da transmissão dos poemas de Raimbaut de Vaqueiras, como demonstraremos a seguir. Agout e Sault eram famílias que se relacionavam entre si, com os Baux e, principalmente, com Guilherme II de Forcalquier.

Dentro desse contexto de relacionamento menos importante de Raimbaut de Vaqueiras com Guilherme de Baux, a questão da inserçao histórica de uma propriedade deste, o castelo de Vaqueiras, como lugar de nascimento de Raimbaut, foi por nós tratada com natural ceticismo, O castelo, dado pela Vida como lugar de nascimento de Raimbaut de Vaqueiras, foi herdado pelo principado de Orange através do casamento, por volta de 1150, de Bertrand I, da família dos Baux, com Tiburge, irmã do célebre trovador Raimbaut III de Orange. Data desse casamento o senhorio dos Baux em Orange. Guilherme IV, príncipe de Orange era filho de Bertrand e Tiburge e, portanto, sobrinho de Raimbaut de Orange. Na opinião de J. Longnon,(210) o nome do poeta vem, justamente, desse trovador, que morreu em 1173, ao passo que Raimbaut de Vaqueiras nasceu entre 1155 e 1160.(211) Linskill lembra que, de acordo com o texto de sua vida, o deslocamento, por parte do poeta, de Vaqueiras para Orange, é uma hipótese muito natural, devido à proximidade de ambos os lugares. Na versão do manuscrito Sg da Vida de Raimbaut de Vaqueiras, foi a princesa de Orange, mulher de Guilherme IV, que recebeu Raimbaut na corte, onde foi encorajado a desenvolver seus talentos.(212) Tudo isso, porém, como se deduz do que investigamos, não passa de pura invenção.

No relacionamento dos Baux com os Agout e os Sault há um fio que conduz a manuscritos em que se inseriu o Descordo Plurilíngüe.

De fato, na corte de Arles do senhor de Trinquetaille, Hugues de Baux, tornado Visconde de Marseille em 1193, deve ter estado Raimbaut de Vaqueiras, já que foi Hugues motivo de um sirventês composto por ele, no qual, segundo Linskill, o poeta se refere a Hugues usando o senhal Mon Avengut. Em fins do século XII, transitavam na corte de Hugues, em Arles ou Marseille, protetores de trovadores e entre estes estava Raimon d'Agout cujo filho, o trovador Ysnard d'Entravenes, foi conde de Sault e viveu entre 1203 e 1225.(213) Sault é uma localidade situada no Vaucluse, a 40 quilômetros de Avignon. Perto dela, a menos de 30 Km, fica Carpentras, a leste, e, a oeste, numa distância semelhante, Orange. Sault, por volta de 1260, era sede do importante senhorio d'Agout-Sault, que tinha sob sua dependência o feudo de La Roque Alric ao qual provavelmente se subordinava, nessa ocasião, o castelo de Vaqueiras. O nome Agout, evidentemente, é o mesmo Agout do pai do trovador Ysnard d'Entravenes, que também freqüentou a corte de Arles uns 20 anos após Raimbaut e que é descendente direto e próximo do Raymond d'Agout que foi árbitro entre Alfonso II e Raymon V, bem como de Loup d'Agout, dono, como vimos, do castelo de Sault em 1178. Ele é mencionado em notas existentes numa coleção de escritos do historiador Peiresc, os quais versam sobre a história de Provença. Estão estas notas na Biblioteca de Carpentras, que tinha jurisdição sobre a localidade de Sault. A escritura dessas notas é da segunda metade do século XVI e parece idêntica, segundo Paul Meyer,(214) à do índice incompleto da folha de rosto do manuscrito f. Segundo feu Lambert, antigo bibliotecário de Carpentras, essas notas seriam de autoria de Jean de Nostredame e nelas é mencionado várias vezes um cancioneiro pertencente ao conde de Sault:

"Mais je trouve au chansoner (sic) du seigr comte de Sault qu'il (Hugues de Pena) a faict quatre fort belles chansons doctes et de bon sens, en l'une desquelles il appert qu'il estoit amoureux de Beatrix, comtesse de Prouvence, femme dud. Charles roy de Sicille, et la nomme Beatrix comtesse de Prouvence, en la louant qu'elle est la premiere dame vertueuse de ce monde; et toutes ces chansons il les adresse, partie a Monsr Barral seigneur de Marseillac, et des Baulx, et partie a messire Ysnard d'Entravenes, comte de Sault."(215)

O autor dessas notas da coleção de Peiresc refere-se ao travador Ysnard d'Entravenes como conde de Sault, embora o senhorio de Sault só tivesse sido erigido em condado, a favor de François d'Agout em 22 de abril de 1561. É claro que se faz aqui uma extensão do título ao antepassado do nobre com quem o anotador tinha relações de amizade.

Jean de Nostredame afirma, no prefácio de sua Vies des poètes provensaux, o seguinte:

"Je puis asseurer vrayement avoir veu et leu deux grans tomes divers escripts en lettre de forme sur parchemin illuminez d'or et d'azur, qui sont dans les Archifs du seigneur Comte de Sault, auquels sont descrites en lettre rouge les vies des Poetes Provensaux (qu' ils nommoyent Troubadours) et leurs Poésies en lettre noire, en leur idiomat, en nombre de plus de quatre-vingt."(216)

Essas palavras de Nostredame não são suficientes para a identificação dos tomos mencionados por ele entre os cancioneiros hoje existentes. Meyer discute o problema e conclui, no corpo de seu livro, nada se poder afirmar quanto a essa identificação. No fim de seu trabalho, todavia, ao fazer adições e correções, emite uma opinião definitiva. Para ele, revistas as notas da coleção de Peiresc e comparada sua escritura à das notas que aparecem nas folhas 8v, 9, 15, 20v, 28v, 29 e outras do manuscrito f, a conclusão só pode ser no sentido de serem, uma e outra, de uma mesma pessoa, que Meyer identifica com Nostredame. Assim, o manuscrito provençal f foi consultado pela mesma pessoa que consultou um outro manuscrito, também provençal, que era propriedade da família dos condes de Sault, a mesma família que, através de um seu ancestral, Raimon d'Agout, esteve em contato muito provável com o poeta Raimbaut de Vaqueiras e seus amigos da família Baux.

Quanto ao problema da identificação do cancioneiro de Sault, Meyer chama a atenção para o fato de o manuscrito 2814 da Biblioteca Riccardi, de Florença (ms. a2),(217) ter uma lista de trovadores que estava no original utilizado por seu compilador, Bernart Amoros, monge de Saint-Flour, pequena cidade do Haute Loire, a uma distância não muito grande do Ródano. Nessa lista, há um certo número de trovadores que não se encontram em nenhum cancioneiro e, deles, três pelo menos são mencionados por Nostredame. Além disso, o manuscrito a contém uma curta notícia sobre Guillem Montanhagol, a qual não se encontra em nenhum lugar, a não ser em Nostredame. E junta Meyer outras evidências que o levam à seguinte convicção, já acima assinalada:

""...le chansonnier en deux volumes du comte de Sault, consulté par Nostredame, paraît n'avoir point été différent du grand récueil compilé au XIIIe siècle par Bernart Amoros, et dont le ms. Riccardi 2814 est une copie partielle."(218)

O Descordo Plurilíngüe, como já evidenciamos, está na segunda parte dessa cópia, ou seja, no manuscrito a1, editado por Bertoni. Seu editor, Bernart Amoros, afirma ter emendado com discrição o "issemple" (original) que tinha sob os olhos e de ter evitado propositadamente de fazer alterações ou emendas, a fim de não piorar esse original. E assim se manifesta Bertoni:

"Ció che credo tuttavia di poter affermare con una certa tranquillità, è che l'issemple, al quale il nostro monaco dichiara di avere attinto, deve essere stato un'ampia raccolta imparentata col ms. del Conte di Sault, anch'esso perduto, o fors'anche il ms. medesimo del Conte di Sault, ovvero l'originale di esso manoscritto.In codesta ricca collezione di liriche trovadoriche, utilizzata dal Nostradamus, si leggevano poesie di poeti, che non compaiono che nel nostro canzoniere. E le affinità tra le due raccolte è tale e tanta da quanto si può congetturare, che per gran tempo si credette che esse fossero un sola e identica cosa. Se il ms. di Bernart Amoros non rispecchia interamente codesta perduta silloge, egli è certo che ce ne fa conoscere direttamente o indirettamente una non piccola parte."(219)

Uma opinião quase definitiva a respeito da relação entre o cancioneiro perdido de Sault, o cancioneiro, também perdido, de Bernard Amoros e as cópias destes, a1 e a2 foi dada por Chabaneau e Anglade num artigo em que procuram reconstituir o cancioneiro do conde de Sault. Na verdade, trata-se de um artigo em que C. Chabaneau tem um seu trabalho inedito publicado com redação e argumentos de Joseph Anglade. Nesse ensaio, fica demonstrado que Jean de Nostredame possuiu os cancioneiros f e T e consultou o manuscrito de Sault que lhe foi emprestado pelo conde deste nome, François Agoult (Agout):

"Quant à notre langue provensalle, je suis apres a rediger par escript en notre langue françoise les viès des poètes provensaulx d'ung vieux livre que j'ai recouvert d'une noble maison de ce pais auquel sont descriptes leurs vies et leur poeme en langue antique provensalle, bien difficille et bien obscure, qui ont fleury environ deux cens cinquante ans jusques au trespas de la feue Jehanne de Naples, et de Sicille, que fut en l'an 1380, que sont en nombre de plus de quatre-vingtz poëtes, les ungs Florentins, les aultres Mantuans les autres Genevoys et Lombards, et les aultres Provensaulx, etc."(220)

Ao contrário do que pensava Meyer em certo momento (não haver manuscritos autênticos de Nostredame):

"Je le rèpète, il faudrait prouver que les fragments de Carpentras sont bien de J. de Notre Dame, et aucune preuve ne serait plus facile à fournir, s'il subsistait quelquers échantillons certains de l'écriture de ce personnage, ce que j'ignore.(221)

Chabaneau tinha como provado o fato de serem as anotações acima mencionadas, da Biblioteca de Carpentras, de autoria de Nostredame, nelas se incluindo uma versão manuscrita das Vies publicadas pelo controvertido provençalista do século XVI. A comparação de a (a1 + a2) com as Vies manuscritas e as Vies publicadas levaram Chabaneau e Anglade à convicção de que o manuscrito de Sault provém da mesma fonte do protótipo (issemple) de Bernart Amoros, o que faz o manuscrito estar em estreito parentesco com o cancioneiro de Sault.

Os cancioneiros a1 e a2, o cancioneiro perdido de Sault, os nobres Agout, desde a segunda metade do século XII, Guilherme de Forcalquier, Guilherme de Baux e Raimbaut de Vaqueiras fazem parte de um mesmo contexto histórico. O cancioneiro f resultou desse contexto. Uma edição crítica do Descordo não pode ignorar esses fatos.

O que se pode concluir disso tudo para se editar uma composição de Raimbaut de Vaqueiras, como o Descordo Plurilíngüe?

Acreditamos, do ponto de vista de relação entre a vida do poeta e o paradeiro dos manuscritos, que, destes, os mais confiáveis são o cancioneiro provençal f e o cancioneiro italiano a1, estreitamente relacionado ao perdido manuscrito de Sault, o qual foi feito, com muita probabilidade, em um contexto no qual a memória de Raimbaut de Vaqueiras era viva, direta e próxima.































PARTE II

















Capítulo 1

Línguas do Descordo Plurilíngüe e consciência lingüística ao tempo de Raimbaut de Vaqueiras

Antes de procedermos à análise do conteúdo de cada verso do Descordo, segundo os diferentes manuscritos, necessário se torna tecer algumas considerações sobre o sentimento de língua vulgar entre os séculos XIII e XV. Por trás de um "erro" de copista costuma estar, em muitos casos, uma atitude lingüística normal de uma época. As provençalizações, as catalanizações e outras alterações de um original mal compreendido são soluções que se subordinam a concepções lingüísticas e literárias próprias do período.

De início, deve-se recordar a prática de se usar o termo "língua" para jurisdição territorial, com base no idioma falado no território a que se fazia referência.

Esse procedimento, quando devidamente questionado em exemplos da época, indica claramente que o conceito de língua, após os numerosos séculos de dominação do latim, tinha como mais importantes semas os de identificação nacional do falante e de situação política. Foi adotado pela Ordem de São João de Jerusalém, hoje Ordem de Malta, desde o início do século XIII, como demonstra o Estatuto da mesma criado por seu grão-mestre Afonso de Portugal, provavelmente entre 1204-1206. Vejamos os exemplos que o abonam:

Post hec vero magister transmittere debet ad consulendum baiuliis fratres providos et honestos diversarum partium et comuniter omnium lingarum.(222)

A versão, em francês da época, é transcrita por Delaville Le Roulx, ao lado do texto latino:

Apres doit le maistre mander por conseillier les bailies communement des freres qui seront plus aparans destre plus sages et plus honestes.(223)

O texto francês, publicado por Delaville Le Roulx, é o do ms. 4.852 da Biblioteca Vaticana, que possuímos em sua versão integral (do Estatuto de Afonso) e que vai do folio 33 ao folio 49. É do século XIII. O trecho citado está no folio 37 e seu sentido não corresponde integralmente ao do texto latino, esclarecendo-se, porém, quando se consulta o parágrafo anterior, no folio 36:

Et se le covent ne pooit venir au chapistre, et le maistre soit aveuc le covent, par la connoissance et le conseil dou covent et des freres que il aura aveuc soi, meine au chapistre comunement de chascunes terres ou des regions tant des freres combien et quelz covenra dou couvent, qui plus sages et plus discrez aparront.

Neste folio 36 o correspondente ao sublinhado, na versão latina é omnium partium et nationum (de todas as regiões e nações). Evidencia um contraste com o trecho, que já transcrevemos, do folio seguinte: diversarum partium et comuniter omnium linguarum (geralmente de diferentes regiões e de todas as línguas).

Por aí se vê que há uma utilização no texto latino (diversarum partium et comuniter omnium lingarum) de trecho que, no texto francês, se encontra em outra parágrafo, só que com a substituição de partium et nationum por partium et lingarum, permanecendo o sentido. Como o arquétipo do texto latino, por razões de ordem administrativa da Igreja, já muito bem organizada ao tempo do Papa Inocéncio III (1198-1216), também deve ser do início do século XIII, é mais provável que aquele, o arquétipo do texto francês, tenha sido produzido antes deste e que o conceito de lingua = natio / langue = nation tenha sido corrente, na época referida, para designar realidades políticas a que correspondiam realidades lingüisticas. Isso pode ter como conseqüência, ao se exprimir alguém em uma língua estrangeira no tempo de Raimbaut de Vaqueiras, querer ele conseguir, junto a um interlocutor, um prestígio mais social do que intelectual para poder ser aceito por este, não propriamente admirado. Não se deve esperar que o Descordo Plurilíngüe, ao sair da pena de Raimbaut, tenha estado livre de erros expressionais em cada uma das línguas que usou.

O nome por que foi conhecido, desde sua instalação, o grão-mestre autor dessas regras, revela que foi apelidado segundo a região em que nascera porque isso era hábito. Por ser sua região lugar distante, dentro dos padrões da época, o normal seria usar o nome mais amplo, Espanha. Devido ao alto posto de grão-mestre, usou-se, todavia, o nome geográfico Portugal, que, assim, passava a representar toda a língua da Espanha. Por isso, foi ele o único, entre os grão-mestres, que incorporou a seu nome o do país de origem. Era Afonso de Portugal porque da língua de Portugal.

A relação entre língua e nação, presente nos estatutos de uma das duas mais poderosas ordens militares religiosas do tempo das cruzadas, evidencia que a consciência lingüística, na Europa ocidental, chegara, em inícios do século XIII a um ponto de ruptura relativamente à língua escrita oficial, o latim. É significativo que, entre a segunda metade do século XII e a primeira do XIII, a expressão literária, judicial e chanceleresca tenha passado a ser feita, em toda parte e no espaço de duas gerações, pelas línguas vulgares - francês, provençal, lombardo, tedesco, inglês, catalão, espanhol, castelhano, português etc.

O Descordo Plurilíngüe é uma expressão dessa realidade política e cultural.

Na análise lingüistica dos versos da composição é necessário, pois, ter-se presente esta relação, que estava na cabeça tanto de Raimbaut quanto dos copistas, entre língua e nação, dos princípios do século XIII até o séc. XV. É preciso ter em mente, também, que, dentro desse contexto, quanto mais próximo da língua do copista ou das três línguas de prestígio da época dos trovadores - provençal, francês e lombardo - o texto transcrito estivesse, maiores seriam as probabilidades de acomodação gráfica toda vez que ele, copista, fosse um estranho relativamente ao território que correspondesse a cada uma delas. Em conseqüência, os versos mais alterados hão de ser, naturalmente, os referentes a uma realidade lingüística não familiar a todos os copistas, ou seja, os da estrofe galego-portuguesa e sua contrapartida na estrofe final. Afinal, nenhum dos sete é português.

Capítulo 2

Os manuscritos preferidos para a edição do Descordo antes de Raynouard

Nostredame, Pasquier, Crescimbeni e Sainte-Palaye

Como vimos anteriormente, o conhecimento do Descordo Plurilíngüe, entre os séculos XVI e XVIII, se fez muito lentamente. Tendo começado o estudo do provençal, entre os italianos, pelos petrarquistas da primeira metade do século XVI, muitas referências se fizeram a Raimbaut de Vaqueiras, a partir de Mario Equicola, provençalista que teve contato direto com a França meridional, e por Pietro Bembo. Apesar disso, não se encontra, entre os italianos do século XVI nenhuma referência ao Descordo Plurilíngüe. O primeiro a fazê-lo foi Jean de Nostredame, na França, e, depois, Estienne Pasquier, já no século seguinte.

Jean de Nostredame assim reproduziu os primeiros versos de cada estrofe do Descordo.

"Aros quau vei verdeiar...
I son quel che ben non ho...
Belle douce deme chere...
Dauna yeu my rend'a bous...
Mes tan temo vuestro pletto."
(224)

O cotejo desses versos com o texto correspondente dos manuscritos nos mostram as seguintes coincidências:

1º verso:

Aros - nenhum ms; muito próximo de aras, de f.
quau - é evidente erro de leitura de quan, o que
leva aos mss. E e M
vei
- é forma de f, M, a1 e E
verdeiar
- aparece em f, M, a1 e E

2º verso:
I son - não estão em nenhum manuscrito. O
mais próximo é f, com Io so.
quel - aparece em M e f (quelo).
che - não está em nenhum manuscrito. Trata-
se, evidentemente, de uso consciente da
forma italiana, já que todos os mss., menos
a1, têm que, abreviado ou não.
non - mesma situação de che.
ben - mesma situação, com exceção de a1 e
Sg. A forma gráfica é, no entanto, idêntica
às de f, M e E.
ho - não aparece em nenhum dos mss.
conhecidos que, com exceção de a1, têm
a forma aio.

3º verso:
Belle - é forma de f e M. Pode-se admitir que é
subjacente a a1.
douce - é forma de M que pode ter como equivalente
a forma douse, de f.
deme - não está em nenhum ms., mas transparece
em f e M (dame).
chere - não aparece em nenhum ms. mas é
subjacente às formas de a1, R, E e C.

4º verso:
Dauna - está em todos os manuscritos, menos,
significativamente, em M (dome).
yeu - não está em nenhum manuscrito.
my - pode-se considerar como forma de f, M, R e
Sg, caso se admita a simples alternância de
i e y.
rend - está em f e M.
bous - opõe-se a bos, de todos os manuscritos.

5º verso:
mes - não aparece nos manuscritos, mas pode-
se considerar como subjacente a M, E e C.
tan - é forma de M, E e a1.
vuestro - não está em nenhum dos manuscritos.
pletto - está em M e é subjacente a f.

Estatisticamente, obtém-se o seguinte resultado:

M - 13 vezes
f - 12 vezes
E - 7 vezes
a1 - 5 vezes
R - 2 vezes
C - 2 vezes
Sg - 1 vez.

Nove formas de Nostredame inexistem nos sete manuscritos.

Nota-se, com isso, que o grupo fM ocorre 25 vezes e o resto 17.

A conclusão a que se pode chegar é que, como se indicou na anteriormente, Nostredame utilizou o ms. f em sua referência ao Descordo. Não utilizou, provavelmente, o ms. M, porque este se encontrava na Itália, embora se saiba que Nostredame tinha conhecimento do trabalho dos provençalistas italianos, principalmente Pietro Bembo, que foi proprietário dos mss. atuais H, K, L, O e, talvez, de outros. Possivelmente Nostredame teve em mãos uma cópia de M ou um manuscrito a ele estreitamente ele aparentado.

A existência de formas, em Nostredame, como I, son, ho e yeu indicam que teve em suas mãos, para referência ao Descordo, pelo menos dois manuscritos além de f. Como há 5 (cinco) coincidências com a1 e este é estreitamente aparentado ao cancioneiro de Sault, a1 pode realmente ter sido um dos dois. No outro poderiam estar as formas que Nostredame registrou e que não existem nos manuscritos que chegaram até nós.

Anos depois da abordagem de Nostredame, Estienne de Pasquier fez o mesmo tipo de referência ao Descordo Plurílingüe. Embora siga bem de perto o texto de Nostredane,(225) Pasquier dele diverge em alguns pontos, depois de ter afirmado ser possuidor de uma cópia, que pertencera a Pietro Bembo, de um manuscrito provençal. Diz ele:

"Comme aussi il est tombé entre mes mains un papier qui est encores en ma possession dont la teneur est telle. Extrait d'un ancien livre qui fut au Cardinal Bembo. Los noms daquels que firont Tansons & Syruentes. Et Y en met quatre vingts & seize. Vray qu'il y en a quelques uns oubliez par Nostredame, tout ainsi que cestuy fait pareillement estat d'autres qui ne sont nommez par le Cardinal. Et plusieurs nommez par l'un & par l'autre: De maniere qu'apres les auoir confrontez ensemblément il y en a de compte faict six vingts & plus, entre lesquels ie trouue des Empereurs, Rois, Marquis, Comtes, un Federic Empereur premier de ce nom, Richard Roy d'Anglaterre surnommé coeur de Lyon, la Comtesse de Die, Raimond Beranger Comte de Prouence, un Roy d'Arragon, um Dauphin d'Auvergne, un Comte de Poictou, & Les principaux Seigneurs de sa Cour. Non qu'ils eussent composé des Poëmes entiers en Provençal, ains comme ceux qui de pois à autres passouient leur temps à faire quelques Epigrammes Provençaux."(226)

Tal fato prova que pelo menos uma cópia italiana de cancioneiros provençais circulava, na França, na geração seguinte à de Nostredame e deve ser levado em conta quando se constata a semelhança entre a edição parcial do Descordo, feita por Nostredame, e o ms. italiano M.

Crescimbeni, como já assinalamos, também seguiu Nostredame na apresentação parcial do Descordo.

A primeira edição quase total do Descordo Plurilíngüe foi feita por Sainte-Palaye. Comparados os seus versos com cada um dos versos de cada manuscrito, verifica-se, sem sombra de dúvida, que ele utilizou os ms. C e E, com ligeira predominância daquele.(227) Por vezes parece recorrer às lições do ms. R.

De Raynouard em diante, o manuscrito básico para a edição do Descordo tem sido sempre o C.

Capítulo 3

História das edições críticas do Descordo e reflexos reais do original de Vaqueiras nos manuscritos

Estabelecida a relação entre a vida de Raimbaut e o paradeiro dos manuscitos que mais podem se relacionar com sua obra, e estabelecida a preferência, ao longo dos séculos, dos editores por determinados manuscritos, resta o problema metodológico de decidir sobre os manuscritos a usar numa edição realista do Descordo Plurilíngüe.

De todos os manuscritos, como vimos, é o C o mais eclético, aquele que, segundo a opinião dos provençalistas, mais respeita os originais utilizados. Se tivesse sido bem mais feliz a cópia feita por Jacques Teissier de Tarascon do manuscrito de Bernard Amoros, apresentado por este como muito fiel ao original, seriam os manuscritos a1 e a2, talvez, os mais confiáveis dentre os cancioneiros existentes. Como tal não acontece, julgamos acertado o seguinte procedimento:

1 - Para os versos provençais, deve-se adotar as lições do ms. f, acertadas, porém, em relação ao que se conhece, de outros documentos, da língua usada na Provença ocidental entre fins do século XII e meados do XIII.

2 - Para a apresentação lingüísticamente formal dos versos franceses, italianos e gascões, deve-se adotar as liçes do ms. f em confronto con as do C.

3 - Para os problemas de formas ou de variantes lexicais da estrofe galego-portuguesa e seu correspondente na tornada, deve-se adotar, como básico, o ms. a1 e, em segundo lugar, o ms. f. No caso de clara divergência entre estes dois manuscritos, a preferência deve ser dada ao ms. a1, que reflete um contexto grego e está relacionado com o antigo cancioneiro perdido de Sault.

4 - As exceções a essas regras devem resultar de evidêcia inafastável ou da necessidade de obediência à métrica.

Capítulo 4

Leitura preliminar do Descordo Plurilíngüe

Critérios

Para a leitura preliminar do Descordo, são observados, agora, os princípios da seção anterior e mais os seguintes:

1 - Pontuação moderna, de acordo com o sentido;
2 - resolução das abreviaturas do tipo q que, n non;
3 - uso de apóstrofo nas composições com pronome ou artigo;
4 - resolução dos conglomerados gráficos;
5 - uso da semivogal i nos ditongos decrescentes;
6 - uniformização do uso de v no lugar de u;
7 - uso de ponto elevado nas ênclises.

Vejamos, pois, a leitura:

Leitura

Aras cant vei verdeiar 1
pratz e vergiers e boscages,
vueilh un descort comensar
d'amors, per qu'ieu vauc arages;
c'una dona.m sol amar, 5
mais camiat l'es sos corages;
per qu'ieu fauc desacordar
los mots e .ls sons e e .ls lengages.

Ieu sui selh que ben non aio
ni enqueras non l'averò, 10
per abrilo ni per maio,
si per mia dona non l'ò;
e entendo son lenguaio,
sa gran beutat dire non zo,
plus fresqu'es que flors de glaio 15
e ia no m . en partirò.

Belha doussa dama chera,
a vos merrant e m'autroi;
ia n'aurai mes joi'entera,
si no vos ai e vos moi. 20
Molt estes mala guerreia,
si ia muer per bon'esfors;
e ia per nulha manera
no.m partrai de vostre los.

Douna io me tenc a bos, 25
quar eras m'es bon'e bera,
ancse es guallhard'e pros;
ab que no.m fossetz tan fera,
moutz abetz beras faissos,
ab color fresqu'e novera; 30
vos m'abetz e se.ps a gues,
no.m sofranhera fiera.

Mas tant temo vostro plaito,
todo'n soi escarmentado,
per vos ai pena e maltreito, 35
e mei corpo lazerado.
La nueit, quand soi en mei leito,
soi mochas ves resperado.
Pro vos cre e non proferto
falhit soi en mei cuidado. 40

Bels cavaliers, tant es grans
la vostr'omrat seinhorage,
que quada iorno m'esglaio.
Ho me lasso! Que farò?
Si seli que g'ei plus chera 45
me tua no sai por quoi.
Ma dauna fe que dei bos,
ni peu cap sanhta Quitera;
mon corasso m'avetz traito
e, mout gen faulan, furdado. 50

Aplicação dos critérios à leitura preliminar

Tratamento das estrofes não provençais

Eliminação das leituras provençalizantes

É sabido que, em todos os manuscritos do território francês, há uma tendência a provençalizar o texto original das estrofes estrangeiras do Descordo, seja pelo uso do a final átono, seja pelo uso de palavras provençais, quando muito, semelhantes às estrangeiras. Podem ser consideradas leituras provençalizantes as seguintes:

estrofe italiana - ieu (verso 9), es (15), zo (14) sui (v.9), selh (v.9), enqueras (v.10), beutat (v.14), plus (v.15), flors (v.15).

estrofe francesa - belha (v.17), doussa (v.17), dama (17), chera (17), ia (19), entera (19), molt (21), mala (21), guerreia (21), ia (23), nulha (23), manera (23), aurai (19)

estrofe gascã - eras (26), es (26 e 27), fossetz (28)

estrofe portuguesa - soi (34), mei (36), nueit (37), soi (37), mei (37), so (38), resperado (38), falhit (40), soi (40), mei (40).

estrofe plurilíngüe - chera (45), avetz (49).

As soluções, para os problemas de cada uma dessas palavras podem ser as seguintes, de acordo, com os critérios assinalados, principalmente o do cotejo de C com f e a1:

ieu io (ms. f): sui so (ms. f);

selh quelo (ms. f); engueras encora (ms. f);
beutat beutà; zo so;

plus pu; fresqu fresc;
flors fior; belha belh;

doussa dousse douse (ms. f);
aurai avrai ou arai; dama dame(ms.f);

chera chiere (ms. f); ia ie;
entera entiera (ms.f) entiere
molt mot (ms.f); mala male;

guerreia Ä guerrie(e)re Ä guerriere (ms. f);
nulha nulh; maneira maniere (ms. f);
soi son; mei mie (ms. f);

nueit noit (ms. a1); resperado pensado (ms. a1)
falhit falhid; avetz avedes;
es etz; eras ara;

fossetz foussats.

Dessas soluções, é preciso considerar que no caso de belh, nulh e de falhid, tem-se um uso de lh típico do manuscrito C, o qual reflete o uso indistinto de lh por ll e vice-versa, na posição intervocálica.(228) Assim, essas palavras devem ser corrigidas adicionalmente para belle, nulle e fallid. Em conseqüência da anulação das formas provençais, passam a ser lidos os versos corrigidos da seguinte maneira:

9 - Io so quelo que ben non aio
10 - ni encora non l'averò
14 - sa gran beautà dire non zo
15 - plu fresc'es que flor de glaio
17 - Belle douse dame chiere
19 - ie n'avrai mes joi'entiere
21 - mot estes male guerriere
22 - si ie muer per bon'esfors
23 - e ia per nulle maniere
34 - todo'n son escarmentado
36 - e mie corpo lazerado
37 - la noit, quand son en mie leito
38 - son mochas ves pensado
40 - fallid son en mie cuidado.
45 - si seli que g'ei plus chiere
49 - mon corasso m'avedes traito

Análise lingüística dos versos corrigidos e dos demais

Os versos corrigidos, na seção anterior, indicam que não basta, evidentemente, a anulação da ação provençalizante do copista de C para se obter a leitura correta. É necessário cotejar lingüisticamente as formas do ms. C com as variantes dos manuscritos f e a1. Só em último caso deve-se recorrer às lições dos demais manuscritos, com preferência para aqueles que se situem mais próximo do território lingüístico correspondente à estrofe considerada.

Estrofe italiana

Há evidências, nos manuscritos do Descordo, de que a língua usada pelo poeta foi o genovês. Em sua época, o toscano não havia ainda alçado a uma posição de prestígio. Por isso, cremos que a estrofe deve ser reconstruída com base no dialeto lígure do século XIII.(229)

As evidências, em nossa opinião, são as formas e (ms. R, verso 9), zo (ms. C, verso 14), çhu (ms. M, verso 15) e pus (mss. R e Sg, verso 15). Em função dessa convicção, podemos analisar cada verso.

verso 9:

A forma ieu já foi por nós corrigida para io, do ms. f. Trata-se esta, porém, de modernização da forma normal e da época de Raimbaut e do séc. XIII.(230) A forma so deve ser a preferida(231) e quelo deve ser reduzida a quel, de acordo com a métrica (sete sílabas) e de acordo com a tendência da língua.(232)

Que não é escritura "italiana", mesmo na época. Deve ser mudado para che. Assim fica o verso:

E so quel che ben non aio

Verso 10:

Razões métricas também devem ser invocadas para o verso 10, reduzindo-se encora a encor, forma poética normal. É de se notar que o próprio e inicial está a refletir ação provençalizante. Deve ser substituído por a,(233) ainda mais porque o ms. a1 apresenta anquier, de provável origem italiana. Assim:

ni ancor non l'averò.

Verso 11:

No verso 11, o texto de f é o mais adequado, desde que se introduza o ni, de a1, e se reduza normalmente aprilo a april:

ni per april ni per maio.

A forma abril é perfeitamente encontrável no italiano arcaico, por influência provençal.(234) É preferível, no texto, april, porque Raimbaut, ao falar seu genovês, não a sofreria. Afinal, vivia desde muito jovem no norte da Itália e, deliberadamente, escolhera o genovês para sua demonstração de capacidade lingüística.

Verso 12:

No verso 12, deve-se dar, novamente, preferência ao manuscrito f, melhor do que o a1, por causa da forma provençalizante mia, que reflete o lígure mea.(235)

si per mea dona non l'ò

Verso 13:

O verso 13 apresenta problema de métrica com a forma verbal enteinho. O manuscrito a1 apresenta a forma certo, que, para coexistir com son lengaio, do manuscrito f, exige a presença de que e de en, que aparecem no manuscrito italiano M. A forma son é provençalizante e deve ser substituída por so. Lengaio é do antigo genovês.(236) Assim:

Certo che en so lengaio.

Verso 14:

Por razões métricas deve-se reduzir dire, do manuscrito f, a dir, no verso 14. A forma zo não é irregular para a época e deve ser considerada como devida à ação do provençal. Deve, porém, ser mudada para .(237) Gran é forma apocopada normal, como dir.(238) Temos, então:

Sa gran beutà dir non sò

Verso 15:

Neste verso, a forma verbal es é provençal e contraria a métrica. Quanto a pu, é de se notar que, defronte a çhu, do ms. M, é certamente forma mais antiga. Este çhu indica realmente um contexto genovês, mas, de acordo com Parodi,(239) pu era forma comum. Ex. non me dyr pu queste parolle; lo pu nil alimento.(240) A forma plus, do ms. f, é uma provençalização de pu; pus, do ms. R e Sg representa uma provençalização parcial e, por isso mesmo, é denunciadora do pu genovês. Flor é também forma provençal e deve ser substituída por fior.(241) Que, do ms. f, é do provençal. Está em todos os outros manuscritos. Sua substituição por che teria tanto sentido quanto o uso de çhu, ou seja, seriam formas dialetais mais recentes. Ora, como esta análise visa a levantar a língua que Raimbaut efetivamente conhecia, em um contexto em que o toscano não tinha ainda prestígio literário, ao invés de che deve-se eleger cha, como provam os textos editados por Parodi: pu cha bom; pu ... cha la gracia.(242) Assim deve ser lido o verso 15:

pu fresca cha fior de glaio

Verso 16:

O verso 16 revela o uso da partícula pronominal arcaica en, equivalente à atual ne. Como nosso manuscrito básico é o f, não vemos razão para substituir e ia (e già) por per que. No caso, deve-se arcaizar a grafia ia, do ms. f, para za. A lição do ms. f apresenta-se, mais uma vez, como a que mais reflete o original, sendo necessário, naturalmente, neutralizar-lhe as formas provençalizantes e adaptar-lhe a ortografia à do genovês de Raimbaut.

Assim como a grafia çhu é aceita pelos editores, da mesma forma pode-se aceitar za. Leitura do verso 16:

e za no m.en partirò.

Em conseqüência dessa análise, a estrofe italiana pode ser reconstituída com base nos manuscritos f e a1, principalmente o primeiro:

E so quel che ben non aio
ni ancor non l'averò,
ni per april ni per maio,
si per mea dona non l'ò.
Certo che, en so lengaio,
sa gran beutà dir non sò:
pu fresca cha fior de glaio,
e za no m.en partirò.

Na estrofe plurilíngüe, o pronome quada, usado nos mss. C e R, é provençalismo e nada tem com o italiano antigo ou moderno, a não ser em compostos como cadauno, de origem provençal. A existência de variantes em f, Sg e nas Leys d'amors está a indicar a possibilidade de uma forma italiana no original, principalmente se se tem em vista que o ms. Sg é catalão. Em nossa opinião, tem-se aqui um caso de impossibilidade de uso do ms. f porque, mesmo se admitindo um valor reforçativo de niente, o sentido não fica natural. Isso significa que, para se manter o sentido do provençal cada, a forma a ser eleita é cascun, do ms. Sg. O resto fica como está, adaptando-se o que, por ser de sentido diverso do cha, do verso 15. Assim, temos no verso 43:

che cascun iorno m'esglaio

Verso 44:

A expressão interjectiva provençal, conforme as Leys d'amors, para expressão de dor, é Oy lassa! No italiano arcaico, mesmo setentrional, tinha h em oi: hoi me lasso! Isso corresponde ao ms. f que, como anomalia, apresenta a forma fairò, a ser corrigida para farò:

Hoi me lasso! Che farò?

Estrofe francesa

Verso 17

Anulada a provençalização das palavras desse verso, como vimos na seçåo Eliminação das leituras provençalizantes, todas elas assumiram a forma francesa que, porém, deve ser adaptada à época de Raimbaut de Vaqueiras. Assim belle bele e douse douce. A base é o ms. f. Temos, então:

Bele, douce, dame chiere,

Verso 18

O conglomerado gráfico merran, do ms. C, indica grafia fonética, no tempo do copista, de me rent (me entrego), em que rent é primeira pessoa do presente do indicativo de rendere (, forma do latim vulgar que se fez por analogia com prendere.(243) Todos os outros manuscritos apresentam o verbo doner. Cremos que a decisão de escolha entre rent e doins depende do último verbo do verso. O ms. a1 apresenta a forma don ao lado de autrei, que é mais antiga que autroi. Esta surgiu no século XIII. A coexistência de don com uma forma mais antiga é fator que nos permite considerá-lo no lugar de rent. O pronome objetivo para fins do séc. XII deve ser me. Mais uma vez, então, a lição, preferida deve ser a do ms. f, com a devida adaptação:

a vos me doins e m'autroi

Verso 19

O ms. C apresenta o problema de mes, que, por sua posição, só pode ser interpretado como advérbio de tempo, com grafia fonética, em caso semelhante ao de rant (rent). A lição desprovençalizada de C (je n'avrai mes joy entiere) não é tão boa quanto a do ms. f, não somente porque a conjunção adversativa mais, do início do verso do ms. f, opõe adequadamente os versos 19 e 20 aos versos 17 e 18, mas também porque sua utilização da negação non dá ao texto, ao invés do que acontece com ne, do ms. C, um aspecto mais próprio do francês de fins do século XII.(244) Deve-se ter em mente que aurai é forma verbal que substituiu avrai ou arai no século XV, sendo sua origem provençal.(245) Deste modo, de acordo com o ms. f, temos:

mais non avrai joie entiere

Verso 20

Os manuscritos C e f ressaltam aqui pequenas imperfeições. Em C o non não é a forma preferida da época de Raimbaut por não se tratar de oração principal ou equivalente. Em f, et, embora certamente não estivesse no original, foi usado inadvertidamente pelo copista, pressionado por seu hábito. Corrigido isso, permanece a lição de C:

si ne vos ai e vos moi

Verso 21

Os editores do Descordo, de 1922 para cá, têm preferido a forma mot, dos mss. f e R. É interessante notar, porém, como assinala Beaulieux,(246) que Guiot, copista do século XII e responsável pelas transcrições das obras de Crestien de Troyes, sempre escreve o advérbio com a forma molt e, ao abreviá-lo, usa mlt. Tal fato nos leva a cotejar a lição do ms. f com a do a1: eliminado o m de mestes e o a final provençalizante de mala e guerriera, torna-se o verso de a1 o melhor texto, não muito diferente, afinal, de f:

molt estes male guerriere

Verso 22

O copista de C introduziu um esfors por dificuldade de entendimento. Acabou por contrariar a rima. A lição de f é mais uma vez melhor, sendo a grafia ge normal na época do copista. Com as correções, temos:

si je muer par bone foi

Verso 23

A desprovençalização do texto de C fornece o texto adequado que, praticamente, se confunde com o de f. A preposição por deste manuscrito é má leitura do copista para par. Não consideramos adequado, do ponto de vista de fluidez da mensagem, eleger a conjunção mais, como fizeram alguns editores. É preferível e. Temos, então:

e ja par nule maniere

Verso 24

A lição do ms. f não precisa aqui sofrer qualquer alteração e ME se confundem com ele. Assim:

no.m partrai de vostre loi

Assim se reconstitui a estrofe francesa:

Belle, douce, dame chiere,
a vos me doins e m'autroi;
mais non avrai joie entiere
Si ne vos ai e vos moi.
Molt estes male guerriere,
si je muer par bone foi;
e ja, par nule maniere,
no.m partrai de vostre loi
.

Verso 45

Também neste verso é melhor o texto de f, com ligeira alteração ortográfica:

si cele que j'ai plus chiere

Verso 46

Significativamente, o manuscrito f apresenta o verbo tuer no presente, o que está de acordo com o sentido geral da estrofe. Nos outros manuscritos usa-se a forma do passado, tua. Não achamos que no, dos mss. CR, seja melhor. Pelo ritmo do verso, a forma tônica non deve ser evitada. O pronome átono, como observamos em relação ao verso 18, deve assumir a forma me. Assim, temos:

me tue, ne sai por quoi

Estrofe gascã

Verso 25

Todos os manuscritos, menos M, apresentam a forma dauna e todos, menos o C, apresentam a forma verbal rent. A predominância aqui de rent e sua existência, na estrofe francesa, só no ms. C, confirmam a lição por nós escolhida naquele verso (doins) e sugerem, neste, a sua permanência. O ms. f, mais uma vez, encerra o melhor texto, embora apresente rend, com d final. Este d final deve ser considerado como um cruzamento da tendência provençal de enfraquecer consoante final com o hábito gascão de sonorizar c, p e t depois de nasal.(247) Embora esse fato não ocorra com essas consoantes quando em posição final absoluta, pode ser tido como realização do poeta em função do fato de formar o verbo palavra fonética com a preposição seguinte. Assim considerando, o d final de rend, em f e M, é mais uma evidência da proximidade do ms. f do original de Raimbaut. Temos, então:

Dauna, io mi rend a bos

Verso 26

Deve-se desprovençalizar o advérbio eras tanto do ms. C quanto do f. A forma gascã é ara e a lição do ms. f. assim fica redigida:

car ara m'etz bon'e bera

Verso 27

A correção de es do verso anterior para etz obriga à consideração deste verso como continuação dele. Para isso é necessário levar em conta, em relação à primeira palavra, um conglomerado gráfico como o que aparece no ms. M: qanc. Já notamos que entre f e M há relação e parece que se prendem a uma mesma família original de cancioneiros ou de cópias de cantigas. O sentido do verso é difícil e escapou ao copista de f, que adotou a estranha solução ancse. Parece-nos, salvo melhor juízo, que temos aqui um dos casos de generalização da partícula que. Lembra Rohlfs que ela é usada no vale alto do Garona quando se trata de dar à frase um tom mais vigoroso, como em "que non ès cap arriche!" ("não és rico nada!").(248) O poeta vai descrevendo as qualidades de agora da dama e faz uma pausa para dizer do passado, retomando, após, o fio de elogios:

"car ara m'etz bon'e bera
- q'anc foutz! - gaillard' e pros
".

Em português:

" pois sois para mim boa e bela
- e jamais fostes assim! - alegre e orgulhosa.

Não nos parece boa a solução de alguns editores no sentido de dar a "q'anc foutz" o valor de comparação em relação ao que se disse antes. O poeta não está comparando, está afirmando e o faz apresentando as qualidades da dama, duas a duas (bon'e bera x gaillard'e pros). Fos, do ms. M, é redução do mesmo tipo de etz: fos î foutz.(249) O problema da métrica se resolve com a presença de um que independente. Desta vez o manuscrito f não é o melhor e sim M. Temos, então:

- que anc foutz! - gaillard'e pros

Verso 28

Os mss. f e a1 se unem aqui para evidenciar a existência, no original, de uma forma normal gascã de imperfeito do subjuntivo. Ambos apresentam fossatz, que refletem o gascão foussatz.(250) Vimos, no verso anterior a redução de ou a o em foutz. Em conseqüência, a lição de CEMR é provençalizante. Quanto a hossetz, do ms. Sg, deve-se atentar para o fato de que só no século XIII começa a ser usado h no lugar de f inicial em território gascão, fato que se generalizou, como na Espanha, no século XV.(251) Na época de Raimbaut, usava-se f. Neste verso, também vigora a lição do ms. f:

ab que no.m foussatz tan fera

Verso 29

Os mss. C e f apresentam, em relação ao substantivo faissos, o pronome indefinido mout, no plural. Acontece, porém, que o copista, ao fazer isso, fez concordância ideológica. De qualquer forma, mesmo considerando o termo como advérbio, sua posição, antes do verbo, é forçada. Preferimos acolher a lição dos mss. C e f, pois a concordância à distância pode ressaltar intenção estilística, por parte do poeta. Assim, temos, de acordo com o manuscrito f:

motz abetz beras faisos

Verso 30

Como Luchaire já assinalou, no século passado,(252) noera, dos mss. f, R e Sg, é alternativa, para nabera, que ocorre no Béarnais. Sendo noera, é de região muito mais ampla (Gasconha oriental ou central). Ficamos com esta forma. Ab faz mais sentido por ligar diretamente color a faisos (ares, semblante). Em conseqüência, a lição inteira do ms. f deve

ser acolhida:

ab color fresqu'e noera

Verso 31

Em C, a forma vos, com v, não é gascã, que tem repugnância a esse som.(253) A forma verbal agos, tal como aparece em f deve ser aceita, ao contrário da provençal agues, do ms. C. Em gascão a forma correta posterior seria agoussi, mas, no tempo de Raimbaut, como se pode colher no Recueil de Luchaire, usava-se a forma agos para o pretérito imperfeito do subjuntivo do verbo auer. Eis o texto do ms. f:

bos m'abetz e si-bs agos

Verso 32

O problema deste verso foi já resolvido por Crescini.(254) O ms. a1 pressupõe, em seu texto, a forma destrengora, que é também, do ms. M. Este, como temos visto, revela muitas vezes a lição original de f. Surpreendentemente, f, que tem observado estritamente o uso de f em lugar de h, aqui não o faz, o que nos leva a supor que, neste verso, o copista se confundiu. A lição de M, deve ser acolhida:

no.m destrengora fiera

Verso 47

A lição de f é a melhor e a que mais coerência mantém com os versos anteriores. O texto de C está truncado e, em f, deve-se mudar e, resultante de he (que contraria a métrica), para fe. Temos então:

Dauna, fe que deig a vos

Verso 48

Ni tem valor de e neste verso. Omite-se a preposição de em todos os manuscritos, como já aconteceu no verso anterior com per.

Texto de f:

ni pel cap Santa Quitera.

Fica, assim, reconstituída a estrofe gascã:

Dauna, io mi rend a bos
car, ara, m'etz bon'e bera
- que anc foutz! - gaillard'e pros,
ab que no.m foussatz tan fera.
Motz abetz, beras faisos
ab color fresqu'e noera.
Bos m'abetz e, si-bs agos
no.m destrengora fiera
.

Estrofe galego-portuguesa

Por ocasião do 3º Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas, apresentamos comunicação sobre um personagem do século XII português e, devido ao seu relacionamento provável com Raimbaut de Vaqueiras, incluímos como apêndice da publicação das Atas do Congresso a leitura do Descordo Plurilíngüe, que fizemos para a primeira versão deste trabalho, redigida em 1980.(255) Da mesma consta, naturalmente, a estrofe galego-portuguesa, que é a reprodução da leitura de Jean-Marie D'Heur, considerada por nós satisfatória naquela ocasião.(256) Consideramo-la ainda hoje muito boa, mas é preciso reavaliá-la junto com as dos demais editores para aperfeiçamento de vários pontos. As obscuridades dos textos de todos esses editores têm tornado muito difícil a compreensão da estrofe galego-portuguesa nas traduções tentadas.

Revelam-se os manuscritos que a reproduzem, em seu aspecto geral, muito confusos e isso põe em evidência uma certa incompreensão, por parte dos copistas, do idioma dos trovadores portugueses e, em conseqüência, uma atitude interpretativa que teve como base, em primeiro lugar, seus próprios idiomas nativos e, em segundo, os dialetos ibero-românicos, principalmente o castelhano, o aragonês e o leonês.

Em seu aspecto geral, as leituras do primeiro verso galego-português têm sido satisfatórias, com exceção de vosso, que substituímos por vostro para definir um aspecto importante que parece permear a personalidade de Raimbaut de Vaqueiras quando compãs o Descordo Plurilíngüe. Esse verso inicial da estrofe merece ser comentado com detalhes porque, em nossa opinião, é o que a define melhor como galego-portuguesa.

Já o verso 37 ajuda a entender como devem os copistas ter identificado a língua da estrofe. O verso extemporâneo do fim tem nítido caráter de glosa diante de dificuldades de interpretação de um copista em determinado momento da transmissão. Devido às características dessa glosa, ao número de manuscritos que a adotam e à posição relativa deles dentro da história da formação dos cancioneiros provençais, não há como prescindir do caráter mais amplo da lição de R para o verso 40 e da estrutura de a1 para a reconstituição do mesmo. Como veremos, a1 é a fonte principal para se vislumbrar o original da estrofe galego-portuguesa.

Os versos galego-portugueses da tornada, que fecham a composição, devem ser relidos para melhor compreensão. Passemos à análise de cada verso.

Verso 33

A presença de conjunção no início deste verso indica claramente que se está diante de oração subordinada. A conjunção adversativa mas, representada por mais, no ms. f e por mas em CEM está em desarmonia com o sentido do segundo verso que, pela ordem natural das orações coordenadas adversativas, deveria abrir a estrofe. Além disso, a intensificação do verbo temer, dada pelo advérbio tanto, presente em CEfMSga1 e só ausente em R, corresponderia, sem a precedência de uma conjunção, a uma solução semântica natural no segundo verso: Temo tanto o vosso procedimento / que fico todo atormentado. Como, porém, não há conjunção inicial no segundo verso, ao contrário do primeiro (à exceção do ms. Sg), é forçoso concluir que a adversativa mas não cabe no início desta estrofe. O que sobra? Car, de R e qe, de a1.

O uso de que, como causal ( = já que, porque), em início de período, não é atestado entre os trovadores. Ou seja, a solução de a1 (Qe tan ten el vostre pleito / don soi escarmentado) se insere mais propriamente em um contexto de não compreensão, pelo copista do cancioneiro de Bernart Amoros, do original que tinha em mãos. Chega a ser incompreensível por força do don do verso 34 e não seria usada por nenhum trovador de mérito.

Resta a conjunção car, do Ms. R, que se adapta perfeitamentamente à estrutura formal e semântica do texto e é um francesismo natural do copista do cancioneiro La Vallière, tão próximo, em seu trabalho, ao aspecto geral do ms. f. E esta forma francesa torna-se mais natural ainda diante de uma conjunção causal que os trovadores portugueses tanto usavam: ca (lat. quia).(257)

O advérbio de intensidade que modifica a forma verbal (tan - mss. MEa1; tãt - ms. f; tant - ms. C; tanto - ms. Sg) oferece um caso comum, no português arcaico, de haplologia sintática pois se trata de tam < tantu.(258) Em conseqüência, as formas de C (tant) e f (tãt) refletem uma influência francesa, embora o espanhol pudesse também explicá-las(259), caso os manuscritos em causa não fossem do território francês. Tanto, de Sg, é, claramente, forma interpretativa, eleita pelo copista.

A forma verbal deste verso aparece como temo em CfMRSg, teme, em E, e ten, em a1. As duas últimas indicam compreensão limitada do que se encontrava no original. Não são formas que tenham algum significado lingüístico particular. Já temo encerra o problema de se tratar de forma verbal pura ou de elisão de temo com o artigo definido o. Huber(260) acha que nos textos mais antigos o artigo é menos usado antes do pronome adjetivo possessivo. A constatação parece válida relativamente a textos não literários e do ângulo cronológico. Os textos poéticos, por suas exigências rítmicas, aceitavam mais a elisão porque a articulação da vogal postônica final se fazia segundo um ritmo de enunciado mais ascendente do que o do português de Portugal de hoje e isso, ao lado de outros fenãmenos, como, por exemplo, a colocação do pronome átono, configurava uma etapa já relativamente avançada do enfraquecimento do acento de intensidade latino.(261) Dentro dessa perspectiva, temo é conglomerado gráfico de temo o e deve ser representado, na presente edição, por tem'o.

O problema do pronome adjetivo possessivo que vem após tem'o é mais complexo e pode ser uma relíquia do arquétipo w, por nós apontado acima, quando estabelecemos o cânone possível do Descordo, para todos os manuscritos da Península Ibérica que constituem o grupo ocidental e do qual Sg faz parte. Como dissemos na ocasião, esse arquétipo e o manuscrito f são dependentes de um contexto grego. Definimos este como um conjunto de manuscritos produzidos na Grécia após 1203 e levados para lá por participantes da IV Cruzada. O grupo ocidental identificamos como um conjunto de manuscritos catalães dependente, em grau variado, da vida grega de famílias catalãs após 1203.

Dentro desse raciocínio, pode-se explicar o fato de, em relação ao pronome adjetivo que agora nos ocupa, todos os manuscritos mostrarem, neste verso 33, formas que não têm base no português: uostre, ms. E, uostre, ms. f, uostre, ms. R, uostre, ms. Sg, Vostre, ms. a1, uostro, ms. C e uostro, ms. M. As formas uostr, ms. C, v. 42, uostr, ms. f, v. 42, uostra, ms. R, v. 24, uostra, ms. Sg, v. 24, uostre, ms. C, v. 24, uostre, ms. E, v. 24, uostre, ms. f, v. 24, uostre, ms. M, v. 24, uostre, ms. R, v. 42, uostre, ms. Sg, v. 42, Vostr, ms. a1, v. 19 e Vostre, ms. a1, v. 24, indicam, adicionalmente, que não houve copistas, para o Descordo Plurilíngüe, que fosse português.

De fato, não há registro de vostro no português medieval, embora haja de nostro e, assim mesmo, em expressão religiosa claramente latina: Nostro Senhor Jesus Cristo. Vários trovadores a empregam. O caráter religioso erudito se comprova pela coexistência, na época, da expressão nosso senhor el rey, em que o pronome é português.(262)

Ora, esta situação depõe em favor de o original de Raimbaut de Vaqueiras ter tido vostro e não vosso, como era a regra naquela época e nas anteriores. Por que teria o poeta usado vostro e não vosso?

Acreditamos que Raimbaut tinha relacionamento com portugueses, mais provavelmente portugueses de profissão religiosa ou trovadores que, por usarem com freqüência a expressão Nostro Senhor Jesus Cristo, influenciaram o poeta a construir, por analogia, vostro, que não existia em galego-português. Veremos, mais tarde, que esse indício é coerente com outros de modo a esclarecer um aspecto importante da vida do trovador da corte de Monferrato.

A finalidade declarada do presente estudo é levantar uma realidade lingüística original, para o Descordo Plurilíngüe, que seja coerente com a prática, em inícios do século XIII, das línguas escolhidas por Raimbaut. Como, porém, o pronome adjetivo aqui considerado tem importância para esclarecimento do contexto histórico-cultural da composição e, talvez, para a biografia do poeta, a forma da edição crítica deve ser vostro e não vosso. Trata-se, pois, de exceção à regra de se restabelecerem as línguas da época de Raimbaut.

A última palavra do verso 33 é preito, que o ms. Sg. reproduz. As demais podem denotar interferência de outras línguas, como veremos a seguir.

Já dissemos que as escrituras dos manuscritos do Descordo vão do século XIV ao XVI. Mais de cem anos, portanto, depois do período histórico de vida de Raimbaut de Vaqueiras, o que pressupõe arquétipos em outros cancioneiros ou em pequenos cadernos perdidos ou em folhas volantes.

A provável origem narbonesa do ms. C, a que chegou Jacques Monfrin em análise lingüística,(263) faz da forma plaito uma provençalização do original. Tanto o provençal quanto o francês tinham, para o sentido dado à palavra por Raimbaut de Vaqueiras - "dever feudal do senhor para com seus vassalos e viceversa(264) - a forma plait. Muito embora se encontre, na língua dos trovadores portugueses pleito, não é possível considerá-la como a original de Vaqueiras porque seu uso era basicamente o de "demanda, questão judicial", conforme atesta o verso E d'atal pleito punhad' en guardar (Michaëlis, CA, 269; Tavani, Repertorio, 183:15). As formas dos mss. E (pleito), a1 (pleito) e R (pleyto), indicam uma crença, por parte dos copistas respectivos, no sentido de ser castelhano o termo sob sua análise.

Por sua vez, f (pleto), e M (pletto) pressupõem intermediação do catalão, caso provável do ms. f, ou má leitura de um i ou de um c, após a primeira sílaba, por parte do copista de M.

O ms. Sg, mais uma vez, estaria como uma relíquia do arquétipo w, por nós apontado acima. Sendo esse arquétipo e o manuscrito f dependentes de um contexto grego, ou seja, conjunto de manuscritos produzidos na Grécia após 1203 e levados para lá por participantes da IV Cruzada, inclusive membros de famílias catalãs, estaremos, com os dois, próximos do original do poeta. Neste deve ter havido, realmente, preito, representado pelo ms. Sg, com primeira alteração operada por copista ou copistas, ligados ao contexto grego, que deram origem parcial ao ms. f.

Em resumo, o verso 33, testemunha, provavelmente, os seguintes fatos:

1 - Raimbaut de Vaqueiras escreveu o Descordo Plurilíngüe dentro de um contexto religioso.

2 - A estrofe galego-portuguesa do poema indica, na linha de transmissão, relacionamento com um contexto grego de inícios do século XIII.

O verso 33 assim se reconstitui:

Ca tan tem' o vostro preito

Sentido do verso:

Porque temo tanto o vosso preito

Verso 34

Considerando-se, neste verso, a quase unanimidade dos manuscritos no uso do termo "escarmentado" (f, escaramentado; M, estarmentado),(265) o problema aqui é o deslinde das palavras iniciais.

Massó y Torrents, em 1907, e Bertoni, em 1937, foram os únicos editores que deixaram de nasalizar, neste verso, o pronome indefinido todo, em função adverbial. D'Heur também não o fez, mas introduziu o pronome eu após todo. Esta nasalização da sílaba final aparece em seis dos sete manuscritos (CEfMRa1), já que apenas Sg não procede desta maneira. Massó y Torrents foi quem descreveu diversos manuscritos catalães, entre os quais o ms. Sg. Bertoni, editor de a1, preferiu a lição de Sg ao apresentar o Descordo em seu livro sobre as antigas poesias provençais.(266)

Não vemos nenhuma necessidade de pronome pessoal no verso 34. Basta confrontar o presente emprego de todo com uma de suas possibilidades, a adverbial, de uso medieval e moderno:

A fremosura de seu rostro era toda desfeita com grande asteença e com as vigilias e com as lagrimas.(267)

Fiquei atõnito, todo maluco.(268)

Escarmentado e escarmentar aparecem documentados nas cantigas de escárnio e maldizer com os sentidos de experimentado, advertido, no primeiro caso, e exemplar, castigar, experimentar. Corominas(269) já atesta escarmentar em 1140, o que significa ter usado Raimbaut de Vaqueiras um termo corrente no galego-português. A forma estarmentado, do ms. M, é evidente má leitura do original que o copista tinha à mão. A forma escaramentado, do ms. f, proveniente de *escramentado, pronúncia possível de escarmentado, é inusitada porque a anaptixe ou suarabácti denotaria mão de copista lusitano, tão disseminado, ao longo dos séculos, tem sido, no território português, esse tipo de epêntese. Pode-se aventar a hipótese de, entre os arquétipos de f, na parte correspondente ao Descordo, tenha alguma mão portuguesa produzido a epêntese do a, o que nos levaria a considerar como possível, no original de Vaqueiras, ter ocorrido a forma escramentado e não escarmentado. Como todos os manuscritos, inclusive Sg, mais diretamente ligado a um contexto grego (Cf. o "Cânone possível do Descordo", que estabelecemos acima) consagram a forma escarmentado, é improvável que não tenha esta sido usada por Vaqueiras.

A origem do vocábulo continua controvertida, conforme informam os etimologistas Antenor Nascentes e José Pedro Machado. A leitura do verso 34 deve, portanto, ser a mesma do copista de Sg, como fez Massó y Torrents:

todo son escarmentado

Sentido do verso 34:

estou todo castigado

Versos 35 e 36:

Estes versos só podem ser compreendidos em conjunto. O grande problema do 35 é seu final, que a maioria dos manuscritos tratou como uma só palavra: maltreyto (C), maltreito (E), maltreito (f), maltreito (M), maltraito (R), e maltreyto (Sg). Estes manuscritos dão ao verso sentido que prescinde do do verso seguinte.

Isso, porém, não acontece com o manuscrito a1. Nele, há mal traito, em que mal, além de ser termo independente, funciona como substantivo em correlação com ben.

De fato, em a1, a frase p vos el ben el mal traito, significando "por vós, o bem, o mal trazido", necessita de continuar semanticamente no verso seguinte, e mon corpo l'ei serrado, ou seja, "em meu corpo o fechei".

O copista italiano tratou "bem" e "mal" como conjunto que sintetizou, no verso seguinte, no pronome l', que esta contraído à forma verbal ei. Serrado é o particípio passado de serrare, verbo italiano, que o copista julgou encontrar, com o mesmo sentido, na forma do original que tinha diante de si, que podia ser, naturalmente, lasserado e que ele acreditou estar errada. Se foi isso que aconteceu, sua interpretação só se viabilizaria no caso de ser a primeira palavra do verso uma preposição en e não uma conjunção e. A possibilidade é real porque e está diante de palavra com nasal inicial, mon. O sentido dos versos de a1 fica claro da seguinte forma:

"O bem, o mal trazido, encerrei em meu corpo."

Este significado não pode ser, naturalmente o do original porque o copista teve uma compreensão equivocada, como já assinalamos, de "lazerado", com esta forma ou, mais provavelmente, "lasserado". O fato, porém, de CEfMRSg conterem a mesma mensagem faz com que tenham de ser opostos à de a1:

CEfMRSg - "é meu corpo lazerado

a1 - em meu corpo encerrei".

E, dado significativo, o mesmo tipo de oposição existe no verso anterior (CEfMRSg / a1):

CEfMRSg - "por vós tenho pena e maltrato

a1 - por vós o bem, o mal trazido".

Seis manuscritos se opõem a um manuscrito tanto no verso 35 quanto no 36. Vejamos qual solução é viável, a de CEfMRSg ou a de a1.

Da forma como se apresentam os mss. CEfMRsg, o final do verso 35 constitui uma só palavra, maltreito, que funciona como objeto direto de ei, do mesmo modo que pena. Ocorre, como observou judiciosamente Jean-Marie D'Heur,(270) que não se empregava, no galego-português, o substantivo maltrato, o que invalida a ocorrência, no verso, de aver como verbo principal. Se isso não é possível, qual a solução?

Carolina Michaëlis de Vasconcellos apresenta em seu Glossário do Cancioneiro da Ajuda a expressão trager mal:

"trager mal e mal trager - no sentido de maltratar, era freqüente na linguagem arcaica, embora no Cancioneiro da Ajuda haja um único exemplo: 9058. Vi. CV 186,4 e 7; 263,2; 384,5; simples trager (come can) 1085,7."

Neste caso, a parte final de maltreito torna-se o particípio passado de trager e passa a ter mal, substantivo comum, como objeto direto: per uos ei pen' e mal treito, "por vós trouxe dor e mal". O conjunto "pena e mal" não têm rendimento estilístico ou semântico porque seus componentes são sinãnimos. É pouco provável que um poeta com os recursos de Raimbaut fosse inventar construção tão pobre. Além disso, o verso seguinte nada ganha com tal construção. Ao contrário, se pene (pen' e) for considerado como leitura errada de um original bene (ben' e), o quadro semântico muda quando nos lembramos do que apresenta o ms. a1. Nele, traito compõe-se com bem e mal sem necessidade de verbo auxiliar: el ben el mal traito en mon corpo l'ei serrado - "o bem, o mal trazido por vós, encerrei em meu corpo." O sentido é perfeito só que sobre um termo não compreendido, *lasserado, expresso com três palavras, l'ei serrado.

Para a construção do verbo trager, o Cancioneiro da Ajuda, verso 2375, apresenta a preposição en: e trage-m'en gran coita voss'amor, "E traz-me em grande dor o vosso amor".

Huber, em sua gramática, dá exemplo de viir, indicando movimento direcionado com a preposição en: viir em mente, "in den Sinn kommen".(271)

Carolina Michaëlis de Vasconcellos dá exemplo sugestivo: por que en esto sõo chegado, "porque a isto cheguei".(272)

A lingua normal de hoje diz, por exemplo, Trouxe em seu coração ...; chegou na cidade ...

Em conseqüência do exposto, os versos 35 e 36 devem ser lidos da seguinte maneira:

per uos ei ben' e mal treito

en meu corpo lazerado

Seu sentido assim se apresenta:

Por vossa causa tenho bem e mal trazido

ao meu corpo malferido

Verso 37

O primeiro fato a ser destacado é a unanimidade da forma la (CEfMRSga1) como parte de uma expressão adverbial no início do verso. O português arcaico, para indicar tonicidade, dobrava a vogal desde os primeiros documentos escritos: aa, oo etc. No caso, por se tratar de parte de um adjunto adverbial um eventual aa do original, seria de se esperar sua substituição por copistas que não tivessem como possibilidade de interpretação o uso lingüístico, pelo poeta, de uma língua que lhes era desconhecida, o galego-português. A tendência seria, pois, a substituição da preposição original, aa, parte da locução adverbial aa noite, e atestável nos textos medievais portugueses,(273) pela forma la, que está presente no restante da România Ocidental. A duplicação da vogal tãnica, para indicar tonicidade, já é encontrável no primeiro documento português, a Notitia de torto:

xii a casaes por arras d' sua auoo

e fecerun-les tã maa prison(274)

A substituição de aa por la teria sido resultante do caráter estranho da forma para o copista do arquétipo. Julgando-a um erro, teria visto nela o que é geral na România, a forma la. Trocou, então, o primeiro a por l. Aa é uma prova de que os primeiros copistas, na primeira metade do século XIII, ignoravam a existência de uma individualidade lingüística no ocidente da Espanha. Daí sua tendência a dar ao texto formas castelhanizadas ou menos frequentemente, de outros dialetos hispânicos.

Torna-se significativa, então, a constatação de contraste, neste verso, entre os grupos de formas nueyt-nueit-nueg, neit-nuyt-noit e not. Assim, CER exibem a ditongação crescente que opõe os dialetos hispânicos à área lingüistica galego-portuguesa e, neste sentido, se opõe à ditongaçåo decrescente de fSga1 e a monotongação de M. As formas de CER parecem indicar que os respectivos copistas tinham uma certa crença no sentido de que a estrofe teria sido escrita por Raimbaut ou em leonês ou em aragonês, que ditongam e e o abertos antes de yod, como em nueche e fuella.(275) Como, em certos casos, o leonês conserva o o (bono, ponte) e o aragonês não realiza a palatalização da consoante palatalizável seguinte (nueyt) e esta última situação está presente em M e a1 (not, noit), pode-se concluir terem-se dividido os copistas de visão espanhola na consideraçåo do leonês ou do aragonês como dialeto hispânico usado por Raimbaut nesta estrofe. Tanto estes fatos quanto a unanimidade, já referida, no uso do artigo la e o uso do artigo el três vezes por a1 (versos 33 e 35) e uma vez por M (verso 36) indicam realmente que nenhum deles chegou a pensar especificamente em galego-português como fonte lingüística da composição. Isso pode significar que a busca da identificaçåo lingüística da estrofe não galo-românica de Raimbaut de Vaqueiras se calçava em algum conhecimento das condições históricas de produção do Descordo Plurilíngüe, conhecimento no sentido de o poeta ter escrito em língua de Espanha difícil de identificar. Dentro dessa visão, os dois primeiros termos do original devem ter sido aa e noite, com t palatal e sem vogal final, como ainda hoje, dialetalmente, e valendo como monossílabo. Isso explicaria as formas noit e not, dos mss. a1 e M. A conjunção "quando" (quan, cãt, qa, can, con), também presente em todos os manuscritos, seria um obstáculo à métrica do verso se se tomasse noite como dissílabo. Sendo articulada como monossílabo por força da palatalização do t e da pausa após seu enunciado, como parte de uma adjunto adverbial de início de verso, deixa de haver esse problema. Na verdade, não é possível, semanticamente, descartar o quando do original. O ms. a1 espelha, em conseqüência, maior proximidade com o original. Tomando-o como referência, a única modificação significativa fica sendo o la, por aa. Men é evidente má leitura para meu e jaç' se justifica plenamente por ser muito mais comum, em seu sentido, no galego-português dos trovadores do que son. O uso deste, na estrofe, se tornaria excessivo, o que Raimbaut repeliria. O verso 37 assim se reconstituiria:

Aa noit', quando jaç' en meu leito,

Seu sentido:

À noite, quando estou em meu leito,

Verso 38

Neste verso, distinguem-se três grupos: CEf, MR e Sga1. MR se aparenta a CEf através das palavras iniciais, que são formas do verbo seer e do pronome adjetivo castelhanizado mochas; de Sga1 se aproxima através da conjugação de ues / fes com a sílaba inicial da palavra seguinte, es..., de modo a reproduzir o substantivo vezes em ues-es... (M) e fes-es... (R).

Como resultado, surge uma oposição mais ampla na base de resperado / pe...ado: CEf contra MRSga1. Comecemos a buscar o original nesta última oposição.

Como assinalou D'Heur, resperado e sua variante reparado são um provençalismo.(276) Da forma original galego-lusitana vemos que só aproveita a terminação de particípio passado. Trata-se, pois de realizações posteriores do original de Vaqueiras.

pe...ado pode incluir as formas galego-portuguesas autênticas penado e pensado. A primeira, em M e Sg; a segunda em R e a1. A decisão sobre qual das duas deve ser a original fica subordinada à natureza do verbo inicial porque a expressão medial não deixa dúvidas sobre tratar-se do galego-português muitas vezes, nasalizado como muintas vezes, na lição subjacente a Sga1.

Em M, so indica a visão de um son no original. Em R, sos é a mesma coisa, embora contaminado pelo s do plural que se segue, o que denota confusão da parte do copista.

Sg tem en ay ao passo que a1 apresenta ei. Provavelmente a primeira forma resulta de eu ei, em que en é má leitura para eu e ay, forma paralela tipicamente galega (ayo) de ei.(277) Esta forma galega, ay, em seu aspecto original (ayo ou ajo) provocaria problema de métrica se permanecesse com duas sílabas, como era normal. Devemos descartá-la, portanto.

O resultado, até agora, indica que as duas hipóteses em jogo são son muintas vezes penado (pensado) e ei muintas vezes pensado (penado).

A decisão fica por conta da harmonia semântica com o verso anterior e o seguinte:

À noite, quando estou em meu leito

tenho muitas vezes pensado / sou (ou fico ) muitas vezes magoado

Em nossa opinião, o original continha ei muintas vezes pensado, em perfeita harmonia também com os versos seguintes, como veremos.

O verso 38 fica, assim reconstituído:

ei muintas vezes pensado

Sentido:

tenho muitas vezes pensado

Verso 39

Mais uma vez o grupo CEf se distingue dos demais. E, igualmente, pelas palavras iniciais. A oposição se faz entre por uos e e car. É óbvio que, no primeiro caso, o poeta, iniciando nova ordem de idéias, vai soltar um queixume já que inicia seu pensamento com uma declaração de causa, de motivo: por vós, por causa de vós, por vossa causa, eu ... No segundo, todavia, não se inicia pensamento novo mas se liga o que se vai dizer ao que foi dito. Nisto consiste a oposição entre CEf e MRSga1: encerrar o pensamento anterior com o enunciado de um novo ou dar continuidade ao que se dizia.

O que o poeta vinha dizendo era:

À noite, quando estou em meu leito

tenho muitas vezes pensado

Tem ele necessidade de dizer o que lhe ocupa o pensamento ou, então, de dar uma explicação sobre o seu pensar à noite e no leito.

CEf pouco ajudam no deslinde dessa alternativa e, praticamente, indicam que seus copistas muito pouco ou nada entenderam do que estava escrito. É difícil, segundo D'Heur,(278) reconstituir a lição occitânica comum. Mas não é impossível.

O ms. f apresenta uma forma, profeito, em que um substrato provençal do copista não se manifesta necessariamente com o uso de f na segunda sílaba porque coexistiam as formas galego-portuguesas profeito/proveito e profeitar/proveitar.(279)

O verbo do verso, que parece estar contido na terceira palavra, tem o sentido de ser ou estar, com três formas: cre (C), ero (E) e era (f). Nenhuma se sustenta como algo que tenha significado próprio. São leituras que escondem, certamente, uma realidade cujos componentes têm real sentido. Não são, nem ao menos, formas alteradas do imperfeito do indicativo do verbo seer.

O ms. C apresenta melhores condições de entendimento do que pode ter existido nos arquétipos. Para isso, deve-se entender pro uos como expressão que completa o verso anterior: Assim o fizeram Raynouard, Galvani, Mahn, Fontanals, Balaguer, Michaëlis (Grundriss) e Michaëlis (Cancioneiro da Ajuda).

soy mochas ues resperado

pro uos,

Ou seja: sou muitas vezes despertado por vós, por vossa lembrança. Na continuação tomar-se-ia o c de cre como má leitura de e re, ao contrário dos editores há pouco citados, que identificaram neste :cre o verbo crer

e re e non profeito

Tomando-se re por ren, situação normal, do ponto de vista paleográfico, e e por eu, igualmente normal, teríamos:

pro uos, e ren eu non profeito

O ms. E não contém o e do hipótético eu, de resto dispensável porque profeito é a primeira pessoa do singular do verbo profeitar, ou proveitar, amplamente usado no português medieval. O resultado total seria:

pro uos, e ren non profeito

Desde o verso anterior teríamos, então:

sou muitas vezes despertado

por vós, e nada aproveito

José Joaquim Nunes alinhou numerosos exemplos de profeitar e de ren, este construído com non.(280)

Como dissemos inicialmente, o grupo CEf se distingue dos demais e essa oposição se faz entre as expressões iniciais por uos e e car.

A solução que apresentamos para o verso anterior exclui resperado, por ser provençalismo evidente. Vimos que a lição correta é:

À noite, quando estou em meu leito

tenho muitas vezes pensado

Diante dela, com o verbo pensar, torna-se natural um pensamento introduzido pela conjunção e, como é o caso de MRSga1. Para isso acontecer, a coordenação se deve fazer com o verso 40, ficando o restante do verso 39, após a conjunção e, como uma explicação que precede o arremate do pensamento feito com o verso 40. Tal explicação apresenta-se de forma variada em MRSga1:

qar noca ma porfeto M

car nõ clamey profeito R

can noy trob nuyl profeyto Sg

car re nomi profeito a1

Dessas realizações, a única que mantém coincidência com o deduzido de CEf é a1, com re. Esta coincidência é importante e, mais uma vez, indica que o ms. a1 é o que preserva mais fortemente a lição do original. Temos, nela, ren construído com non, como em CEf, mas seguido de um mi, que é forma pronominal tônica. Ocorre que a lição apresentada pelo copista de a1 contraria a métrica por não apresentar forma verbal. As soluções de R e Sg não têm sentido, mas não a de M:

e qar noca ma porfeto

Em M, ma porfeto decompõe-se em me a, como viram Bertoni, Hill & Bergin e D'Heur. Em nossa opinião, escapou ao copista de a1 justamente esta forma a do verbo aver, como está em M.

Profeito, então, apresenta-se como substantivo: E como nada tem proveito para mim ...

Assim se reconstitui, então, o verso 39:

e, car ren non mi-a profeito

Seu sentido:

e, como nada tem proveito para mim,

Versos 40 e 40a

Do ponto de vista da sintaxe, a solução de D'Heur para o verso 40 não se sustenta. De fato, falid'é en meu cuidado, por só poder ter sujeito de 3ª pessoa do singular, entra em descompasso semântico com o verso anterior:

37 - Aa noit', quando jac'en meu leito,

38 - ei muintas vezes pensado,

À noite, quando estou em meu leito

tenho muitas vezes pensado ...

O uso de falir, neste verso, com o verbo auxiliar seer, só é atestável uma vez nos cancioneiros portugueses.

Huber, ao tratar do pretérito perfeito composto, salienta que, para sua conjugação, usavam-se, no português arcaico, os auxiliares aver, teer ou seer, seguidos de particípio passado. O tempo ocorria com verbos transitivos, intransitivos e reflexivos. Para os verbos transitivos, usava-se aver ou ter; para os intransitivos, aver, teer e seer; para os reflexivos, teer e, mais raramente, aver.

Corrobora sua explicação com os seguintes exemplos:

a) intransitivos com aver: ei sonnado (sonhei), as dormido (dormiste), as errado (erraste), a andado ou ouve andado (ele andou), a chegado ou ouve chegado (ele chegou), a apareçudo ou ouve apareçudo (ele apareceu), a entrado ou ouve entrado (ele entrou);

b) intransitivos com teer: tinha ele ja andadas duas leguas, onde o verbo pode também ser considerado transitivo;

c) intransitivos com seer: é falido (er ist treubrüchig geworden - ele se tornou traidor, ele traiu), é apareçudo ou foy apareçudo (er ist erschienen - ele apareceu).

O exemplo dado por Huber para o verbo falir é um verso da cantiga nº 169, de D. Denis, do Cancioneiro da Vaticana, edição de Monaci.(281) Em Nunes, é a cantiga de amigo de nº XVII.(282)

Analisando os dois primeiros versos, no Glossário, vol III, p. 619, diz Nunes:

"falir, v. intr.: 3ª pes. do sing. do pres. do ind. fal, CLXIII, 2, seer falido, XVIII, 14, faltar. /Em XVIII, 14, não existe essa forma; deve ser erro por XVII, 14 / Nos tempos compostos conjuga-se com o verbo ser; assim é falido, XVII, 14, o mesmo é que faltou."

Deste modo, no verso citado por Huber (p. 230: Pesa-mi, pois per si é falido - Es druckt mich, da er so ganz und gar treubrüchig geworden ist), o sentido dado pelo filólogo alemão não é o mesmo de Nunes. Para Huber, a tradução seria: pesa-me, pois ele (o amigo) traiu completamente (ganz und gar). Para Nunes, pesa-me, pois enganou-se; pesa-me, pois faltou para si mesmo (faltou para consigo mesmo, cometeu uma falta em relação a si mesmo, enganou-se) já que mentiu o desmentido e isso me pesa (me causa pesar).

Em Raimbaut de Vaqueiras, cinco leituras dos sete manuscritos registram o verbo seer (falhit soy en mey cuidado - C; faillitz sui e mei cuidado - E; failhir soi en mõ cuidado - f; suy falido al cuydado - Sg; faillitz son e mon cuidado - a1. Duas assinalam o verbo aver: falit ei e mon cuidado - M; falhit ay a mõ caidado - R.

Segundo Corominas,(283) fallido é particípio passado do antigo verbo fallir, registrado este por volta de 1140 e, aquele, pela primeira vez, entre 1220 e 1250. As acepções são as de "faltar", "engañar", "abandonar", "pecar", "errar", do latim fallere, "engañar", "quedar inadvertido". Em francês, também esses sentidos são encontráveis.

Nota-se claramente, nos manuscritos, que a construção do verbo se faz com o verbo seer (ser, estar), tendo em vista a agramaticalidade, se é que se pode empregar este termo, do auxiliar aver.

Fallir encontra-se também no verso 40a. A importância desse verso extemporâneo está no fato de ser uma glosa que pressupõe um arquétipo não partilhado por dois manuscritos, a1 e R.

Ao tratarmos do do ms. C dentro do conjunto mais amplo dos códices trovadorescos - nenhum deles vai além da segunda metade do século XIII -, lembramos a relação de dependência, estabelecida por Gröber, com o Livro de Michel de la Tor, autor da Vida de Peire Cardenal.

Para Gröber e de acordo com o stemma que estabeleceu, houve três grupos de composições interpostos nos cancioneiros depois que os copistas passaram a utilizar o conteúdo do Livro de Michel de la Tor: r6, r6' e r6''. O primeiro, r6, é um grupo de composições presente no ms. R, e entre elas está o Descordo, com o nº 529. O segundo, r6', é um grupo presente em C e r6'', em M. Como dissemos na ocasião, tais grupos indicam conjuntos de composições com características formais próprias de modo a caracterizar-lhes, dentro do cancioneiro, individualidade distinguível. Trazidos ao manuscrito-cancioneiro por um ou mais copistas podem representar fontes e épocas diferentes.

O ms. R não contém o verso-glosa, 40a. Os ms. C e M contêm. Isso significa que a tradição de R, sendo independente de C e M no caso do Descordo, depõe em favor de uma lição antiga para o verso 40. E o ms. R é o mais antigo do conjunto de sete que contêm o Descordo, lconforme o raciocínio que desenvolvemos e que aqui repetimos:

"Gröber indica que o manuscrito R contém uma parte, R6, que abrange as cantigas 430 a 649 (com o Descordo sob o no 529) e sua fonte é um códice r6. No caso presente, por gerar r6 tanto r6' quanto r6'', torna-se veículo em momentos distintos da presença do Descordo Plurilíngüe em R, C e M respectivamente, o que é um indício de anterioridade de R em relação a C e deste em relação a M. O conteúdo de r6 o torna um sucedâneo imediato do Livro de Michel de la Tor. Este, por ser uma coletânea de composições de Peire Cardinal, organizada por Michel entre a morte do trovador e a do rei Jaime I, o Conquistador, de Aragão, deve ter sido redigido entre 1272 e 1276, o que significa que o conhecimento do Descordo, em função da genealogia dos manuscritos RCM, pode ter ocorrido neste período ou logo após, a partir da incorporação à fonte deles do conteúdo de folhas volantes. Estas, naturalmente, são mais antigas, porém podem ter-se originado tanto na França, principalmente entre Forcalquier e Marselha, quanto no Oriente. O próprio Peire Cardinal, que Michel de la Tor, muito provavelmente conheceu pessoalmente, reúne condições de vida para ser tido como proprietário de algumas dessas folhas volantes mais antigas pois, ao morrer quase centenário, exibia uma produção poética que começara em 1205, quando Raimbaut de Vaqueiras era vivo. Além disso, esteve vinculado aos condes de Toulouse e há indícios de que frequentou a corte dos Baux."(284)

Diante dessas evidencias de antigüidade e de independência do ms. R, a conclusão a que se chega é no sentido de a lição desse manuscrito para o verso 40 ser uma das que devem ser consideradas para maior proximidade com o original de Raimbaut de Vaqueiras, As outras são a1, f, e Sg:

falhit ay a mõ caidado R

failhir soi en mõ cuidado f

suy falido al cuydado Sg

faillitz son e mon cuidado a1

Não significa o raciocínio apontado que a lição de R seja a mais confiável, já que, a partir do tempo de r6 cópias se fizeram até se chegar ao ms. R, que hoje possuímos. Desta maneira seu conteúdo primitivo está alterado. É preciso confrontá-lo com os demais (f, Sg e a1), para se chegar ao original. Neste caso, saltam aos olhos certos erros de copistas:

1 - falhir, no ms. f, devido à composição com soi, é erro de leitura para falhit.

2 - ay, no ms. R, não cabe como auxiliar (aver) verbal.

3 - caidado, no mesmo manuscrito, é erro evidente.

4 - suy, no ms. Sg não é forma galego-portuguesa, embora falido seja

Dos quatro, o mais coerente é a1, "faillitz son e mon cuidado", onde faillitz e mon estão por falid e meu.

Em resumo: O verbo seer está na primeira pessoa do singular e disso se convence o investigador porque a 1ª pessoa está presente na parte antiga do ms. R, de tradição independente. Falid, na acepção de "enganado", que desde o latim lhe pertence, está em harmonia não só com o verso anterior mas também com o verso extemporâneo 40a, que tem a função de explicar o sentido que os copistas viam em um original certamente difícil.

O nono verso, que aparece na maioria dos manuscritos (C: mais que falhir non cuydeyo; E: mais que faillir non cuideio; f: mes que failhir non cudeio; Sg: pus que falir no cuydey) é certamente, como já deixamos claro, uma glosa posterior do último e assim tem sido considerado pelos editores. O ms. a1 não faz glosa alguma. Confunde-se, repetindo aí o último verso da estrofe italiana: p qieu no men partirei. Me é trocado por men e partiro por partirei.

Em vista do exposto, os versos 40 e 40a assim se reconstituem:

falid son en meu cuidado

(mais que falir non cuidei)

O sentido geral dos versos 39, 40 e 40a pode agora ser apresentado com clareza:

Verso 39: E, como nada tem proveito para mim,

Verso 40: enganado estou em meu cuidado.

Podemos antecipar o sentido da glosa do

verso 40a: Mais do que em enganar-me cuidei.

Ou:

E, como nada tem proveito para mim, (vejo que) enganado estou em meu cuidado, (em minha preocupação). (Mais do que em enganar-me cuidei).

A seguir, analisamos os versos galego-portugueses da tornada.

Verso 49

Quanto ao dístico galego-português da tornada e, em particular, o verso 49, é nossa opinião ter estado a forma provençal avetz logo nas primeiras versões do Descordo. A forma galego-portuguesa avedes leva à contagem de oito sílabas métricas.

É possível, então, que a contagem silábica se tenha feito na base de uma pronúncia "aved's", que teria originado a forma provençal avetz. Esta é a explicação cabível diante da lição de f, m'aves, evidente indício da pronúncia assinalada. Assim, temos:

mon corasso m'aved's treito

Verso 50

Este verso é híbrido. Por razões absolutas de métrica, não pode ser admitido aqui o uso total da língua portuguesa. Na verdade, só a conjunção inicial e o verbo final (e, furtado) podem ser normalmente aceitos como formas galego-portuguesas. Como explicar o uso do provençal aqui? Tratando-se de uma composição cantada, em que o auditório estaria buscando entender os versos em língua estrangeira, decidiu certamente o poeta intercalar no verso final, um sintagma provençal. A oração intercalada, nesse caso, tem valor estilístico e deve ser toda ela transcrita em provençal: molt gent faulan. Em conseqüência, o manuscrito catalão Sg é o correto, sem alterações. Mais uma vez, esse manuscrito vem esclarecer situações. Por resultar isoladamente de um contexto grego, segundo o cânone provável que estabelecemos na página 78, junta-se a a1 e f para permitir o entendimento dos versos galego-portugueses. No entanto, o manuscrito f reflete bem a lição original, com como única alteração mais forte. O texto do verso 50 passa a ser, então, o seguinte:

e - molt gent faulan - furtado

Ficam, assim, reconstituídos os versos da estrofe galego-portuguesa e o dístico da tornada, observada a pronúncia de noit' como monossílabo:

Ca tan tem' o vostro preito

todo son escarmentado,

per uos ei ben' e mal treito

en meu corpo lazerado.

Aa noit', quando jac'en meu leito,

ei muintas vezes pensado,

e, car ren non mi-a profeito,

falid son en meu cuidado.

(mais que falir non cuidei)

mon corasso m'aved's treito

e - molt gent faulan - furtado

Deste resultado, evidencia-se o que dissemos quando tratamos dos manuscritos mais ligados ao contexto de vida de Raimbaut, isto é, que o cancioneiro italiano a1, estreitamente relacionado ao perdido manuscrito de Sault, pertenceu, em suas origens, a um contexto em que a memória de Raimbaut de Vaqueiras era viva, direta e próxima.

Tratamento da estrofe provençal

O texto deve ser, todo ele, baseado no manuscrito f, com algumas alterações que, acompanhadas, após cada verso, das formas substituídas, naturalmente se impõem:

Aras cant vei verdeiar (u por v aqui e nos demais)
pratz e vergiers e boscatges, (e em conglomerado, boscages)
vueilh un descort comensar (come~sar)
d'amor, per qu'ieu vauc aratges; (pquieu, damors, arages)
c'una dona.m sol amar
mas camiatz l'es sos coratges,
(mais, camiat)
per qu'ieu fauc desacordar
los motz e.ls sons e.ls lengatges.
(lengages)
Bels cavaliers tant es cars (grãs no lugar de cars)
la vostr'onratz seinhoratges. (uostromrat, seinhorage)

Algumas das lições que adotamos como -ages -atges, belhs bels, donna dona, eras aras, quan cant, omrat onratz, seinhorage seinhoratges, mais mas, lengages lengatges, contrariando ou seguindo o manuscrito f, se devem ao fato de que essas eram as formas mais usadas na região de Avignon-Orange nos séculos XII e XIII, conforme atesta Paul Pansier(285). No livro de Pansier, encontra-se o documento de divisão dos bens de Dragonet, senhor de Mondragon, citado por Linskill(286) e no qual aparece como testemunha, por volta de 1180, um certo en Vaqueiras.(287) Porque os bispados de Orange (Arausio) e Avignon (Avenio), exemplificados em Pansier, pertenciam ao Marquesado de Provença junto com Carpentras (Carpentoracte) e este marquesado era vizinho do Condado de Forcalquier, com as localidades, pouco distantes, de Sénanque, Pertuis, Sault, Apt, Manosque, Forcalquier, Sisteron, Gap e Embrun, ligadas todas, direta ou indiretamente, à vida de Raimbaut de Vaqueiras, acreditamos que a linguagem comum representada no livro de Pansier constitua, no conjunto, uma documentação lingüística, ao nosso dispor, muito antiga e muito próxima do provençal usado pelo poeta no Descordo Plurilíngüe. Como Raimbaut de Vaqueiras viveu a maior parte de sua vida fora da Provença, sua língua teria, naturalmente, se tornado, à época do Descordo, um idioleto menos dependente das características locais que o impregnaram antes de o poeta emigrar para Monferrato. Além disso, Avignon foi capital do condado de Forcalquier até 1129(288) e o conde Guillaume II aí manteve direitos mesmo depois dessa data.(289) A situação geográfica do condado é resumida por Tournadre:

"Le comté correspondait à la partie est du département de Vaucluse, la partie sud-ouest des Basses-Alpes, quelques fragments au sud-est de la Drôme (col de Cabre) et presque tou le département des Hautes-Alpes, sauf le Briançonnais."(290)

Apresentamos, a seguir, nossa leitura do Descordo Plurilíngüe, acompanhada de um exercício de tradução, que tenta manter a métrica da composição e muitas de suas rimas para melhor compreensão da maneira de pensar do poeta.

Leitura do Descordo Plurilíngüe

Aras cant vei verdeiar
pratz e vergiers e boscatges,
vueilh un descort comensar
d'amor per qu'ieu vauc aratges;
c'una dona.m sol amar
mas camjatz l'es sos coratges,
per qu'ieu fauc desacordar
los motz e.ls sons e.ls lengatges.

E so quel che ben non aio
ni ancor non l'averò,
ni per april ni per maio,
si per mea dona non l'ò.
Certo che, en so lengaio,
sa gran beutà dir non sò:
pu fresca cha fior de glaio
e za no m'en partirò.

Bele, douce, dame chiere,
a vos me doins e m'autroi;
mais non avrai joie entiere
si ne vos ai e vos moi.
Molt estes male guerriere
si je muer par bone foi;
e ja, par nule maniere,
no.m partrai de vostre loi.

Dauna, io mi rend a bos
car, ara, m'etz bon'e bera
- que anc foutz ! - gaillard'e pros,
ab que no.m foussatz tan fera.
Motz abetz, beras faisos
ab color fresqu'e noera.
Bos m'abetz e, si-bs agos,
no.m destrengora fiera.

Ca tan tem' o vostro preito
todo son escarmentado,
per uos ei ben' e mal treito
en meu corpo lazerado.
Aa noit', quando jac'en meu leito,
ei muintas vezes pensado,
e, car ren non mi-a profeito,
falid son en meu cuidado.

Bels cavaliers, tant es cars
lo vostr' onratz seinhoratges,
che cascun iorno m'esglaio.
Hoi me lasso! Che farò?
Si cele, que j'ai plus chiere,
me tue, ne sai por quoi.
Dauna, fe que deig a bos
ni pel cap Santa Quitera,
mon corasso m'aved's treito
e - molt gent faulan - furtado.

"Agora, ao ver verdejar
os prados, bosques e vargens,
de um amor vou começar
um "descort" , pois desespero.
Devia u' a dama me amar
mas mudou sua vontade;
faço, assim, desacordar
línguas, tons, versos rimados.

Eu sou o que bem não tem
nem nunca mais o terá,
nem em abril nem em maio
se em minha dama não o achar.
Em seu linguajar gaio
cantar-lhe o encanto não sei,
mais fresco que flor de "glaio";
dela não me apartarei.

Bela, doce, dama cara
a vós me dou, me consagro;
não terei prazer completo
não vos tendo e vós a mim.
Sereis mesmo cruel guerreira
se eu morrer por boa fé;
mas, de nenhuma maneira,
fugirei de vossa lei.

Senhora, me rendo a vós:
sois p' ra mim boa e sincera
- como nunca! - viva e altiva,
mas não me sejais tão cruel.
Tendes muitos, belos ares
cor viçosa e juvenil.
vós me tendes; se vos tenho,
a mim nada faltará.

Temo tanto vosso preito

que estou todo atormentado

bem e mal eu tenho feito

ao meu corpo magoado.

À noite, estando em meu leito,

muita vez tenho pensado

e, nada tendo em proveito,

sinto engano em meu cuidado.

Bel cavaleiro, é tão caro
vosso honrado senhorio,
que a cada dia me espanto.
Pobre de mim! que farei?
se quem eu mais considero
me mata, e eu não sei por quê.
Senhora, por minha constância,
por Santa Quitéria, digo:
o coração me arrancastes
e, a ser mais gentil, furtastes".




























PARTE III



















Lasso me, ch'ad un tempo taccio, e grido,
e temo e spero, e mi rallegro e doglio;
me stesso ad un signor dono e ritoglio:
de' miei danni, egualmente piango e rido.

Volo senz'ali e la mia scorta guido:
non ho venti contrari e rompo in scoglio:
nemico d'umiltà, non amo orgoglio;
nè d'altrui nè di me molto mi fido.

Cerco fermar il sole, arder la neve;
e bramo libertate e corro al giogo;
di fuor mi copro e son dentro percosso.

Caggio, quand'io non ho chi mi rileve:
quando non giova, le mie doglie sfogo:
e, per piú non poter, fo quant'io posso.
(291)

"Ai de mim! que a um só tempo calo e grito,
Temo e espero, me alegro e me angustio,
A um senhor me dou e me retomo:
Dos meus males, por igual choro e rio.

Vôo sem asa e minha escolta guio:
Sem ventos contrários, me despedaço;
Da humildade inimigo, não me orgulho;
Não confio nos outros nem em mim.

Quero parar o sol, queimar a neve,
Desejo liberdade e corro ao jugo
De fora me cubro, dentro me açoito.

Caio sem ter alguém que me levante,
inutilmente as dores desabafo:
Não podendo mais, faço quanto posso.





Capítulo 1

Textos literários medievais e cultura correspondente

O texto como reflexo do sistema

Estabelecido o texto do Descordo Plurilíngüe e, em conseqüência, explicitada sua mensagem, cabe agora procurar situar o mesmo no contexto sócio-literário-cultural da época do poeta, contexto esse dependente de um conjunto de realidades lingüísticas.

O texto do Descordo se apresenta em sua complexidade cultural, como reflexo de um sistema lingüístico básico, o provençal, e de sistemas lingüísticos secundários, apropriados pelo poeta em um contexto de bilingüismo continuado. Na verdade, não se pode esperar que o texto do Descordo resulte da coexistência, numa mesma área do sul da França, de uma realidade lingüística de menor prestígio ao lado de uma língua mais apurada, na visão da comunidade. Não seria realista imaginar o texto do Descordo como exemplo de diglossia. No caso de se considerar o fato provável de ter sido ele composto na Provença, após longo período de permanência do poeta no território de Monferrato, essa diglossia passa a ser admissível apenas no contexto das relações entre piemontês da localidade habitual de residência de Raimbaut e provençal, assim mesmo em nível de camada dirigente. Sabe-se, como já assinalamos atrás, que, já em fins do século XII e princípios do XIII, começava a literatura provençal a ser cultivada em comunidades importadoras de cultura, entre as quais se colocava Monferrato e sua corte.

Em termos mais abrangentes, todavia, o Descordo é um produto lingüístico individual, que reflete o bilingüismo, ou seja, a capacidade do poeta de, pelo menos, escrever em cinco línguas diferentes com relativa facilidade. De nossa análise, verificou-se que há casos insofismáveis de provençalização do texto em língua estrangeira (molt gent faulan, por exemplo) por parte do próprio Raimbaut de Vaqueiras. Daí, o bilingüismo relativo. Saber até onde certas formas provençalizantes são de autoria dos copistas posteriores e não do próprio trovador, é um problema que requer a consideração de fatores extra-lingüísticos para sua solução.

Considerando que cada língua do Descordo pretende ser uma manifestação do código comum, da norma, deve ser ela entendida como parte do sistema correspondente. Fatores sociais, geográficos, profissionais, religiosos e históricos também estiveram presentes, em maior ou menor grau, na produção do texto de cada estrofe, tal como estabelecemos criticamente. Todos esses fatores são verossímeis na obra de um trovador como Raimbaut de Vaqueiras, que, além de demonstrar em sua obra as maiores qualidades artísticas, era, ao mesmo tempo, um homem de disposição para a luta e para a vitória na sociedade da época. Por isso, a consciência desses fatores, embora difusa, sempre deve ter estado presente no ato de produção artística do poeta.

O texto no espaço

Do ponto de vista espacial, os sistemas lingüísticos utilizados por Vaqueiras no Descordo Plurilíngüe, podem, em tese, ser classificados como língua, dialeto ou falar.

No caso do provençal, a norma comum usada parece ser à primeira vista, a manifestação de uma koiné, ou seja, de uma variedade do sistema usada comumente por um grupo unificado, como um compromisso entre as diversas realidades lingüísticas regionais do sul da França, com o propósito de emprego da mesma como língua literária. No caso de Raimbaut isso é mais provável porque, na verdade, tornara-se ele um "estrangeiro" na Proven[a devido ao fato de ter ido, ainda muito moço viver permanentemente no norte da Itália.

Sob o ângulo da língua dos manuscritos, outro tipo de análise deve ser feito. Desde que se eleja, a partir de considerações sobre o paradeiro do texto, um manuscrito como básico, o sistema lingüístico deste, tal como aparece em todas as composições nele transcritas, passa a ser o ponto de referência sob o qual se deve descrever e analisar lingüisticamente uma determinada composição. No caso do Descordo Plurilíngüe, considerações dessa ordem nos levaram a eleger os manuscritos f e a1 como os que testemunham, com maior verossimilhança, o desempenho lingüístico do poeta ao escrever o Descordo. É nesse sentido que a língua provençal comum de Raimbaut deve ser considerada como alcançada a partir da realidade lingüística do espação geográfico Avignon-Orange.

Em sua realidade, o sistema lingüístico provençal de Raimbaut ficava sujeito à influência de centros de difusão cultural; de centros de prestígio, portanto. Tais centros foram responsáveis pelo uso de determinados termos que, de outra forma poderiam não ter sido empregados. É o caso, por exemplo, do advérbio aras que, ao lado de eras, se usava em todo o sul da França. Acontece, porém, que Raimbaut, homem de muitos contatos culturais, sofreu muito provavelmente, em sua koiné, a influência de Avignon como centro de difusão cultural. E aqui se usava, em sua época, mais aras do que eras.

O texto no tempo

O texto do Descordo Plurilíngüe é um produto da história cultural do sul da França. Esta história pode ser seguida, em seus traços essenciais, no belo trabalho de André Dupuy, Historique de l'Occitanie, por nós citado na bibliografia do final deste livro.

Antes dos romanos, foi o sul da França povoado por populações mediterrâneas, pré-indo-européias, de origem altaica, ibéricas, lígures e célticas. Em seu conjunto, deram ao homem francês meridional um caráter particular que, ao longo da história, sempre se destacou por uma cultura própria e por uma tendência ao estético, particularmente predominante durante a Idade Média. A literatura dos trovadores não surgiu por encanto, mas foi uma manifestação natural e espontânea da maneira de viver e de sentir de um povo. Na terra occitânica viveu-se sempre o reino da paratge, ou seja, da igualdade, que se exemplifica admiravelmente com a situação da mulher. Ao contrário do que acontecia em toda parte nessa época, a mulher nunca era inferior ao homem e este jamais o seu amo e senhor. No contexto occitânico ela não era um objeto de puro prazer e, muito menos, um meio de reprodução, mas um ser igual que se devia amar e honrar. Só este fator já torna original a cultura em que o Descordo Plurilíngüe se insere. Neste, Bels cavaliers, pseudônimo expressivo por apresentar uma imagem positiva do homem, é usado para designar uma mulher que se admira, a qual é colocada em seu direito, doloroso para o poeta, de escolher o homem a quem amar.

Por outro lado, o texto do Descordo reflete uma sensibilidade que depõe em favor de um povo voltado para os ideais estéticos. Os prados, os vergéis, os bosques, o mal de amor, a necessidade da expressão, as flores, a beleza física, tudo isso manifestado no Descordo, são, ao mesmo tempo, exemplificações de uma cultura em que conviviam variáveis como a igualdade entre as pessoas, a tradição cultural latina, a consciência das diferenças lingüísticas, o gosto pela poesia e pelo canto. Sem denotar valores culturais estrangeiros, já que as diferentes línguas são apenas uma solução, condicionada pela platéia, para a manifestação de um problema pessoal de amor, o Descordo Plurilíngüe se situa adimiravelmente na tradição cultural particular do sul da França.

O texto na organização social

Definido, em linhas gerais, o significado do texto do Descordo, numa perspectiva de passado cultural, cabe situá-lo no presente da organização social do território occitânico.

Como expressão de uma mensagem, antes de tudo oral, o Descordo Plurilíngüe envolve um texto que é determinado por seu público e por seus intérpretes. A platéia do trovador é um grupo de pessoas que, do nível mais baixo (o povo) até o nível mais alto (a corte), passando pelo nivel de um público específico momentâneo, apresenta um potencial de adesão a toda expressão literária que corresponda aos valores de sua tradição cultural. Escreve o poeta aquilo que as pessoas querem ouvir, embora boa parte de sua mensagem corresponda mais efetivamente à camada nobre da sociedade. De qualquer forma, em trovadores como Raimbaut de Vaqueiras, esta mensagem não exclui uma linguagem que pode ser entendida pelo grande público dos castelos, praças e feiras. Ao lado de assuntos particularmente bem recebidos espontaneamente pelo público cortês, são inseridos torneios, expressões e imagens que atingem certamente, de modo pleno, toda a população que acorria às praças e feiras. O uso da música em suas composições é prova disso. A Kalenda maia é um exemplo eloqüente do grande alcance das composições de Raimbaut e o Descordo, com a melodia, que certamente possuía, também deve ter penetrado em camadas mais amplas, tão logo passou a ser conhecido na segunda metade do século XIII. Se não fosse assim, não existiriam tantas cópias de cada composição espalhadas por lugares tão distantes, não existiriam tantas alterações a indicar uma tentativa de tornar mais compreensível e mais aceito, por esta ou aquela comunidade, um determinado texto. Por outro lado, se se tratasse apenas de uma literatura a viver nas mais altas camadas da sociedade, a expressão lingüística correspondente seria, certamente, menos mutável. A koiné literária se afirmaria, então, como um sistema lingüístico para iniciados, da mesma forma que o latim literãrio dos goliardos. Estes compunham para serem lidos por outros goliardos e pela comunidade eclesiástica que os tolerava. Faziam exercícios poéticos pessoais. Poucos, fora desse contexto, eram capazes de entendê-los, o que leva a concluir que o conteúdo de seus poemas podia ser muito mais espontâneo, muito mais subjetivo, muito mais indicador de um real sentimento. O povo não conhecia suas obras mas, provavelmente conhecia a de muitos trovadores. Estes eram, via de regra, maneiristas e fingidos na expressão de suas emoções. A língua vulgar, que usavam, era entendida pela população. Em conseqüência, não podiam ser tão sinceros, na manisfestação de emoções, quanto o eram os goliardos.

Sendo o texto do Descordo o produto de uma comunicação (no início, oral), logo se procurou fixá-lo pela escrita. O próprio poeta, naturalmente, deve tê-lo feito, como era comum entre os trovadores. As folhas individuais dos poemas, no entanto, eram multiplicadas em grau maior ou menor, dependendo do sucesso inicial da composição. Um poema, como o Descordo, teria fatalmente de se ressentir de sua própria popularidade, com a produção, logo nos primeiros anos de sua descoberta, de folhas volantes não conhecidas dos que tiveram contato direto ou indireto com o autor. Raimbaut de Vaqueiras, em nossa opinião, não viveu para ver o sucesso do Descordo. Talvez nem mesmo tenha tido a oportunidade, após sua apresentação, de presenciar algum tipo de disseminação do poema, envolvido que esteve nas tensões de seu deslocamento para o Oriente.

Do ponto de vista lingüístico, as composições que remanesciam dos trovadores eram, em cada ocasião, lidas ou cantadas por pessoas que, devido à sua origem, estavam mais habituadas a certas práticas ortográficas do que a outras. Com o tempo, essa ortografia diversificada acabava gerando incompreensões, obrigando o copista da ocasião a substituir o termo não entendido por formas novas que, afinal, eram sua solução particular.

É preciso, em conseqüência, levar em consideração que, se o público determinava a forma inicial de uma composição como o Descordo, o intérprete posterior, fosse ele jogral ou copista, passava a determinar a forma nova para o seu próprio público, desde que houvesse incompreensões gráficas e, a partir destas, incompreensões semânticas. Ao longo da história de um texto, dois públicos se apresentavam: o do poeta, primeiro, e o do intérprete, depois.

Na composição de seu poema, o trovador usava a língua que lhe permitisse comunicar-se com o seu público. Essa língua era condicionada pela prática lingüística de sua comunidade e pelos modismos culturais que a inspiravam. Em sua prática lingüística, o poeta deixava transparecer, naturalmente, a educação que tivera no setor e, ao mesmo tempo, podia ceder às pressões da língua popular ou da norma tida como culta. Sua educação lingüística se inseria no contexto da educação medieval, na qual duas entidades se opunham: a língua latina viva e a língua vulgar.

Colocado em meio ao dilema lingüístico de sua época, o trovador ficava condicionado ainda aos modismos culturais e de inspiração, que determinavam, respectivamente, os temas e os clichês de suas composições. Se era um bom profissional, temperava tudo isso com um estilo próprio, adquirido ao longo de sua formação cultural e, em conseqüência, tornava-se um poeta conhecido e admirado. Este é o caso de Raimbaut de Vaqueiras.

Capítulo 2

Origens culturais do lirismo trova-doresco

Aspectos gerais

A literatura dos trovadores provençais tem sido considerada como uma das fontes mais fecundas da história comparada das literaturas românicas.(292)

Três são os caminhos que, atualmente, se consideram no estudo da formação da poesia lírica dos trovadores: poesia árabe, como influência provável sobre certos temas,(293) tradição popular e tradição latina, esta como fonte direta ou indireta (via poesia popular) das formas e dos temas.(294) A tradição litúrgica, que também se considera, não é senão modificação da tradição latina.

Teoria da influência árabe

Valor que lhe é atribuído

De acordo com as conclusões de Samuel Stern,(295) não há, absolutamente, nenhuma prova de contato literário com os árabes, embora o empréstimo de alguns motivos isolados reste sempre como possível. Em geral, num estudo profundo, pode-se demonstrar a extrema fraqueza da teoria das fontes árabes na música e na poesia dos trovadores.

Cultura árabe e produção poética

Defensores e adversários da teoria

A crença na existência de uma ação da cultura árabe no processo de formação da poesia provençal tem sido forte e disseminada desde a época em que Giammaria Barbieri teve editado seu livro Dell'origine della poesia rimata:

"...meritamente saranno gli arabi da porre per principali autori delle rime, como quelli che più anticamente si trovano haver rimato".(296)

Seu livro, publicado por Tiraboschi em 1790, é parte de uma polêmica que teve, até fins do século XIX, mais defensores da influência árabe do que adversários. Embora tenha vivido no século XVI (morreu em 1574), não foi Barbieri que desencadeou a controvérsia, mas sim Lodovido Zuccolo, que, em 1623, assim escrevia:

"... rima passata, credo io, dagli arabi à i provenzali, e di Provenza introdotta prima in Sicilia e poi in Toscana."(297)

Entre os defensores da teoria árabe, podem ser citados Huet (1723), Massieux (1739), Quadrio (1741), Th. Warton (1775), G. Andres (1782), Ginguené (1811), Sismondi (1813), Villemain (1830), L. Viardot (1851), J. Scherr (1873), Ethé (1872), G. Dierks (1875), Burdach (1904), Brockelmann (1909) e Singer (1918). Adversários da teoria foram, principalmente, Crescimbeni (1721), Arteaga (1789) e 1791), Schlegel (1818), Bruce-Whyte (1841), Amari (1858), Selbach (1886) e Jeanroy (1899). Soluções de compromisso apresentaram Dozy (1849), Dunlop (1851), Schack (1879) e Clouston (1887).(298)

Argumentos dos defensores

Eis alguns dos argumentos dos adeptos da influência árabe:

A ciência européia nasceu com os árabes. Alvarus, escritor espanhol do século IX, já afirmava o gosto dos espanhóis, desde tempos remotos, pela literatura árabe. Entre a literatura árabe e a provençal, há concordância entre os gêneros. (Opinião de Andres)

Não houve qualquer influência grega ou latina sobre a poesia provençal. A rima, antes dos trovadores, só fora usada, em Provença, nos sérios cantos e hinos da Igreja. (Argumentos de Ginguené)

O uso da rima, inclusive a cruzada, e a repetição de uma mesma palavra é recurso que vem dos árabes. (Opinião de Sismondi)

O sirventês e todo o espírito da poesia provençal - exaltação dos sentimentos, veia lírica e subjetividade - vêm dos árabes. (Opinião de Dierks)

A tornada se origina do takhallus árabe-persa e a tenção é análoga à munazarah persa. (Opinião de Ethé)

Os conceitos românticos medievais e o culto da mulher têm origem num esquema grego de poesia panegírico-erótica, o qual, depois de penetrar na cultura persa, passou à Europa Ocidental por meio dos árabes. (Opinião de Burdach)

Argumentos dos adversários

Os que negam, no todo ou em parte, a influência dos árabes sobre a poesia provençal têm, entre outros, os seguintes argumentos:

A rima sempre existiu e "i letterati e gli uomini, saggi e prudenti col mezzo dell'artificio e delle regole le diedero l'essere e la posero alla vista universale".(299) (Opinião de Crescimbeni).

Na literatura provençal não se faz nenhuma alusão aos escritores, à religião ou aos costumes dos árabes. Não há nenhuma fábula ou lição de origem árabe. Os gêneros cultivados pelos trovadores podem ser encontrados, em grau maior ou menor, principalmente os diálogos dramáticos e as tenções, praticamente em toda parte. A música dos trovadores é nitidamente uma paródia dos cânticos da Igreja. Ao contrário da poesia árabe, as composições dos trovadores se caracterizam por incomum uniformidade e pobreza de conteúdo. O verso árabe é basicamente apoiado no metro; o dos trovadores não apenas nele. O verso árabe não é baseado no jogo de acentos; o dos trovadores é. (Opinião de Arteaga)

O modo de ver e de viver as coisas difere entre árabes e provençais. Na França, a mulher era livre; entre os árabes, escrava. O amor, a rima e o refrão não são encontráveis apenas entre os árabes. (Opinião de Schlegel)

A rima já aparece em Enius; também é característica da poesia céltica. Entre os árabes, predominam os detalhes descritivos e os episódios heróicos; na Europa, não. Os árabes têm o gosto da prosopopéia; os escritores europeus medievais, não. Os trovadores provençais são pobres em personificações, metáforas e comparações e fazem descrições banais. Os árabes se caracterizam pelo contrário disso tudo. (Opinião de Bruce Whyte).

"...pour ce qui concerne la poésie provençale, il sera toujours fort curieux de voir comment les troubadours ont produit des poèmes qui offrent une certaine ressemblance avec les `Kacidahs' et les `mowasschahs'; mais c'est la que doit s'arrêter le rapprochement; quant à une influence directe de la poésie arabe sur la poésie provençale, sur la poésie romane en générale, on ne l'a pas prouvée et on ne l'a prouvera pas. Nous considérons cette question comme tout à fait oiseuse."(300) (Opinião de Dozy).

Árabes e latinos são de temperamento diverso. Nem a forma, nem a técnica nem o fundo das poesias neolatinas podem ser devidos aos árabes. O luxo das cortes árabes davam oportunidade aos poetas populares de penetrarem nos castelos e, nessas ocasiões, exprimindo-se na língua vulgar, ganhavam prêmios quando das boas exibições, o que os encorajava. A poesia vulgar não nasceu com os árabes, mas pôde, em conseqüência do estímulo direto ou indireto destes, ser emancipada:

"Lo studio della poesia araba approfondito da mezzo secolo in qua ha dissipati gli errori di chi la credea madre della poesia spagnuola, provenzale ed italiana. Ni la ragione poetica, ní la macchina, ní la rima delle poesie neo-latine può riferirsi in alcun modo alle arabiche. La moda sola, credo io, delle splendide corti muselmane della Spagna fece entrare ne' castelli cristiani dell'occidente, insieme con altri argomenti di lusso, il solazzo di ascoltare poesie in língua volgare del paese: i premii e gli onori incoraggiarono i poeti nazionali a recitare nelle brigate principesche i versi che si sentiano per lo innanzi negli oscuri crocchi delle città e delle campagne; talche la poesia volgare, meglio che nata, si dee dir emancipata et nobilita in quel tempo. Lo stesso è da suporre nella corte musulmana dei re normanni e svevi di Sicilia"(301) (Opinião de Amari).

A poesia espanhola é resultante do caráter da nação conquistada pelos árabes, restringindo-se a influência destes ao aspecto formal das muaxahas e zéjeis e às baladas. Esta influência é uma possibilidade que só deve ser considerada em relação a época posterior da produção poética européia, ou seja, séculos XIV, XV e XVI. (Opinião de Schack).

A tenção já se mostra, na Europa Ocidental, mais de duzentos anos antes do aparecimento de formas árabes semelhantes. É precário pensar em apropriação por parte dos europeus. As formas poéticas devem ser explicadas com base nas condições do desenvolvimento das relações sociais. (Selbach)

Aspectos da teoria ainda hoje considerados

Mais recentemente, os que têm pendido para a hipótese da influência árabe sobre os trovadores demonstraram ou tentaram demonstrar o seguinte:

a) origem árabe dos nomes de vários instrumentos musicais e da designação de tipos rítmicos.(302)

b) paralelo entre as carjas, muaxahas e zéjeis e os poemas dos primeiros trovadores, sobretudo os de Guilhem de Peitieu, poemas estes de origem árabe, quando menos pelo impulso essencial.(303)

Apesar de ainda persistir a controvérsia, nota-se uma tendência geral no sentido de se descartar a influência direta dos árabes sobre a poesia provençal. Em seu estudo aprofundado, Samuel Stern,(304) ao demonstrar a extrema fraqueza da teoria das fontes árabes da música e da poesia dos trovadores, continua, a seu modo, os argumentos de Pierre Le Gentil.(305)

Teoria da tradição popular

Menéndez Pidal e Viscardi, defensores da teoria

Menéndez Pidal foi um dos investigadores que favoreceram a teoria das origens populares da poesia trovadoresca(306) e esta, segundo outro investigador, se justificaria pela existência de uma tradição de poesia épico-dramática na Europa, a qual teria sido eclipsada pela evolução especializada mais interna da forma trovadoresca.(307) É possível mesmo sustentar traços de uma longa tradição anterior, que restam perceptíveis nas referências e atitudes dos primeiros poetas conhecidos.(308)

Em geral, a teoria das origens populares pressupõe a existência, na primeira fase da Idade Média, de mundos separados, o do latim medieval e o da "rustica romana lingua".(309) As poesias populares latinas anteriores ao século XII e capazes de refletir as formas espontâneas de origem céltica, germânica ou latina, constituem a verdadeira poesia, em oposição às formas essencialmente religiosas e fortemente condicionadas pela tradição literária do latim. A existência de uma produção popular pode ser claramente deduzida de documentos que chegaram até nós desde épocas tão remotas quando os séculos VI, VII, VIII, IX e X:

"Ad nos quaeremonia processit multa sacrilegia in populo fieri unde Deus laedatur et populos per peccatum declinet ad mortem: noctes pervigiles cum ebrietate scurrilitate vel cantecis in ipsis sacris diebus pasca natale dominica et reliquis festivitatibus vel adaveniente die dansatrices per villas ambulare..." (M.G.H., Legum II, Cap. Reg. Franc. I, p.2, 38).(310)

Este texto, que é um preceito de Childeberto I, rei de Paris e de Borgonha (511-558), ao mencionar cânticos que deviam ser evitados e condenados, indica a existência de cantos populares que, dentro da continuidade das tradições populares de festas, como a das calendas de janeiro, seguiram sendo condenados:

II Concílio de Tours (567):

"cognovimus, nonnullos inveniri sequipedas erroris antiqui qui Kalendas januarias colunt".(311)

II Concilio de Lugo (572):

"non licet iniquas observationes agere kalendarias et otiis vacare gentilibus neque lauro aut viriditate arborum cingere domos".(312)

Como observa Viscardi, os documentos relativos ao Concílio Romano de 743 atestam a vitalidade da tradição das festas de janeiro e que estas se celebravam com cantos e bailes populares nas ruas e praças:

"Sicut affirmant se vidisse annis singulis in romana urbe et iuxta ecclesiam sancti Petri in die vel nocte quando kalendae ianuariae intrant paganorum consuetudine choros ducere per plateas et acclamationes ritu gentilium et cantationes sacrilegas celebrare et mensas illa die dapibus onerare..."(313)

Cantos e bailados populares na alta Idade Média

Os documentos que chegaram até nós fazem alusão, na verdade, a cantos e bailados populares que ocorriam paralelamente às festas religiosas e por elas eram provocadas. O conteúdo tinha origem, certamente, nessas festas. Não, porém, a forma, que devia aparecer como eco de comemorações populares de épocas imemoriais. A Igreja, assim, dava o conteúdo das festividades; a força da alegria espontânea do povo contribuía para sua forma. Qualquer que fosse a denominação que se desse a essas manifestações da alegria popular - cantica, cantiones, cantationes - e quaisquer que fossem os adjetivos empregados pelas autoridades em relação a elas - turpia, obscina, luxuriosa, illecebrosa, sacrilega - ficava sempre claro que, para os responsáveis pela difusão e manutenção da fé, era mundano e profano o conteúdo de tais cantos.(314) Eis alguns documentos coligidos por Vascardi, em sua obra:

"... si quis ballationes ante ecclesias sanctorum fecerit ..." (ano de 572);

"Exterminanda omnino est irreligiosa consuetudo quam vulgus per santorum solemnitates agere consuevit, ut populi, qui devent divina officia attendere saltatio ibus et turpibus invigilent canticis" (ano de 589);

"Canticum turpe luxuriosum circa ecclesia agere omnino contradicimus quod et ubique vitandum est" (ano de 813);

"Quando populus ad ecclesia dei venerit... aliud ibi non agat nisi quod ad dei pertinet servitium. Illas vero ballationes et saltationes canticaque turpia et luxuriosa et illa lusa diabolica non faciat nec in plateis nec in domibus nec in ullo loco; quia haec de paganorum consuetudine remanserunt" (ano de 639/640).(315)

A temática das composições referidas nesses textos é um problema em aberto, conforme pensa Viscardi, porque, embora haja suficientes provas, como veremos adiante, de transposição de assuntos religiosos para um contexto profano, não se pode inferir necessariamente um conteúdo folclórico. A religião cristã estava, na alta Idade Média de tal forma disseminada no território europeu do antigo Império Romano que, provavelmente, de há muito, teriam desaparecido os cantos de temas pagãos. Isso não significa, porém, que a forma e a época de apresentação dessas composições não denunciassem hábitos ainda persistentes.

A maior evidência do caráter popular dessas composições que coexistiam com e em função dos cantos e festas cristãos é a menção, em documentos da alta Idade Média, aos jograis.

Mímicos e jograis

Em livro bem documentado, Edmond Faral desenvolve a teoria de que entre a jogralidade medieval e a mímica da latinidade clássica existe uma continuidade.(316) O sentido, porém, deve ser o de uma jogralidade independente da escola e da cultura latinas, pois que, como bem assinala Viscardi,

"... nella realtà concreta, fuori di ogni astrazione, la creazione artistica è fatto che deriva dall'attività cosciente del poeta... i giullari, poeti del popolo e interpreti dell'anima popolare, si pensano, infatti, come assolutamente estranei al mondo della scuola e della letteratura latina".(317)

Em conseqüência, os artistas populares da latinidade clássica, como os mimi e os histriones permaneceram, após a queda do Império, como instrumentos, que sempre foram, da cultura popular. Enquanto na época romana existiam para cantar as virtudes e os vícios de deuses e homens, na sociedade da mais antiga Idade Média existiam para cantar a religião cristã dominante ou as alegrias e problemas do homem comum. O jogral é, pois, o mimus da Idade Média, com o mesmo valor social de seu antepassado romano, ou seja, o de intérprete ou instrumento da alma popular.

Os documentos da Idade Média referem-se ao jogral por meio dos seguintes nomes: mimus, histrio, thymelicus, scurra, choraules, citharista, saltator:(318)

"MIMUS si interpreta generalmente dai glossari con qui agit; ma in un glossario contenuto in un codice di S. Domingo de Silos del secolo XI si trova l'esplicazione seguente: mimi jocularii graece.

Per HISTRIO le glosse danno: simulator, mimus, thymelicus, scenicus, historiam motu corporis significans (accanto a questa va messa la glossa: HISTORICUS, pantomimus), scenicus vel saltator,saltator. Per THYMELICI, jocularii mimici vel qui spectaculo ludunt.

Per SCURRA: qui res ridiculas dicit vel facit, subtilis impostor, publicus impostor, vaniloquax; e per SCURRILITAS: iocus improbus, iocus turpis, garrulitas, vaniloquium.

Per CHORAULES: mimus, jocularis cantator, princeps chori ludiorum quo nomine potest dici totus chorus; e in una glossa si fa menzione del ludiorum ludibrium turpe, e in altre LUDIO si traduce con histrio e com mimus.(319)

Esses artistas, mais tarde conhecidos pelo nome genérico de jograis, dividiam-se em três tipos principais, até o século XI: mimi joculares (os thymelici), mimi scenici (histriones propriamente ditos) e mimi choraules. Os mimi joculares, segundo Viscardi, seriam os verdadeiros bufões, autores de piadas, de referências maliciosas a terceiros, de histórias picantes e de zombarias.(320) Entre os mimi scenici e os mimi choraules a distinção seria pouco nítida, ficando, porém, com os primeiros o comando da ação coreográfica nas danças que refletiam o tema das mulheres mal casadas ou o do canto dos pássaros a anunciar o novo dia que separava o amante da amada. Os mimi choraules podiam comandar a ação coreográfica, porém, freqüentemente, assumiam a cena e se tornavam personagens da trama, falando e cantando.(321)

De tudo isso se depreende que as referências medievais aos artistas populares denotam a existência de uma literatura popular de desenvolvimento contínuo, com autores e atores sendo conhecidos progressivamente através de denominação menos diversificada. Esta literatura deve ser considerada como uma das duas fontes das primeiras literaturas nacionais européias, e naturalmente, da literatura dos trovadores provençais. Parece claro, para muitos estudiosos das origens do lirismo provençal, que esta fonte corresponde principalmente, mas não de modo exclusivo, à inspiração temática.

Novos documentos necessários à avaliação da teoria

Acompanhamos, até aqui, o pensamento de Menéndez Pidal e, principalmente, de Antonio Viscardi sobre a teoria das origens populares da poesia trovadoresca, inclinando-nos a considerar a literatura popular como uma das duas fontes evidentes da literatura provençal.

Viscardi teve o mérito, como vimos, de buscar definições da época medieval para os diferentes conceitos que envolvem a produção artística leiga desses tempos remotos. Cremos, contudo, ser necessário localizar com maior precisão a motivação ideológica de tais conceitos bem como outros textos que a ela correspondam, além daqueles recolhidos por Viscardi dos concílios de Tours, Lugo e Roma, acima transcritos. É necessário, igualmente, relacionar a evolução dessa motivação ideológica à prática lingüística da alta Idade Média.

O problema maior da literatura popular, em língua vulgar, da Idade Média é não ter sido alcançada pelos compiladores dos cancioneiros, que começaram a operar no século XIII. Atraídos exclusivamente pelas composições dos trovadores provençais e dos que os imitavam, ou não se interessaram pelas produções típicas dos jograis ou, simplesmente, não tiveram acesso a elas por serem predominantemente orais e, em conseqüência, apenas memorizadas. É claro que deve ter havido jograis que se transformaram em trovadores mas, quando isso acontecia, assimilavam a ideologia destes, consagrando-se ao amor cortês ou fazendo sirventeses, como se tornou regra desde as primeiras produções de Guilhem de Peitieu.

O surgimento da figura do trovador, no sul da França, representou uma mudança fundamental na arte de poetar em língua vulgar, não só no campo temático mas, igualmente, no processo de ascensão social. O trovador era, antes de tudo, uma pessoa de trânsito nas cortes e, em muitos casos, pertencente a elas. O jogral, artista popular, não entrava nesse contexto. Vinha ele, com seus auxiliares, sendo responsável, durante séculos, pela alegria das festas de todo tipo, nas igrejas e nas casas dos nobres. Quando compunham, sua temática era, provavelmente, circunstancial, não se confundindo com a dos trovadores, que se iniciou no século XII sob o signo da inverossimilhança, do enigma, da negação e de uma postura amorosa que só no ambiente cortês podia afirmar-se sem perigo de cair no ridículo. Esta produção jogralesca se perdeu quase totalmente mas dela se tem um exemplo na composição laudatória conhecida como Ritmo Laurenziano, de 1150 ou princípios de 1151. Seguindo sua editora, pode-se dizer que é uma composição poética de caráter ocasional feita por um poeta popular para saudar o cardeal arcebispo de Pisa, Villano Caetani, por ocasião de sua visita à diocese de Penne, no Abruzzo superior. A cena descrita no poema passou-se muito provavelmente nas imediações do mosteiro de São Bartolomeu de Carpineto. Ei-lo:

1 - Salv'a lo vescovo senato, lo mellior c'unque sia nato,

(ce da l')ora fue sagrato, tutt'allumina'l cericato.

Nè Fisolaco nè Cato, non fue si ringratiato,

El pap'a ll(ui dal destro lato), per suo drudo plu privato.

5 - Suo gentile vescovato ben'è cresciuto e melliorato.

L'apostolico romanol'h(a sagrato in) Laterano.

San Benedetto e san Germanol' destinò d'esser sovrano

de tutto regno cristiano. Però e' vene da Lornano,

del paradis di(l) Viano. Ça non fue questo villano!

10 - Da c'el mondo fue pagano, non ci so tal marchisciano.

Se mi dà caval balçano, monsterroll'al bon G ... ano,

a lo vescovo volterrano, cui bendicente bascio la mano.

Lo vesvovo Grimaldesco cento cavaler à a desco.

Di neun tempo non lli crescono; ançi plaçono e abelliscono.

15 - Nè latino, nè tedesco, nè lombardo, nè francesco,

suo mellior, re no 'nvestisco, tant'è di bontade fresco.

A llui ne vo e tener aparesco corridor caval pultresco.

Li arcador ne vann'a tresco; di paura sbaguttisco.

Rispos' e disse latinesco: "Sternetti ett i nuntiar est(c)o

20 - Di lui bendicer non finisco, mentre'n questo mondo tresco.(322)



O jogral que havia em Raimbaut de Vaqueiras

A professora brasileira, que acabamos de citar, apresenta, em seu trabalho, uma estruturação funcional dos personagens e lugares apresentados na composição, o que permite, como veremos, relacionar o tipo de atitude que Raimbaut teve ao longo de sua vida e que aparece muito clara em sua Epístola Épica, com a atitude do jogral no Ritmo Laurenziano. Ou seja, havia um jogral dentro de Raimbaut de Vaqueiras. Vejamos o que disse Ildete Castro em esclarecedora e longa passagem, p. 157-158:

"Verifica-se da estruturação sintático-semântica das orações que o Ritmo Laurenziano narra o relacionamento, em dois momentos históricos consecutivos, de duas pessoas, um bispo muito bem situado na hierarquia católica e um jogral, que dele pretende ganhar um presente.

No primeiro momento histórico, o bispo famoso está em cena, mas apenas ouve. Pelas palavras do jogral, se depreende que vinha tendo o prelado, desde um passado recente, uma situação de prestígio muito grande no seio da Igreja. Esta situação, segundo a previsão do jogral, se cristalizaria, no futuro, na função mais alta da hierarquia cristã. As qualidades desse bispo deixam entrever que era ele possuidor de elevados dotes intelectuais, políticos e morais. Os dotes intelectuais são deduzidos do arremate dos elogios, em que o jogral declara que "ne Fisolaco ne Cato non fue si ringratiato". Os dotes políticos são muito claramente evidenciados na informação de que é ele íntimo do Papa e que o bispado deste, ou seja, do bispo de Roma, muito crescera e melhorara em função de seu auxílio. Os dotes morais se ressaltam da declaração de que ilumina ele o clero inteiro e de que os protetores da ordem beneditina tinham-lhe traçado o destino de dirigir todo o reino cristão, o que se delineara concretamente a partir do momento em que outro Papa o sagrara bispo em Latrão. Sem dizer o nome do bispo saudado, o jogral o relembra à platéia quando arremata toda a série de elogios e dotes do prelado. Na verdade, um homem que convive com os mais altos dignitários da Igreja, em meio à maior pompa e em contato espiritual com os maiores santos, apresenta-se diante deles como um viajante que está chegando de um humilde lugar situado em meio às propriedades de uma igreja ou mosteiro. Embora isso possa dar aos que não o conhecem a impressão de ser o prelado uma pessoa como tantas outras da vida religiosa na sociedade bem demarcada da época, em que os bispos muitas vezes se confundiam, por suas origens e por sua maneira de ser, com as pessoas simples das aldeias, era ele uma pessoa nobre, em todos os sentidos. Não era ele um "villano" (camponês), embora se chamasse Villano.

O jogral, por sua vez, era uma pessoa de prestígio porque não somente lhe era permitido dirigir-se de público, concentrando as atenções das pessoas presentes, a um dignitário da importância do bispo Villano, mas também era um artista capaz de exibir seus conhecimentos da vida do homenageado e de outras pessoas desconhecidas. Em função de seu valor como artista e do prestígio que deixava transparecer, podia o jogral pedir um presente - e isso era prática normal entre os poetas populares da época - ao visitante ilustre."

São muito remotas, naturalmente, as possibilidades de ter tido Raimbaut de Vaqueiras, alguma vez, a possibilidade de conhecer o Ritmo Laurenziano, composto em 1150 ou no primeiro semestre de 1151. Há, porém, entre esta composição e a Epístola Épica pontos de contato que, antes de tudo relacionam seu autor e Raimbaut como pessoas capazes de ter um comportamento muito parecido relativamente aos poderosos, em geral, e a seus protetores, em particular.

Enquanto no Ritmo Laurenziano apresenta-se o relacionamento entre um bispo muito bem situado na hierarquia católica, Villano Caetani, e um jogral, que dele pretende ganhar um presente, na Epístola Épica, escrita no Oriente, provavelmente em maio de 1205, quando Bonifacio de Monferrato, protetor de Raimbaut de Vaqueiras, estava em Salônica, evidencia-se o mesmo fato. Este nobre, tornado rei de Salônica, na Grécia, após ter chefiado a Quarta Cruzada, recebe do trovador Raimbaut de Vaqueiras, que por toda a vida estivera a seu lado, em guerras, em aventuras e em momentos de prazer e descontração na corte de Monferrato um pedido de recompensa por serviços prestados:

E si per vos no suy en gran rictat,

no semblara qu'ab vos aia estat

ni servit tan cum vos ai repropchat,

e vos sabetz qu'ieu dic tot vertat,

senher marques.

(Epístola Épica, parte I, últimos cinco versos)

E, se por vós, a rico não cheguei,

disso não resulta que vos faltei

ou não vos servi quanto recordei.

Que digo toda a verdade sabeis,

senhor marquês.

E franc vassalh quan ser a senhor bo,

pretz l'en reman et a.n bon guizardo:

per qu'ieu n'esper de vos esmend'e do,

senher marques.

(Epístola Épica, parte II, últimos quatro versos)

Franco vassalo serve a senhor bom,

e ganha mérito e bom galardão;

espero, pois, de vós compensação,

senhor marquês.

E pus, senher, sai tan de vostr'afar,

per tres dels autres mi devetz de be far,

et es razos, qu'en mi podetz trobar

testimoni, cavalier e jocglar,

senher marques.

(Epístola Épica, parte III, últimos cinco versos)

Senhor, tanto vos posso avaliar

que, como a três, o bem me deveis dar.

Justo é, pois podeis em mim achar

testemunha, jogral e militar,

senhor marquês.

No Ritmo, o bispo famoso está presente; na Epístola Épica, o marquês aparentemente não está.

Pelas palavras do jogral, se depreende que vinha tendo o prelado, desde um passado recente, uma situação de prestígio muito grande no seio da Igreja. Pelas palavras de Raimbaut, Bonifácio vinha tendo - e esta era mesmo a realidade - uma situação de prestígio muito grande no seio da Igreja: por ter sido chefe da Quarta Cruzada, tivera o reconhecimento do Papa como grande líder e assumira recentemente o reino de Tessalônica como prêmio à sua atuação. Por pouco não fora escolhido Imperador de Constantinopla.

O jogral prevê para um futuro próximo mais honrarias para o bispo, mas Raimbaut já não conta com isso pois Bonifácio alcançara toda a glória.

As qualidades do bispo deixam entrever que era ele possuidor de elevados dotes intelectuais, políticos e morais. As qualidades de Bonifácio Raimbaut apresenta em profusão, fazendo-o igualmente possuidor de elevados dotes intelectuais, políticos e morais.

Sem dizer o nome do bispo saudado, o jogral o relembra à platéia quando arremata toda a série de elogios e dotes do prelado. Da mesma forma Raimbaut relembra a figura de Bonifácio perante uma platéia eventual, já que dá à Epístola um aspecto de cobrança pública. A apresentação de si mesmo como eventual testemunha dos feitos de Bonifácio dá a entender que está disposto a prosseguir como alardeador público das qualidades do marquês. Devido a esse detalhe, não é de se excluir que Raimbaut, pedindo para si, talvez esteja atuando como instrumento de outras pessoas ou de um grupo.

O jogral, por sua vez, era uma pessoa de prestígio porque não somente lhe era permitido dirigir-se de público, concentrando as atenções das pessoas presentes, a um dignitário da importância do bispo Villano, mas também era um artista capaz de exibir seus conhecimentos da vida do homenageado e de outras pessoas desconhecidas. Raimbaut também, como o jogral do Ritmo, era uma pessoa de prestígio porque podia exibir-se na corte, debatia com nobres importantes e era capaz de fornecer detalhes da vida de seu protetor em um documento que tem ares de documento público, de carta aberta.

Finalmente, em função de seu valor como artista e do prestígio que deixava transparecer, podia o jogral pedir um presente - e isso era prática normal entre os poetas populares da época - ao visitante ilustre. Em função de seu valor como artista e do prestígio que evidenciava em sua Epístola, podia Raimbaut pedir um presente a Bonifácio, uma recompensa pelos serviços prestados. Fazendo isso, apresenta-se também como jogral:

en mi podetz trobar testimoni, cavalier e jocglar

O confronto do conteúdo do Ritmo Laurenziano com o da Epístola Épica serve para demonstrar que Raimbaut, como ele mesmo confessa, era, no fundo, sempre um jogral, não passando aquela estória da Vida, de que era filho de um probre cavaleiro do castelo de Vaqueiras, de pura fic[ção, Fazia as coisas que os jograis faziam, inclusive tentar enriquecer à sombra do nobre protetor e até mesmo, sonho maior, ser aceito em seu nível pelo casamento com alguma mulher nobre. Raimbaut se esforçara para alcançar tudo isso. Como não conseguira no grau desejado, apresentava, no auge da vida do marquês de Monferrato, uma reivindicação "final", agora só a nivel de bens materiais. Nisso e guardadas as proporções de sua vida, repetia o que fizera o jogral do Ritmo Laurenziano.

Sentimento da língua e literatura popular até o século VII

Um dos grandes méritos de Friedrich Diez, que o fizeram, ao mesmo tempo, pioneiro da Filologia Românica e cientista sempre consultável, foi a indicação de textos medievais capazes de marcar as fronteiras entre o tempo da língua latina e o das línguas vulgares românicas nos territórios do antigo Império Romano.

No domínio francês, aponta Diez(323) um trecho da Vida de São Mummolin, bispo de Noyon a partir de 659, transcrito pelo Barão de Reiffenberg em sua edição de Philippe Mousket e relativo ao sentimento da língua no século VII:

"quia praevalebat non tantum in teutonica, sed etiam in romana lingua"

"porque dominava não somente a língua teutônica, mas também a romana"

O significado do trecho foi subestimado por Ferdinand Brunot(324) sob o argumento de que se trata de interpolação e de que, na Vida original, a referência que se fazia era à língua latina e não à romana lingua do sentido posterior.

A importância do testemunho, todavia, resulta da possibilidade, ainda não afastada relativamente à sua veracidade, de fazer-se, século e meio antes do Concílio de Tours, de 813, um mesmo tipo de contraste entre língua germânica e língua vulgar românica em uma região de fronteira lingüística (Noyon e Tournay).

As circunstâncias que envolvem esse fato histórico não são conclusivas relativamente à existência, em meados do século VII, de uma língua já não mais "latina", mas apontam para uma mudança no "sentimento da língua" que prevalecera, até então, sob a expressão romana língua. Até mesmo Gregoire de Tours, bem no final do século VI, ao depor sobre a entrada do rei Gontran em Orléans, parece indicar uma mudança no sentido de romana lingua.

De fato, romana lingua foi, até, pelo menos, o século VI, expressão designadora do melhor latim falado, o de Roma. Isso já foi demonstrado por Henry François Muller em seu artigo sobre o uso dessa expressão entre os séculos I e IX da era cristã. As principais provas que apresenta são as seguintes, aqui traduzidas:

Século I, a. C.:

"E a respeito desse homem, asseguro-te (e faço isso não com o palavreado que usei, falando-te sobre Milo em carta que te escrevi e de que gracejaste com acerto, mas à romana, de acordo com o falar de homens sensatos): ninguém é homem mais honesto, melhor e mais prudente." (325)

Século I, a. C.:

"Latinidade é o modo concreto de falar incorruptamente segundo a língua romana." (326)

Entre o século I a. C. e o I d. C.:

"Recebe, Máximo, docemente, o patrocínio de uma difícil causa com a eloqüência da língua romana." (327)

Século I, d. C.:

"Em toda a Panônia, havia o conhecimento não somente da disciplina, mas também da língua romana e, em muitos lugares, igualmente, o uso das letras e a exercitação familiar dos ânimos." (328)

Meados do século IV d. C.:

"A alguns, porém, pareceu - acrecentados Tobias e Judite - dever-se enumerar em vinte e quatro livros, segundo o número de letras gregas, também na língua romana, escolhida como intermediária entre os hebreus e os gregos."(329)

Segunda metade do século IV d. C:

"Solecismo é todo atentado contra a ordem do falar romano, a perturbar a oração, e o vício praticado gramaticalmente, no contexto das partes, contra a regra da arte." (330)

"A latinidade consiste na observação, de modo incorrupto, do falar segundo a língua romana." (331)

Fins do século IV:

"Mas, então, em uma palavra, diz-se barbarismo quando pecamos contra a língua romana." (332)

Segunda metade do século V:

"Os gauleses usam esta letra /i/ mais abundantemente ... Os gregos proferem-na mais fracamente ... Haverá moderação nisto na língua romana, de modo que, quando a palavra termine por essa letra, seja mais fraco o seu som." (333)

Segunda metade do século V:

"Se algum sacerdote é dotado da múltipla ciência das línguas e é constituído em meio aos diversos povos, instruirá o hebreu em hebreu, o grego em grego, o romano em romano." (334)

Século VI:

"Finalmente, não encontraste em suas regiões; a lição tuliana te tornou eloqüente onde a língua gaulesa ressoou e onde há os que afirmam que as letras latinas devem ser aprendidas em Roma e não alhures." (335)

Século VII:

"A quem o sagrado intérprete consignou muitos opúsculos, que a rude mulher hebréia da lei antiga realizou para que fossem traduzidos do grego para a língua romana." (336)

Meados do século VIII (752):

"Referiram, de fato, que existira na mesma província /Bavária/ um sacerdote que ignorava completamente a língua latina e que, ao batizar, dizia, no desconhecimento da língua latina: Baptizo te in nomine Patria et filia et Spiritu sancta; e, por isso, tua reverenda fraternidade achou melhor rebatizar; mas, irmão santíssimo, se aquele que batizou não introduziu erro ou heresia, o fez com a ignorância da língua romana.(337)

Os exemplos, que Muller apresenta para confirmar a sinonímia entre língua latina e língua romana até o século VI, são irrepreensíveis; os do século VII em diante, nem tanto.

Aqueles que foram colhidos em Gildas ou Aldhelm não podem convencer diante do fato histórico da preservação nas Ilhas Britânicas, particularmente nos centros dependentes, intelectualmente, dos mosteiros irlandeses, da tradição clássica latina.

No exemplo do papa Zacarias, aqui também transcrito, observa-se nitidamente que o latim era inteiramente desconhecido até mesmo dos sacerdotes, o que significa existir uma língua vulgar de base latina tão afastada de sua origem que a compreensão desta se tornava muito difícil. Tal situação reforça a convicção de D'Arco Silvio Avalle(338) no sentido de que o uso da língua vulgar para fins literários, ao tempo do Concílio de Tours, de 813, não era nenhuma novidade. Isso torna plausível o assinalamento do período de fins do século VII e decorrer do VIII como aquele em que surgiu um novo "sentimento" da lingua romana, bem diverso do que vigorara até o século VI. É o momento em que nascem os diversos romances, que conduziriam, em dois ou três séculos, a línguas verdadeiras, os idiomas românicos.

Teoria da unidade latino-clássica-medieval

A latinidade clássica em Raimbaut de Vaqueiras

No Descordo Plurilíngüe, Raimbaut de Vaqueiras não dá nenhuma demonstração direta de conhecimento da latinidade clássica, o que não se pode dizer do restante de sua obra. Assim, na canção Era.m requier sa costum' e son us ("Amor, agora, cobra-me tributo e o que lhe é devido"), refere-se a Píramo e Tisbe, personagens da mitologia grega que, tendo-se suicidado por amor, foram transformados pelos deuses em dois cursos d'água: um pequeno rio, Píramo, e uma nascente, sua amada, que o alimentava. A história está presente nas Metamorphoses, de Ovídio e em dois poemas sobre esses dois personagens, um, em latim, de autoria de um dos grandes mestres de retórica da época, Matthieu de Vendôme, professor em Paris e Orléans, e o outro, em francês, de autor desconhecido. Ambos deviam ser do conhecimento de Raimbaut, pois compostos antes de 1180. Tântalo, filho de Zeus e rei da Lídia, também aparece nas Metamorphoses.

O fato de as histórias da mitologia clássica estarem presentes em composições populares da época de Raimbaut não pode servir de argumento à tese de que não havia conhecimento direto da antigüidade por parte dos trovadores, por falta de formação específica, reservada aos clérigos, e, daí, servir de apoio à crença na teoria da influência árabe ou na da tradição popular. É preciso examinar com cuidado temas como o conceito de latinidade medieval, as bases da teoria da continuidade cultural latina, o sistema de ensino medieval, sua repercussão sobre o fazer poético profano, em latim ou em vulgar, os temas populares mais disseminados e os limites da tradição litúrgica sobre o trabalho literário profano.

A partir de uma investigação, realizada com o propósito assinalado, ou seja, da dívida dos trovadores para com a herança clássica, é que se poderá inserir, no grau adequado, composições como o Descordo Plurilíngüe em um ou mais aspectos da continuidade da tradição latino-clássica-medieval. A não presença neste ou naquele poema provençal de referências diretas à antigüidade clássica pode não excluir, por exemplo, a estreita dependência dele relativamente à tópica latina ou grega.

Vamos seguir esse caminho e verificar se há dívida do autor do Descordo, na composição desse poema, para com a tradição clássica. Como trovador do século XII, Raimbaut de Vaqueiras vivia num mundo em que o latim ainda era a língua, por excelência, da cultura e esta passava por uma reavaliação profunda, de que são exemplos flagrantes a poesia dos goliardos, a organização do direito canônico, a retomada do direito romano e a formação de bibliotecas cada vez mais enriquecidas com obras do passado greco-latino.

Conceito de latinidade medieval

O termo latinidade pode ser tomado em vários sentidos: simples uso da língua latina, a maneira de falar ou escrever o latim, a apreciação concreta de obras da tradição clássica, o estilo no uso literário da língua latina, a rigorosa construção gramatical de uma composição latina ou, no sentido mais amplo, o espírito latino.

Acreditamos que seja um pouco disso tudo ou, mais propriamente, a capacidade de uma época ou de um grupo de indivíduos que permite sentir e exteriorizar os valores da tradição lingüístico-cultural dos romanos e de seu Império.

A latinidade medieval assumiu, paradoxalmente, um caráter ao mesmo tempo consciente e difuso, porque se consubstanciou em duas correntes de atuação: uma, verdadeiro fio de continuidade do sentimento cultural do Império; a outra, busca incessante, irregular e difícil desse mesmo sentimento. No primeiro caso, estão os agentes da escola medieval, recolhidos pela reforma carolíngea da prática didática da Itália, e a prática literária dos monges irlandeses que se entregaram ao trabalho de cristianizar as ilhas britânicas após a queda do Império do Ocidente.

Nesse sentido se manifesta Christine Mohrmann, em conhecido trabalho:

"C'est la culture monastique anglo-saxonne et l'ancienne tradition classique des écoles italiennes qui constituent les deux sources auxquelles Charlemagne a puisé, quand il a voulu donner a son empire un enseignement qui devait continuer la tradition littéraire de Rome" (339)

No segundo caso, estão todos aqueles que, no atual território hispânico e gaulês, tiveram de conviver, desde o século V com os germânicos conquistadores e seus descendentes em meio a todo um elenco de situações conflituosas na língua, na religião e na organização política e social dos territórios conquistados. Antoine Meillet assim resume esta situação:

"La baisse progressive de la civilisation antique a laissé les tendances internes du latin aboutir à leur résultat naturel; le parler courant s'est éloigné de plus en plus de la forme fixée par l'écriture: il a pris un caractère de plus en plus populaire.

"La dissolution de l'empire a permis aux tendances propres des parlers de chaque province de se multiplier; avec le souci de la correction s'est affaibli le sens de l'unité latine.

"Mais les changements n'atteignaient pleinement que la langue parlée. Ni durant les derniers siècles de l'Empire ni durant les grandes invasions personne n'a écrit volontairement comme on parlait. Pour écrire, il faut avoir fréquenté une école. Si bas que soit tombé l'enseignement, les maitres n'ont jamais ignoré que l'on devait rester fidèle à la tradition du latin écrit. Et quiconque a prétendu écrire a au moins tenté d'écrire le latin traditionnel.

"Aux VIe et VIIe siècles, les difficultés étaient telles que même un évêque cultivé, comme Grégoire de Tours, écrivait un latin traditionnel qu'il s'efforçait d'employer, sans avoir l'illusion d'y réussir, et en regrettant de ne pas savoir mieux faire".(340)

Esta dualidade do latim dos três primeiros séculos da Idade Média resulta do fato de que, na Itália, o ensino de tipo antigo, ministrado por leigos e baseado na literatura profana jamais desapareceu completamente, enquanto na Irlanda e na Inglaterra surgiu uma cultura monástica que, determinada pela tradição patrística, continuou a latina sob uma forma artificial e foi o prelúdio do renascimento carolíngeo do século IX.(341)

É dessa dualidade que se deve tirar o conceito de latinidade medieval. Na verdade, latinidade com o sentido humanista de consciência, só surgiu no século IX com a reforma carolíngea e coincide com a constatação prática da existência de duas línguas, o latim e a rustica romana lingua. Nesse sentido, assim dispôs o Concílio de Tours, de 813:

"Visum est unanimitati nostrae ut quilibet episcopus (...) omelias (...) aperte transferre studeat in rusticam romanam linguam aut thiotiscam, quo facilius concti possint intellegere quae dicuntur".(342)

O antigo sistema romano de escolas públicas sobreviveu pouco tempo à queda do Império. Depois do reinado de Teodorico I, filho de Clóvis I, encaminhou-se a dinastia merovíngea por uma situação de contínua perda dos valores romanos e, no campo educacional, esse processo significou o desaparecimento do ensino público e sua substituição, em termos muito limitados, pela educação nos mosteiros onde, a uns poucos privilegiados, se ensinavam a gramática de Donato, os tratados de Boécio sobre aritmética e música e o livro de Cassiodoro Institutiones divinarum et humanarum litterarum, enciclopédia de literatura sagrada e profana na qual se encontrava o programa das Sete Artes Liberais, base, posteriormente desenvolvida, do ensino na Idade Média.

Tal limitação, na difusão da cultura, teve como conseqüência o aprofundamento da ignorância em toda a sociedade do continente europeu ocidental. Não havia preparo profissional de nenhum tipo e as massas não recebiam nenhuma educação, o que se refletia na própria aristocracia secular, cujos membros eram, em sua maioria, analfabetos.(343)

Esta foi a situação encontrada por Carlos Magno ao assumir o trono francês. Não havia pregadores, o texto da Bíblia estava cheio de erros oriundos da má pronúncia do latim e as igrejas estavam arruinadas, servindo, em muitos casos, de celeiros. A reforma da educação, empreendida por Carlos Magno, teve como princípio básico "encontar padrões uniformes de ortodoxia que pudessem ser impostos a todos os seus súditos".(344) Tal diretriz o levou a impor uma reforma radical no ensino ministrado nos mosteiros, que se tornou mais universal, atraindo não somente aqueles que se destinavam à vida religiosa, mas também a todos os que, oriundos principalmente das famílias aristocráticas, desejavam adqurir os conhecimentos da tradição clássica preservados na Irlanda e Inglaterra, de um lado, e na Itália, de outro.

Trouxe Carlos Magno da Itália os gramáticos Pedro de Pisa, Paulino de Aquléia e Paulo Diácono. Encarregou o famoso erudito anglo-saxão Alcuino de organizar a educação e de formar a escrita, o que acabou por alterar profundamente o estado da cultura medieval da época.(345)

É com essa reforma que surge verdadeiramente a latinidade medieval que, em conseqüência, deve ser considerada como sinônimo de humanismo. Esta latinidade se apóia numa reformulação de atitudes, quanto à língua e à literatura latinas. É uma reformulação que consiste, pela primeira vez desde a queda do Império Romano, numa consciência razoavelmente precisa de como usar a língua e a literatura latinas.

Bases da teoria da continuidade latina, lingüística e literária

Continuidade lingüística

Ao apreciar o famoso livro de Curtius, Christine Mohrmann ressalta a tese do erudito alemão sobre a existência de uma continuidade latina a servir de base à unidade européia. Acredita, no entanto, que

"... si l'auteur met en lumière surtout la continuité littéraire, toutefois la continuité linguistique me semble être encore plus profonde et plus importante".(346)

Para comprovar sua opinião, procura resolver os dois problemas fundamentais que dominam o estudo da latinidade medieval: como caracterizar e classificar o latim medieval enquanto fenômeno lingüístico e quais as normas que devem reger o julgamento e a apreciação da latinidade medieval.

Para ela o retorno às normas do latim clássico é responsável pela sobrevivência da tradição clássica em sua forma pura, mas, ao mesmo tempo, o torna verdadeiramente uma língua morta, pois se transforma em "vénérable pièce de musée gardeê par ces conservateurs dévoués que sont les humanistes et les philologues classiques".(347)

Ao se transformar em instrumento de uma nova literatura, a literatura latina medieval, o latim, assim retomado, acaba por contrastar mais e mais com as línguas nacionais que se desenvolvem, pois, em seu cultivo, se aprimora a ponto de se caracterizar como língua puramente técnica, muito mais para metafísicos e lógicos do que para oradores e poetas.(348)

Em nossa opinião, as línguas nacionais acabam por se impor, já que, na luta entre auctores e artes, isto é, entre literatura de criação e literatura didática, ficam os cultores do latim principalmente com a segunda, restando, para a primeira, aqueles que, embora conhecendo bem a estrutra da língua, se ressentiam da pressão popular, a ponto de, com o tempo, começarem lentamente a usar essas línguas nacionais em fase de afirmação.

Para se considerar, porém, a capacidade de retomada e reafirmação das normas da língua latina, é preciso que se atente para o fato de que os gramáticos latinos medievais, surgidos precisamente no século IX, "...considéraient le latin comme une langue vivante; et il était en effet la langue de la société religieuse, la langue ecclésiastique, comme les langues vulgaires étaient les langues laiques".(349)

Não vemos como associar a classificação de Thurot do latim, como língua viva, à imagem de P. Lehmann de que se assemelhava o latim a um animal selvagem em cativeiro, que não pode desenvolver, em sua prisão, todos os seus dons naturais, mas, às vezes, dá mostras de sua força e de sua beleza naturais. Esta associação é feita por Christine Mohrmann.(350)

Na verdade, o que o grande Thurot disse foi que, justamente por ser língua viva, não podia o latim medieval ser o mesmo de Cícero e César. Para ser viva, uma língua precisa se acomodar às necessidades da sociedade que a fala, de se incorporar às suas idéias e sentimentos.(351)

É nessas palavras de Thurot que se deve buscar o sentido da continuidade da latinidade lingüística na Idade Média. O fio da tradição lingüística do latim clássico percorre a sociedade que era capaz de usá-lo e senti-lo, isto é, a sociedade religiosa e eclesiástica. Por isso, foi além da Idade Média, tornando-se o instrumento da visão do mundo por parte daqueles escritores que, direta ou indiretamente, se ligaram às concepções de Santo Agostinho, primeiro, e de São Tomás de Aquino, depois.

Continuidade literária

A outra sociedade, a que tinha contato direto com o povo e sua língua rústica, só podia usá-lo enquanto instrumento lingüístico posto à disposição dos letrados, sem alternativa, pela força dominante, ou seja, a Igreja. Não usavam aqueles que compunham literatura latina profana, o latim como instrumento destinado a novas glórias de ação no mundo, mas apenas como instrumento, à falta de outro permitido, da sensibilidade pessoal, fruto da vivência dos problemas da sociedade e não de suas glórias. É em razão disso que a produção profana, em língua latina, na Idade Média, é de certa forma, limitada. Acabou tendo como resultado natural a literatura em língua vulgar, que se explica pela radicalização crítica da sociedade, no século XII, da qual é exemplo flagrante a poesia dos goliardos. Esta radicalização ocorreu paralelamente ao apogeu do Humanismo de origem carolíngea e deu origem ao iluminismo do século XIII e à laicização da cultura através das escolas das catedrais, primeiro, e das universidades, depois.

A distinção que se deve fazer entre o latim cristão, de finalidades didático-religiosas, e o latim profano, de finalidades artísticas, é fundamental para a compreensão do problema da latinidade literária medieval, em termos de continuidade com relação à tradição lingüística do latim clássico.

Na verdade, como dissemos, o latim cristão era verdadeiramente uma língua viva, já que instrumento de uma sociedade limitada, porém homogênea. Já o latim da literatura profana deve ser associado ao conceito de língua morta, isto é, de uma língua que buscava refletir e continuar a prática retórica e literária da época clássica. Como instrumento lingüístico imutável, sujeito ao processo contínuo da imitação, só podia se afastar mais e mais do sentimento artístico popular e, em conseqüência, com o tempo, gerar uma contínua insatisfação que teria de resultar nas primeiras manifestações literárias em língua vulgar.

A latinidade literária medieval é, pois, resultante da reforma carolíngea do ensino, mas corresponde à vertente da imitação que tinha sua origem na leitura, isto é, nos auctores; a latinidade lingüística medieval, igualmente resultante da reforma carolíngea do ensino, correspondia, ao contrário, à vertente da prática, que tinha sua origem no estudo, isto é, nas artes. Como tal, era esta essencialmente mutável, e as obras resultantes dela lhe conferiam o caráter de língua viva. A latinidade literária medieval está, naturalmente, indissoluvelmente ligada ao problema da expressão lingüística que, no caso, era estática e tendente ao exaurimento.

É nesse sentido que se deve entender a divergência de posições, acima assinalada, entre Curtius e Mohrmann. Ao contrário do que diz esta, a continuidade lingüística não é mais profunda e mais importante que a continuidade literária. Cada uma existiu com sua força própria e ambas constituíram um processo que chegou a um término. No caso da continuidade latina literária o fim veio primeiro, porque apoiado num instrumento lingüístico estático.

Um dos mais felizes desenvolvimentos de Curtius, em seu livro, é o da tópica. Podemos resumi-lo assim:

Entre os antigos, a retórica era a arte da oração, ou seja, o método de construir uma oração artisticamente.(352) Sua finalidade era dar condições de efetiva realização a três gêneros de eloqüência: o discurso forense, o discurso deliberativo e o discurso laudatório ou solene, os quais tinham como denominador comum a vontade de incutir em alguém, pela força do argumento, o pensamento de quem comunicava. Para isso, usava-se a técnica de dividir o discurso em cinco partes: apresentação do assunto, exposição dos fatos, argumentação ou prova, refutação das afirmações contrárias e peroração ou epílogo. A finalidade do conjunto era tornar aceitável uma proposição ou causa.(353) Para cada uma dessas divisões, havia uma série de raciocínios ou imagens capazes de conduzir o ouvinte a aceitar, ao final, a proposição apresentada. Devido ao formalismo desse sistema de retórica, os raciocínios acabaram por se limitar em número e constituir os loci communes, ou seja, lugares comuns, temas ou imagens usados instrumentalmente. O termo, no singular e em grego, é topos (no plural, topoi), daí a tópica, que deve ser entendida como teoria das imagens ou argumentos usados imitativamente pelos que se ligavam às fontes literárias clássicas.

Vejamos o que diz Curtius:

"...com a queda das cidades-estados gregas e da república romana, os dois gêneros de discursos mais importantes, o oficial {deliberativo} e o forense, desapareceram da realidade política e refugiaram-se nas escolas de retórica. O discurso laudatório transformou-se numa técnica de louvor, aplicável a qualquer objetivo. A poesia também impregnou-se de espírito retórico. Por outro lado, penetrou em todos os gêneros literários. Seu sistema, engenhosamente edificado, tornou-se o denominador comum, a teoria e o acervo das formas, na literatura"(354)

Generalizou-se, portanto, o uso de lugares comuns ou chichês na atividade literária. A imitação, que procuramos configurar, linhas acima, como característica básica da latinidade literária medieval, levou os escritores, em geral, e os poetas, em particular, a repetir os clichês da literatura latina clássica e a criar, em função dos novos tempos, outros. Entre os lugares comuns, temas ou imagens, de origem clássica, mais empregados na Idade Média, estão a paisagem ideal (bosque, animais, lugar ameno), a consolação, a modéstia, a invocação da natureza etc.

O sistema de ensino da Idade Média

Segundo Christine Mohrmann,(355) a geração de Ausonius, poeta e retórico romano que nasceu em Burdigala (Bordeaux) e teve sua própria escola de retórica, foi a última que conheceu o sistema normal das escolas romanas, com os três graus tradicionais do magister ludi, do grammaticus e do rhètor, ou seja, o da escola elementar, o da escola de gramática (ensino da língua de grandes autores, latinos e gregos) e o da educação superior em retórica (ensino do direito e das atividades da vida pública).

Depois disso, devido à penetração na sociedade dos elementos culturais pertubadores dos bárbaros, desapareceu o sistema de escolas públicas, que parece ter existido até o reinado de Teodorico. Possuímos, todavia, suficientes testemunhos diretos e indiretos da existência normal da educação aberta a todos até a época de Dagoberto I, rei merovíngeo que morreu em 639.(356)

O fio da educação romana, pelo menos no sentido da preservação do latim clássico, persistiu na Irlanda durante os séculos VI, VII e VIII e na Itália, aqui com mais intensidade.

"... uomini che sono assolutamente indipendenti dal mondo monastico e sembrano, anzi, estranei, addirittura, al mondo clericale: sono gli uomini che esercitano nell'alto Medio Evo le professioni che noi chiamiamo liberali; e sono, in particolare, grammatici e retori che esercitano privatamente nelle città la professione di maestri delle 'arti', della medicina, del diritto, in piena indipendenza dagli orientamenti e dai metodi delle scuole eclesiastique" (357)

É, portanto, na Itália, que se pode ver uma continuidade da educação latina, capaz de tornar os italianos os depositários e conservadores, por meio de mestres leigos "del patrimonio ideale di cui la cultura classica risulta." (358)

É possível que, na Espanha, tenha havido nos mosteiros, na época visigótica, alunos que não se preparassem somente para a futura vida sacerdotal e monacal.(359) Tal hipótese não nos permite aceitar a existência de uma continuação da educação, em moldes romanos, fora da Itália.

A Idade Média começa verdadeiramente, em termos educacionais, com o desaparecimento do ensino leigo na época de Dagoberto I, na primeira metade do século VII. Subsiste algum tipo de ensino nos mosteiros, exclusivamente. Sua finalidade era pouco pretensiosa: dar uma formação mínima indispensável ao exercício do ministério eclesiástico.(360)

Como se cultivava o ideal cristão da humildade, o estudo das sete artes liberais nos mosteiros (gramática, retórica, dialética, aritmética, música, geometria e astronomia), dava-se ênfase, nos mesmos, aos apectos religiosos, morais e ascéticos do aprendizado, em contraste com o treinamento filosófico e literário da tradição clássica. O objetivo de todo estudo era a compreensão e divulgação dos ensinamentos da Bíblia, a qual, escrita por São Jerônimo (Vulgata) em latim não clássico, contribuía para um progressivo desconhecimento, tanto por parte dos pregadores, quanto por parte das massas, das normas do latim que se mantivera relativamente unificado pela escola pública, enquanto existiu.

A época da educação puramente monástica coincide com o aparecimento nítido da rústica romana língua, que outra coisa não é senão o romanço.

Origens da reforma educacional carolíngea

Para se compreender as duas fontes em que Carlos Magno foi buscar as bases para a reforma do ensino, que acabou conhecida como a Renascença Carolíngea, é necessário deixar claro o papel desempenhado pelos monges irlandeses e ingleses como preservadores do cultivo do latim em moldes clássicos. Como dissemos acima, Alcuíno, prelado inglês e responsável pela restauração das ciências e das artes no reinado de Carlos Magno, teve como inspirador imediato o venerável Beda, monge inglês que nasceu em 673 e morreu em 735, o mesmo ano de nascimento de Alcuíno.

Em seu famoso livro, Historia Ecclesiastica, terminado em 731, Beda faz, ao final, um relato de sua vida e realizações, o qual contém preciosos elementos para a compreensão do tipo de vida e realizações de monges que se situavam na linha de preservação de uma cultura latina, voltada para o fim prático da difusão do cristianismo.

"I was born on the lands of this monastery, and on reaching seven years of age, my family entrusted me first to the most reverend Abbot Benedict, and later to Abbot Ceolfrid for my education".(361)

Por esse trecho, verifica-se a realidade da educação que se achava sob a responsabilidade dos mosteiros. Isso significa que uns permaneciam nos mesmos, já que neles entravam em tenra idade, e outros, certamente, neles ficavam até certa idade. No caso de Beda, a permanência, segundo suas próprias palavras, significou observar a disciplina da Regra, cantar, diariamente, nos ofícios religiosos, estudar, ensinar e escrever. Foi ordenado diácono aos 19 anos e padre aos trinta. Estudava sempre as escrituras, compilava extratos curtos das obras dos santos padres e fazia comentários sobre seu sentido e sobre a interpretação que se lhes devia dar.

Mais importante é a apresentação que faz das obras, que escreveu até a idade de 59 anos. Dentre elas destacavam-se as que atestam a continuação, por um típico representante da Igreja inglesa, do fio da cultura clássica latina: Livro de epigramas, em verso heróico ou elegíaco; Sobre a natureza das coisas; Ortografia; A arte da poesia; Sobre tropos e figuras.(362)

A implantação da reforma carolíngea do ensino

Esta situação de excepcionalidade da produção intelectual irlandesa-inglesa e italiana contrastava, nitidamente, com a profunda ignorância cultural e expressional da Igreja do ocidente da Europa continental, ou seja, Gália e Espanha. Com a ascensão de Carlos Magno, tudo mudou e a educação tomou novo rumo. Ao iniciar seu reinado, Carlos Magno tomou consciência do atraso cultural, principalmente em termos de instrução religiosa, no reino franco. Da Inglaterra chamou Alcuíno, diácono da igreja de York, e deu-lhe a direção da Escola Palatina, em seu palácio de Aix-la-Chapelle; da Itália chamou Paulo Diacono, autor da Historia gentes langobardorum, e os gramáticos Pedro de Pisa e Paulino de Aquiléia; da Marca Hispânica, trouxe o refugiado godo Teodulfo, que se tornou bispo em Orléans e que, possuidor de grande cultura literária, pôde transmitir aos francos o que restava da cultura clássica preservada pelos moçárabes na Espanha.

Alcuino desenvolveu em Tours, ao prover a instrução dos frades e a organização da biblioteca na grande abadia de São Martinho, uma escola caligráfica que passou a ser conhecida como escola da escritura carolíngea. O alcance dessa reforma caligráfica foi enorme e duradouro, propiciando uma grande atividade de transcrição e difundindo-se por numerosas cidades da França, Alemanha e Itália centro-setentrional.(363)

Como reformador do ensino, Alcuíno contribuiu para o desenvolvimento do estudo da língua latina de acordo com as regras do período clássico, criando, em conseqüência, as condições para a fixação da latinidade lingüística medieval. Seu trabalho foi reforçado pelos gramáticos que Carlos Magno trouxe da Itália. Ao escrever trabalhos sobre a educação, encorajou o estudo das artes liberais, tornando vivo tanto o trivium quanto o quadrivium, isto é, a gramática, a retórica e a dialética, de um lado, e a aritmética, a música, a geometria e a astronomia, de outro.

No campo literário, todavia, Alcuíno se destacou por uma posição de sentido conservador, chegando a proibir a leitura de Vergílio. Nesse setor, foi contrastado por Teodulfo de Orléans, que desempenhou um grande papel como poeta latino de orientação clássica. Apesar de ter sido envolvido, depois da morte de Carlos Magno, numa conspiração e de ter caído definitivamente em desgraça, Teodulfo exerceu grande influência, dentro do contexto da Renascença Carolíngea, no setor literário. Cognominado o Píndaro da Escola Palatina do Imperador, era um apaixonado tanto da literatura cristã quanto da pagã. Como um dos melhores escritores da época, compôs poemas que nos dão um quadro vivo de seu tempo.

Conseqüências da reforma carolíngea

Por tudo isso, a Renascença Carolíngea criou um processo de retorno aos valores clássicos, que atingiria seu apogeu com o humanismo do século XII. A academia que Carlos Magno criou em seu palácio de Aix-la Chapelle, os professores italianos que empregou no ensino de línguas e matemática nas principais cidades de seu império, as escolas de teologia que inaugurou nas catedrais e conventos, o aperfeiçoamento que imprimiu à liturgia, à música religiosa, às letras, às artes e ao direito, tudo isso, repetimos, gerou a latinidade medieval verdadeira, tanto lingüística quanto literária. Uma da maiores provas, nesse sentido, é o fato de que a multidão de gramáticos medievais e de autores de textos sobre os mais diferentes setores começou a se formar nos inícios do século IX, isto é, a partir da reforma carolíngea: Malrachanus, Cruindmelus, Smaragdus, no século IX; Remi d'Auxerre, no século X; Baudry de Bourgueil, no século XI; Abelardus, Hugues de Saint-Victor, Guillaume de Conches, Petrus Helias e Paulus Camaldulensis, no século XII. Isso, para não contar os muitos autores desses quatro séculos, cujos nomes desconhecemos.(364)

Em sua reforma educacional, Carlos Magno abriu a possibilidade de instrução a qualquer pessoa, não apenas àqueles que se destinavam à vida religiosa, pois tornou obrigatória a criação de escolas nos mosteiros e nas igrejas episcopais. Deste modo, desenvolveu-se um clero secular e regular, que adquiriu sólida cultura e se pôs em situação de desempenhar a missão que lhe cabia naquele momento histórico: elevar o nível intelectual do povo, dentro das limitações próprias daqueles tempos.(365)

Educação de leigos

E no contexto da reforma carolíngea da educação que se deve buscar descobrir e caracterizar o tipo de instrução que as pessoas leigas receberam entre os séculos IX e XII. Tal conhecimento é que permite compreender o surgimento de uma literatura latina profana e, em conseqüência, o forte contraste que ao final se deu, entre a língua vulgar de todos os dias e o latim estático usado na composição dessa literatura profana.

Pierre Riché, em artigo já por nós assinalado, lembra-nos que, durante a grande crise intelectual ocorrida entre a época de Dagoberto I (morto em 639) e a ascensão ao poder de Carlos Magno, transformaram-se os leigos em analfabetos.(366) Assinala igualmente que as diversas Vidas de santos e os cartulários, produzidos entre os séculos IX e XII, são as fontes que nos permitem dizer que a instrução elementar dos leigos de média condição não era tão precária quanto se crê geralmente. Assim, entre os séculos citados, a tradição do ensino privado existiu sempre e em toda parte. O menino, a partir dos seis ou sete anos, fazia seus primeiros exercícios de leitura nos saltérios que, ademais, sempre foram livros de leitura elementar desde a época dos bárbaros. A prática de ler e de se exercitar nesses livros de hinos ou salmos, destinados aos serviços corais nos templos, acabou por se tornar, na vida dos futuros adultos, um motivo de prazer e de lembrança. Tais livrinhos, muito provavelmente, não somente construíram a vida espiritual dos futuros poetas profanos, mas também lhes deram, certamente, aquela consciência de ritmo e de métrica capaz de ajudá-los em suas composições.

A criança bem nascida recebia a primeira instrução de seus pais ou de mestres particulares, que podiam ser clérigos ou, em certos casos, mulheres idosas.(367)

Essa primeira instrução era chamada de elementa e depois disso o jovem podia ser confiado, quando existia, a algum gramático que estivesse como empregado de algum castelo. O normal, porém, era colocarem as famílias nobres seus filhos em escolas monásticas para recebererem o ensino elementar. Isso não significava, de forma alguma, que fossem as crianças, nesta situação, destinadas à vida religiosa.(368)

Os cartulários são, igualmente, fontes em que se atesta a existência de escolas abertas aos jovens leigos. Os mosteiros, desde a época de Carlos Magno, organizaram dois tipos de escola: uma, interna, para os jovens religiosos; a outra, externa, destinada àqueles que, ao fim dos estudos, retornariam à vida secular. Em conseqüência, surgiram nos séculos XI e XII regras que definiam as atividades de uns e outros, já que se avolumavam as queixas sobre a presença de crianças leigas no interior das escolas monásticas. De modo geral, aos leigos se destinava uma instrução elementar mas, sob a pressão moral em favor da vida monástica, muitos continuavam nelas sem ter vocação religiosa e, ao fim de alguns anos de estudo, se afastavam definitivamente da vida religiosa estrita.

É nesse sentido que se deve entender a palavra clericus. Na Idade Média, designava não apenas os que estavam estudando para se tornarem monges ou sacerdotes, mas também aqueles que, por força do sistema de educação do século IX e seguintes, tomavam a sua instrução. até o nível secundário e superior, nos mosteiros e nas escolas das igrejas episcopais.

Curriculum do ensino medieval

O ensino nos mosteiros e igrejas episcopais repousa, a partir da reforma carolíngea, no estudo quase exclusivo das sete artes liberais: desde o século IX constituem a gramática, a retórica e a dialética o trivium, isto é, as três vias capazes de levar o estudante à verdade. Seguindo-se ao trivium em ordem cronológica de estudo, está o quadruvium ou quadrivium (aritmética, geometria, música e astronomia), como complementação e aprofundamento das três primeiras. Esta ordem corresponde à visão cristã medieval de prioridade do espírito sobre a matéria, de virtudes da alma sobre as habilidades adquiridas com a vida. Por causa disso, a gramática não é apenas a primeira das artes, mas também o fundamento de todas as outras. Com a gramática, ciência da interpretação de poetas e historiadores, mais do que conjunto de regras para bem falar e escrever, buscam os mestres e estudantes medievais a compreensão, mais ampla possível do espírito humano. Como o homem, na visão medieval, é o princípio e o fim da obra divina, a compreensão do espírito torna-se o ponto de partida para a investigação e busca de sentido de qualquer coisa na vida. Daí a definição de Isidoro:

"Grammatica est scientia recte loquendi et origo et fundamentum liberalium artium"(369)

No estudo da gramática se compreende a abordagem de poetas e historiadores. Esta é a sua finalidade, a qual é atingida com as regras da boa expressão, escrita e falada. Nesse sentido, se exprime Rabano Mauro:

"Grammática est scientia interpretandi poetas atque historicos et recte scribendi loquendique ratio".(370)

Como arte de interpretação, na busca do intelecto, assim define o gramático latino Diomedes a primeira das artes:

"Tota autem grammatica consistit precipue in intellectu poetarum et scriptorum et historiarum prompta expositione et in recte loquendi scribendi que ratione".(371)

É por isso que a retórica, segunda das artes, tinha um caráter muito prático, na medida em que buscava sistematizar as regras depreendidas da arte de bem dizer dos auctores. O sentido, aqui, é o do bem dizer quanto à eficácia da mensagem, e não quanto à forma do instrumento desta, ou seja, a língua.

Para completar o processo iniciado pela gramática, estudava-se a lógica ou dialética. Tinha o sentido de busca da verdade em cada caso e em cada autor. O espírito crítico, que naturalmente se foi desenvolvendo com o aprofundamento dos estudos gramaticais e retóricos, levaram os estudiosos da Idade Média, a partir do século XII, e com a redescobesrta da cultura greca (particularmente Aristóteles e demais filósofos), a ligar mais estreitamente, e em relação de subordinação, a gramática à dialética ou lógica.

O estudo da gramática, no primeiro período (séculos IX a XI), tinha um caráter formativo. Por isso, Prisciano e Donato, gramáticos latinos de maior prestígio, eram copiados sem um maior espírito crítico. Na medida, porém, em que a gramática se ligava à retórica para propiciar o entendimento da mensagem dos poetas e escritores em geral, se realizava, praticamente, como exegese, ou seja, conjunto de comentários. Esta era o passo inicial que levava à alegoria, redução de tudo aos princípios morais da teologia, e ambos os métodos existiam em função da subordinação da obra do homem à vontade divina. O saber humano se estruturava, na visão medieval, sob a premissa da subordinação do homem à vontade divina. Como a Igreja era o instrumento incontestado dessa vontade, toda ciência provinha do que ela apresentava como certo ou verdadeiro.

Os poetas e escritores latinos eram, assim, estudados quanto à forma, para servirem de modelo, e quanto ao conteúdo, para servirem de comprovação das verdades cristãs. A alegoria era uma extrapolação que não significava ignorância por parte do estudante ou do mestre medieval, mas uma atitude natural de raciocínio apriorístico.

Todo esse complexo de atitudes intelectuais nos levam à convicção de que o ensino, que está na base da produção poética em língua vulgar, surgida no século XII, é responsável pela utilização deliberada ou inconsciente dos padrões da gramática, da retórica e da dialética de origem clássica. Tais padrões envolvem a repetição de temas e de formas por parte dos que produziram literatura profana em língua latina, entre os séculos IX e XIII, e pelos que passaram a produzir literatura profana em língua vulgar, a partir do século XI.

Como dissemos acima, a reforma de Carlos Magno significou a retomada, com novos objetivos, de boa parte do sistema de ensino romano. A principal diferença eatava no fato de não se preparar o estudante para a vida pública, porém, para a vida religiosa. Em conseqüência, não se retomou o ensino público, mas foi usado o que já existia, o dos mosteiros. Procurou-se dar a estes uma atuação muito maior pela criação de escolas internas e externas.

Os curriculos dessas escolas tinham, naturalmente, de refletir a política que passou a vigorar. Alcuíno, por exemplo, pregava como modelos Boécio e Cassiodoro e não Cícero ou Quintiliano. A instrução habilitava o estudante a decorar os salmos, a se aplicar no aprendizado da música religiosa, a contar as estações, estabelecendo uma maior consciência da cronologia e a estudar a gramática em textos-padrão. As escrituras podiam, em conseqüência, ser melhor entendidas. A necessidade de se ter uma visão enciclopédica do mundo era atendida pela obra de Santo Isidoro, principalmente as Originum sive etymologiarum libri.

Embora a reforma tivesse esse impulso inicial, a crescente importância da exegese, nascida da política mais ampla de explicar os ensinamentos da Igreja e de seus doutores, fez com que o programa de estudos da segunda geração de reformadores carolíngeos se modificasse. Rabano Mauro, discípulo de Alcuíno, levou a reforma até a Alemanha e passou a enfatizar o estudo de escritores pagãos, como meio de aprimorar a capacidade de entendimento dos ideais cristãos. Para isso, escreveu o manual De clericorum institutione, dedicado à educação dos clérigos, na mesma linha da De rerum natura, de Beda e das Originum de Isidoro de Servilha. Os mosteiros de Fulda e Reichenau tornaram-se centros de difusão da obra de Rabano Mauro, que, portanto, fez escola. Na França, Servatus Lupus, um de seus discípulos, tornou-se um dos expoentes do aprendizado clássico e da crítica textual.

A estrutura difusa da reforma carolíngea do ensino foi responsável pela perda do ritmo das atividades educacionais no século X, mas ainda assim, constituiu a base para um corpo coerente de conhecimentos e de um método de estudo. Na verdade, a febril atividade de transcrição levada a cabo, nos séculos IX e X, nos mosteiros em que se desenvolvia a reforma carolíngea, forneceu os pré-requisitos para o renascimento humanístico dos séculos XI e XII. Sobre a força da reforma carolíngea, são muito eloqüentes as seguintes palavras do professor inglês Gordon Leff:

"Despite the failure of the Carolingian Empire to endure, its educational achievements were far from lost; indeed, they formed the starging-point for the renewal of learning in the eleventh century. In the first place, they provided the seven liberal arts as the basic curriculum and with them the main books for study. Troughout the following centuries these subjects were the foundation of all university courses, even though their content changed with the discovery of Aristotle. In the second place, the organization of all teaching into monastic and cathedral schools maintained continuity on learning until the universities became the main centres: during the ninth and tenth centuries, the monastic schools had remained the main seats of education at such centres as Tours, Fulda, Reichenau, under such men as Raban Mauro and Walafrid Strabo, whom we have mentioned before. With the eleventh century, however, the cathedral schools took over the leadership, in turn giving place to the universities. In the third place, one of Alcuin's special achievements had been his emphasis upon correct writing and the proper copying of manuals".(372)

O curriculum dos centros de ensino, por volta do século XII, pode ser claramente depreendido dos catálogos que chegaram até nós de várias universidades européias. Na França as principais bibliotecas monásticas estavam em Fleury, Cluny, St. Riquier, Corbie e Chartres.

O catálogo de St. Riquier, composto a partir de 831, continha 250 volumes dos padres da Igreja, latinos e gregos, como Gregório, Origenes, Agostinho, Ambrósio; as obras de Fulgêncio e Marciano Capella; os Originum sive etymologiarum libri, de Isidoro, bem como um livro seu sobre sinônimos; as gramáticas de Donato (glosada), Probo, Pompeu, Prisciano, Sérvio, Vitorino e Veio Longo; livros de discursos de Cícero; a Rethorica ad Herennium; um Vergilius (talvez a Eneida, segundo Viscardi) e suas Eclogas, glosadas; as Fabulae Avieni, as poesias de Próspero, Arator, Sedulio e Juvenco; as histórias de Sócrates, Eusébio, Sozomenes e a Cronica, de Jerônimo; uma De origine et actibus romanorum, o Demo ibus imperatorum, atribuído a Plínio; a Homeri historia (Ilíada latina); a Excidium Troiae; uma Lex romana; a Lex salica; e o De medicamentis, de Sereno.

Em Chartres, além de quase todas essas obras, havia ainda vários livros de Aristóteles, os Topica, de Cícero, diversos livros de Boécio e o Computo, de Beda; e vários outros.(373)

É interessante notar que, nessas bibliotecas, há uma ordem de posicionamento dos livros que permite demonstrar a contigüidade da gramática, literatura e história. Para a mente medieval, a gramática, primeira das artes, habilitava o estudioso à exegese das obras dos escritores antigos ou dos padres da Igreja. Esta exegese - conjunto de comentários, como vimos - dava origem freqüentemente ao alegorismo, ou alegoria, que era um método de redução dos auctores aos quadros morais da teologia.

Por tudo isso, tornava-se legítimo, para o estudioso medieval, o uso da ciência profana, segundo as diretrizes de São Jerônimo e de Rabano Mauro. Com o passar dos séculos, todavia, o contato com a literatura pagã provocou o gradual enfraquecimento do espírito religioso e uma contínua valorização de ideais mundanos. É dentro desse processo que se situa a poesia popular latina da Idade Média e, indiretamente, a poesia popular em língua vulgar, de que o Descordo Plurilíngüe, de Raimbaut de Vaqueiras é um exemplo emblemático.

Repercussão do ensino clássico na poesia latina profana

Entre os séculos IX e XIII, floresceu na Europa ocidental uma poesia popular latina, que parecia aspirar ao ideal de maior aproximação com a vida mundana, mesmo ao tratar de assuntos religiosos. Essa poesia assume diversas formas: épica, histórica, religiosa ou didática, através de hinos, seqüências, paródias, diálogos, epitáfios, narrações legendárias ou declarações de amor.(374)

O grupo de poetas conhecidos pelo nome de goliardos é o único homogêneo do período. Tiveram como predecessores ou coevos pessoas cultas como Sedulio Escoto, sacerdote irlandês do século IX; Aldhelmo, Bonifácio, Milo, Smaragdo e Fulberto, grupo cujas composições se encontram em um manuscrito da bibloteca de Cambridge; Hugo de Orléans, conhecido como o Primado, no sentido de mestre da arte da composição; o arquipoeta de Colônia, do século XII; o bispo Oliva, um monge do mesmo nome e Juan de Fleury, poetas da Marca Hispânica, cuja poesia, ao lado de composições de anônimos, foram conservadas no mosteiro de Santa Maria de Ripoll, na Catalunha. As composições do grupo homogêneo dos goliardos encontram-se na coleção Carmina Burana, reunião de poemas de clérigos e estudantes que eram amantes da liberdade, bebedores, mulherengos e que freqüentavam os centros universitários e palácios de príncipes e bispos.(375)

O auge da poesia popular latina ocorre paralelamente ao surgimento da primeira grande literatura em língua vulgar, a dos trovadores provençais. Segundo Arias y Arias os contatos entre goliardos e trovadores estão fora de qualquer dúvida, mas não foram ainda devidamente estudados. Composições latinas eram logo vertidas para o vulgar e, provavelmente, algumas populares deram origem a outras latinas.(376)

No que diz respeito à formação clássica dos poetas populares medievais de língua latina, é de se destacar seu conhecimento minucioso da mitologia greco-romana, a aplicação desse conhecimento, em sentido metafórico, à realidade da sociedade cristã em que viviam. Assim, falam de Vênus, Diana e Cupido quando utilizam o tema popular do primeiro amor:

"Illos dum querito, filius Veneris, in arcu residens ad instar numinis inquit: `quo properas, dilecte iuvenis'?

Diane pharetre fracte sunt denuo, arcus Cupidinis sumetur amodo: laborem, itaque, dimittas moneo"(377)

A utilização conjunta, em sentido metafórico, de conhecimentos da mitologia, para caracterizar concretas situações do mundo medieval particular de um poeta, pode ser comprovada no seguinte poema de Sedulio Escoto que, como vimos, viveu no século IX:

"Nos sitis atque fames conturbat, bestia duplex

vulnificis rostris nos laceratque suis.

Nec nos oblectat praedives copia rerum,
sed nos excruciat horrida pauperies;

nec nos oblectant dulciflua dona Liei
mellifluusque medus domata nostra fugit;

nec nos oblectat cacavis biscoctaque Mosa,
flavicomae Cereris gratia dulcis abest.

Tenuida nos macerat, crudelis bestia, sophos;
optime Christe rogo, respice nos, domine;

nec gustu facilis, nulli potabilis ipsa
est quia nec Cereris dulcida progenies;

non est Iordanis, non amnis filia Mosae,
sed torrens Cedron turbidus hanc genuit.

Haec sophicae mentis cunctas obnubilat artes,
laetitiam removet tristitiamque gerit;

flavicomum Cereris mentitur habere colorem:
di, talem terris hanc removete feram;

Laetheo fluvio vosmet summergite monstrum
seu Stigiis undis condite tale nefas,

illic quo valeat crudeles solvere poenas:
quae nos excruciat, praemia digna luat.

Quid moror in verbis ventosque lacessoquerelis?
O pater, has geminas, obsecro, vince feras;

large salltiferum contra vulnuscula, praesul,
Sedulio famulo da cataplasma tuo.

Ast his versicolis risit pius ille relectis

ac sophicis votis prospera cuncta dedit".(378)

Esta tradução, que fazemos, não segue, evidentemente, o ritmo que o autor, ainda nessa época, tentava usar. Nota-se, porém, que o gosto pelos dísticos se afirma com nitidez. Por isso, usamos a rima. O importante, porém, é que se pode testemunhar uma feliz conjugação de elementos tão distantes quanto o Mosela, rio de uma região da Alemanha onde já se produzia ótimo vinho; Hades, rio do Inferno onde bebiam as almas dos mortos para esquecer o passado; ou entre o mesmo Mosela e o Estige, rio, na mitologia greco-romana, por onde Caronte, em uma barca, conduzia as almas até as profundezas do Inferno; ou ainda entre a cerveja boa que o poeta, em nome dos demais religiosos, pedia e Ceres, a deusa da Agricultura, de cujos dons vinha, segundo a mitologia, essa bebida.

A Renascença Carolíngea, que Sedúlio Escoto vivia, permitia o conhecimento, nos auctores, de um patrimônio de uma época religiosamente diferente. Tal patrimônio, porém, era usado alegoricamente e se encaixava, sem grande dificuldade, num ambiente em que, à parte o fervor da vida religiosa, não se podia descurar o prazer de uma mesa com boa comida e bom vinho.

Gualterio (Walter) de Chatillon, outro dos poetas da época, é o provável autor de uma composição, conservada em vários manuscritos, em que, numa só estrofe, indica o gramático mais popular de então, Prisciano, o filósofo grego redescoberto, Aristóteles, o orador clássico de maior prestígio, Cícero, e o matemático e astrônomo grego Ptolomeu:

"Hic Priscianus est dans palmis verbera;
est Aristotiles verberans aëra;
verborum Tullius vi mulcet aspera;
fert Ptolomeus se totum in sidera".
(379)

Já na primeira estrofe dessa composição, O Apocalipse de Golias, podemos tomar conhecimento não somente do interesse pelos signos, na astrologia, mas também da informação detalhada que tinha o poeta dos nomes para os ventos:

"A tauro torrida lampade Cynthii
fundente iacula ferventis radii,
umbrosas nemoris latebras adii,
explorans gratiam lenis Favonii"
(380)

Nas Carmina Burana é comum, igualmente, a demonstração de conhecimento da mitologia em todos os seus detalhes. Há um poema, porém, situado no conjunto daqueles que, sob a forma de sátiras, tratam principalmente do relaxamento e abusos da Cúria Romana, de grande importância porque aborda temas críticos que, em pouco tempo, seriam aproveitados em composições de língua vulgar. É uma reflexão sobre o momento presente, quando dá demonstração do desalento diante da decadência religiosa e moral, mas, ao mesmo tempo, da consciência do valor do passado. Neste se misturam figuras da idade clássica romana, como Catão, o Velho, estadista e escritor latino; Lucrécia, matrona romana; o papa São Gregório, São Jerônimo e Santo Agostinho, doutores da Igreja; São Bento, fundador da conhecida ordem monástica; Marta e Maria, personagens do Novo Testamento; e Raquel e Lia, figuras conhecidas, respectivamente, pela beleza e pela fecundidade. Aqui vai o poema inteiro, devido à sua importância:

Florebat olim studium,
nunc vertitur in tedium;
iam scire diu viguit,
sed ludere prevaluit.
5 Iam pueris astutia
contingit ante tempora,
qui per malivolentiam
excludunt sapientiam.
Sed retro actis seculis
10 vix licuit discipulis
tandem nonagenarium
quiescere post studium.
At nunc decennes pueri
deccusso iugo liberi
15 se nunc magistros iactitant,
ceci cecos precipitant,
implumes aves volitant,
brunelli chordas incitant,
boves in aula salitant,
20 stive precones militant.
In taberna Gregorius
iam disputat inglorius;
severitas Ieronymi
partem causatur obuli;
20 Augustinus de segete,
Benedictus de vegete
sunt colloquentes clanculo
et ad macellum sedulo.
Mariam gravat sessio,
30 nec Marthe placet actio;
iam Lie venter sterilis,
Rachel lippescit oculis.
Catonis iam rigiditas
convertitur ad ganeas,
35 et castitas Lucretie
turpi servit lascivie.
Quod prior etas respuit,
iam nunc latius claruit;
iam calidum in frigidum
40 et humidum in aridum,
virtus migrat in vitium,
opus transit in otium;
nunc cuncte res a debita
exorbitantur semita.
45 Vir prudens hoc consideret,
cor mundet et exoneret,
ne frustra dicat "Domine!"
in ultimo examine;
quem iudex tunc arguerit,

50 appellare non poterit".(381)

Esta composição, além de demonstrar a consciência da formação humanística, religiosa e moral que, na visão do poeta, estava faltando à maioria, é um exemplo da tópica do "mundo às avessas", segundo a classificação de Curtius,(382) o que deve ser tomado também como um recurso literário para exprimir a confusão do espírito do poeta. Mais adiante voltaremos ao assunto, que consideramos uma das variáveis que entram na formação histórica do Descordo Plurilíngüe.

Repercussão do ensino clássico na poesia popular em língua vulgar

As opiniões a respeito

A opinião a respeito de uma dívida dos poetas provençais para com os grandes nomes da produção literária clássica começou com o desenvolvimento da polêmica sobre a influência árabe.

G. Andres, em sua obra Dell' origine, progressi e stato attuale d'ogni letteratura, publicada em 1782, ao discutir, no capítulo 11, a influência dos árabes na moderna cultura das belas letras, pronuncia-se a favor de tal influência e nega a grega e a latina. Considera que, apesar da alusão, por Raimbaut de Vaqueiras, à lenda de Píramo e Tisbe e da menção à lança de Aquiles, tais fatos não são suficientes para demonstrar que fossem os poetas provençais versados nas obras dos gregos e dos latinos:

"In fatti facendo qualche osservazione sulla poesia provenzale sembra mi che piutosto debba riconoscere a sua madre l'arabica, che non la greca, nè la latina. Egli è vero che nelle composizioni de' provenzali non si scorga vestigio d'arabica erudizione, ni v'e segno alcuno d' essersi formati i provenzali poeti su le poesie degli arabi, ma non si ravvisa neppure ch'essi fossero più versati nell' opere de' greci o de' latini nè si vede uso alcuno delle favole greche e dell' antica mitologia".(383)

Esteban de Arteaga, o grande tratadista espanhol de estética, contestou a posição de Andres, a esse respeito, em seu livro Della influenza degli arabi sull' origine della poesia moderna in Europa, publicado em 1791. Estabelece diversas conexões entre os trovadores provençais e os escritores clássicos e considera que a arte poética trovadoresca é um empréstimo formal dos epitáfios e seqüências latinas.(384)

Um pouco antes, o historiador francês Papon já assinalara ecos da cultura clássica em Bernart de Ventadorn.(385)

No século XIX, August Wilhelm von Schlegel assinalou, igualmente, os ecos clássicos em Bernard de Ventadorn, principalmente a lenda de Narciso e a alusão à lança de Aquiles.(386)

Com sua autoridade, desde as primeiras obras afirmada, Diez sustenta o caráter independente da poesia provençal e não vê, em seu nascimento, a menor influência da poesia latina.(387) Isso, porém, não foi suficiente para que, gradativamente, se juntassem provas de ligações culturais entre trovadores e cultura clássica. As opiniões, porém, têm divergido no sentido da profundidade de tais ligações. A primeira grande obra de conjunto, nesse sentido, foi a de Edmond Faral e nela se evidencia uma quantidade enorme de elementos e conceitos que, ligados à retórica das escolas medievais, revelam dependência com relação à retórica do Império Romano.(388)

Já Schrötter vira, em 1908, a presença da figura de Ovídio entre os trovadores.(389) Curtius (ver nota 345) segue a linha da identificação da formação clássica entre os trovadores. Scheludko, embora negue o caráter essencial da presença dessa cultura, considera-a uma espécie de pano de fundo, na base de ditos sentenciosos, frases célebres ou clichês, que identifica com minúcias.(390)

Encontra Scheludko, nas composições trovadorescas, os seguintes autores clássicos: Terêncio, Fedro, Sêneca, Catão, Vergílio, Plauto, Salústio, Ovídio e Públio Siro. Ovídio, como assinalamos ao tratar do tema da presença da latinidade clássica na obra de Raimbaut de Vaqueiras, aparece em seu poema Era.m requier sa costum' e son us.

Retórica clássica e técnica literária dos trovadores

Reto R. Bezzola, em obra moderna, de grande repercussão,(391) fez uma extensa e pormenorizada investigação sobre as origens e as condições de formação da literatura cortês. Seguindo a tradição humanística e o desenvolvimento da poesia culta em língua latina, desde o século VI até o século XII, chegou à conclusão de que, com relação à lírica dos poetas provençais, havia uma passagem para a terminologia da técnica trovadoresca daquilo que se teorizava nos compêndios de retórica da época.

Os estudos de Bezzola, Curtius e Thurot nos permitem concluir que expressões de Cercamon, Raimbaut d'Aurenga, Giraut de Bornelh e Arnaut Daniel, como colorar un chan, polir un chan e passar la lima, correspondem a expressões da retórica latina como colores rethorici, verba polita e inventio perpolita.

Na Idade Média sempre se usavam as palavras rethor e rethoricus ao lado da expressão colores rethorici.(392) Estas eram as figurae locutionis, ou tropos que interessavam à retórica e não à gramática, embora não fosse fácil distingui-las das figurae constructionis. O número desses tropos era grande e eram eles tirados, na Idade Média, da Ars Grammatica, de Donato, das Origines, de Isidoro de Sevilha e das obras de Cassiodoro e Prisciano. Muitos desses termos ainda hoje são conhecidos: eufonia, epílogo, etopéia, eufemismo, clímax, aposiopese etc.

Para o estudo dessas figuras de retórica o mais antigo manual que se usava era a Rethorica ad Herennium, obra de autoria desconhecida, atribuída ora a Cícero, ora a um certo Cornificio, que parece ter sido composta no século I a.C. Também tinha grande autoridade a De ornamentis verborum, de Marbodo, da primeira metade do século XII, e as Rhetorici colores, de Onulfo de Speier, do século anterior. As obras de Galfrido (Geoffroi) de Vinsauf, Évrard de Béthune e Jean de Garlande são posteriores à vida conhecida de Raimbaut de Vaqueiras.

Nessas obras, sempre se distingue o ornatus facilis do ornatus difficilis. A primeira expressão, sinônimo de via plana, sermo levis, indicava a arte de ligar palavras de mesma forma com significados diferentes (anonimatio) ou de estabelecer certa graduação gramatical através do uso sintático da determinação.

Já o ornatus difficilis, também chamado de modus gravis e egregia loquor, era uma expressão que, precedida de verbos como usar ou empregar, indicava a arte de utilizar adequadamente os tropos ou colores rethorici: metonímia, antítese, metáfora, sinédoque, perífrase, alegoria e enigma, além de muitas outras.

Jean de Garlande, retórico nascido na Inglaterra em 1180 e ativo na primeira metade do século XIII, citado por Martin de Riquer em sua notável antologia,(393) assim se exprime a respeito das duas artes:

"De facili ornatu per determinaciones verborum adjetivorum et substantivorum: item si velimus leniter dicere et plane, determinare debemus nomina et verba; Ars de ornatu difficili: et si materia fuit levis possumus eam reddere gravem et autenticam his novem quae sunt: proprietates pro subjecto, materia pro materiato, consequens pro antecedente, pars pro toto, totum pro parte, causa pro causato, continens pro contento, genus pro specie, species pro genere et converso".(394)

Tais palavras refletem a doutrina em vigor quando foi composto o Descordo Plurilíngüe e indicam claramente que ao ornatus facilis corresponde o trobar leu, leugier, pla e que ao ornatus difficilis corresponde o trobar clus, ric, car, escur, cobert, sotil, prim.

É de se notar igualmente que o sentido do verbo trobar está contido na inventio, parte da antiga retórica, ou seja, o de buscar temas, idéias que sejam capazes de representar e descrever a emoção do autor. Por isso, o trovador Guiraut Riquier assim se exprimiu:

"segon proprietat
de lati, qui lènten...,
son inventores
dig tug li trobador."
(395)

É evidente, nesse caso, que trobar tem sua origem em tropare, ou seja, usar tropos e trovador fica sendo, então, aquele poeta que é capaz de, ao buscar o ornatus difficilis, encontrar figuras ou colores para a perfeita expressão artística do seu pensamento.

Também é possível encontrar um fundamento latino na versificação românica, sempre na base de uma evolução técnica capaz de acompanhar a gradual substituição do acento quantitativo pelo acento tonal ou intensivo da poesia popular em língua vulgar. O cursus da prosa artística, que era o nome que se dava ao fecho da frase, foi passando, desde o fim da antigüidade, de métrico para rítmico ou acentuado, refletindo a mudança. A prática poética acompanhou essa evolução e

"Uma vez obliterado o sentimento da quantidade silábica, o novo ritmo da poesia românica, baseado na sucessão regular de sílabas fortes e sílabas fracas, fixou o princípio do isossilabismo, isto é, do número igual e constante de sílabas nos versos."(396)

Como bem assinala Curtius,(397) somente no século XI é possível encontrar um desenvolvimento diferente para a retórica de origem clássica. A prática do ornatus leva ao gosto da poesia didática, já que o uso de figuras, ou tropos, levava a uma estilística menos rígida. Em breve, do gosto acentuado pelos tropos, surge uma nova retórica, neles baseada, a ars dictaminis ou dictandi. Como dictare significava, desde Santo Agostinho, "escrever, redigir, escrever obras poéticas", transformou-se desde logo (século XI) a ars dictaminis em capacidade de escrever poeticamente para finalidades diversas.

Alguns exemplos de utilização direta da herança clássica

Embora não sejam numerosos os casos em que os trovadores mencionam diretamente nomes ilustres da antigüidade clássica ou personagens da mitologia, já se tem demonstrado uma grande ligação temática entre os trovadores e Ovídio, Vergílio ou Catão, para serem mencionados apenas os principais. É preciso que se note que a natureza cortês e, em conseqüência, não grandiloqüente, do estilo trovadoresco não poderia conviver com regulares referências a personagens mitológicos ou a grandes vultos da antigüidade. Isso significa que o eventual débito dos trovadores relativamente aos grandes nomes da literatura clássica deve ser identificado muito mais no uso de técnicas e temas do que em referências diretas a personagens gregos e romanos. Não obstante, podemos encontrar tais referências diretas, inclusive, como vimos, em Raimbaut de Vaqueiras. Eis algumas:

Marcabru (...1130-1149...):

"Catola, Ovides mostra chai,
e l'ambladura o retrai
que non soana brun ni bai,
anz se trai plus aus achaiz".
(398)

Rigaut de Berbezil (...1141-1160...):

"Ben sai c'Amors es tan granz
que leu mi pot perdonar
s'ieu failli per sobramar
ni reingnei com Dedalus,
que dis qu'el era Jezus
e volc volar al cel outracuidanz,
mas Dieus baisset l'orgoill e lo sobranz";
(399)

"E per aisso voill sofrir las dolors,
que per soffrir son main ric joi donat
e per sofrir maint orgoill abaissat
e per sofrir venz hom lausenjadors,
c'Ovidis dis el libre que no men
que per soffrir a hom d'amor son grat,
e per soffrir son maint tort perdonat
e sofrirs fai maint amoros jausen."
(400)

Giraut de Bornelh (...1162-1199...):

"Detorn me vai e deviro
foldatz, que mais sai de Cato.
Devas la coa.lh vir lo fre,
s'altre plus fols no m'en rete;
c'aital sen me fi ensenhar
al prim qu'era.m fai foleiar."
(401)

Raimon Jordan (...1178-1195...)

"Qu'eu.l servirai oimais, cossi que m'an,
e serai li leials e ses engan
melhs qu'Elena no fo al frair'Ector,
e, s'a leis platz, mon servir no.m soan,
qu'anc non amet Hero tan Lenader."
(402)

Arnaut de Maruelh (...1195...)

"Juli Cezar conquis la senhoria
per son esfors de tot lo mon a randa,
non ges qu'el fos senher ni reis d'Irlanda,
ni coms d'Angieus, ni ducx de Normandia,
ans fo bas hom, seguon qu'ieu aug retraire,
mas quar fon pros e francs e de bon aire,
pujet son pretz tan quant pugar podia."
(403)

"Pus blanca es que Elena,
belhazors que flors que nais,
e de cortezia plena,
blancas dens ab motz verais,
ab cor franc ses vilanatge,
color fresc'ab saura cri".
(404)

"E Rodocesta ni Biblis,
Blancaflors, Semiramis,
Tibes ni Leida ni Elena
Ni Antigona ni Esmena
ni.l bel'Yseus ab lo pel bloi
non agro la meitat de joi
ni d'alegrier ab lor amis,
com eu ab vos, so m'es avis."
(405)

Raimbaut de Vaqueiras (...1180-1205...):

"Anc non amet tan aut cum eu negus
ni tant pro dompn', e car no.i trob pareill
m'enten en lieis e l'am al sieu conseill
mais que Tisbe non amet Pyramus..."
(406)

Estas citações, feitas da bela antologia de Martin de Riquer e da primorosa edição de Linskill das obras de Raimbaut de Vaqueiras, são representativas, se colocadas no contexto deste capítulo, da formação humanística dos trovadores. São repercussões diretas, como dissemos, da cultura clássica na obra dos trovadores. Mais profunda, todavia, é a dívida dos trovadores quando se buscam, como fez Viscardi(407) ou Scheludko,(408) construções ou frases inteiras de poetas e prosadores latinos ou, ainda, técnicas e temas. Esta dívida tem o sentido de um pano de fundo cultural, não se referindo à essência da inspiração cortês, que corresponde a uma época diferente, de costumes e de sentimentos diversos.

Temas populares na poesia latina medieval e na trovadoresca

Caráter mais amplo dos gêneros da poesia trovadoresca e sua relação com a cultura da época

Como dissemos acima, a herança clássica não corresponde à essência da inspiração poética cortês, pois, a partir da reforma carolíngea, a sociedade da Europa ocidental, particularmente a da França, Itália do norte e Alemanha, se reestruturou. Daí a importância das considerações sociológicas para a compreensão da literatura produzida por essa sociedade, em latim, primeiro, e em língua vulgar, depois.

O desenvolvimento do feudalismo, que alcançou bases firmes entre os séculos X e XII, explica, a nosso ver, o surgimento de uma literatura latina profana e de uma literatura vulgar igualmente mundana. O processo de formação dos novos ideais estéticos surge, como bem assinalou Erich Köhler,(409) da integração social da nova classe nobre com a aristocracia estabelecida. Como o feudo se baseava numa hierarquia aberta (no sentido de realimentada), dava origem a naturais tensões entre os senhores estabelecidos e os que vinham integrar o sistema. Essa tensão se consubstancia num jogo de encorajamento e rejeições, o qual norteia a atitude de todos os poetas que surgem nesse novo sistema. Há os que buscam subir e os que controlam esta ascensão. A vassalagem política tem como contrapartida a vassalagem afetiva e se tornam instrumentos do jogo a homenagem, de um lado, e a crítica, de outro. O importante, porém, é notar que são protagonistas desse jogo apenas uns poucos privilegiados, isto é, os que, por circunstâncias diversas, têm alguma coisa, sejam bens materiais, seja a proteção por parte de algum poderoso, seja um talento especial para o entretenimento.

De acordo com as alternativas de encorajamento e rejeição, acima referidas, surge uma poesia profana de caráter aristocratizante ou popularizante.(410)

A poesia latina dos séculos IX a XII exemplifica a primeira fase dessa dualidade (encorajamento x rejeição ou aristocrático x popular). A produção goliárdica, em que se destacam, a partir do século IX, os temas de inconformismo social ou de valorização do profano - inclusive o amor - representa uma maneira nova de sentir o contexto social com o uso do instrumento linguístico ainda consagrado pelas classes dominantes de nobres e bispos. Na medida em que as contradições do sistema feudal geravam uma crescente tensão social interna, os valores dessas classes dominantes foram sendo contestados e gradativamente substituídos por aqueles que equivaliam aos da alma popular: amor, sinceridade, lealdade, justiça etc. Em conseqüência, o instrumento linguístico dessa expressão ficou defasado, pois distanciado da platéia mais numerosa que se formava. Inicia-se, então, a segunda fase da produção literária do contexto feudal, ou seja, aquela em que, por efeito das contradições e enfraquecimento desse sistema, se usa como instrumento expressional a língua do povo.

Enquanto, no século IX, o reconhecimento da língua vulgar, como instrumento oral, se fez por razões de dominação religiosa, no século XII este mesmo reconhecimento, já agora como instrumento escrito, se fez em função da chegada das contradições internas do sistema feudal a um ponto crítico, em que se igualavam a vontade da ascensão por parte de uns e o controle dessa ascensão por parte de outros.

À medida que a literatura em língua vulgar, no sul da França, se firmava, os gêneros se multiplicavam, muito logicamente, em função da realidade exterior, ou seja, da maior, embora incipiente, democratização do poder. A canção, com suas variedades (alba e pastorela), coexiste com o sirventês primeiramente e, depois, com a dança, a balada, a tenção, o partimen e o descordo, sem se falar no planh, que continua uma tradição antiga.

Gêneros trovadorescos e seus correspondentes ou equivalentes latinos

Não se pode, evidentemente, encontrar para cada gênero da poesia trovadoresca um correspondente na poesia medieval profana em língua latina. A razão está no fato de que esta precedeu aquela como primeira fase de um processo sócio-cultural. Quando não há correspondentes, equivalentes podem ser detectados. Como a segunda fase é a de um rompimento expressional formal, gêneros inteiramente novos nela surgiram, de modo que a comparação entre a poesia medieval profana em língua latina e a poesia trovadoresca deve ser sempre colocada numa perspectiva de relativismo. Assim, vejamos:

A) Canção

A poesia amorosa, ou canção, devia elogiar o amor ou seu objeto. Normalmente esse elogio se apresentava como uma descrição das qualidades físicas e morais do objeto amado. Às vezes usava-se a negação do amor para realçá-lo. De qualquer forma, o conteúdo da canção era o amor espontaneamente manifestado. Na poesia latina, essa espontaneidade frequentemente se manifestava e versos delicados punham em evidência um sentimento do mesmo tipo do dos trovadores. Exemplos:

"Pidus clarum
puellarum,
flos et decus omnium,
rosa veris,
que videris
clarior quam lilium;
..........
Frons et gula
sine ruga
et visus angelicus
te celestem,
non terrestrem,
denotant hominibus."
(411)

"Si com la stella jornaus
que non a paria,
es vostre rics pretz ses par,
e l'oill amoros e clar
franc ses felnia,
bels cors plasens, egaus,
de totas beutatz claus.
Miels de domna, e de bel estamen
que.m defen
lo pensar del marrir:
so non pod hom deloingnar ni gandir."
(412)

A diferença entre a manifestação do sentimento de amor do trovador e a do poeta latino está no fato de que aquele se põe no centro da relação amorosa, manifestando-se subjetivamente, enquanto este desloca a atenção do leitor ou do ouvinte para a mulher amada, a amiga. Daí resulta ser a descrição da mulher, na poesia medieval profana em língua latina, o objetivo do poeta. Esta diferença de atitudes é reveladora de dois diferentes posicionamentos no mundo: o trovador tem a tensão da conquista, que lhe propiciará subir no contexto social, já que a dama está quase sempre acima dele, enquanto o poeta que usa a língua latina demonstra um amor mais espontâneo, menos dependente de fatores que não sejam o seu puro sentimento.

Raimbaut de Vaqueiras, nesse contexto, está mais próximo do sentimento do poeta que usa a língua latina. Só se revela um jogral, como vimos, na Epístola Épica. Sua amada, representada pelo senhal Bels cavaliers, é colocada quase sempre em uma espécie de pedestal, que o poeta olha à distância, sem maior avaliação subjetiva. Seu amor não é tão fingido quanto o de muitos trovadores. Ao contrário, é sincero.

A atitude "latina" de Raimbaut é evidenciada na devoção respeitosa que manifesta concretamente à sua amada nos textos de seus poemas e é coerente com o procedimento de subentender sua identidade, como a filha mais nova de seu protetor Bonifácio, no Carros.

Dentro desse contexto, vale a pena ressaltar, neste momento, que uma avaliação inadequada do sentimento de amor em Raimbaut e do sentido de sua vida, antes de sua partida para o Oriente, feita por estudiosos como Zingarelli, Bertoni, Kolsen, Appel e outros, têm contribuído para o ceticismo relativamente a fatos da vida do poeta, como, por exemplo, a consideraçåo de Bels Cavaliers e Beatriz, filha de Bonifácio, como uma só pessoa. Não há, porém, nenhuma inverossimilhança no fato de Raimbaut ter-se apaixonado respeitosamente, isto é, à maneira dos poetas latinos de sua época, por Beatriz e disso Bonifácio ter tido conhecimento. Em primeiro lugar porque louvar uma mulher não casada era prática nas cortes do norte da Itália. Em segundo lugar, como demonstramos neste livro, porque Raimbaut nåo era um "visitante" em Monferrato mas alguém que lá vivia por opçåo, sendo Provença a terra que visitava de vez em quando. Em terceiro lugar, porque Raimbaut já era cavaleiro, havia muitos anos, quando compôs, entre 1200 e 1201, o Carros. Podia, em conseqüência, tornar público seu amor por uma dama de alta linhagem. Se nåo o fez antes, a razåo, certamente, foi a pouca idade da jovem. Assim que ela atingiu a idade núbil (12 anos),(413) o poeta-cavaleiro descobriu-a como mulher e passou a sentir-se naturalmente encorajado a, gradativamente, deixar transparecer seus sentimentos nobres, culminando este processo em 1202. Em 1203, ano de composição do Descordo, como demonstraremos mais adiante, o poeta já está desiludido:

... vueilh un descort comensar
d'amor per qu'ieu vauc aratges;
c'una dona.m sol amar
mas camjatz l'es sos coratges,...

... quero começar um descordo
sobre um amor desesperado;
devia uma dama me amar
mas seu coração está mudado ...

Esta confissão está em harmonia com as conclusões de Schultz-Gora(414) no sentido de que Beatriz casou-se depois de 1202. O poema que Raimbaut compôs logo depois do Descordo, Engles, un novel descort, dá a entender que Bonifácio tinha conhecimento de seus sentimentos.

A subida de Raimbaut no contexto social se fez à custa de ações pessoais de grande valor relativamente às cortes que o protegiam, principalmente a de Monferrato, e foi promovida por ele mesmo através de reivindicações, como, entre outras, a de ousar casar-se com a filha de seu protetor, que acabou por esposar alguém de seu nível, para grande decepção do poeta. A soluçåo, como era e é possível nestes casos, foi canalizar o trovador suas energias para ações no campo religioso.

Raimbaut de Vaqueiras não é, pois, um amoroso típico entre os trovadores. Tal característica, aliada à riqueza de sua técnica versificatória, à variedade temática de suas composições e à originalidade de sua expressão lingüística, nos leva a admitir-lhe como provável uma adesão à religiosidade e um engajamento na vida clerical em algum momento de sua vida.

B) Pastorela e temas da primavera e do lugar ameno

É esse gênero que mais aproxima o poeta de língua latina do poeta de língua vulgar. A contínua utilização, na Idade Média, da tópica da natureza, cujo principal representante clássico foi Vergilio, levou os poetas de língua latina a introduzir em seus poemas o "lugar ameno" (bosques, prados, rios), capaz de acionar o sentimento de amor do poeta para com a mulher amada ou admirada. Os trovadores transformaram a apresentação desse "lugar ameno" em abertura freqüente para seus poemas amorosos.

Tanto entre eles, quanto entre os poetas de língua latina, havia o forte condicionamento do "lugar ameno" vivido ou lembrado, em relação ao sentimento manifestado ou buscado. Exemplos:

"Tellus purpurata
floribus et prata
revirescunt,
umbre crescunt,
nemus redimitur;
lascivit natura
omnis creatura;
leto vultu,
claro cultu,
ardor investitur.
Venus subditos titillat,
dum nature nectar stillat,
sic ardor venereus
amantibus scintillat.

O quam felix hora
in qua tam decora
sumpsit vitam
sic politam,
amenam, iocundam!
O quam crines flavi!
In ea nil pravi
scio fore;
in amore
nescio secundam
frons nimirum coronata,
supercilia nigrata
et ad Iris formulam
in fine recurvata.
"(415)

"Can par la flors josta.l vert folh
e vei lo tems clar e sere
e'l doutz chans dels auzels pel brolh
m'adousa lo cor e.m reve,
pos l'auzel chanton a lor for,
eu, c'ai mais de joi en mo cor,
dei be chantar, pois tuih li mei jornal
son joi e chan, qu'eu no pes de ren al.

Cela del mon qued eu plus volh,
e mais l'am de cor e de fe,
au de joi mos dihz e.ls acolh
e mos precs escout'e rete.
E s'om ja per ben amar mor,
eu en morrai, qu'ins en mo cor
li port amor tan fin'e natural
que tuih son faus vas me li plusleyal."
(416)

C) Outros gêneros

Da mesma maneira que o tema do amor e o da natureza se encontram tanto em poetas de língua latina quanto nos poetas provençais, outros temas podem ser igualmente relacionados, desde que se tenha sempre em mente a diferença de atitude estética entre uns e outros.

O planh ou lamento, equivalente do planctus da poesia latina medieval, pode ser exemplificado na homenagem a Ricardo Coração de Leão feita tanto por Geoffroi (Galfrido) de Vinsauf, em sua obra latina Poetria nova, quanto pelo trovador Gaucelm Faidit (Fortz chauza es que tot lo major dan - Dura coisa é que todo o dano maior...).(417)

A tenção ou debate era um tipo de disputa poética que não se limitava ao contexto trovadoresco. Seu correspondente na poesia medieval profana em língua latina era o conflictus, também chamado de altercatio. Como, entre os trovadores, esses debates não se limitavam ao tema do amor e seus propósitos, frequentemente eram didático-morais. Entre os mais conhecidos debates latinos estão o Conflictus Veris et Hiemis (Debate entre a primavera e o inverno); a Altercatio Yemis et Estatis (Debate entre o inverno e o verão); e a tenção Denudata veritate (Falando às claras). Entre conflictus e tensó e seus derivados (joc partit, tornejamen e cobla), existe uma relação que se baseia na tendência, desde o século IX, à discussão e à crítica. Como em toda época de florescimento cultural, aquela que se seguiu à reforma carolíngea propiciou um crescente questionamento da realidade. Por isso, os poetas latinos tratam de temas como o amor do cavaleiro e do clérigo, do amor das monjas ou das vantagens e desvantagens do casamento. Já entre os trovadores, qualquer assunto podia ser tema de uma tensó. Como o conflictus latino-medieval era mais antigo, não se pode deixar de reconhecer sua influência sobre a correspondente produção trovadoresca:

"Sin duda influyó en él el conflictus latino medieval, tan vivo desde la época carolingia; pero el arte juglaresco debió de darle su espontaneidad y su técnica, y las costumbres cortesanas, su tendencia al ingenio y a la casuística".(418)

Com relação ao sirventês, parece ser um gênero, entre os trovadores, autêntico, muito embora, naturalmente, tenha havido sempre e em toda parte composições satíricas, inclusive entre os poetas latinos medievais. Não parece haver influência destes sobre aqueles porque a sátira, na poesia latina medieval, se fazia principalmente sobre o relaxamento de costumes e os abusos da Cúria Romana. Nos tratados de retórica, escritos em provençal e de uso dos trovadores, o sirventês é definido, frequentemente, como uma composição que se serve da estrutura e da melodia de canções conhecidas para fins de crítica, de ataque, de polêmica ou de moral.

A alba trovadoresca, gênero que descreve o estado de espírito de amantes que tenham passado a noite juntos e devem separar-se ao amanhecer, reflete claramente um tipo de amor, o amor cortês, que não existe nas composições latinas, pois é o amor de um cavaleiro por uma senhora, mulher casada que com ele mantém um encontro ilícito, sob a proteção de um vigia que lhes anuncia, ao fim da madrugada, o dia que chega.

O caso particular do descordo

Os adynata na literatura medieval

Curtius, em sua obra já por nós citada, apresenta um tema, o do "mundo às avessas" que, segundo ele, é recorrente na história da literatura ocidental desde o tempo dos gregos. Esse tema, curioso sob todos os aspectos e pleno de matizes, está, em nossa opinião, na base de um tipo de descordo que chegou a ser cultivado no período trovadoresco provençal.

É por ele chamado de adynata ou impossibilia a apresentação de coisas impossíveis, absurdas ou inusitadas, lado a lado, em produções poéticas de todos os tempos. Imagens tão conhecidas como a do "carro adiante dos bois", do "murro em ponta de faca", do "contentamento descontente", do "nadar contra a corrente" etc, são exemplos de impossibilia de todos conhecidos e que têm, usados no lugar e nas condições adequadas, grande efeito artístico. Os adynata, usados pela primeira vez pelo poeta grego Arquíloco, são muito frequentes nas écoglas de Vergílio em que um pastor, perturbado pelo amor não correspondido, manifesta todo o seu desinteresse pela ordem natural das coisas, pouco se lhe importando "que o lobo fuja espontaneamente das ovelhas, o carvalho produza maçãs douradas, a coruja rivalize com o cisne e o pastor Titiro seja Orfeu".(419) É uma situação que revela, no amante desiludido, um misto de revolta para com o objeto amado, e desinteresse pelas coisas da vida, tudo isso expresso numa linguagem em que as palavras e expressões inesperadas e as imagens inusitadas são capazes de deixar clara a perturbação de espírito do pastor desiludido.

Os adynata foram retomados pelos poetas da renascença carolíngea, no século IX, já agora com "animus" crítico a denotar, pelas imagens absurdas, a insatisfação com o quadro da realidade que se vivia. Trata-se, porém, neste século, de uma evidente imitação dos impossibilia antigos, sem uma força maior nem uma penetração mais profunda na sociedade. Assim, Teodulfo e Valafrido Strabo utilizam tais recursos com interesse quase que apenas literário.(420)

Vimos, em capítulos anteriores, que a Renascença Carolíngea atingiu seu limite de atuação no século XII quando, cessado o modelo latino tradicional, voltam-se os poetas da latinidade medieval para temas mais ligados ao seu dia a dia e menos impregnados de imagens e recursos da retórica latina. Passa a haver, mais preponderantemente, nessas poesias, personagens e assuntos do momento. Os goliardos representam verdadeiramente essa mudança que se realiza entre 1170 e 1190:

"A vida cultural ricamente desenvolvida gera uma nova consciência de si mesma. Ousa-se empreender uma crítica do tempo em grande estilo. A degeneração da Igreja (Jerônimo, Agostinho e Gregório) e do monaquismo (Bento; a contemplação de Maria, em contradição com a vida ativa simbolizada por Marta) são objeto de crítica, bem como a condição do camponês. O quadro do antigo adynaton serve para a crítica e lamentações do tempo. Da seriação de impossibilia nasce o topos do "mundo às avessas".(421)

Adynaton nos Carmina Burana

O poema satírico do século XII Florebat olim studium, que assinalamos e traduzimos acima, ao discorrermos sobre a repercussão do ensino clássico na poesia latina profana, é um exemplo do uso de adynata na expressão do inconformismo com fatos da realidade:

v. 31 - "O ventre de Lia é estéril
e os olhos de Raquel
não tem mais brilho.
A severidade de Catão
está nos prostíbulos
e a castidade de Lucrécia
está presa na lascívia.
O que antes era mal
hoje está entronizado;
ao quente se chama frio
e ao úmido, árido.
A virtude virou vício
e o trabalho, ócio.
Resumindo tudo agora:
tudo está fora do caminho."

Esta declaração de que tudo está fora do caminho é a manifestação formal do "mundo às avessas" em que se situa revoltado o autor.

Nos Carmina Burana, conforme assinala Curtius, o tema se repete e, no poema de número 37 da edição de Schumann, o gado fala, o boi é atrelado atrás do carro, o capitel e a base da coluna estão trocados.(422)

É interessante notar que os exemplos colhidos por Curtius em Chrétien de Troyes (entre 1160 e 1170), João de Hanville (fins do século XII), Alano (cerca de 1185) e Nigelo Wireker (antes de 1180) concentram-se no último quartel do século XII, com predominância provável da penúltima década.

Adynaton em Arnaut Daniel

Ora, é justamente em 1180 que surge no cenário poético trovadoresco a figura de Arnaut Daniel, cujas últimas composições não são posteriores a 1195. Foi Arnaut Daniel que introduziu os adynata na poesia trovadoreca:

"Ieu sui Arnautz qu'amas l'aura,
e chatz la lebre ab lo bou
e nadi contra suberna"
(423)

"Amors e jois e liocs e tems
mi fan tornar lo sen e derc
d'agel noi c'avia l'autr'an
can cassava-l lebr'ab lo bou..."
(424)

"Tant sai qe'l cors fatz restar de suberna.
E mos bous es pro plus correns que lebre"
(425)

Desses versos de Arnaut Daniel verifica-se, como o indica claramente a segunda citação, que a linguagem confusa, absurda e incompreensível dos seus adynata é uma manifestação consciente da revolta que sentia contra o falso amor, contra o amor cheio de enganos, de que se queixou em algumas de suas composições.

Ao usar esses impossibilia, Arnaut Daniel lançou, na poesia trovadoresca, nova moda que foi criticada pelo Monge de Montaudon e imitada por Petrarca, Ausías, o grande lírico catalão do séc. XV e, em nossa opinião, por Raimbaut de Vaqueiras em seu famoso Descordo Plurilíngüe.

Os adynata de Arnaut Daniel na crítica do Monge de Montaudon

"Ab Arnaut Daniel son set

qu'a sa vida be no chantet

mas us fols motz c'om non enten.

Pois la lebre ab lo bou chasset

e contra suberna nadet,

no val sos chans un aguillen."(426)

Isso, que o Monge de Montaudon criticava em Arnaut Daniel como sendo versos tolos, foi dito em 1195 na composição Pois Peire D'Alvernh'a chantat, em que satiriza vários trovadores. Tal crítica está a demonstrar que os adynata de Arnaut Daniel estavam em plena evidência nessa época, que podemos identificar como o período entre 1185 e 1195.

Os impossibilia de Arnaut Daniel faziam parte de sua técnica de composição em que as rimas raras, ou seja, difíceis ou ricas, coexistem em canções que no son leus ad entendre ni ad aprendre.(427)

Adynaton em Petrarca

Além disso era esse trovador rico em palavras ou expressões pouco conhecidas, como Raimbaut de Vaqueiras, o que fez dele um mestre para Petrarca, que lhe atribuía um dir strano e bello e que nele provavelmente se inspirou para criar sua musa Laura, a partir dos sons do verso Jeu sui Arnautz qu'amas l'aura.(428)

Petrarca imitou seu mestre no uso de adynata:

"A una cerva errante e fuggitiva

Caccio con un bue zoppo enfermo e lento"
(soneto 212)

"A uma corça errante e fugitiva

caço com um boi coxo, enfermo e lento""

"E co'l bue zoppo andrem cacciando l'aura"
(sextina 239)

"E com o boi coxo sairemos a caçar o vento"(429)

Todos os adynata até agora citados constituem uma manifestação do ornatus difficilis dos poetas latinos a que nos referimos. Pertecem ao último quartel do século XII (o poeta do Florebat olim studium, Nigelo Wireker, Alano e João de Hanville). Os adynata de Arnaut Daniel constituem uma manifestação de trobar clus, o dir strano e bello assinalado por Petrarca. A diferença entre o trovador e os poetas latinos está, como dissemos, na utilização das construções difíceis, absurdas e inusitadas para exprimir o sentimento de inconformismo do poeta com relação ao amor que lhe é negado por sua senhora.

Adynaton em Raimbaut de Vaqueiras

Ao invés de exprimir esse mesmo sentimento dessa maneira, o trovador Raimbaut de Vaqueiras recriou, em 1203, a moda da década anterior e usou línguas, rimas e música diferentes em seu famoso Descordo Plurilíngüe, que estamos estudando:

"Aras cant vei verdeiar
pratz e vergiers e boscatges,
vueilh un descort comensar
d'amor, per qu'ieu vauc aratges;
c'una dona.m sol amar,
mas camjatz l'es sos coratges,
per qu'ieu fauc desacordar
los motz e.ls sons e.ls lengatges."
(430)

O descort de Raimbaut de Vaqueiras é, verdadeiramente, um desacordo, ou seja, um manifestação de coisas incompreensíveis para o comum das pessoas, mas que estão de acordo com o seu sentimento de amante não correspondido. Exatamente como Arnaut Daniel. O seu "mundo às avessas" é sua Babel de línguas (provençal, italiano-genovês, francês, gascão e galego-português), usadas não para serem entendidas por ouvintes e leitores, como línguas diferentes, mas compreendidas por eles como manifestação de sua perturbação de amor. O mesmo efeito procurou obter usando melodias e rimas diferentes.

Teoria da tradição litúrgica

Aspectos gerais

A opinião sobre o papel da tradição musical e literária da Igreja na obra dos trovadores deve ser considerada no contexto da latinidade medieval. Na verdade, desde os fins do século III até o século XIII, desenvolveu-se uma produção religiosa de caráter crescentemente literário, devido ao fato de que na liturgia da Igreja, desde o início, foi sentida a necessidade de se quebrar a monotonia das palavras da missa. Além disso, a inspiração estritamente religiosa esteve na base de um grande número de orações e hinos que apresentam, em sua textura, grande valor literário. Desde Santo Ambrósio até Adam de Saint-Victor e Tomás de Aquino, percorreu a literatura religiosa um caminho profícuo, que atinge ponto alto em composições como a seguinte:

"Stabat mater dolorosa
Juxta crucem lacrymosa
Dum pendebat Filius.
Cujus animam gementem
Contristatam et dolentem,
Pertransivit gladius."
(431)

Para se compreender e admitir uma possível influência da tradição litúrgica na obra dos trovadores, é preciso distinguir muito nitidamente que setores da produção em língua vulgar podiam realmente ser afetados. A questão dos temas, por exemplo, tem de ser encarada com realismo pois uma coisa é ser um poeta religioso e outra coisa é ser um poeta afetado pelo contexto religioso. Nesse sentido, os estudos de Scheludko sobre os temas religiosos entre os trovadores precisam ser compreendidos como estudos sobre poetas religiosos.(432)

Tanto Scheludko quanto Gennrich,(433) outro investigador da tese litúrgica, apontam trovadores que se destacaram pela produção religiosa, como Peire d'Alvernha, Folquet de Marselha, Marcabru e outros. Entre os temas desses trovadores estão o da penitência, o da misericordia, o do credo, o da devoção a Maria, o da religiosidade, o do Evangelho e o da morte por Cristo.(434) Como os trovadores eram cristãos, não se pode deixar de esperar, conforme adverte Riquer, que elementos da fé apareçam em suas obras. Daí, porém, a afirmar uma influência religiosa, vai um passo muito grande, já que a poesia trovadoresca é essencialmente profana em seus gêneros principais:

"Compuesta por hombres cristiános - no se sabe de ningún trovador judío, y menos musulmán - y para ser escuchada por cristianos, la poesía trovadoreca, esencialmente profana en sus géneros principales, presupone una formación religiosa. Nacidos en una época en que la educación literaria estaba casi exclusivamente en poder de la Iglesia y de los eclesiásticos, los primeros textos que nuestros trovadores tuvieron entre manos fueran, sin duda, catecismos de formación moral cristiana y de elementos de la fe, textos bíblicos y sus comentarios, y es muy posible que algunos se entregaran a la lectura de obras de ascética y de mística."(435)

Limites da influência da tradição litúrgica

Desde que Jean Beck investigou em profundidade a música dos trovadores,(436) firmou-se a opinião de que "era a melodia que determinava o verso e a estrofe dos trovadores, e que essa melodia tinha evidente origem litúrgica."(437) Uma modificação dessa opinião é a do músico e professor universitário suiço J. Handschin, no sentido de ter havido gêneros que se colocavam à margem da liturgia regular, como os tropos, as seqüencias, os condutos e todo tipo de música piedosa, porém no litúrgica.(438)

É em função desses estudos, que se deve considerar como se realizando no campo da forma a influência da tradição litúrgica. É preciso, no entanto, observar que um gênero parece realmente ter surgido da forma de peças literárias litúrgicas. É o descordo.

Segundo os investigadores que a ele se dedicaram, o descordo, variedade meridional do lai setentrional, tem sua origem na seqüência litúrgica, a qual, por sua vez, foi capaz de desenvolver vida própria na base de produções de alto valor literário.(439)

Da literatura a respeito do descordo, está claro, atualmente, que esse gênero cortês, aspecto das cantigas de amor, é um decalque da sequência latina, fato esse demonstrado por Spanke no artigo que citamos na nota anterior. Segundo Jeanroy,

"...c'est le seul genre pour lequel une origne liturgique soit nettement assurée."(440)

O descordo é uma canção em que o poeta busca conscientemente a irregularidade de forma, que se manifesta na estrutura inteira do poema e, principalmente, na aliança entre um texto e uma melodia que não se coadunam. O propósito do poeta é o de deixar patente sua perturbação mental oriunda de um sentimento não correspondido.

Em nossa opinião, como assinalamos na segunda parte da seção anterior, letra D, o descordo, do ponto de vista de conteúdo, está ligado à tópica do "mundo às avessas" da tradição latino-clássica medieval. Do ponto de vista de forma, como o demonstraram os investidores citados, está indissoluvelmente ligado às sequências litúrgicas, principalmente às dos séculos XI e XII.

O Descordo Plurilíngüe como manifestação da unidade latino-clássica-medieval

Ao estudarmos, na seção anterior, o caso particular do descordo, tratamos das relações entre o conteúdo desse gênero e o adynaton do "mundo às avessas", que foi usado de modo muito pessoal por Raimbaut de Vaqueiras para indicar seu inconformismo com respeito ao amor que lhe é negado por sua senhora. Esse modo particular, sob o ângulo mais conhecido, é a utilização de línguas incompreensíveis e, portanto, absurdas para a maioria de seus ouvintes. Por mais especial que fosse seu público - e, na verdade, o era - o uso das cinco línguas obrigava ao entendimento da mensagem de Raimbaut não dentro dos idiomas em si mesmos, mas como símbolo ou ícone de alguma coisa que era comum , no todo ou em parte, a esse público e ao poeta. Como os trovadores compunham mais para os mais bem situados na escala social, pode ser até que seu alvo tenha sido uma parte determinada de seus ouvintes e, em conseqüência, o sentido de língua extravase o de idioma, para que a mensagem de Raimbaut esteja bem inserida no contexto da apresentação de sua composição. Dentro desta perspectiva, desenvolveremos a parte histórica do presente trabalho e procuraremos chegar à verdadeira realidade histórica e teleológica do Descordo Plurilíngüe. Também se caracteriza o modo particular do fazer poético de Raimbaut, no Descordo, pelo emprego de músicas diferentes para cada estrofe e de rimas igualmente diferentes.

É necessário, porém, que se leve em conta que Raimbaut era um usuário do jogo de antíteses ou do adynaton propriamente dito na base de conceitos alinhados de maneira ilógica:

"Per frevols son vencut li fort,
e potz d'agre doussor gitar,
e caut e freyt entremesclar,
e niens met son don a mort,
et el mort a trop gran ricor,
e ric perdon si per honor
que fan, e deu luz escazer".
(441)

Em outra composição, Raimbaut persegue o objetivo de demonstrar seu estado de espírito através do jogo de antíteses próprio do adynaton:

"Savis e fols, humils et orgoillos,

cobes e larcs e volpills et arditz

sui qan s'eschai e gauzens e marritz,

e sai esser plazens et enojos

e vils e cars e vilans e cortes,

avols e bos, e conosc mals e bes,

e ai de totz bos aips cor e saber,

e qand rem faill fatz o per non poder".(442)

Essas duas composições de Raimbaut de Vaqueiras demonstram que o poeta gostava de praticar o mesmo tipo de composição que destacava o trovador Arnaut Daniel dentro de uma tradição que vinha dos romanos e passava pela poesia popular em língua latina da época.

Por outro lado, a poesia religiosa, em língua latina, desenvolveu nas sequências uma forma poética de métrica livre que, popularizando-se, serviu de inspiração posterior aos poetas que elaboravam sobre temas profanos em língua latina. Quando a poesia em língua vulgar, em sua busca por novas formas, descobriu as sequências latinas populares, também começou a usar um metro mais livre a contrastar com o esquema preciso das composições normais. A palavra descort, que se usava como antônimo de acort, passou a designar todo tipo de composição que fugia ao regular das canções. Nesse sentido a doutrina de Richard Baum sobre a natureza de anti-canção do descort nos parece perfeitamente válida. Em sua visão:

"... à côté de la chanson régulière et qui suit le principe de la régularité, ils conçoivent la chanson irrégulière, qui suit celui de l'irrégularité. Si une catégorie est constituée par les variations de la forme strophique, l'autre est constituée par les variations d'une forme qui affiche l'irrégularité. L'opposition des catégories régulier/irrégulier est le principe générateur du descort. Cette opposition peut se manifester sur un plan ou sur plusieurs plans à la fois: sur celui de la forme, sur celui de la musique et sur celui du contenu."(443)

No Descordo Plurilíngüe, Raimbaut de Vaqueiras manifesta a oposição regular/irregular, nos planos do conteúdo e da música. No plano da forma das estrofes, é regular e, nisso, se distingue o poema dos outros descordos reconhecidos, que assentam sua irregularidade no metro e nas estrofes. A verdadeira irregularidade do plano do conteúdo é praticada somente por Vaqueiras pois, nos outros descordos, fala-se da perturbação do poeta, enquanto no Descordo Plurilíngüe não somente se fala desse estado de espírito, mas se patenteia o mesmo através de línguas incompreensíveis e músicas diferentes. Essas línguas incompreensíveis são, ao mesmo tempo, um recurso estilítico inspirado no jogo de absurdos vocabulares que é o adynaton da tradição clássica e um recurso lingüístico, de função conativa, já que o poeta, com elas, parece querer atuar, de algum modo, no contexto social concreto de todos os seus ouvintes ou, o que é mais provável, de parte deles, exercendo sobre eles uma certa influência. A intencionalidade de Raimbaut, neste último caso, deve ter uma justificativa histórica, que deve ser buscada.

O Descordo é, pois, uma composição em que Raimbaut de Vaqueiras dá uma demonstração de técnica estilística e faz uma exibição interessada de conhecimentos linguísticos, em consonância com sua formação dentro do contexto da unidade cultural latino-clássica-medieval e com a vida concreta que levava.



















PARTE IV





















Capítulo 1

Dados imediatos do contexto histórico do Descordo Plurilíngüe

Introdução

Raimbaut de Vaqueiras foi um trovador que deixou muitos problemas, que a Filologia Românica e a História Literária procuram hoje resolver.

É preciso, preliminarmente, explicar o significado do que vamos desenvolver nesta parte. É uma proposta de leitura histórica do Descordo Plurilíngüe, pois ainda existem dúvidas no enquadramento do poema na vida do poeta e no tempo em que este viveu, apesar do século e meio de estudos específicos realizados.

Descordo é, como vimos, uma composição em que o poeta é portador de uma mensagem clara e obscura, a um só tempo, relativamente àquele que deve recebê-la, como destinatário principal, e ao público em geral. O uso de cinco línguas torna-a um tanto bizarra, mesmo nos tempos de agora. A música era, provavelmente, diversa em cada estrofe. As rimas o são, claramente. Tudo isso distingue a composição de outros descordos.

O problema do emprego de cinco línguas sempre despertou o interesse dos estudiosos. As edições que, há séculos, se fazem do Descordo Plurilíngüe refletem essa atenção, principalmente pelo ineditismo do fato de alguém ter tido essa capacidade poética em fins do século XII ou princípios do XIII. Na história dessas edições, há resultados críticos muito parecidos. Isso revela, antes de tudo, a pressão de um só manuscrito na realização da leitura do poema.

Podemos dizer que, de modo geral, os editores nunca tiveram um grande interesse na solução da configuração histórica da composição. Deixaram-se prender pela força do virtuosismo literário e lingüístico que o poeta exibe.

O poema, naturalmente, se insere em um contexto histórico definido que, esclarecido, pode ajudar a solucionar outros problemas da obra de Raimbaut de Vaqueiras e, quem sabe, outros de seu tempo. Por outro lado, sem conhecer bem esse contexto, não podemos ter certeza da mensagem por ele transmitida, literária ou historicamente.

Neste sentido, torna-se premente uma leitura contextual da composição.

A leitura contextual pressupõe, em primeiro lugar, que se tenha uma noção muito clara do significado mais amplo do período histórico em que se insere a atividade poética de Raimbaut de Vaqueiras, nele incluídos o Descordo Plurilíngüe e a famosa Epístola Épica, já neste livro várias vezes abordada.

É possível dizer que poucos períodos, na história da humanidade, se apresentam aos olhos do historiador tão ricos, tão variados e tao cheios de conseqüências quanto a última década do século XII e a primeira do seguinte. Em 1190, morre o primeiro dos Hohenstauffen, Frederico Barbarroxa, primeiro grande símbolo da unidade alemã e primeiro grande opositor do poder da Igreja. Em 1191, morre Felipe da Alsácia, modelo dos cavaleiros do século XII e promotor primeiro das liberdades comunais na Bélgica. Na própria Bélgica também se desenvolve uma mentalidade episcopal que explicar]a o espírito novo dos homens da Igreja do século XIII.

Ocupando grande parte do período, estão as figuras épicas de Balduíno de Flandres, primeiro Imperador latino de Constantinopla, e Bonifácio de Monferrato, guerreiro, diplomata e protetor das letras a um só tempo. O primeiro, com sua aura de homem reto e determinado, a ponto de, com sua morte, ter dado início a um movimento que, em sua natureza, se tornou conhecido entre os portugueses pelo nome de sebastianismo; o segundo, com sua habilidade de diplomata, a demonstrar que as guerras deviam muitas vezes ceder lugar à mesa de negociações. Ultrapassando as duas décadas estão Felipe Augusto, o maior dos capetos, destruidor do Império Angevino e construtor do moderno domínio territorial francês, e Inocêncio III, o Papa que resumiu em sua fulgurante personalidade os últimos raios da antigüidade latina e os primeiros do mundo moderno. Além destes, Pedro II de Aragão,.Sancho I de Portugal, Leon da Armênia e o jovem Henrique VI, que, dos Hohenstauffen, foi o que mais claramente trabalhou para concretizar a hegemonia alemã sobre o mundo, inclusive sobre a Igreja.

No período, consolida-se a figura da mulher como ser de direitos que deviam ser respeitados, mesmo pelos mais poderosos monarcas. Ingeburge da Dinamarca, a sofrida mulher de Felipe Augusto, é o exemplo maior dessa maneira nova de ver a mulher, o que não teria sido possível sem a codificação do direito canônico, que se começou a empreender nos fins do século XII.

Em um quadro como este, não é de se admirar que instituições políticas e culturais tenham terminado ou começado nesse período. A Idade Média latina aí acaba. Os Estados do ocidente, no sentido político que se afirmou posteriormente, aí têm seu início. As línguas vulgares sobrepujam a latina na expressão literária. As heresias, dentro da Igreja católica, aí encontram seu ponto culminante e o início de sua derrocada, dando lugar a outro tipo de divergência, a da condução política da Igreja.

Elementos históricos implícitos

Diante do texto do descordo, estabelecido por nós na primeira parte, chegamos prontamente à conclusão de que pouco há, dentro dele, que revele situações do contexto histórico.

Na primeira estrofe, o que se pode ver é que o poeta e seu público estão vivendo um momento da primavera. Os meses de abril ou maio abrigam esse momento. No resto do texto nenhuma outra indicação de época se encontra, praticamente.

Vê-se bem agora, da leitura do poema inteiro, que o poeta pratica um trobar clus. Há uma mensagem cujo instrumento parece estar voltado, na real intenção do poeta, para um público reduzido, mesmo que, diante dele, se encontre uma multidão.

Há, portanto, pouca evidência histórica na forma do poema. Na tornada, faz-se referência a Santa Quitéria e isto pode ter sido de interesse do público mais amplo de Raimbaut. É interessante notar que, na cronologia dos santos, a festa de Santa Quitéria ocorria em 22 de maio. A associação desse fato ao da menção dos meses de abril e maio, na estrofe italiana, e a descrição de uma paisagem primaveril na estrofe provençal leva à convicção inicial de que a apresentação do poema se fez mesmo na primavera. Aí terminam as evidências externas do poema, que podem contribuir para resolver o problema de sua datação.

As evidências implícitas

Se considerarmos o que está implícito no texto formal da composição, poderemos chegar a conclusões mais precisas.

Em primeiro lugar, devemos observar que o uso de cinco línguas faz parte da técnica do poeta no sentido de transmitir, a seu modo, sua mensagem e que isso revela, inicialmente, uma intenção de exibir virtuosismo. Em toda exibição, aquilo que vem ao final é mais importante para o artista. Como cada estrofe é composta em uma língua própria, a da penúltima e dos dois últimos versos da última é a mais importante. Essa língua é o galego-português. Dentro do contexto de exibição, pelo poeta, de virtuosismo lingüístico, fica claro que seu público, ou parte dele, tinha interesse nessa língua ou a usava. Havia, portanto, alguma coisa ou alguma pessoa, em ligação com Portugal, no meio do público de Raimbaut de Vaqueiras.

Se se recorda, no caso, que o poeta tem uma outra composição de tema português, a "cantiga de amigo" Altas undas que venez suz la mar, e que, na história literária de Portugal, esta cantiga e o descordo plurilíngüe são as mais antigas composições, junto com a cantiga de maldizer Ora faz ost'o senhor de Navarra, de Johan Soarez de Pávia, assinaláveis ao fim do século XII ou início do XIII, tem-se um indício forte da possibilidade de, no Descordo, estar Raimbaut de Vaqueiras inserido em um contexto de presença lusitana.(444)

Outros indícios, porém, devem ser procurados.

O emprego da estrofe provençal é normal porque era a língua poética daquele momento e Raimbaut nascera na Provença. Também é normal o emprego do genovês daquela ocasião, porque o poeta vivia na corte do marquês de Monferrato, Bonifácio, seu protetor, e era este dialeto lígure a língua de intercurso mais usada, no início do século XIII, entre Gênova e Casale Monferrato. Recorde-se que Bonifácio era um homem importante em toda a cristandade e que, em 1204, foi escolhido chefe da Quarta Cruzada.

A terceira estrofe, porém, começa a revelar alguma coisa. Diz o poeta:

Bele, douce, dame chiere,

Este verso é exatamente o mesmo do início de uma chanson de croisade do troveiro picardo Conon de Béthune, também participante da Quarta Cruzada. Sua canção, porém, foi composta por ocasião de sua participação na Terceira Cruzada, conforme assinala seu editor.(445) A relação entre as composições de Raimbaut de Vaqueiras e Conon de Béthune foi estabelecida com precisão por Furio Brugnolo.(446)

Entre 1192 e 1200, todo o Artois, onde se situava Béthune, esteve nas mãos de Felipe Augusto, rei da França, mas, a partir deste último ano, em conseqüência do tratado de Peronne, entre o rei francês e Balduíno IX, conde de Flandres e já participante da Quarta Cruzada, Conon passou a viver, por obrigação feudal, na corte flamenga, tornando-se um dos diplomatas mais importantes de Balduíno nas negociações dessa nova empresa contra os infiéis. Béthune pertence hoje ao departamento de Pas-de-Calais e à diocese de Arras, sendo de 26208, em 1975, o número de seus habitantes.(447) O território departamental de hoje resultou da junção, em diferentes medidas, das antigas províncias do Artois, Cambrésis, Flandres (Maritime e Wallonne), Boulonnais e Picardie.(448) Béthune, em meados do século XII era um senhorio dependente da florescente cidade de Arras, que pertencia aos domínios dos condes de Flandres desde os tempos de Balduíno Braço de Ferro, o primeiro dos condes deste nome e genro de Carlos o Calvo, neto de Carlos Magno. Balduíno teve sucessores do mesmo nome até Balduíno VII que, em 1071 foi expulso de Flandres dando lugar a uma sucessão de principes. O último destes foi o famoso Felipe da Alsácia, que morreu sem descendência em 1191 durante a Terceira Cruzada. Sucedeu-lhe sua irmã Margarida, casada com Balduíno V de Hainaut, descendente direto de Balduíno VII de Flandres. Com o título cumulativo de Balduíno VIII de Flandres, Balduíno V celebrou com Felipe Augusto, rei da França e viúvo de sua filha Isabelle, um tratado pelo qual lhe reconhecia, entre outros, o direito de incorporar a seus domínios a cidade de Arras, conforme lhe tinha prometido, mas não cumprido, o falecido Felipe da Alsácia em seu contrato de casamento com Isabelle. Arras e seu senhorio de Béthune ficaram, assim, incorporados à coroa francesa. O sucessor de Balduíno V, seu filho Balduíno IX, futuro Imperador de Constantinopla, tentou, em vão, recuperar Arras em 1196. Não o conseguindo, iniciou uma política contra o rei da França, de que resultou uma guerra desfavorável a este. O tratado de Peronne, de 2 de janeiro de 1200, a encerrou. Nele, Felipe Augusto reconhece a suserania de Balduíno IX sobre Béthune.

Desses fatos, resulta que Béthune sempre foi um feudo dos condes de Flandres, com exceção do período de 1192 a 1200. Felipe da Alsácia era casado com Mathilde, filha de Afonso Henriques, rei de Portugal. De 1184 a 1191, foi ela suserana de Conon de Béthune e permaneceu, de fato, com essa ascendência pelos anos seguintes porque Felipe Augusto, no tratado que celebrou com Balduíno V em 1192, reconheceu a formidável herança que seu marido lhe deixara, inclusive as cidades de Aire e St. Omer, no Artois, que só deveriam passar ao domínio francês após sua morte. Em maio ou junho de 1200, o poder de Mathilde tornou-se incontrastável, mesmo relativamente a Felipe Augusto e Balduíno IX, com o ato do papa Inocêncio III de tomar sob a proteção da Santa Sé todos os seus bens e direitos.(449)

Conon de Béthune é autor de uma composição com Raimbaut de Vaqueiras, Seigner Coine, jois e pretz et amors.(450) Aparece, igualmente, na composição Conseil don a l'emperador, feita em junho ou julho de 1204 por Raimbaut em Constantinopla.(451) Por outro lado, Conon menciona o marquês de Monferrato em sua canção L'autrier avint en chel autre païs, composta depois de 1192.(452) Tudo isso prova a ligação poética e histórica entre Raimbaut de Vaqueiras e Conon de Béthune.

Conseqüências históricas das evidências implícitas

Se o galego-português parece ser importante para Raimbaut, no contexto do Descordo Plurilíngüe, que relação haveria entre essa língua, nosso poeta e o troveiro Conon?

A resposta só pode ser a relação feudal de Conon com Mathilde, condessa de Flandres, em todos os momentos da vida do troveiro depois de 1184, mesmo no período posterior a 1191.

Diante desse contexto, a presença de cinco línguas no Descordo Plurilíngüe de Raimbaut de Vaqueiras pode ser explicada não apenas em termos de exibição de virtuosismo lingüístico. Deve haver razões conjunturais por trás de seu emprego.

É de se ressaltar que, na época, não havia a valorização que hoje existe da habilidade poliglótica. O latim era a língua da cultura e da administração, de modo que a prática literária em determinada língua vulgar era algo que começava e terminava quase sempre nela mesma. Não havia, praticamente, influências mútuas mas, no máximo, uma influência do provençal, como primeira língua literária vulgar, sobre as demais e isso, também, porque por trás da literatura dos trovadores estava, antes de tudo, um estilo de vida que cada vez mais atraía, na medida em que mais se cristalizava a ideologia feudal. Em termos de línguas, o que existia era latim em oposição a românico comum, de um lado, e latim em oposição a língua tedesca, de outro. O interesse em falar várias línguas não existira até então, mas algum tempo após a época de composição do Descordo, a habilidade poliglótica começou a aparecer como símbolo de status intelectual. Por isso mesmo e depois de Raimbaut, passou a fazer parte das aspirações de alguns trovadores, como Bonifacio Calvo e Cerverí de Girona. Vale notar que o primeiro indício externo de valorização dessa habilidade ocorreu em uma sessão preliminar do IV Concílio Ecumênico de Latrão, de 8 de outubro de 1215, ocasião em que Rodrigo Jiménez de Rada, arcebispo de Toledo, para afirmar a primazia de sua igreja sobre os arcebispados de Braga, Compostela, Tarragona e Narbona, apresentou suas razões a uma platéia de leigos, usando cinco línguas diferentes, francês, alemão, inglês, basco e espanhol. A impressão que causou foi notável, o que indica uma mudança a respeito do valor das línguas vulgares exatamente na época em que o latim começava a ceder terreno às mesmas nos documentos públicos e era substituído por elas na literatura.(453)

Capítulo 2

O mundo de Raimbaut de Vaqueiras à época do Descordo

A política mundial

Entre 1179, ano da ascensão ao trono francês de Felipe Augusto e 1215, em que João Sem Terra, rei inglês, foi obrigado a conceder a seus súditos a primeira constituição civil do mundo ocidental, ocorreram fatos que, em seu conjunto, marcam o esgotamento definitivo da antigüidade, com seus valores políticos, econômicos, culturais e religiosos e o surgimento gradual do mundo moderno. O que se convencionou chamar de alta Idade Média, mero prolongamento do mundo antigo, termina aí, dando lugar à baixa Idade Média, prelúdio dos tempos modernos.

De fato, todos os ingredientes que podem marcar o fim de uma longa era encontram-se durante esses anos: a Igreja tenta realizar, em definitivo, o objetivo, já então milenar, do domínio temporal sobre os homens; a economia deixa de ser uma soma de economias locais para assumir caráter mundial com a utilização plena das rotas marítimas no comércio exterior por parte dos flamengos, marselheses, genoveses e venezianos; surge o primeiro estado "moderno", a França; o movimento comunal, geralmente hostilizado pela Igreja e ainda sem um século de existência, consolida-se definitivamente, fazendo o poder político ser dividido, em maior ou menor grau, entre os senhores feudais, as assembléias de habitantes, as grandes famílias e, até mesmo, certas corporações de trabalhadores; o latim, como conseqüência da consolidação desse movimento, torna-se rapidamente anacrônico, sendo substituído extensivamente, em apenas uma geração, pelas línguas vulgares; a mulher sai da sombra milenar em que vivia e passa a ser protagonista da história e da vida social; a literatura se laiciza e toma gradativamente o presente como referencial; a universidade sai da fase embrionária e assume seu papel de instrumento questionador de valores; despontam, em apenas quatro décadas, líderes mundiais em quantidade, como Frederico Barbaroxa, Inocêncio III, Saladino, Felipe Augusto, Frederico II, Ricardo Coração de Leão e Francisco de Assis, atuando uns dentro do espírito da antigüidade e outros sem compromisso com ela.

A Igreja e sua herança

A longa história dos judeus, desde os tempos do cativeiro da Babilônia, caracterizou-os como um povo de exilados, em busca do objetivo político da criação de um Estado que pudesse abrigar seus valores culturais e religiosos. Com o tempo, os sacerdotes da grande sinagoga de Jerusalém se tornaram os maiores sábios da nação e, em conseqüência, a religião assumiu o papel principal no esforço de constituição desse Estado.

Ao tempo do Império Romano, já existia uma organização política judaica que, embora dependente historicamente de outros estados, como a Pérsia, a Grécia e Roma, era suficiente para aumentar nos corações a chama da tão sonhada independência. O caráter fortemente desagregador, relativamente aos povos submetidos, do Estado romano uniu mais fortemente, entre os judeus, a vontade política ao orgulho religioso monoteísta, o que provocou a repressão final da nação israelita e o aniquilamento, no ano 73, de seus últimos pruridos políticos. A destruição do Templo, a grande sinagoga, foi o sinal externo do início da dispersão milenar dos judeus, repartidos por todo o mundo conhecido, mas com a esperança do futuro restabelecimento nacional.

A religião cristã, nova roupagem do velho monoteísmo judaico, tornou-se, pelo fato mesmo da destruição do Templo e conseqüente dispersão demográfica, o instrumento principal da reação de uma parte dos judeus e seus herdeiros espirituais contra os romanos e tudo aquilo que representavam. O apóstolo Paulo transformou-a de religião de alguns judeus em religião universal, não somente por seu geograficamente extenso trabalho apostólico mas, principalmente, por sua bem sucedida reação contra os judaizantes, que pretendiam manter formalmente ritos judaicos, como o da circuncisão, dentro do cristianismo.

Lentamente, como vírus invencível, a nova religião passou a minar os alicerces do Império Romano, desprezando as cúpulas políticas e voltando-se para os homens da baixa burocracia, para as mulheres da população anônima e para a imensa legião de escravos. À perda progressiva de seus aspectos externos de religião oriental não correspondeu, todavia, um abandono de valores existenciais do Oriente.

A resignação ao sofrimento deu continuidade ao fatalismo dos israelitas, alimentada, porém, pelo sonho de vingança, como vício cultural milenar. O maniqueísmo, como método de ação política eliminou todo pragmatismo das relações sociais dos convertidos, criando símbolos do mal, como o judeu errante, o poder imperial e os prazeres mundanos. A luta original da nação judaica por uma identidade política foi substituída, em toda parte e como resultado da prevalência desses valores entre os cristãos, por uma infinidade de lutas locais, tendo como alvos os judeus fundamentalistas, a máquina política romana e os descrentes. Após três séculos, vieram os frutos políticos mais abrangentes: início da derrocada moral do Império, fortalecimento dos povos germânicos das fronteiras por via dos escravos que viviam dentro da sociedade romana e contínuo isolamento de todos os hereges.

Conquistada a supremacia religiosa, os herdeiros da antiga vontade política dos judeus, que não mais se confundiam etnicamente com o judaísmo, conseguiram organizar estados pós-romanos, principalmente à custa do espírito belicoso dos povos germânicos, nômades por natureza e, por isso mesmo, inconstantes. Os novos estados assumiram, por essas razões, caráter teocrático, sem que, todavia, a direção ficasse nas mãos de dignitários da Igreja. Esta orientava extensamente, mas não conseguia ter o poder total. À falta desse poder, multiplicavam-se, nos novos estados, as intermináveis contendas entre os poderosos, a intolerância, como método de ação política, e a retaliação inescrupulosa e cruel, como seu coroamento.

Enquanto isso, os eternos inimigos da nação judaica, os demais povos do Oriente Médio, procuravam também seu caminho, à medida que continuava o Império Romano em sua derrocada inexorável. A ação catalisadora foi empreendida, finalmente, pela religião criada pelo profeta Maomé que, a exemplo de Cristo, vislumbrava um Estado teocrático - no caso, o Islã - que abrigasse dentro dos mesmos ideais todos os não-cristãos.

A força que se opôs, portanto, ao renascimento da mística original judaica surgiu no mesmo contexto primitivo. Tornou-se tão intensa que, em pouco tempo, materializou-se territorialmente e desalojou rapidamente os cristãos de muitas de suas terras no Oriente, África e Europa.

A Igreja, consciente do fatalismo histórico dessa oposição, conseguiu, após séculos de sofrida perplexidade, unir-se para enfrentar o inimigo e sua vontade foi expressa pelos movimentos conhecidos como cruzadas que, mesmo nos tempos atuais, não se acham esgotados e mantêm os mesmos ingredientes de vingança, intolerância e crueldade. No limiar do século XII, quando o movimento comunal se iniciava, a reação da Igreja alcançou pleno êxito, mas cedo se verificou que a vitória era temporária.

No século XII. acumularam-se e tiveram solução - em alguns casos, definitiva - os problemas religiosos, políticos e sociais vividos pela Europa desde o século I. Foi, em conseqüência, uma centúria decisiva que, não por sua simples antecedência, mas pelo conteúdo de suas conquistas, explica as mudanças fundamentais do século XIII. Foi o século em que se formalizou definitivamente a luta entre o poder religioso e o poder leigo, de que a oposição entre guelfos e gibelinos é emblemática; em que, como conseqüência, o povo começou a conquistar poder político através dos movimentos comunais e corporativos; em que a lei foi-se tornando universal pela redescoberta do direito romano e primeira codificação do direito canônico; em que o homem redescobriu os prazeres da vida social ao retomar contato com a antigüidade clássica; em que se revolucionou o comércio ao se recuperar o mar como estrada; e, finalmente, em que se consolidaram os dois centros de difusão do saber leigo e religioso, Bologna e Paris, respectivamente.

A necessidade de tornar permanente o êxito militar alcançado, no limiar do século XII, com a Primeira Cruzada, levou a Igreja a tentar, primeiro, tornar os soberanos europeus seus generais e, depois, a fazê-los acompanhar-se de milícias cristãs subordinadas diretamente ao Papa e portadoras, ao mesmo tempo, da Bíblia e da espada. Planejou a Santa Sé, igualmente, dentro desse objetivo, eliminar a dissidência da Igreja oriental. Jerusalém, que precariamente permanecia sob controle dos cristãos antes, durante e depois da fracassada Segunda Cruzada, promovida pelas pregações de São Bernardo e cujo resultado concreto único foi a tomada de Lisboa, caiu finalmente, por ocasião da Terceira, em 1187, em poder dos árabes, comandados por Saladino. O fato, que coincidia com o esforço da Igreja no sentido de sobrepor-se aos soberanos reinantes, serviu de pretexto para a maior tentativa dela de alcançar o poder total, espiritual e temporal, sob o papado de Inocêncio III, que se iniciou em janeiro de 1198.

Inocêncio, em apenas um ano de febril atividade epistolar, diplomática e administrativa, disseminou por toda parte a sensação de se estar vivendo uma nova era, com a Igreja onipresente e onipotente. Todos foram atingidos por sua ideologia do poder - Igreja e Estado como ente único, à semelhança do que existira em Israel - do servo ao imperador, do judeu ao trovador. O povo foi quem mais sofreu com a política do Papa, que dava a impressão de caminhar para tornar-se o supremo Imperador e, por isso mesmo, só tinha olhos para os problemas dos poderosos. O Papa retomava, portanto, o caminho político dos cristãos judaizantes dos séculos I e II: o Estado a existir tão somente dentro e através de sua constituição religiosa. Fracassou prospectivamente em seu intento, do que resultou surgirem os estados "modernos", extinguir-se o feudalismo, brotar a inquisição e lançar-se a semente para a dissidência permanente, que foi o movimento protestante de trezentos anos depois.

Tal é o pano de fundo da cena mundial quando Raimbaut de Vaqueiras começa a poetar ao final da penúltima década do século XII.

Reflexos da mentalidade vigente na obra de Raimbaut de Vaqueiras

Religiosidade induzida

A excelente edição da produção poética de Raimbaut de Vaqueiras, feita por Joseph Linskill em 1964 e aqui por nós extensivamente utilizada, passou a permitir, a todos que se interessam por esses tempos remotos, uma visão de conjunto da vida e da obra do famoso autor da Kalenda maia e de seus condicionamentos culturais. Um desses condicionamentos é a sua inserção na religiosidade da época.

Chamou-nos desde logo a atenção o fato de que a obra do poeta, sob o ângulo existencial, divide-se em duas partes bem distintas: uma, que vai até o momento da escolha de Bonifácio de Monferrato para chefe da Quarta Cruzada, em 1201, e a outra, deste ano em diante. Durante os anos da primeira, as preocupações de Raimbaut são os costumes à sua volta, o amor que devotava a certa dama, identificada pelo senhal Bels Cavaliers, sua participação em empresas militares ao lado de seu protetor, o marquês Bonifácio, e os incidentes de sua ascensão social, que provocava, segundo ele mesmo dá a entender, inveja e calúnias. Durante a segunda, precedida de uma decepção diante da impossibilidade real de ascender ao nível familiar-social de sua amada, passa a invocar com freqüência sua fé em Deus e a cercar as observações e análises do mundo em que vivia de pensamentos religiosos estreitamente dependentes da política da Igreja de então.

A cronologia das composições da primeira fase, estabelecida por Linskill, parece-nos correta, em suas generalidades, e permite-nos estabelecer certas constantes.

Nos poemas I, II, III, IV, V, VI, VII, VIII e IX não há nenhum sinal de religiosidade embora cubram dez anos da vida do trovador. A primeira menção ao nome de Deus é feita na composição X, Era.m requier sa costum'e son us (Agora exige de mim o amor tributo e favores), provavelmente produzida, segundo Linskill, em 1197 ou algum tempo depois. Está no verso 35 mas não está em um contexto poético de religiosidade:

"c'aissi.m don Dieus del sieu bel cors conseill..."

"pois possa Deus assim aconselhar-me sobre sua pessoa sem par"

Já o segundo poema do grupo do "conselho" - assim denominado porque no primeiro a dama que ele amava o aconselhara a declarar-se, o que o poeta interpretara como encorajamento - revela, através de suas antíteses e da invocação da fé do poeta (verso 36), um estado de espírito de confusão de sentimentos, que culminará na explosão emotiva do Descordo Plurilíngüe. À medida que seu entusiamo vai cedendo lugar a um desapontamento e a uma descrença na possibilidade de ser bem sucedido em sua tentativa de ser correspondido, o poeta parece caminhar para a atribuição de sua desdita à sua origem humilde (XII,33), a seu insuficiente status de cavaleiro, mesmo com méritos, diante dos nobres arrogantes (XII, 39, 40) e à ação de invejosos e caluniadores (XIII, 70 - 72 e XV, 49). São esses temas recorrentes na lírica trovadoresca mas assumem, em Raimbaut, significado especial, se observada cronologicamente sua biografia. Dentro de um contexto de crescente aflição, o poeta fala em Deus (XIV, 49 e 94), em sua fé verdadeira (XIV, 50) e no pouco valimento de seus feitos de guerreiro para seu problema amoroso (XIII, 1 e 2).

Nenhuma religiosidade, em sentido estrito, aparece nas composições X, XI e XII para compensar o amor, de cuja não correspondência se conscientiza gradativamente.

Em suma, revelam as composições XIV e XV que o poeta vê a impossibilidade de ter sucesso em seu amor pela Bels cavaliers devido à sua origem. Apesar de ter chegado a cavaleiro, não lhe permitiu seu mérito poder conquistar uma mulher nobre. Conscientiza-se, nessas cantigas, que sua ascensão social, feita à custa de muito esforço guerreiro e artístico, não tem a contrapartida da aceitação de sua pessoa entre os nobres através do casamento. Essa decepção existencial faz com que comece a falar em Deus, ao contrário dos longos anos em que sua vida era sinônimo de "vida guerreira, à moda dos soldados mercenários" (VIII, 38) ou de "cortes, guerras, torneios, assaltos, generosidade, entretenimento e serviço amoroso" (V, 25-28).

Devido ao conceito de mesura, que faz parte do universo mental dos trovadores, o uso dos temas acima referenciados aos poemas XII e XIII (atribuição de sua desdita à sua origem humilde, a seu insuficiente status de cavaleiro, mesmo com méritos, diante dos nobres arrogantes e à ação de invejosos e caluniadores) pode significar, para um crítico menos atento, mais um simples e recorrente exemplo de falta de sinceridade ou de formalismo temático.

A qualificação, entretanto, de outra mulher, que amou antes,(454) como uma bela enganadora, que o feriu e fez com que viesse ele a falar mal do amor em outras canções (XI, 25-26), o coloca fora do cultivo da mesura e, conseqüentemente, fora desse formalismo.

É neste sentido que podemos trazer à colação o significativo julgamento feito por Matfre Ermengau da real capacidade de Raimbaut de Vaqueiras de viver como um verdadeiro cavaleiro relativamente ao amor:

"En Raimbaut de Vaquieiras
no seguet ges las manieras
degudas de confessio
Perque.l confessars no.lhe tenc pro
Enpero el s'en confesset
E dis quez el amor blasmet
En sos cantars, per so, ses als
Quar si dons l'havia fait mals
Ve.us quals fo sa confessio:
D'amors dis mals e maus autras cansos
Pel mal que.m fetz la bel engainaritz."

"Sire Raimbaut de Vaquieiras
não seguiu nada as maneiras
exatas da confissão
porque o confessar não lhe serviu.
No entanto, confessou-se;
e passou a condenar o amor
em seu cantar porque dar-se
lhe havia feito mal.
Vejam sua confissão:
"Falei mal do amor em outras canções
pelo mal que me fez a bela enganadora."

Os dois últimos versos são a transcrição mais antiga dos versos 25 e 26 da composição XI, Savis e fols, humils et orgoillos, estrofe 4, feita por Matfre Ermengau e por meio deles Ermengau, que conhecia a fundo todos os trovadores que citava em seu Breviari d'amor, defende a tese de que Raimbaut de Vaqueiras não pode ser tido como um amoroso típico entre os trovadores, isto é, um poeta que "inventa" o amor em seus poemas, que não fala do amor real, só do ideal.

Falando do amor real, Raimbaut revela gradativamente o processo mental de canalização da energia afetiva, que sua vida de cavaleiro lhe fazia dirigir à filha de seu protetor, para as ações de militância religiosa que a Igreja cobrava, desde 1198, dos bons cristãos. Para a decisão final, neste sentido, bastou-lhe, em certo momento - provavelmente entre 1202 e 1203 - a negativa de sua amada em corresponder a seus sentimentos e, mais do que isso, a casar com outro.

Religiosidade militante

A fase final do processo mental de substituição de uma religiosidade adquirida em função de um amor não correspondido, apesar de todos os seus méritos de cavaleiro, pode ser vista na canção de cruzada que compôs em homenagem à escolha de Bonifácio de Monferrato para chefe máximo da Quarta Cruzada:

"Dieus si laisset vendre per nos salvar,
e.n soffri mort e.n receup passion,
e l'auniront per nos Juzeu fellon,
e.n fon batutz e liatz al pilar,
e.n fon levatz el trau q'er' en la faigna
e correjatz de correjas ab noz
e coronatz d'espinas en la crotz:
per q'a dur cor totz hom qe.l dan non plagna
qe.ns fant li Turc que volont retener
la terr'a on Dieus volc motz e vius jazer,
don nos n'eschai grans gerr' e grans mesclaigna."
(455)

A primeira impressão que se tem, com a leitura dessas palavras, é de se estar diante de um homem não apenas religioso, mas, principalmente, de um combatente da religião, de um homem que faz questão de empregar todos os clichês da Igreja a respeito de seu papel histórico. É certo que, como chanson de croisade, a composição em que se insere a estrofe transcrita, admite normalmente esses clichês, mas, a nosso ver, está seu fraseado eloqüente em sintonia com o raro exagero do louvor ao líder da Quarta Cruzada, como já assinalou Linskill,(456) para, somados, indicar uma religiosidade particular ao poeta e não apenas um recurso poético.

Evidência do grau de religiosidade, acima da média, de Raimbaut de Vaqueiras, em sua condição de trovador, é a própria referência desprimorosa que faz, nessa composição, aos judeus. Juzeu fellon é expressão que revela uma postura ideológica do homem Raimbaut de Vaqueiras e não do trovador. Como assinalou recentemente Elisabeth Schulze-Busacker,(457) as referências que os trovadores fazem aos judeus raramente são difamatórias, não fazendo eles distinções raciais ou lingüísticas entre cristãos e judeus e limitando-se ao uso de algumas fórmulas.

Esta relativa indiferença nas relações com os judeus derivava, certamente, do papel que desempenhavam os israelitas na sociedade:

"Gli ebrei costituivano un importante anello di congiunzione fra l'occidente e l'oriente. Quali unici non cristiani in una società nella quale la deviazione dalla retta fede era ritenuto un delitto punibile con la morte, essi vissero durante tutto il medioevo in una situazione precaria; furono spesso oppressi e più volte, ad esempio nel periodo delle crociate e durante la Grande Peste, furono esposti alle più dure umiliazioni e persecuzioni."(458)

Os trovadores que, em sua maioria, não eram nobres, precisavam mover-se socialmente, dependendo essa mobilidade, em muitos casos, de seus contatos com judeus. Entre as consuetudines feudorum, estava a tregua dei, pela qual, desde 1083, se desenvolveu a idéia de se tutelarem grupos determinados de pessoas (clérigos, monges, mulheres, mercadores, peregrinos, camponeses, judeus), em benefício da paz social, ocorrendo isso quotidianamente, por períodos determinados ou em certos lugares. Os judeus, como elos econômicos da sociedade feudal, beneficiavam-se normalmente dessa trégua, menos nas épocas de grandes dificuldades ou nos períodos que antecediam e acompanhavam as cruzadas. Faziam parte, portanto, da vida social comum, como os outros tutelados acima indicados. Essa é a razão por que não são objeto de animosidade especial da parte dos trovadores.

Quando, porém, um poeta, como Raimbaut de Vaqueiras, manifesta particular aversão contra os judeus, o fato deve ser creditado não apenas ao contexto da Cruzada que se organizava mas, também, à religiosidade que nele devia ser mais intensa. É de se notar que, na chanson de croisade, transcrita parcialmente no início desta seção, os judeus estão ao lado dos turcos, como inimigos da fé.

Além disso, os reveses sofridos pelos cristãos na Terra Santa, durante todo o século XII, criaram progressivamente entre os trovadores um espírito crítico relativamente aos condutores dessas empresas.(459) Nenhum dos poemas de Raimbaut de Vaqueiras pode colocá-lo dentro dessa onda. Ao contrário. O sirventês Conseil don a l'emperador, composto em Constantinopla, é prova disso. Além de condenar os excessos dos cruzados, fazendo eco às duras reprimendas lançadas contra eles pelo Papa Inocêncio III, o poeta exorta significativamente o imperador Balduíno a prosseguir com a empresa para alcançar seu objetivo único, a libertação de Jerusalém das mãos dos infiéis:

"Q'el e nos em tuig pecchador
dels mostiers ars e dels palais,
on vei pecar los clercs e.ls lais;
e se.l sepulchre non secor,
serem vas Dieu plus pechaire,
q'en pechat tornara.l perdos,
e se.l conqis no 'stai enan;
mas se'l es larcs ni coratjos,
ben leu pot anar osteian
a Babiloni' e al Caire."
(460)

Estas palavras demonstram o engajamento religioso de Raimbaut de Vaqueiras antes e por ocasião da Quarta Cruzada.

A Ordem do Hospital de São João de Jerusalém e a militância religi­ osa de Raimbaut de Vaqueiras

Nosso poeta, em sua obra, apresenta intrigantes pontos de cruzamento com a cultura portuguesa: a chanson de femme "Altas undas que venez suz la mar", muito parecida com duas contigas de amigo de Martin Codax, e os versos galego-portugueses do Descordo Plurilíngue. A respeito desta última composição, além da edição crítica que vimos de fazer, tivemos a ocasião, recentemente, em conferências feitas nas universidades de Cagliari e Padova, de demonstrar que as cinco línguas usadas correspondem às cinco províncias, ou "línguas", então já em vias de serem estabelecidas na organização administrativa da Ordem Militar de São João de Jerusalém pelo novo grão-mestre, justamente o irmão bastardo de Sancho I e Mathilde de Flandres, Afonso de Portugal.(461)

O mesmo poeta é autor de três epístolas em verso a seu protetor, o marquês Bonifácio de Monferrato, em que recorda os feitos importantes que empreenderam juntos, com a clara finalidade de ver-se recompensado pelo marquês. É a Epístola Épica, já por nós várias vezes abordada neste livro. Na segunda parte da Epístola Épica, depois de lembrar a expedição que fizeram contra a Sicília, em 1194, Raimbaut diz:

"E quant anetz per crozar a Saysso,
ieu non avia en cor, Dieus m'o perdo,
que passes mar, mas per vostre resso
levey la crotz e pris confessio;
e era pres lo fort castel Babo,
e no m'avion res forfait li grifo."

Na tradução de Martin de Riquer, o sentido é o seguinte:

"Y cuando fuísteis a Soissons para
haceros cruzado, yo no tenía ánimos,
Dios me lo perdone, para atravesar
el mar, pero por vuestra fama tomé
la cruz y me confesé; y me encontra-
ba cerca del fuerte castillo Babón, y
en nada me habían sido injustos los griegos."
(462)

Como se vê, Raimbaut recorda a Bonifácio o tempo em que se cruzara em Soissons, sem que ele, Raimbaut, tivesse tido a coragem de fazer a viagem de ultramar. Todavia devido à fama de Bonifácio, acabou por tomar também a cruz e se confessou. Na ocasião, estava junto ao castelo Babón, assinalando que, jamais, os gregos lhe tinham feito mal algum. Afinal, Raimbaut recordava isso em solo grego.

O sentido dado ao relato por Martín de Riquer não merece reparo a não ser no trecho "e pris confessio ", que Linskill, o editor de Vaqueiras, e os editores mais antigos da composição interpretaram da mesma maneira:

"I took the cross and made confession"(463)

De fato, o sentido de "pris confessio" não pode ser, apenas, o de "fiz confissão" ou "confessei-me". Du Cange, na edição aumentada de Léopold Favre, apresenta confessio, - onis como fidelitas professio, profissão de fé religiosa, e já dá um exemplo desse significado em Orderic Vital, em 1107.(464)

O nosso Viterbo exemplifica esse sentido, no Mosteiro de Lorvão, em 919.(465)

Em nossa opinião, o poeta não quis dizer que se confessou mas que fez profissão de fé religiosa, que tomou confissão de fé, que fez afirmação pública de fé; enfim, que tomou ordens. A prova disso é dada pela interpolação. presente no manuscrito E, que, na opinião de Linskill,

"... though having links with both these groups (os dos mss. Cj e RSgcv) betrays once again a marked individualism at lines 26, 29, 58 offers divergent and expanded versions which examination reveals to be interpolations."(466)

A interpolação da linha 29, justamente a que examinamos, é a seguinte:

"e pueis quan fom la deu benesio tornat ab uos sai en uostra reio anc nom uirei per uezer ma maizon".

Estes versos e dois outros do ms. E têm dado oportunidade a certa discussão, desde Appel até Linskill, passando por Schultz-gora e Crescini. Schultz-gora, por exemplo, vê coloração clerical nesse trecho, que pode significar um relato histórico mais acurado dos eventos apresentados por Vaqueiras.(467)

Crescini, por sua vez, nota que se trata de uma alusão histórica precisa, porém incompreensível.(468)

Parece-nos que a incompreensibilidade do trecho em questão tem resultado do incorreto julgamento de "deu", como substantivo, e de "ab", em seu sentido normal. Raimbaut de Vaqueiras nunca se mostrou aos modernos filólogos como um poeta que emprega termos sempre com sentido previsível. Linskill apresenta 48 exemplos de palavras ou expressões de significado pouco comum ou de ocorrência rara, presentes na obra do poeta.(469)

No caso de "deu", trata-se de forma portuguesa que, por qualquer motivo, apareceu no manuscrito E em lugar de "det", por si só já pouco comum. "Ab", como exemplifica Raynouard na obra de Bernart de Ventadorn, equivale à preposição francesa "par".(470)

"Fom", como assinala Bartsch, é variante gráfica possível de "fon", 3ª pessoa do singular do perfeito do indicativo do verbo "esser". Por outro lado, "sai" em lugar de "sui" deve ser leitura errada do copista por influência de "lai", presente na segunda oração sob a forma "la". Esta deve ter sido mesmo "lai" no original que esteve diante dos olhos do copista languedociano do século XIV, embora, na verdade, fosse "la i", isto é, o advérbio "la" seguido da conjunção "e".

A correta leitura, em sintonia com o verso anterior, "levey la crotz e pris confessio", deve ser:

"e pueis, quan fom la i deu benesio,
tornat ab uos sui en uostra reio.
Anc no.m uirei per uezer ma maizo."

Ou seja:

"e depois, quando ele esteve lá e deu a bênção,
desviei-me, por vós, para vosso país.
Jamais retornei para ver minha casa."

Esta interpolação, assim entendida, está inteiramente de acordo com a expressão anterior "e pris confessio", "fiz votos".

"Maizo" não significava apenas "morada" mas, igualmente, como ainda hoje, "convento", "comunidade religiosa".

O poeta está dizendo que prestou o juramento de cruzado, fez votos religiosos mas, depois de ter sido recebido em sua ordem por alguém que deu a bênção a ele e a outros, foi para junto de Bonifácio de Monferrato e, a seguir, para o reino de Tessalônica. Não seguiu seus irmãos de profissão religiosa. Preferiu, por causa de sua amizade e lealdade com Bonifácio, ir ter com ele na Grécia. Ao recordar isso, assinala que, desde então, jamais voltou à sua comunidade. Todos esses fatos aconteceram quando ele esteve no castelo Babon, residência do Visconde de Marselha, Hugues de Baux, irmão de Guillaume, que as Vidas de Raimbaut identificam como seu protetor provençal. Antes, tinha ocorrido, conforme o relato, a escolha de Bonifácio, em Soissons, para chefe da Quarta Cruzada. A época histórica desse acontecimento é o período entre fins de agosto e princípios de setembro de 1201, tendo Bonifácio, no outono do ano seguinte, partido para Veneza a fim de dar início à nova expedição contra os infiéis. Como Raimbaut de Vaqueiras não seguiu com ele, é evidente, também pelo próprio relato do poeta, que sua adesão à Cruzada e seus votos religiosos ocorreram depois de agosto de 1202.

Em Provença, na ocasião, era conde Alphonse II, que mantinha relações turbulentas com o protetor de Raimbaut, Guillaume, conde de Forcalquier, cuja corte era frequentada por Guillaume de Baux, o suposto protetor inicial de Raimbaut de Vaqueiras (segundo a Vida) e por seu irmão Hugues de Baux, visconde de Marselha. Estavam Guillaume de Forcalquier e Alphonse II em conversações sobre suas diferenças justamente no período de junho a novembro de 1202. Afinal chegaram a um acordo e, entre suas condições, estava a colocação da cidade de Gap, à margem do rio Durance, sob a proteção dos templários ou dos hospitalários. Essa paz foi concluída já em 1203.(471)

Afonso, a caminho de Corbeil, e Raimbaut, antes de Marselha, em Embrun

Delaville Le Roulx, o editor dos documentos da Ordem dos Hospitalários de São João de Jerusalém apresenta, sob o nº 1169, ano de 1203, um em que Dragonet de Rame, visconde de Embrun, por ordem de Guillaume IV, conde de Forcalquier, doa aos hospitalários de Embrun os moinhos situados na torrente de Vachères, além do rio Durance, ou seja à sua margem esquerda, bem como o direito ao gado de pasto ali criado. Aceita a doação um turcopoliero e servem de testemunhas, entre outros, dois personagens: R. Anfos e Iterius. Eis o teor da doação:

Notum sit omnibus [homi]nibus, tam presentibus quam futuris, quod ego Draconetus,(472) vice comes in partibus Ebreduni,(473) auctoritate [et man]dato domini comitis Forcall[cariensis],(474) asistente michi consiliario W.(475) Sistaricensi(476) preposito(477) atque Vapincensi sacrista,(478) dedi domui Hospitalis Yherosolimitani [de Ebr]eduno molendina que sunt ultra Durentiam in Vacherias, cum omnibus rebus sibi apertinentibus, cum pratis et cum besale per quod transeat aquas (sic) [ad] molendina et ad prata; et dedi et concesi in pascuis de Baleria(479) animalibus suis pascere sine pascherio et absque ullo usatico. Et hut (sic) hec rata haberentur et firmiter tenerentur, actoritate domini W[illelmi] comitis et mandato ipsius, hoc instrumentum suo sigillo munivi et de meo. Hoc autem factum est in domo domine Guitborch,(480) anno ab incarnatione Domini M C[C]III, Innocentio papa in suma sede residente, domino R[aimundo] Ebrebredunensi (sic) archiepiscopo [existen]te. Hoc donum acceperunt P. Fa.... pro......o; Roman[us] Silvester; W. Turcopol.....; Johannes Scriptor(481) Testes vocati ad testimonium sunt isti: Berardus, canonicus; Bon...., miles; Ugo Romanus; Ugo de Verdu; P. Agni; L. Agni; P. Moreti; Po. de Monte-Lauro; R. Andreas, miles; P. Lumbardi, judex; Agni (?) Brugensis; W. Chabazoli; Guigo Maeuhz; Ugo Ariez; W. Ugo; Aalbertus et filius ejus; P. W. Johannes; P. [M]ontel; W. Rispauz; P. Busca; Jacobus, frater ejus; Mazotus; Andreas Morons; R. Anfos; Iterius; Jacobus Radulfus, et multi alii.(482)

O documento evidencia a concorrência, em Embrun, não apenas de pessoas importantes do condado de Forcalquier, mas também de estrangeiros, que vinham de além-Alpes e, provavelmente, seguiam viagem em direção ao norte. Para entendê-lo é necessário configurar seu contexto geográfico e tentar identificar pelo menos uma parte dos personagens que o integram. Comecemos pelo contexto geográfico.

O Durance é um grande rio que nasce a pouca distância da fronteira italiana, perto do col de Mont Genèvre e, mais acima, do col de Mont Cenis. Ambos são passagens entre as duas versantes dos Alpes Ocidentais (no caso, Alpes Cottiennes e limite destes com os Alpes Graies, respectivamente. Do outro lado da fronteira, relativamente ao col de Mont Genèvre, fica, a 5 k. a localidade de Cesana Torinese, de que Torino, em linha reta, dista 70 k. e Casale Monferrato, 130. Tomando-se as nascentes do Durance como a fronteira mais setentrional do departamento de Hautes Alpes, que faz parte da regiåo econômica de Provence-Côte d'Azur junto com os departamentos de Alpes-de-Haute-Provence (até 1970, Basses Alpes), Alpes Maritimes, Bouches-du-Rhãne, Var e Vaucluse, e caminhando-se para o sul, encontra-se a seguir o macisso de Queyras e seu vale, que é o vale do rio Quil, afluente da margem esquerda do Durance. O vale de Queyras integra um sistema com o Durance e seus outros afluentes da margem esquerda, como, por exemplo, o Crévoux, o Vachères, que desemboca junto a Embrun, e o Ubaye. O vale deste era o percorrido pelos que vinham da Itália, a partir do rio Stura di Monte, como era o caso de Raimbaut de Vaqueiras e da maioria das pessoas que partiam de Cuneo, Torino, Casale Monferrato, Alba, Asti, Acqui, Alessandria, Tortona e Genova. O Durance tem uma bacia de 1.340.000 hectares e extensão de 380 quilômetros.

De fato, no contexto das condições de viagens da passagem do século XII para o XIII, os cols de Mont Genèvre, Mont Cénis e Saint Bernard eram usados entre o território francês e o italiano dessa parte dos Alpes. Os dois primeiros levavam à região de Torino pelo vale do Doria Riparia, mas, quando o ponto de partida ou de destino era algum lugar da Provença ou Languedoc, o vale do Ubaye era o preferido pois levava ao col di Tenda e ao col de Argentiere, ou, na terminologia italiana, della Maddalena. Embora Raimbaut de Vaqueiras mencione apenas o Mont Cénis (Carros, verso 55), o mais lógico é que seu caminho para Monferrato fosse o que passava pelo col della Maddalena, rota natural e mais rápida para Embrun e demais localidades do condado de Forcalquier. Se o destino do viajante era a França, com necessidade de passagem por Embrun, o caminho mais prático era o do col do Mont Genèvre.

Estas considerações são importantes quando se busca levantar indícios que robusteçam hipóteses em torno de fatos assinalados por Raimbaut de Vaqueiras. Assim, por exemplo, é necessário se concluir relativamente ao caminho usado por Raimbaut e outras pessoas para transitar entre a Provença e Monferrato ou entre a França e Monferrato e, com isso poder-se aquilatar da verossimilhança dos seguintes pontos:

1 - Casale de Monferrato como passagem para quem, vindo de Veneza, Roma ou Gênova, demandava a Borgonha, Île de France e Flandres através do Delfinado ou toda Occitânia através dos Hautes-Alpes e, portanto, do Condado de Forcalquier.

2 - Época e tempo de caminhada capazes de permitir a conjugação de fatos à primeira vista distintos.

O col della Maddalena era a passagem preferida para se atingir o rio Durance, seu vale e os vales dos seus afluentes e para se chegar às cidades e aldeias dos trovadores como destino final: Briançon. Embrun, Gap, Die, Sisteron, Digne, Forcalquier, Manosque, Apt, Sault, Avignon, etc.:

"Vom Sturatal führt die Straße über den Col della Maddalena die Ubaye entlang ins Tal der Durance, wo der Weg nach der Dauphiné und Provence weiterging."(483)

O rio Stura, neste caso, é o Stura di Demonte. O outro Stura do Piemonte, mais acima, é o Stura di Lanzo, que chega a Torino e para o qual se usava também o col de Mont Genèvre ou o col de Mont Cénis. Para Raimbaut, o col della Maddalena, além de mais rápido e, certamente, menos difícil, era mais prático pois dava diretamente em terras de seu protetor, o marquês Bonifácio de Monferrato; no caso, todo o vale do Stura di Demonte.

Neste sentido, o vale do rio Ubaye e a opção Gap/Forcalquier, nesta ordem, era o caminho para o poeta quando partia de Monferrato para a sua Provença. Do vale, o poeta podia, antes de chegar ao Durance, fazer um pequeno desvio e atingir Barcelonnette, Boscodon, o vale do rio Vachères e Embrun. Mas, como dissemos, se Embrun era a parada principal para quem, depois, demandava o norte, a passagem melhor era a do col do Mont Genèvre.

Estes fatos históricos e geográficos podem ser utilizados para caracterizar a proveniência de personagens de documentos, quando, por seus nomes, indicam ser estranhos ao lugar

O documento do repertório de Delaville Le Roulx, acima identificado, é testemunhado por inúmeras pessoas, cujos nomes indicam procedência variada: francesa, belga, provençal e italiana. Entre os signatários, estão um certo W., cognominado Turcopoliero, um Pons de Montelauro, que deve ser o mesmo Pons do poema de Raimbaut de Vaqueiras conhecido como Garlambey, um P. Busca e seu irmão Jacobus, que devem ser originários da cidade de Busca, junto ao vale do Stura di Demonte, cujo marquês era da família alerâmica, a mesma de Bonifácio de Monferrato, um W. Ugo, um R. Andreas e um W. Chabazoli, que aparece em outros documentos da época e, finalmente, um certo Iterius e um certo R. Anfos, Afonso em provençal.(484) Aliás, os nomes mencionados de P. Busca até o fim dão a impressão conjunta de pertencerem ao contexto italiano.

Como se trata de doação feita a hospitalários, é natural que, além do turcopoliero assinalado, nome que se dava, na época, ao chefe da cavalaria ligeira da Ordem de São João, deva haver outros cavaleiros hospitalários.

Os dois ultimos personagens aqui assinalados chamam particular atenção e aparecem juntos no documento.

Iterius é nome que aparece na venda que Girard de Ham, condestável de Trípoli, faz a Afonso de Portugal, grão-mestre da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém em dezembro de 1204. No documento do grão-mestre, Iterius é identificado como tesoureiro de Trípoli.(485)

Na relação de abades do convento beneditino da cidade artesiana de Ham-lez-Lillers (hoje, Ham-en-Artois, com 321h.), subordinado à igreja de Saint-Omer e situado, desde 1192, nos domínios de herança da condessa Mathilde de Flandres, está Itherius (Itier) de Périgord, irmão de Bernard II, outro e anterior abade que fora protegido do defunto Felipe da Alsácia, conde de Flandres e marido de Mathilde, que era filha de Afonso Henriques.(486)

A fonte da Gallia Christiana descreve Itherius como "vir pecuniosus", ou seja, homem rico, endinheirado, o que combina bem com seu posto em Trípoli junto ao condestável Girard, que era também de Ham.

Ora, não pode haver dúvida no sentido de que R. Anfos e Iterius, do documento nº 1169 do Cartulaire, são os mesmos Afonso de Portugal e Iterius do documento de nº 1198, ainda mais porque, nesses anos de 1203 e 1204, respectivamente, Ham como aldeia dependente de St. Omer, pertencia aos domínios de Mathilde de Flandres, irmã de Afonso de Portugal. Isso só deixou de acontecer em janeiro de 1212, por ato de força de Louis, filho de Felipe Augusto.

Afonso de Portugal, grão-mestre de Raimbaut de Vaqueiras

Significam esses fatos que, antes de julho de 1203, Afonso de Portugal, vindo do vale do Stura di Demonte, esteve na Provença, como R. Anfos e nas vizinhanças de Paris, como Afonso de Portugal. Em 19 de Julho de 1204, os cardeais legados de Inocêncio III na Terra Santa, Sofredo e Pedro, confirmam, em Acre, um testamento em nome de Afonso de Portugal e do grão-mestre da Ordem do Templo, Philippe du Plessis.(487)

Em março de 1205, Balduino, imperador de Constantinopla e conde de Flandres, doa à Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, na pessoa de seu grão-mestre, Afonso de Portugal, a quarta parte do Ducado de Neocastro.(488)

Este ducado, vizinho à cidade de Pergamo, na Ásia Menor (Delaville Le Roulx o coloca erradamente na Grécia), fazia parte do segundo lote de possessões atribuído ao Imperador pelo pacto de divisão das futuras conquistas, celebrado em março de 1204 pelos chefes da Quarta Cruzada, Bonifácio de Monferrato, protetor de Raimbaut de Vaqueiras, Balduíno de Flandres e Enrico Dandolo, doge de Veneza. Significa isso que, em março de 1204, estava já Afonso de Portugal como participante ativo da Cruzada, o que explica sua ausência prolongada, até dezembro de 1204, dos documentos da Ordem produzidos na Terra Santa.(489)

Afonso de Portugal, pelo que se deduz da carta-relatório que os cardeais Sofredo e Pedro escreveram ao Papa em 1205,(490) e outros documentos, foi eleito, ou antes, aceito como grão-mestre estando ausente de Margat, no mês de abril de 1203, após a interinidade de um preceptor geral da Ordem, por morte ou incapacidade do grão-mestre Geoffroy de Donjon, entre 11 de novembro de 1202 e aquele mês de 1203. Seu nome pode ter sido levado ao Papa por Bonifácio de Monferrato, provavelmente a pedido de Mathilde de Flandres. Aos hospitalários, na Terra Santa, o foi, certamente, por Jean de Nesle, vassalo de Mathilde, e Renaud de Montmirail, enviado de Bonifácio ao Oriente para organizar os cavaleiros ali estacionados com vistas à tomada de Jerusalém depois da conquista de Constantinopla, então planejada. As evidências desses fatos estão na carta há pouco referida. Afonso já era prior da Espanha, conforme se deduz dos documentos coligidos por Demetrio Mansilla,(491) e passava a acumular este cargo com o de grão-mestre. Chegando a notícia a seu conhecimento, entre abril e maio de 1203, partiu para a França onde, em Corbeil, recebeu a doação de sua irmã e retornou, em seguida, à Provença, de onde partiu para a Terra Santa. O documento, em que aparece como R. Anfos, deve ser de fins de abril ou princípios de maio. O de Mathilde, diante dele, de maio. O Descordo Plurilingüe de Raimbaut de Vaqueiras, de maio também. Os fatos narrados pelo trovador, em sua Epístola Épica ao marquês de Monferrato, ou seja, seus votos de cavaleiro hospitalário, devem ser, pois, de princípios de junho de 1203, quando, então, embarcou para a Quarta Cruzada. O fato de, no trajeto, ter Afonso de Portugal passado por Provença, mas não ter sido assinalado no documento de Embrun, como grão-mestre, leva à conclusão de que sua designação devia ser, com a concordância do Papa, aprovada também pelo rei Felipe Augusto, em cuja corte transitava, de longa data, a condessa Mathilde de Flandres. O rei, na ocasião, tinha relações difíceis com o Pontífice devido ao divórcio, que tentara, de sua mulher Ingeburge. Dentro da complicada política do momento, o apoio a um dos braços militares do Inocêncio III, a Ordem do Hospital, devia ter peso considerável em termos de ajuda material.



































































Conclusão

Ao fim dessa nossa longa investigação sobre o Descordo Plurilíngüe e seu contexto, podemos afirmar as seguintes convicções:

1 - O Descordo Plurilingüe foi, desde o século XVI, com Jean de Nostredame, até o século XVIII, com J.-P. Papon, o ponto de referência para a concepção de terem as línguas românicas como base o provençal. Esta concepção foi também de Raynouard, o primeiro romanista do século XIX.

2 - Entre episódios da vida provençal de Raimbaut de Vaqueiras e o paradeiro do ms. a1 há provavelmente pontos de contato, os quais, por considerações adicionais de ordem geográfica, tornam básico o ms. a1 para a estrofe galego-portuguesa e o ms. f para as demais.

3 - Por ser língua viva, o latim medieval não podia ser o mesmo de Cícero e César mas parte do fio da tradição lingüística do latim clássico e esta parte percorria a sociedade que era capaz de usá-lo e senti-lo, isto é, a sociedade religiosa e eclesiástica.

4 - As línguas nacionais acabaram por se impor porque, na luta entre auctores e artes, isto é, entre literatura de criação e literatura didática, ficaram os cultores do latim principalmente com a segunda, restando, para a primeira, aqueles que, embora conhecendo bem a estrutura da língua, se ressentiram da pressão popular, a ponto de, com o tempo, começarem lentamente a usar essas línguas nacionais em fase de afirmação.

5 - A continuidade lingüística latina projetou-se mais no tempo em que os cultivadores da língua latina se apoiavam na língua das artes, que era viva e, portanto, dinâmica. A continuidade literária latina projetou-se menos no tempo porque aqueles que cultivavam a literatura se apoiavam mais na língua dos auctores, que era estática.

6 - A técnica literária dos trovadores esteve, em seu desabrochar, estreitamente dependente da retórica clássica.

7 - O tema literário do "mundo às avessas", ou adynaton, de origem grega e de prática romana, continua na Idade Média, a partir do século IX, como instrumento de crítica à sociedade e foi introduzido por Arnaut Daniel na poesia trovadoresca.

8 - A palavra descort surgiu, depois de 1180, entre os trovadores em oposição a acort, absorvendo a forma irregular das estrofes das seqüências latinas, religiosas ou populares.

9 - Da prática formal da irregularidade, passou-se, no descordo, à prática conteudística da irregularidade, que se inspirava nos adynata em moda na década de 1180.

10 - O Descordo Plurilíngüe explica a noção de irregularidade de conteúdo como equivalente a perturbação de espírito, resultando dessa inovação um recurso estílístico que é patenteado no uso de linguagens incompreensíveis e músicas diferentes.

11 - A perturbação de espírito, demonstrada por Raimbaut de Vaqueiras no Descordo Plurilíngüe, é reflexo de sua história pessoal: origem plebéia, em Forcalquier; adoção de Monferrato desde a mocidade; agregação à corte do marquês Bonifácio; retornos esporádicos à terra natal e à Provença devido à atração que a França meridional exercia; assimilação do sentimento da coragem indômita, presente na figura de figuras exponenciais do Midi, principalmente Ricardo I; atribuição das qualidades deste sentimento à pessoa do Marquês Bonifácio por meio do senhal Engles; conscientização deste sentimento em relação à sua própria pessoa na crença de que seria ele o instrumento para sua ascensão à nobreza através de casamento com uma mulher nobre, a Bels Cavaliers; desilusão no projeto de ascensão quando se avizinhava a Quarta Cruzada; direcionamento do sentimento de coragem para a esfera religiosa; tomada de votos como cavaleiro da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém.

12 -O Descordo Plurilingüe de Raimbaut de Vaqueiras, segundo todas as probabilidades, foi tornado público em maio de 1203 perante uma platéia de cruzados e de cavaleiros da Ordem de São João de Jerusalém.no castelo de Babon, em Marselha.

13 - Do ponto de vista artístico, o Descordo Plurilingüe é, antes de tudo, uma demonstração de técnica estilística a serviço de propósitos sociais imediatos e, menos, uma exibição deliberada de conhecimentos lingüísticos. Propósito social imediato foi a homenagem, em 1203, no castelo Babon, em Marselha, a Afonso de Portugal, que, muito provavelmente, já como recém-designado Grão-mestre da Ordem de São João de Jerusalém, costumava chamar de "línguas" às províncias da Ordem, o que incorporaria depois a seus Estatutos. Daí as cinco línguas do Descordo Plurilíngüe. Adicionalmente é a composição a utilização original do adynaton como forma de, artisticamente, demonstrar a grande perturbação emocional e mental de quem ama e não é correspondido.





NOTAS

(1) ARRAEZ, Amador. Diálogos, 1846, p. 35. É com esta citação que Serafim da Silva Neto termina sua importante História da língua portuguesa. Traduzindo-a aqui, como epígrafe de nosso livro, queremos identificar-nos com nosso antigo professor, no Colégio Pedro II, e renomado Mestre bem como com sua filosofia de trabalho, em que pontificavam a modéstia, o respeito à produção alheia e o espírito acadêmico, cuja gradual falta de cultivo, após sua morte, determinou a derrocada da Filologia no Brasil.

(2) Ver, a respeito dessa posição teórica, o verbete "Teoria crítica", de José Arthur Rios, no Dicionário de Ciências Sociais (Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, 1987, p. 1216-1217.

(3) O tema da problemática do trabalho filológico nos tempos atuais foi por nós discutido em nossa tese de livre-docência, apresentada à Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1977, que tem o título de Teoria e prática do trabalho lingüístico ou filológico na área românica.

(4) BALDINGER, Kurt. Língua e cultura. Alfa, Revista do Departamento de Letras da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Marília, Estado de São Paulo, 10:37, 1966.

(5) BALDINGER, op. cit. acima, nota 4, p. 37.

(6) Esta é a definição que apresentamos em trabalho recente "Ação dos jesuítas no processo de formação cultural do Brasil", que sairá na História da literatura brasileira, direção de Sílvio Castro, a ser publicada em 1993 em Lisboa pela Editora Alfa.

(7) Gibbon, já no prefácio à primeira edição do famoso Decline and Fall (GIBBON, Edward. Histoire du déclin et de la chute de l'Empire Romain. Paris, Robert Laffont, 1983-1987, p. XLIII) estende a linha contínua do Império Romano original até o advento do reinado de Justiniano (527-565). Seu editor francês contemporâneo, Robert Laffont, adverte, na p. II da edição citada, que "l'histoire de Rome se poursuit bien jusqu'en 582 et celle de Byzance devient importante à partir de 455; c'est por cette raison que nous avons cru bon d'indiquer ces dates sur les couvertures." A "retomada", em sentido amplo, da cultura romana, empreendida por Carlos Magno, foi uma conseqüência natural da ruptura espiritual e política entre o Oriente bizantino e o Ocidente cristão, concretizada pelo concílio iconoclasta de Hieria. Convocado pelo imperador do Oriente Constantino V e realizado em 754, este concílio, por sua decisão de proclamar como contrário à doutrina cristã o culto de imagens, fez com que os papas se colocassem sob a proteção da dinastia franca de Pepino o Breve e de seus sucessores. A sociedade ocidental, com o fracasso final, representado pelo concílo de Hieria, do esforço de união dos dois impérios, iniciado pelo papa Gregório o Grande em 590, começou a buscar nova forma dentro da estrutura cristã. Da parte de Carlos Magno, a política, neste sentido, assumiu caráter definitivo e, desde 774, com a chegada à França de Pedro de Pisa e Paulo Diácono, não parou de se aprofundar na base de uma educação profissional de clérigos e de uma "língua internacional padrão", o agora chamado "latim medieval". Ver, a este respeito, Roger WRIGHT, Late Latin and Early Romance in Spain and Carolingian France, Liverpool, Francis Cairns, 1982, p. 104-144; Louis BRÉHIER & René AIGRAIN, Grégoire le Grand, les États barbares et la conquête arabe (590-757), Paris, Bloud & Gay, 1938, p. 7 e 468-470.

(8) TAGLIAVINI, Carlo. Le origini delle lingue romanze. Bologna, Pàtron, 1959, p. 431-432.

(9) Contexto político e cultural da Notitia de torto e da Mentio de malefactoria. CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS, 4º, Hamburg, 1993. (No prelo).

(10) DIONISOTTI, C. & GRAYSON, C. Early italian texts. 2ª ed. Oxford, 1972, p. 91. O texto literário italiano mais antigo, de datação segura (1150), É o Ritmo Laurenziano. Cf. CASTRO, Ildete de Oliveira. O Ritmo Laurenziano. Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro - Faculdade de Letras, 1978. 202 p.

(11) STENGEL, Edmund. Die beiden ältesten provenzalischen Grammatiken: Lo Donatz proensals und Las Razos de Trobar. Marburg, Elwert'sche Verlagsbuchhandlung, 1878, p. 56. Descordo, isto é, discordância ou cantiga que tem melodias diversas.

(12) A este respeito devem-se consultar as menções à palavra cantilena, que faz Viscardi na Storia letteraria d'Italia. (VISCARDI, Antonio. Le Origini. In: BELLONI, A. et alii. Storia letteraria d'Italia. Milano, Vallardi, 1939, cap. XIII.

(13) MARSHALL, J. H. The Razos de Trobar of Raimon Vidal and associated texts. London, Oxford University Press, 1972, p.97. Se queres fazer um descordo, deves falar de amor como alguém que se sente desamparado e que não pôde ter o favor de sua amada, vivendo atormentado. E que, ao cantá-la, deve-se mudar a melodia, fazendo-o ao contrário de todos os outros tipos de cantiga. Onde o canto deva subir, deve-se fazê-lo baixar. Deve ter três estrofes, uma ou duas tornadas e um estribilho. E pode colocar uma ou duas palavras a mais em uma estrofe com relação à outra para que haja maior discordância.

(14) MARSHALL, op. cit. acima, nota 13, p. 139-140.

(15) GATIEN-ARNOULT, M. Monumens de la littérature romane, publiés sous les auspices de l'Académie des Jeux Floraux. Toulouse, J.-B Paya, 1941, p.342-344.

Definição de descordo. O descordo é uma obra muito variada; ele pode ter tantas estrofes quantos sejam os versos, a saber, de cinco a dez. Estas estrofes devem ser singulares, discordantes e diferentes em rimas, melodia e língua; podem elas ser todas de uma mesma medida, ou de medida diferente. Deve o descordo tratar de amor, de louvor, dessas queixas que os amantes costumam fazer quando não são mais amados por sua dama ou de tudo isso ao mesmo tempo, ao agrado de cada um. Se se quer fazer uma tornada, é preciso seguir a maneira exposta acima no artigo sobre o verso. Pode-se empregar, se se quer, na tornada, todas as línguas que se empregaram antes, na mesma ordem em que apareceram. E se isso acabar sendo muito difícil, parecendo a tornada demasiado curta no emprego de todas as línguas, pode-se recorrer à medida de uma das estrofes precedentes, ou de uma outra, desde que ela não exceda a medida, ou seja, o número de versos, fixados para a estrofe. A tornada deve empregar todas as línguas na mesma ordem em que foram usadas antes e ter as mesmas rimas que estavam no fim de cada estrofe.

(16) ANGLADE, J. Las Leys d'amors, ms. de l'Académie des Jeux Floraux. Toulouse, 1919, p. 175.

(17) GATIEN-ARNOULT, op. cit. acima, nota 15, p. 334.

(18) MARSHALL, op. cit. acima, nota 13, p. 99 -105.

(19) ibidem, p. 101.

(20) ANGLADE, op. cit. acima, nota 16, t. 1, p. 172.

(21) Não nos convence muito a identificação de Vaqueiras, hoje canton de Beaumes-de-Venise, como o lugar de origem do poeta. Nos Altos Alpes havia e há duas regiões, Vachères e Val Queyras, que podem preencher, também, condições históricas como país de origem. Nos Baixos Alpes, a meia distáncia entre Forcalquier e Reillane, há, ainda hoje, a localidade de Vachères, que já era habitada no século XII, sendo prova disso as ruínas da igreja de Saint-Christophe e outras. No poema Ges, si tot ma don'et amors, Raimbaut declara estar em Forcalquier e disposto a viver como mercenário. A Provença mencionada na biografia de Raimbaut é posterior a 1220 e incluía os Altos Alpes até a fronteira com a Itália. Voltaremos ao assunto mais adiante.

(22) Cf., a respeito, MAUREAU, A. A travers les registres paroissiaux de Vacqueyras. Bulletin des amis d'Orange, no 43, jan. de 1971, e SICARD, Roland. Paroisses et communes de France. Dictionnaire d'histoire administrative et démographique. Vaucluse. Paris, 1987, p. 244.

(23) BERTONI, Giulio. I trovatori d'Italia. Modena, Umberto Orlandini, 1915, p. 32-33.

(24) SAVIOTTI, Gino. I grandi scrittori d'Italia. Lanciano, Giuseppe Carabba, 1932, v.2, parte 2, p. 130-131.

(25) SAVIOTTI, op. cit. acima, nota 24, p.49.

(26) CIAN, Vittorio. Un decenio della vita di M. Pietro Bembo (1521-1531). Torino, Ermanno Loescher, 1885, p.71-72.

(27) VINCENTI, Eleonora. Bibliografia antica dei trovatori. Milano, Ricciardi, 1963, passim.

(28) VELLUTELLO, Alessandro. Le volgari opere del Petrarca con la espositione di Alessandro Vellutello da Lucca. Venezia, Fratelli da Sabbio, 1525; EQUICOLA, Mario. Libro di natura d'amore. Venezia, 1525, p. 194v.

(29) NOSTREDAME, Jean de. Les vies des plus celebres et anciens poetes provensaux, qui ont floury du temps des Comtes de Prouence. Lyon, Alexandre Marsilij, 1575, p. 12 e 52. Esta edição é reproduzida, em fac-símile, por Camille CHABANEAU e Joseph ANGLADE em Paris, 1913, com prefácio, introdução e comentário.

(30) VINCENTI, op. cit., nota 27, p. 132. TASSONI, Alessandro. Considerazioni sopra le rime del Petrarca, 1609, p. 126.

(31) PASQUIER, Estienne. Des Recherches de la France, augmentées en ceste derniere edition de trois livres entiers, outre plusieurs Chapitres entre lassez en chacun des autres livres, tirez de la Bibliotheque de l'Auteur. Paris, Chez Martin Colet, au Palais en la galerie des prisonniers proche de la Chancellerie, 1683, p.608.

Pois, logo que a dama mudou de opinião, para mostrar também que a mudança era agradável para ele, fez uma canção onde, em cada estrofe, ele mudava de língua. A primeira, em língua provençal, dizia:

Aras quau vey verdeiar.
A segunda em língua toscana,
I son quel che ben non ho.
A terceira em francês,
Belle douce Dame chere,
A quarta em gascão,
Dauna yeux my rend à bous,
A quinta em espanhol,
Mas tan temo vuestro pletto.

E a última estrofe foi uma mistura de palavras emprestadas dessas cinco línguas. Invenção galhofeira que se ela tivesse sido presenteada aos cavaleiros e damas que estivessem como juízes de Amor, quero crer que tivessem proclamado a sentença da renovação do amor de Beatriz para com esse gentil poeta. É a canção com que ele se despediu de sua dama.

(32) CRESCIMBENI, Gio. Mario. Comentarj del canonico Gio. Mario Crescimbeni, custode d'Arcadia, intorno alla sua istoria della volgar poesia. Venezia, Presso Lorenzo Basegio, 1730, p. 56-68.

(33) BASTERO, Antonio. La Crusca Provenzale. Roma, Stamperia di Antonio de'Rossi, 1724, v. 1, p. 84.

Foi ele /Garins d'Apchier/ o primeiro, que deu início à mencionada espécie de composição chamada "Descordo", não por desdém, ou diferenças como interpretou Crescimbeni, mas pela diferença de Música, como explica o Glossario MS. Provenzale Latino della Libreria Laurenziana, da seguinte forma: "Descors. discordes. discordia. v. cantilena habens sonos diversos." De modo que o vocábulo "Descordo" tem três significados; o primeiro do verbo discordar, isto é, da segunda pessoa do demonstrativo presente; o segundo do nome discordia; e o terceiro, que é este, isto é, uma canção dissonante, ou que possui sons diversos.

(34) BAUM, Richard. Le descort ou l'anti-chanson. In: CLUZEL, Irenée - Marcel & PIROT, François, eds. MÉLANGES de Philologie Romane dédiés à la mémoire de JEAN BOUTIRE. Liège, 1971, p.76.

(35) SAINTE-PALAYE, Jean Baptiste de La Curne. Remarques sur la langue Françoise des XIIe e XIIIe siècles, comparée avec les langues Provençale, Italienne e Espagnole, dans les mêmes siècles. Mémoires de Litterature, Académie Royale des Inscriptions et Belles-Lettres, 24:673, 1756.

(36) SAINTE-PALAYE, op. cit. acima, nota 35, p. 672.

(37) ibidem, p. 673-675.

(38) ibidem, p. 673.

(39) LES PROVENÇALISTES du XVIIIe siècle; lettres inédites de Sainte-Palaye, Mazaugues, Caumont, La Bastie, etc. Revue des langues romanes, 17:191, 1980.

(Paris, 10 de abril de 1737) O Sr. de Sainte-Palaye... É um jovem de delicadeza admirável e capaz de trabalho imenso. Seu plano inicial era de se instruir a fundo em tudo aquilo que diga respeito à história da França; por isso lançou-se ao exame dos manuscritos da Biblioteca Real e já deu notícia de mais de 2.000. Quer ele por a limpo nossos hábitos, costumes, usos, sejam civis ou políticos, nossos brasões, vestuário, gostos, etc. A língua, as artes, as obras do espírito entram neste plano e as origens de nossa língua e de nossa poesia são um dos objetos principais de suas pesquisas. Ele fez copiar ou extraiu dos arquivos tudo que temos de mais antigo em língua francesa e em provençal; e como uma empresa como essa não se pode fazer senão por partes, já que é do conhecimento das diferentes matérias específicas que resulta o total, ele nos tem brindado, na Academia, com a apresentação sucessiva de diversos exemplos de nossos antigos autores franceses.

(40) VIDOS, B. E. Manual de lingüística románica. Madrid, Aguilar, 1963. p. 7.

(41) SAINTE-PALAYE, Jean Baptiste La Curne de. Histoire littéraire des troubadours, contenant leurs vies, les extraits de leurs pièces, e plusieurs particularités sur les moeurs, les usages, e l'histoire du douzième e du treizième siècles. Paris, Chez Durand, 1774, v. 1, p. 257-302.

(42) PAPON, J. -P. Histoire générale de Provence. Paris, Montard - Libraire Imprimeur de la Reine, 1778, t. 2, p. 248-251 e 468-475.

(43) PAPON, op. cit. acima, nota 42, p. 248.

(44) ibidem, p. 248. Esses poetas copiavam-se uns aos outros e, com temas bem diferentes, diziam freqüentemente a mesma coisa.

(45) ibidem, p. 468.

(46) ibidem, p. 468.

(47) ibidem, p. 471.

Entretanto ele /Sainte-Palaye/ deixa entrever uma opinião, de que eu me descarto com tanto mais pesar quanto tenho eu de pensar, da mesma maneira que ele, sobre aquilo que diz respeito aos costumes e à literatura de nossos antepassados, e isso quase acaba sendo uma prova de que se descobriu a verdade. Ele considera a peça que acabamos de ler /o Descordo Plurilíngüe/ como um exemplo da conformidade entre as cinco línguas. A nós parece, ao contrário, que ela prova unicamente que os poetas italianos, franceses, espanhóis e gascões faziam versos em provençal. Que aspecto de conformidade teriam, com efeito, o italiano, o francês, o provençal e o espanhol, no começo do século XIII, se a diferença entre eles se resolvesse simplesmente pela conversão de umas letras em outras como acontece com os diferentes dialetos de uma mesma língua? Este aspecto de conformidade só se poderia imaginar se tivessem elas as mesmas palavras, as mesmas frases e os mesmos torneios.

(48) ibidem, p. 468.

"... o provençal adquiriu imperceptivelmente em cada nação torneios e inflexões particulares; adquiriu até mesmo a marca do caráter nacional e se misturou aos diferentes dialetos que se falavam; afastando-se mais e mais de sua fonte, à medida que as nações se enriqueciam e se aperfeiçoavam pelo gosto, pelas luzes e pelas descobertas dos homens de gênio, os dialetos se elevaram, com o tempo, ao nível das línguas cultas e deixaram bem para trás nossa língua que os tinha tirado da barbárie e os tinha ajudado a formar seus primeiros acentos poéticos."

(49) ibidem, p. 469-471.

Quando vejo reverdecer Eu sou aquele que não tem nenhum bem
os prados, os vergéis e os bosques, e ainda não o terá
quero começar um descordo nem em abril nem em maio,
de amor porque estou fora de mim. se de minha dama não o tenho,

Uma dama, por quem eu era amado, e eu compreendo sua linguagem.

mudou em relação a mim seu coração; De sua grande beleza não sei dizer;
assim faço desacordar mais fresca é ela que flor de gladíolo
a rima, as notas e a língua. e jamais dela me separarei.

Bela, doce, cara dama Senhora, eu me rendo a vós,
a vós me rendo e me consagro. porque sois agora boa e sincera:
Jamais terei alegria completa, seríeis para mim sempre alegre e honesta,
se não vos tiver e vós a mim. se não me tivésseis sido tão cruel.
Sois bem uma cruel inimiga, Tendes maneiras francas,
se morro por causa de minha homenagem; e cor fresca e jovem.
mas de nenhuma maneira Vós me tendes e se eu vos tenho,
eu me apartarei de vosso império. não deixo de fazer boa compra.

Mas, temo tanto vossa cólera,
que me sinto muito consternado com isso.
Por vós sou castigado e atormentado,
e meu coração está em pedaços.
À noite, quando estou no leito,
muitas vezes desperto
Eu vos amo muito, e nada ganho com isso.
Fui logrado em minhas esperanças,
mais do que podia supor".

(50) RAYNOUARD, François-Juste Marie. Choix des poésies originales des troubadours. Paris, 1816-21. v.2, p.225-229. e em seu dicionário de provençal.

(51) RAYNOUARD, François-Juste Marie. Lexique roman ou dictionnaire de la langue des troubadours. Heidelberg, Carl Winters Universitätsbuchhandlung. Reimpression de l'original publié à Paris. 1836-1845, /s.d./.s.v. discord.

(52) RAYNOUARD, op. cit. acima, nota 50, p. 225.

(53) RAYNOUARD, op. cit. acima, nota 51, v.2, p. 484.

...tinha estrofes desiguais, as quais tinham, cada uma, uma música diferente.

(54) Idem, nota 50, p.226.

Agora que vejo reverdecer Eu sou aquele que bem não tenho
prados e vergéis e bosques, nem jamais o terei
quero um descordo começar seja em abril, seja em maio,
de amor, pelo que saio em aventura; se não o tenho por meio de minha dama;
É que uma dama me ama, Certo é que em sua língua,
Mas mudou seu coração, sua grande beleza não sei dizer:
por isso mesmo faço desacordar mais fresca é que flor de gladíolo,
as palavras e o som e as línguas e jamais dela me separarei.

Bela, doce, cara dama, Senhora, eu me rendo a vós,
a vós me dou e me consagro; pois agora sois para mim boa e sincera;

jamais terei alegria total, sempre vos considero alegre e brava,
se não vos tiver e vós a mim; contanto que não sejais tão cruel;
vós sois perversa inimiga, tendes realmente belos ares,
se morro de boa fé; cor fresca e jovem;
e jamais, de nenhuma maneira, vós me tendes, e se eu vos tiver,
me afastarei de vossa lei. não deixarei de fazer boa compra.

Mas temo tanto vossas alterações, Belo cavaleiro, tanto é querido
que me sinto mortificado; o vosso honrado senhorio,
por vós sofro e me atormento que cada dia me espanto.
e tenho o corpo dilacerado; Oh! pobre de mim! que farei,
à noite, quando estou no leito, Se aquela que considero mais querida
muitas vezes desperto me mata, mas será por quê?
por vós, creio, e não lucro com isso; Senhora, pela lealdade que vos tenho,
Mas temo tanto vossas alterações, e pela cabeça de Santa Quitéria,
que me sinto mortificado; meu coração me arrancastes
e, para melhor falar, me roubastes.

(55) ibidem, p. 226-229.

(56) ROCHEGUDE, H. -P. de. Parnasse occitanien ou Choix de poésies originales des troubadours. Toulouse, Chez Benichet Cadet, 1819, p. 79-81.

(57) DIEZ, Friedrich. Die Poesie der Troubadours. Zwickau, Gebrüder Schumann, 1826. p. 115-116.

(58) GALVANI, Giovan. Osservazioni sulla poesia de'trovatori e sulle principali maniere e forma di essa confrontate brevemente colle antiche italiane. Modena, 1929, p. 110-114.

(59) MAHN, C. A. F. Die Werke der Troubadours in provenzalischer Sprache. Berlim, 1846, p. 371-372.

(60) MILÁ Y FONTANALS, Manuel. De los trovadores en España. Estudio de lengua y poesia provenzal. Barcelona, Libreria de Joaquim Verdaguer, 1861, p, 132-133.

(61) MEYER, Paul. Recueil d'anciens textes bas-latins, provençaux et français. Paris, 1877, p. 89-90.

(62) BALAGUER, Víctor. Historia política y literaria de los trovadores. Madrid, Imprenta de Fotanet, 1878, t. 1, p. 132-134 e 194.

(63) LUCHAIRE, Achille. Recueil de textes de l'ancien dialecte gascon. Paris, Maisonneuve, 1881, p. 1-2.

(64) MONACI, Ernesto. Testi antichi provenzali. Roma, Forzani, 1889. col. 63.

(65) APPEL, Carl. Provenzalische Chrestomathie. Leipzig, O. R. Reisland, 1895. Utilizamos a 6ª. edição, de 1930, p.77-78.

(66) VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de & BRAGA, Theophilo. Geschichte der portugiesischen Litteratur. In: GRöBER, Gustav. Grundriss der Romanischen Philologie. Strasbourg, Karl J. Trübner, 1897, v. 2, 2ª parte, p. 173.

(67) VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de. Cancioneiro da Ajuda. Halle, Max Niemeyer, 1904, v. 2, p. 735.

(68) MASSÓ Y TORRENTS, J. Riambau de Vaqueres en els cançoneres catalans. Anuari de l'Institut d'Estudis Catalans, 1907, p. 442-443.

(69) BERTONI, Giulio. Il canzoniere provenzale di Bernart Amoros. (Complemento Càmpori). Friburgo (Svizzera), Libreria dell'Università, 1911, p. 150-152.

(70) CRESCINI, Vincenzo. Il Discordo Plurilingüe di Rambaldo di Vaqueiras. In: _____ et alii. Nuovi Studi medievali. Aquila, 1922 (Reprodução anastática: Bolonha, Zanichelli, 1964), v. 1, p. 75-79.

(71) BERTONI, Giulio. Antiche poesie provenzali. 2ª ed. Modena, Società Tipografica Modenese, 1940, p. 49-51.

(72) MONTEVERDI, Angelo. I più antichi documenti delle lingue romanze. In: ____ Manuale di avviamento agli studi romanzi. Milano, Francesco Vallardi, 1952, p. 172-176.

(73) BERGIN, Thomas Goddard. Rambaldo de Vaqueiras: liriche. Firenze, 1956, p. 52-57.

(74) MENENDEZ PIDAL, Ramón. Poesia juglaresca y origenes de las literaturas romanicas. 6ª ed. Madrid, Instituto de Estudios Políticos, 1957, p. 137. É edição revista.

(75) LINSKILL, Joseph. The poems of the troubadour Raimbaut de Vaqueiras. The Hague, Mouton, 1964, p.191-198.

(76) D'HEUR, Jean Marie. Troubadours d'oc et troubadours galiciens-portugais: Recherches sur quelques échanges dans la littérature de l'Europe au Moyen âge. Paris, 1973, p. 154-176.

(77) DIONISOTTI, C. & GRAYSON, C., op. cit. acima, nota 10, p. 96-97.

(78) VISCARDI, Antonio. Florilegio trobadorico. Milano, La Goliardica, 1945, p. 96-98.

(79) TOJA, Gianluigi. Trovatori di Provenza e d'Italia. Parma, Ugo Guanda, 1965, p. 207-209.

(80) RIQUER, Martin de. Los trovadores. Historia literaria y textos. Barcelona, Planeta, 1975, v. 2, p. 840-842.

(81) UGOLINI., Francesco A. La poesia provenzale e l'Italia. Modena, 1949. p. XVI.

(82) BRITTAIN, F. The medieval latin and romance lyric to A. D. 1300. Cambridge, At the University Press, 1951, p. 152-154.

(83) HILL, Raymond Thompson & BERGIN, Thomas Goddard. Anthology of the Provençal Troubadours. New Haven, Yale University Press, 1941, p. 125-126.

(84) BRUGNOLO, Furio. Plurilinguismo e lirica medievale da Raimbaut de Vaqueiras a Dante. Roma, Bulzoni, 1983, p. 67-103. TAVANI, Giuseppe. Accordi e disaccordi sul discordo plurilingue di R. de Vaqueiras. In: Studi provenzali e francesi, 86/87, 1989, p. 5-43.

(85) BATTELLI, Giulio. Lezioni di paleografia. Vaticano, Pontificia Scuola Vaticana di Paleografia e Diplomatica, 1949, p. 189.

(86) BATTELLI, op. cit. acima, nota 85, p.245.

(87) ibidem, p. 212-215.

(88) PROU, M. & BOÜARD, A. Manuel de paléographie latine et française. 4. ed. Paris, 1924.

(89) BRETHOLZ, B. Lateinische Paläographie. 3ª ed. Leipzig, 1926.

(90) BATTELLI, op. cit. acima, nota 85, passim.

(91) PERRAT, C. Paléographie romaine. In: CONGRESSO INTERNAZIONALE DI SCIENZE STORICHE, Xo. Firenze, 1955. Relazioni...:

"...ao qual os historiadores querem dedicar uma atenção cada vez maior."

(92) BARTOLINI, F. Paleografia e critica testuale. In: CONGRESSO INTERNAZIONALE DI SCIENZE STORICHE, Xo. Firenze, 1955. Relazioni... Firenze, Sansoni, 1955, v.1, p. 442.

(93) BARTOLINI, op. cit. acima, nota 92, p. 442-443.

...escritura notarial cursiva do século VIII semi-cursiva notarial de Siena, de tipo pré- carolino, do século VIII.

(94) AVALLE, D'Arco Silvio. La letteratura medievale in lingua d'oc nella sua tradizione manoscritta. Torino, Einaudi, 1961, p. 44.

(95) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, v.1, p.12-13.

(96) JEANROY, A. Bibliographie sommaire des chansonniers provençaux. Paris, Honoré Champion, 1916, p. 85-86.

(97) FRANK, István. L'art d'éditer les textes lyriques.In: RECUEIL de travaux offert a M. CLOVIS BRUNEL. Paris, Société de l'École des Chartes, 1955, p. 474.

Na tradição dos cancioneiros líricos, este "melhor manuscrito" pode ter suas fraquezas, suas fantasias (veja-se o cancioneiro provençal C), mas ele não é jamais, no conjunto, um texto indubitavelmente corrompido.

(98) MÉNARD, Philippe. L'édition des textes lyriques du Moyen Age. Réflexions sur la tradition manuscrite de Guillaune Le Vinier. In: CONGRÈS INTERNATIONAL DE LINGUISTIQUE ET PHILOLOGIE ROMANES, XIIIe. Québec, 1971. Actes... Québec, Les Presses de l'Université Laval, 1976, v.2. p.775.

(99) QUENTIN, Dom H. Essais de critique textuelle. Paris, 1926.

(100) Para uma noção mais precisa das duas correntes metodológicas da crítica textual, podem ser consultados os seguintes trabalhos :

MARICHAL, Robert. La critique des textes. In: SAMARAN, Charles. L'histoire et ses méthodes. Bruges, Gallimard, 1973. p. 1247 - 1366.

BÉDIER, J. La tradition manuscrite du Lai de l'ombre; réflexion sur l'art d'éditer les anciens textes. Romania, 54: 161-196; 321-356, 1928.

FRÄNKEL, Hermann. Testo critico e critica del testo. Trad. do alemão para o italiano por Luciano Canfora. Firenze, Felice Le Monnier, 1969. XIV + 90p.

(101) MEYER, Paul. Les derniers troubadours de la Provence. Bibliotheque de l'École des Chartes (Revue d'Érudition), 6ª série, 5: 245.

(102) JEANROY, A. Notes sur l'histoire d'un chansonnier provençal. In: MÉLANGES offert à M. ÉMILE PICOT. Paris, Damascène Mougand, 1913, p.525.

(103) GRÖBER, Gustav. Die Liedersammlungen der Troubadours. In: BOEHMER, Eduard, edit. Romanische Studien. Strassburg, Trübner, 1877, p. 644-646.

(104) CHAMBERS, Frank M. Matfre Ermengaud and Provençal MS C. Romance Philology, 5 (1): 41-46, 1951.

(105) O CNRS, sob a direção do Prof. Monfrin, nos forneceu as fotografias dos manuscritos do Descordo, o que, mais uma vez, agradecemos.

(106) MONFRIN, Jacques. Notes sur le chansonnier provençal C. In: RECUEIL de travaux offert a M. CLOVIS BRUNEL. Paris, Société de l'École des Chartes, 1955, p.310-311.

(107) MONFRIN, op. cit. acima, nota 106, p. 310.

(108) Romania, 14: 324.

(109) JEANROY, op. cit. acima, nota 102, p. 528.

(110) VINCENTI, op. cit. acima, nota 27, p. 132.

(111) CERATI, Pietro. L'epistola epica del trovatore Rambaldo di Vaqueiras a Bonifacio I di Monferrato. Facoltà di Lettere di Torino, 27 ottobre 1959.

(112) MENEGHETTI, Maria Luisa. Il pubblico dei trovatori. La ricezione della poesia cortese fino al XIV secolo. Torino, Giulio Einaudi, 1992, p. 29. Agradecemos ao nosso amigo, Prof. Patrizio Tucci, titular de literatura francesa da Universidade de Cagliari e professor de história da critica literária na Universidade de Padova, a oferta da obra.

(113) Não se trata aqui do mesmo códice alegado por Cerati em seu stemma.

(114) Répertoire métrique de la poésie des troubadours. Paris, Bibliothèque de l'École des Hautes-Études, sciences historiques et philosophiques, fasc. 302, 1953.. p. xviii, nota 3.

(115) MONFRIN, op. cit. acima, nota 106, p. 311.

(116) GRÖBER, op. cit. acima, nota 103, p. 348.

(117) ibidem, p. 348; para R e I, parágrafo 29; J1, 109; Db, 5; T, 74 e 78.

(118) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, v. III, p. 1478-1479.

(119) AVALLE, op. cit. acima, nota 94, p. 90.

(120) ibidem, p. 120-125.

(121) ibidem, p. 124, 59 e 68.

(122) Cf. a seçåo Primeiras repercussões da obra de Raimbaut de Vaqueiras do capítulo 2 desta parte I.

(123) VINCENTI, op. cit. acima, nota 27, p. XXXVIII.

(124) ibidem, p. LVI.

(125) ibidem, p. 458.

(126) GRÖBER, op. cit acima, nota 100, p. 515.

(127) DE LOLLIS, C. Ricerche intorno a canzonieri provenzali di eruditi italiani del secolo XVI. Romania, 18: 453-468, 1989.

(128) AVALLE, op. cit. acima, nota 94, p. 133.

(129) MASSÓ TORRENTS, Jaume. Bibliografia dels antics poetes catalans. Anuari de l'Institut d'Estudis Catalans, 1913-14, p.3-276.

(130) LINSKILL, op. cit. acima. nota 75, p. 42.

(131) LEWENT, Kurt. Literaturblatt für romanische und germanische Philologie, 1931, col. 285.

(132) FASSBINDER, Klara M. Der Trobador Raimbaut von Vaqueiras. Zeitschrift für romanische Philologie, 49: 157, 168.

(133) JEANROY, A. Bibliographie sommaire des chansonniers provençaux. Paris, 1916, p. 20.

(134) MEYER,, op. cit. acima, nota 101, p. 462.

(135) LINSKILL, op. cit acima, nota 72, p. 3-37.

(136) FASSBINDER, op. cit. acima, nota 132.

(137) SCHULTZ-GORA, Oscar. Le epistole del trovatore Rambaldo di Vaqueiras al marquese Bonifazio I di Monferrato. Traduzione di G. Del Noce, con aggiunte e correzioni dell'autore. Firenze, G. C. Sansoni, 1898, XVII + 215 p. com 5 mapas; CERRATO, Giuseppe. La famiglia de Guglielmo el Vecchio. Rivista Storica Italiana, 1: 445 e segs.;_____, Il "Bel Cavaliere" di Rambaldo di Vaqueiras. Giornale Storico della Letteratura Italiana, 4: 81-115, 1884.

(138) CARDUCCI, Giosuè. La poesia e l'Italia nella Quarta Crociata. Nuova Antologia di Scienze, Lettere ed Arti. Terza Serie, Volume Diciannovesimo (CIII da Coleção), Roma, 1889, p. 657-681; _____ Galanterie cavalleresche del secolo XII e XIII. Nuova Antologia. Seconda Serie, volume quarantanovesimo (LXXIX da Coleção), Roma 1885, p. 5-24; _____ Gli Aleramici, leggenda e storia. Nuova Antologia. Seconda Serie, volume XLII, 1 Dicembre 1883.

(139) Art de vérifier les dates des faits historiques, des inscriptions, des chroniques, et autres anciens monuments, depuis la naissance de Notre Seigneur; 4me édit. ..... par un RELIGIEUX (Viton de Saint-Allais) de la Congrégation de Saint-Maur. A Paris, Rue de la Vrillière, nº 10, Près La Banque. Valade, Imprimeur du Roi, Rue Coquillière. 1818.

(140) MAS-LATRIE, L. de. Trésor de chronologie d'histoire et de géographie pour l'étude et l'émploi des documents du Moyen Age. Paris, Librairie Victor Palme, Rue des Saints-Pères, 1889.

(141) HALPHEN, Louis. Initiation aux études d'histoire du Moyen Age, 2e édition. Paris, Presses Universitaires de France, 1946, p. 101.

(142) HALPHEN, op. cit. acima, nota 141, p. 104.

(143) ABBOTT, P. D. Provinces, pays and seigneuries of France. Myrtleford, 1981. 681 p.

(144) RIQUER, Martin de. La littérature provençale à la cour d'Alphonse II d'Aragon. Cahiers de Civilisation Médiévale, 1959, p. 200.

(145) AURELL I CARDONA. Les troubadours et le pouvoir royal: l'exemple d'Alphonse Ier (1162-1196). Revue des Langues Romanes, 85(1-2):53-67, 1981.

(146) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 5-22 e 30-33.

(147) LINSKILL, ibidem, p. 35.

(148) ibidem, p. 6.

(149) ibidem, p. 303.

(150) SAINTE-PALAYE, La Curne, Histoire littéraire des trobadours, Genève, Slatkine Reprints, 1967, p. 290.

(151) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 847-848.

(152) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 309.

(153) STIMMING, Albert. Bertran von Born. 2a ed., Halle, 1913, pág. 139.

(154) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 21.

(155) ibidem, p. 161.

(156) STIMMING, op. cit. acima, nota 153, poema XLI, versos 29 - 30.

(157) LECOY, F. Note sur le troubadour Raimbaut de Vaqueyras. In: ÉTUDES ... MARIO ROQUES, Paris, 1946, p. 30.

(158) STIMMING, Albert. op. cit. acima, nota 153, p. 113.

(159) LINSKILL, op. cit., nota 75, p. 143.

(160) APPEL, Carl. Bernart von Ventadorn: seine Lieder mit Einleitung und Glossar. Halle, 1915, p. CXXVIII.

(161) LINSKILL, op. cit., nota 75, p. 224, nota ao verso 74.

(162) ibidem, p. 217:
Sabe-se, agora, e se pode provar
que, por belas ações, Deus recompensa:
prêmios e dons deu ao bravo Marquês,
pondo-lhe o valor por sobre os melhores;
tanto que, em França e Champagne, os cruzados
a Deus pediram o melhor de todos
para a cruz e o sepulcro recobrar
onde era Jesus, que quer junto a si
o honrado nobre; Deus dá-lhe o poder
de bravos vassalos, terras, fortuna
e ânimo, p'ra engrandecer-lhe a missão.

(163) Nosso Senhor manda que todos nós
vamos recobrar o sepulcro e a cruz;

(164) quem quiser estar em sua companhia
morra por ele, se quer vivo estar
no Paraíso; faça o que puder
para ao mar passar e matar os cães.

(165) Belo Cavaleiro dos meus sons e cantos,
não sei, se por vós, tomo ou deixo a cruz,
nem sei como ir ou como ficar ...

(166) BEZZOLA, Reto R. Les origines et la formation de la littérature courtoise en Occident (500-1200). Paris, Honoré Champion, 1967, Troisième partie, Tome I, p. 223.

(167) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 91, quarta estrofe.

Se o jovem Conde
ante a insolência
que lhe exibe o Conde,
não responde ainda com mais vigor,
eu não ficaria do seu lado,
antes o rejeitaria,
pois agora ele está crescido e belo
e promete ser violento com os inimigos.
Poder e berço devem igualar-se aos grandes feitos,
e ele há de guerrear e pelejar
como um jovem obstinado.

(168) ibidem, p. 19.

(169) L'art de vérifier les dates, t. 10, p. 117.

(170) THIERRY, Augustin. Histoire de la conquête de l'Angleterre par les normands, de ses causes et de ses suites jusqu'à nos jours. Paris, Furne, Jouvet et Cie, Éditeurs, 1866, t. 2, p. 187.

Toda infelicidade caia sobre os traidores que estão na Aquitânia pois o dia do castigo está próximo. Hoje é La Rochelle que teme. Ela duplica seus muros e seus fossos. Ela se faz cingir de todos os lados pelo mar e o rumor deste imenso trabalho ecoa além dos montes. Fugi diante de Ricardo, duque de Aquitânia, vós que habitais estas praias, porque ele causará profunda admiração nos mais gloriosos, destruirá as carroças e aqueles que as conduzem, aniquilará, das mais altas personalidades até o mais humilde habitante, todos os que lhe recusarem a entrada na província de Saintonge!

(171) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 306, v. 7.

(172) ibidem, p. 336.

(173) LINSKILL, Joseph. An enigmatic poem of Raimbaut de Vaqueiras. Modern Language Review, 53: 355-363, 1958.

(174) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 91.

Quem é duro e mau é temido
e deserdado é o humilde e pacífico;
escolha o que lhe agradar.

(175) FLORI, J. Seigneurie, noblesse et chevalerie. Romania, 110:189-200, 1989.

(176) SCHULTZ-GORA, op. cit. acima, nota 137, p. 73-74.

(177) Tendo como base o relato, na Epístola Épica I, sobre Giacomina da Ventimilia e Saldina da Mar, o investigador berlinense calculou como sendo do período de 1177 a 1178 as primeiras ações aventurosas recordáveis do bacalar Raimbaut e, daí, como de uns 17 a 22 anos até então, seu nascimento. Cf. SCHULTZ-GORA, op. cit. acima, nota 137, p. 9.

(178) BRADER, David. Bonifaz von Montferrat bis zum Antritt der Kreuzfahrt. Berlin, Verlag von E. Ebering, 1907, p. 182.

(179) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 566.

(180) TOURNADRE, Guy de. Histoire du Comté de Forcalquier - XII siècle. Paris, 1930, p. 72.

(181) BEZZOLA, Reto, Les Origines et la Formation de la Littérature Courtoise an Occident, tomo I, p. 220 - 221.

(182) OGDEN, C. K. e RICHARDS, I. A. O significado de significado. Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1972, p. 31.

(183) ibidem, p. 30.

(184) ibidem, p. 227.

(185) Citação do historiador árabe de Saladino (Vit. Saladini, auctore Bohadino F. Sjedaddi), feita por George Lord Littelton em Notes ao segundo e ao terceiro livros de seu Life of King Henry the Second, London, 1767, p. 361.

(186) TOURNADRE, op. cit. acima, nota 180, p. 72.

(187) Ver, acima, as notas 180 e 186.

(188) ROMAN, J. Tableau historique du Département des Hautes-Alpes. Paris, 1890.

(189) LECOY, F. Notes sur le troubadour Raimbaut de Vaqueiras. In: ÉTUDES M. ROQUES. Paris, 1946, p. 23-31.

(190) TOURNADRE, op. cit. acima, nota 180, p. 94.

(191) ibidem, p. 99.

(192) ibidem, p. 87.

(193) A declaração de Raimbaut se explica, provavelmente, pelo fato de, logo após a morte de Alfonso I, em abril de 1196, o conde Guilherme II de Forcalquier ter protestado, como vimos, contra a pretensão do marido de sua neta Garsende, agora Alfonso II, de tê-lo como vassalo, já que era ele, na verdade, vassalo imediato do Imperador por investidura ocorrida em 1174. Sua submissão ao pai de Alfonso, Alfonso I, se dera exclusivamente pela força. Os senhores de Baux e todos os outros já se tinham submetido a Alfonso I, o poderoso rei de Aragão. Iniciada a guerra entre ambos, Guilherme II de Forcalquier e Alfonso II, Sisteron, perto de Gap e na confluência do Durance com o Buech, é tomada por Alfonso e as hostilidades só são interrompidas por uma trégua de fins de 1202 a inícios de 1204.

(194) SCHULTZ-GORA, op cit. acima, nota 137, p. 153-157.

(195) FASSBINDER, op.cit. acima, nota 132, p. 148-149.

(196) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 124.

(197) STRONSKI, Stanislaw. Le troubadour Folquet de Marseille. Cracovia, 1910, p. 53-5.

(198) Cf. STRONSKI, op. cit. acima, nota 197. p. 73 e LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 137.

(199) FASSBINDER, op. cit. acima, nota 132, p. 137.

(200) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 6.

(201) ibidem, p. 5.

(202) ibidem, p. 38.

(203) Cf., acima, nota 21.

(204) DELAVILLE LE ROULX, J. Cartulaire général de l'Ordre des Hospitaliers de S. Jean de Jérusalem (1100-1310). München, Omnia Mikrofilmtechnik, 1980, T.II, p. 20-21.

(205) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 11.

(206) JEANROY, A. Les troubadours en Espagne. Annales du Midi. Toulouse, 27 (107-108): 145, 1915.

(207) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 5.

(208) ibidem, p. 38-47.

(209) ABBOTT, P. D. Provinces, Pays and Seigneuries of France. Myrtleford, Australia, 1981, p. 599.

(210) LONGNON, J. Revue de Synthèse, 64: 46, 1948.

(211) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 5.

(212) ibidem, p.6.

(213) JEANROY, A. La poèsie lyrique des troubadours. Toulouse, Édouard Privat, 1934, t. 1, p.387.

(214) MEYER, op. cit. acima, nota 101, p. 257.

(215) ibidem, p. 258:

"mas encontro no cancioneiro do senhor conde de Sault que ele (Hugues de Pena) fez quatro canções muito belas, inteligentes e de bom sentido, numa das quais se vê que ele estava apaixonado por Beatriz, condessa de Provença, mulher de Charles, rei da Sicília, e se refere a ela como Beatriz, condessa de Provença, louvando-a como a primeira dama em virtudes, desse mundo; e todas essas canções ele dedica em parte a Barral, senhor de Marseillac, e de Baulx, e em parte a Ysnard d'Entravenes, conde de Sault."

(216) ibidem, p. 259:

"Eu posso assegurar verdadeiramente ter visto e lido os dois grandes tomos diferentes, escritos em letras de forma sobre pergaminho, com iluminuras em ouro e azul, os quais estão nos arquivos do senhor conde de Sault e em que são descritas em letra vermelha as vidas dos poetas provençais (chamados de trovadores) e, em letra negra, suas poesias, em seu idioma e em mais de 80".

(217) PILLET, A. & CARSTENS, H. Bibliographie der Troubadours, Halle, 1933, p. XXIV.

(218) Ver op. cit. acima, nota 101. Traduzindo:

"Em resumo, o cancioneiro em dois volumes do conde de Sault, consultado por Nostre-Dame, parece não ser, de modo algum, diferente da grande coleção compilada, no século XIII, por Bernart Amoros, e da qual o manuscrito Riccardi 2814 é cópia parcial."

(219) BERTONI, op. cit. acima, nota 69, p.XIII.

"O que creio, todavia, poder afirmar com uma certa tranquilidade, é que o issemple, ao qual o nosso monge declara ater-se, deve ter sido uma grande coleção aparentada ao manuscrito do conde de Sault, este também perdido, ou o próprio manuscrito do conde de Sault, ou ainda o original desse manuscrito. Na rica coleção de líricas trovadorescas, utilizadas por Nostredame, se liam poesias de autores que não se encontraram senão em nosso cancioneiro. E a afinidade entre as duas é tal e tanta que se pode conjecturar que, por longo tempo, se acreditou fosse uma única e idêntica coisa. Se o manuscrito de Bernard Amoros não corresponde inteiramente a esta perdida antologia, é certo que nos faz conhecer direta ou indiretamente uma parte não pequena".

(220) São palavras de Nostredame em carta autenticamente sua. O trecho está em: CHABANEAU, C. & ANGLADE J. Essai de reconstitution du Chansonnier du comte de Sault. Romania, 40: 244, 1911.

"Quanto à nossa língua provençal, estou prestes a redigir por escrito, em nossa língua francesa, as vidas dos poetas provençais, segundo um velho livro que descobri em uma nobre casa deste país, no qual são descritas suas vidas e sua obra na antiga língua provençal, bem difícil e obscura, os quais floresceram durante cerca de duzentos e cinqüenta anos, até o passamento da Senhora Jehanne de Nápoles e da Sicília, ocorrido no ano de 1380, e que são em número de mais de 80, uns florentinos, outros mantuanos, outros genoveses e lombardos, e os outros provençais, etc".

(221) MEYER, F. , op. cit acima, nota 98, p. 258:

"Eu o repito: seria preciso provar que os fragmentos de Carpentras são mesmo de J. de Notre Dame, e nenhuma prova seria mais fácil de fornecer, se existisse algum borro certo da escritura dessa personagem, o que ignoro."

(222) PRUTZ, Hans. Kulturgeschichte der Kreuzzüge. Hildesheim, Georg Olms Verlagsbuchhandlung, 1964, p. 608.

Depois disso, ainda, deve o grão-mestre passar a consultar-se com os bailios, geralmente irmãos prudentes e honrados de diferentes regiões e de todas as línguas.

O texto é o do § 47 do vol. 69, primeira parte, do Arquivo da Ordem de Malta, divisão I. É do século XIV.

(223) DELAVILLE LE ROULX, op. cit. acima, nota 204, t. II, p. 34.

(224) NOSTREDAME, op. cit. acima, nota 29, p.79.

(225) PASQUIER, op. cit. acima, nota 32, p. 608. As alterações de Pasquier, com relação ao texto de Nostredame, såo: aros-aras; vei-vey; deme-Dame; Yeu-Jeux; mes-mas.

(226) ibidem, p. 606:

"Como também caiu-me nas mãos um manuscrito que ainda está comigo, cujo conteúdo é o seguinte: Extrato de um antigo livro que pertenceu ao Cardeal Bembo. Los noms daquels que firont Tansons & Syruentes (Nomes daqueles que fizeram canções e sirventeses). E nele se encontram noventa e seis. É verdade que alguns foram esquecidos por Nostredame, e prova disso é que este faz paralalamente apresentação de outros que não são nomeados pelo Cardeal. E vários que são assinalados tanto por um quanto por outro. De maneira que, após os ter confrontado, há um total de mais de cento e vinte entre os quais se encontram imperadores, reis, marqueses, condes, um imperador de nome Frederico I, Ricardo Coração de Leão, da Inglaterra, a Condessa de Dia, Raimond Beranger, Conde de Provença, um rei de Aragão, um delfim de Auvergne, um Conde de Poictou e os principais senhores de sua corte. Não afirmo que tivesse composto poemas inteiros em provençal, mas é de se notar que, por vezes, passavam seu tempo a fazer alguns epigramas provençais."

(227) Sainte Palaye assim parece ter usado os cancioneiros:

Ms. C - versos 1, 2, 3, 4, 6, 7, 9, 10, 11, 13, 16, 17, 19, 21, 27, 28, 29, 30, 32, 37, 38, 39, 40 e 41, num total de 24 versos.

Ms. E:- versos 3, 5, 6, 7, 8, 10, 12, 14, 15, 18, 20, 21, 22, 25, 26, 28, 31, 33, 34 e 35, num total de 20 versos.

Ms. R:- versos 3, 23, 24, 25, 36, 37, num total de 6 versos.

(228) MONFRIN, op. cit. acima, nota 106, p.303.

(229) Para essa análise, utilizamos as seguintes obras:

PARODI, E. G. Studi liguri. Archivio Glottologico Italiano. 14: 1-110, 1898; 15: 1-82, 1899.

______ Rime genovesi della fine del secolo XIII e del princípio del XIV. Archivio Glottologico Italiano, 10:109-140, 1886-1888.

FLECHIA, G. Annotazioni sistematiche alle "Antiche rime genovesi" (Archivio Glottologico Italiano, 2: 161-312) e alle "Prose genovesi" (Archivio glottologico Italiano, 8: 1-97). Archivio Glottologico Italiano, 8: 317-406 e 10: 141-166.

(230) PARODI, op. cit. acima, nota 229, v. 15, p. 19.

(231) FLECHIA, op. cit. acima, nota 229, v. 10, p.159, no 57.

(232) ibidem, p. 156, nº 41.

(233) PARODI, op. cit. acima, nota 229, Rime genovesi, p. 140, verso 345 e PARODI, Studi liguri, v. 15, p. 40,nº 96.

(234) BATTISTI, Carlo & ALESSIO, Giovanni. Dizionario etimologico italiano. Firenze, Barbèra, 1950, s.v.

(235) PARODI, op. cit. acima, nota 229, Studi liguri, p. 22, no 51.

(236) FLECHIA, op. cit. acima, nota 229, v. 10, p. 153, no 30.

(237) ibidem, p. 159, no 57.

(238) ibidem, p. 156, no 41.

(239) PARODI, op. cit. acima, nota 229, Studi liguri, v. 15, p. 7, no 25.

(240) ibidem, p. 30, l. 15 e p. 39, l. 35.

(241) FLECHIA, op. cit. acima, nota 229, v. 10, p. 158, no 46.

(242) PARODI, op. cit. acima, nota 229, Studi liguri, v. 14, p. 55, l. 2 e p. 57, verso 14.

(243) LUQUIENS, Frederick Bliss. An introduction to old French phonology and morphology. New Haven, Yale University, Press, 1947, p. 92 e 94.

(244) BRUNOT, Ferdinand. Histoire de la langue française. Paris, Armand Colin, t. 1, p. 213.

(245) BOURCIEZ, E. Précis de phonétique française. Paris, Klincksieck, 1945, p. 231.

(246) BEAULIEUX, Charles. Histoire de l'ortographe française. Paris, Honoré Champion, 1927, p. 42.

(247) ROHLFS, Gerhard. Le gascon. Halle, Max Niemeyer, 1935, p. 89.

(248) ROHLFS, op. cit. acima, nota 247, p. 147.

(249) LUCHAIRE, Achille. Études sur les idiomes pyrénéens de la region française. Paris, Maisonneuve, 1879, p. 236.

(250) LUCHAIRE, op. cit. acima, nota 249, p. 237.

(251) ibidem, p. 206-208. Ver também: LUCHAIRE, op. cit. acima, nota 63.

(252) LUCHAIRE, op. cit. acima, nota 63, p. 2. A propósito de faisos, noera e fiera, Luchaire, neste seu Recueil e comentando a edição do Descordo, feita por Paul Meyer (cf. acima, nota 61), afasta a hipótese de ter Raimbaut empregado o dialeto bearnês:

A propos de ce texte, le plus correct de tous, le savant éditeur voudra bien nous permettre une double réflexion. D'abord nous ne savons si les formes haisos, hiera pour faisos, fiera, sont le produit d'une correction ou d'une lecture réelle, mais vu l'absence totale, dans les actes gascons antérieurs au XIVe siècle, de mots à h aspirée initiale remplaçant f latin, il nous semble bien extraordinaire que le poète les ait employées. Ensuite le couplet ne nous paraît pas écrit en béarnais (Romania, III, 436) mais dans le dialecte de la région orientale ou centrale du domaine gascon, car noera (lat. novella) n'a jamais été une forme béarnaise. Le Béarnais aurait employé nabera.

(253) LUCHAIRE, op. cit. acima, nota 63, p. 203.

(254) CRESCINI, op. cit. acima, parte I, nota 70, p. 98-99.

(255) CASTRO, José Ariel. Afonso de Portugal, 11º grão-mestre da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, e o século XII português. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS, 3º. Atas... Coimbra, 1992, p. 819 - 858. O trabalho de 1980 é o seguinte:

CASTRO, José Ariel. O descordo plurilíngüe de Raimbaut de Vaqueiras no contexto lingüístico-cultural do século XII. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 1980, p. 134-136.

(256) D'HEUR, op. cit. acima, nota 76, p. 175.

(257) Cf. LAPA, M. Rodrigues. Vocabulário galego-português tirado da edição crítica das cantigas d'escarnho e de mal dizer. Lisboa, Editorial Galaxia, 1965, s. v. ca.; VASCONCELLOS, Carolina Michaëlis de. Glossário do Cancioneiro da Ajuda. Revista Lusitana, vol. XXIII, s. v. ca (quia), que a erudita tedesca chama de "conjunção consecutiva".

(258) Cf. HUBER, Joseph. Altportugiesisches Elementarbuch. Heidelberg, 1933, Carl Winters Universitätsbuchhandlung, ½ 158, b.

(259) Cf. MENÉNDEZ PIDAL, R. Manual de gramática histórica española. 13ª ed. Madrid, Espasa-Calpe, 1968, ½ 63, 2a e 3.

(260) HUBER, op. cit acima, nota 258, § 345.

(261) CASTRO, José Ariel. A colocação do pronome pessoal átono no português arcaico. Rio de Janeiro, Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de janeiro, 1974, p. 205.

(262) HUBER, op. cit. acima, nota 258, § 344.

(263) MONFRIN, op. cit. acima, nota 106, p. 310.

(264) VASCONCELLOS, Carolina MIchaëlis de. Glossário do Cancioneiro da Ajuda. Revista Lusitana, 23: 71, s. v. preito.

(265) D'Heur, op. cit. acima nota 76, p. 161, aventa a possibilidade de o ms. E conter tz ao final. Não identificamos no original senão do, como sílaba final da palavra.

(266) Cf. notas 68 e 71.

(267) HUBER, op. cit. acima, nota 258, p. 230.

(268) FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da língua portuguesa. 1ª ed. 12ª impressão. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, p. 1384, 3ª col, s. v. todo.

(269) COROMINAS, Joan. Breve diccionario etimologico de la lengua castellana. Madrid, Gredos, 1961, p. 237, s. v. escarmiento.

(270) D'HEUR, op. cit. acima nota 76, p. 164.

(271) HUBER, op. cit. acima, nota 258, p. 235. " ... zur Bezeichnung der Richtung (in, auf, nach, zu)".

(272) VASCONCELLOS, op. cit acima, nota 264, s. v. en (in).

(273) HUBER, op. cit. acima, nota 258, p. 228.

(274) CASTRO, José Ariel. A Notitia de torto. Revista de Portugal, Série A. Lisboa, 1972, p. 29, linhas 12 e 23 do texto transcrito paleograficamente et passim. Ao comentarmos, sob este ponto de vista, o texto, que é de 1211, dissemos:

"Em maa, não há acento. O mesmo acontece em auoo (linha doze. Logo este acento duplo não era um dos hábitos ortográficos do autor deste rascunho notarial."

(275) MEYER-LÜBKE, W. Introdução ao estudo da Glotologia Românica. Lisboa, Livraria Clássica Editora de A. M. Teixeira, 1916, p. 105.

(276) D'HEUR, op. cit. acima, nota 76, p. 170.

(277) HUBER, op. cit. acima, nota 258, §§ 44,3, 81, 158,f, e 378,3.

(278) D'HEUR, op. cit. acima, nota 76, p. 172.

(279) NUNES, José Joaquim. Contribuição para um dicionário da língua portuguesa arcaica. Revista Lusitana, 27 (1-4): 62-63.

(280) NUNES, op. cit. acima, nota 279, p. 62-63 e 66.

(281) MONACI, Ernesto. Il canzoniere portoghese della Biblioteca Vaticana. Halle, Max Niemeyer, 1875, p. 68.

(282) NUNES, José Joaquim. Cantigas de amigo dos trovadores galego-portugueses. Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1973. V. II, cantiga XVII, p. 18.

(283) COROMINAS, Joan. Breve diccionario etimologico de la lengua castellana. Madrid, Gredos, 1961, p. 260.

(284) Cf., atrás, p. 74.

(285) PANSIER, Paul. Histoire de la langue provençale a Avignon du XIIe au XIXe siècle. Marseille, Laffitte Reprints, 1974.

(286) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 3.

(287) PANSIER, op. cit. acima, nota 285, p. 9-11.

(288) TOURNADRE, op. cit. acima, nota 180, p. 9.

(289) ibidem, p. 78, ano de 1165.

(290) ibidem, p. 11.

(291) BEMBO, Pietro. Soneto. In: SAVIOTTI, op. cit. acima, nota 24, v.2, parte 2, p. 131.

(292) As obras seguintes são importantes, dentro dessa visão geral:

TAYLOR, Robert A. La littérature occitane du Moyen Age. Bibliographie selective et critique. Toronto, Universidade of Toronto Press, (1977). XVI + 166p.

BOSSUAT, Robert, ed. Le Moyen ßge. In: GRENTE, Georges et alii. Dictionnaire des lettres françaises. Paris, 1964, XX + 766p.

CAMPROUX, Charles. Histoire de la littérature occitane. 2. ed. Paris, 1971. 272p.

JAUSS, Hans R & Köhler, Erich. Grundriss der romanischen Literaturen des Mittelalters. v. I - Généralités; v. VII, La littérature didactique, allégorique et satiriques. Heidelberg, 1972, 1978. XXVI + 742p; XVI 315 + 496p.

(293) CLUZEL, Irenée-Marcel. Quelques réflexions à propos des origines de la poésie lyrique des troubadours. Cahiers de civilisation médiévale, 4: 179-188, 1961

(294) SCHELUDKO, Dimitri. Religiöse Elemente im weltlichen Liebenslied der Trobadors - Zu From und Inhalt der Kanzone. Zeitschrift für französische Sprache und Literatur, 59: 402-421, 1935.

(295) STERN, Samuel M. Literary Connections between the Islamic world and Western Europe in the Early Middle Ages: Did they exist? In: HARVEY, L. P., ed. Hispano-Arabic strophic poetry. Studies by Samuel Miklos Stern. Oxford, 1974, p.204-244.

(296) Citado na página 30 de SCHELUDKO, D. Beiträge zur Entstehungsgeschichte der altprovenzalischen Lyrik. Die arabische Theorie. Archivum Romanicum, 12 (1-2):30-127. Neste trabalho, Scheludko traça uma história completa da chamada teoria árabe. Além das duas outras teorias por nós consideradas, assinala ele, igualmente, a teoria latino-clássica.
"...merecidamente deverão os árabes ser colocados como principais autores das rimas, como aqueles que mais remotamente rimaram".

(297) SCHELUDKO, op. cit. acima, nota 296, p.31. A citação é do livro de Zuccolo, Discorso delle ragioni del numero del verso italiano, 1623, p.10.

"...rima passada, creio eu, dos árabes aos provençais, e de Provença introduzida, primeiro, na Sicilia e, depois, na Toscana".

(298) ibidem, passim.

(299) ibidem, p.31.

"Os literatos e os homens sábios e prudentes, por meio de artifícios regras, lhe deram existência (definida) e a colocaram universalmente à vista".

(300) ibidem, p.47.

"...sobre o que diz respeito à poesia provençal, será sempre muito curioso ver como os trovadores produziram poemas que oferecem uma certa semelhança, com as "kacidahs" e as "muaxahas; mas é aí que deve parar a aproximação; quanto a uma influência direta da poesia árabe sobre a poesia provençal, sobre a poesia românica em geral, não se provou nem se provará nada. Consideramos essa questão inteiramente desnecessária."

(301) ibidem, p. 48-49.

"O estudo da poesia árabe aprofundado de meio século para cá, dissipou os erros de quem a acreditava mãe da poesia espanhola, provençal e italiana. Nem a razão poética, nem a estrutura nem a rima das poesias neolatinas pode comparar-se de modo algum às árabes. Somente a moda, creio eu, das esplêndidas cortes muçulmanas da Espanha fez entrar nos castelos cristãos do ocidente, junto com outros argumentos de luxo, o costume de ouvir poesias em língua vulgar do país: os prêmios e as honras encorajavam os poetas nacionais a recitar nas comitivas principescas os versos que antes, eram ouvidos nas obscuras rodas das cidades e dos campos, e de tal modo que, ao invés de se dizer que a poesia popular nasceu no tempo dos árabes, é melhor afirmar que foi emancipada e enobrecida naquela época. O mesmo deve-se supor com relação à corte muçulmana dos reis normandos e suevos da Sicilia".

(302) FARMER, Henry G. The arabic influence on European music. Glasgow University Oriental Society, 19: 1-15, 1961/1962.

(303) POLLMANN, Leão. Trobar clus, Bibelexegese und hispano-arabische Literatur. Münster, 1965, 96p. (Forschungen zur Romanischen Philologie, 16).

(304) STERN, op. cit. acima, nota 295.

(305) LE GENTIL, Pierre. Le virelai et le villancico. Le problème des origines arabes. Paris, Les Belles Lettres, 1954. 279p.

(306) MENENDEZ PIDAL, Ramón. Poesía árabe y poesía europea. Bulletin hispanique, 40: 337-423, 1938.

(307) FOURQUET. La chanson chevaleresque allemande avant les influences provençales. In: RENSON, Jean & TYSSENS, Madeleine, eds. MÉLANGES de linguistique romane et de philologie médiévale offerts à M. MAURICE DELBOUILLE. Gembloux, 1964. V. 2, p. 155-164.

(308) DUMITRESCU, Maria. Les premiers troubadours connus et les origines de la poésie provençale. Cahiers de civilisation médiévale, 9: 345-354, 1966.

(309) VISCARDI, op. cit. acima, nota 12, cap. XIII.

(310) VISCARDI, op. cit. acima nota 12, p.460.

"No tocante a nós, aconteceu de serem cometidos muitos sacrilégios entre o povo numa cerimônia em que Deus é ofendido e se levam as pessoas à morte pelo pecado: pessoas acordadas a noite inteira, embriagadas, a dizer gracejos grosseiros ou a cantar para seus deuses malditos na Páscoa, no Natal do Senhor e nas festas para os mortos, ou ainda chegando o dia, dançarinas a andar pelas aldeias..."

(311) ibidem, p.461.

"Tomamos conhecimento de algumas pessoas que celebram o dia 1º de janeiro para redescoberta do enorme erro antigo".

(312) ibidem, p.461.

"Não é permitido que se pratiquem as tristes comemorações do início do mês pelas pessoas ociosas, nem que se cinjam as casas com o loureiro (árvore consagrada a Apolo) ou com folhagens frescas de árvores"...

(313) ibidem, p. 461.

"Do mesmo modo que afirmam ter visto, todos os anos, na cidade de Roma, junto à igreja de São Pedro, de dia ou de noite, no dia 1º de janeiro, dançarinos e cantores a se deslocar pelas praças e, entre aclamações, segundo o costume dos pagãos, a entoar cantos sacrílegos, enchendo, em tal dia, as mesas de iguarias, que se seguiam ao sacrifício..."

(314) ibidem, p.462

(315) ibidem, p.462.

"...se alguém fizer bailados diante das igrejas dos santos..."

"Deve ser totalmente erradicado do costume ímpio que o vulgo se habituou a praticar, a saber, o de pessoas, que assistem aos ofícios divinos, estarem atentas a cantos vergonhosos e à dança".

"Opomo-nos totalmente a se praticar vergonhosamente o canto imoderado junto à igreja, o qual deve ser evitado em toda parte".

"Quando o povo vier à igreja de Deus, não pratique outra coisa que não seja o serviço devido a Ele. Não use, então, aquelas danças, bailados, cantos torpes e exagerados e aqueles divertimentos diabólicos, nem nas praças, nem nas casas, nem em nenhum lugar, porque essas coisas são originárias do costume dos pagãos."

(316) Sobre os jograis, é, ainda, muito útil o livro de Edmond Faral, Les jongleurs en France au Moyen, de que existe uma edição anastática feita em Nova York em 1970.

(317) VISCARDI, op. cit. acima nota 12, p. 465.

"...na realidade concreta, fora de qualquer abstração, a criação artística é fato que deriva da atividade consciente do poeta ... os jograis, poetas do povo e intérpretes da alma popular, constituem-se, de fato, como inteiramente estranhos ao mundo da escola e da literatura latina."

(318) ibidem, p. 470 e segs.

(319) ibidem, p. 470 e 471.

"MIMUS se interpreta geralmente, de acordo com os glossários, como aquele que representa, mas, em um glossário de um código de S. Domingo de Silos, do Século XI, se encontra a explicação seguinte: mimi - jograis, em língua grega.

Para HISTRIO, os glossários dão: prestidigitador, mimico. Thymelicus, ator que conta histórias com movimentos corporais. (Junto a isso aparece a seguinte glosa: historicus, pantomimus - autor de pantomimas; scenicus vel saltator - ator que conta histórias com movimentos corporais, acrobata; saltator - dançarino acrobata).

Para THYMELICI: mímicos jograis ou aqueles que divertem durante o espetáculo.

Para SCURRA: aquele que faz ou diz coisas ridículas, impostor sutil (piadista), impostor público, pessoa que diz tolices; e para SCURRILITAS: brincadeira indecente, baixaria, papagaiada, bobajada.

Para CHORAULES: mímico, jogral cantor, chefe da roda de histriões; e em uma glosa se faz menção à zombaria grosseira dos atores e, em outras, LUDIO se traduz como histrio e como mimus.

(320) ibidem, p. 476.

(321) ibidem, p. 474-475.

(322) CASTRO, op. cit. acima, nota 10, p. 161-162. A paráfrase apresentado pela autora é a seguinte:

1 - Salve o bispo equilibrado, o melhor que jamais nasceu,
que, desde a hora em que foi sagrado, ilumina inteiramente o clero.
Nem Fisolaco, nem Cato foram tão dotados de virtudes.
O Papa o tem ao lado direito, em sua mais íntima confiança.
5 - Seu gentil bispado tem crescido muito bem e melhorado.
O Apóstolo de Roma sagrou-o em Latrão.
São Bento e São Germano destinaram-no ser soberano
de todo o reino cristão. No entanto, chega ele até nós vindo de Lornano,
da paróquia de Viano! Este não foi jamais um vilão!
10 - Desde o tempo em que o mundo era pagão, não conheco pessoa tão nobre!
Se ele me dá um cavalo balçano, eu o mostrarei ao bom G ... ano,
o bispo volterrano, cuja mão beijo em obediência e exalto.
O bispo Grimaldesco tem cem cavaleiros à volta.
Nunca lhe são demais; antes o agradam e festejam.
15 - Não posso apresentar rei, seja italiano, seja alemão, seja lombardo ou francês
melhor do que ele, tão cheio de bondade é!
Vou daqui até ele e dou-lhe a impressão de cavalgar um poledro corredor.
Os salteadores rondam as estradas e eu tremo de medo.
Respondeu e disse em latim: "Arreia um para ti e vai anunciar isso."

20 - Não me canso de exaltá-lo, enquanto neste mundo vivo como jogral.

(323) DIEZ, Friedrich. Grammaire des langues romanes, Paris, 1874, tomo I, p. 109

(324) BRUNOT, Ferdinand. Histoire de la langue française. Paris, 1933, tomo I, p. 138.

(325) CICERO, Fam. VII, V.

(326) VARRO, De lingua latina, edição de G. Goetz, 1910, p. 229.

(327) OVIDIO, Ex Ponto, I, II, 59.

(328) VELLEIUS PATERCULUS, Tiberius. II, 110, 5.

(329) SANTO HILÁRIO DE POITIERS, Tractatus super Psalmos, ed. de A. Zingerle em Corpus Scriptorum Ecclesiasticorum Latinorum, vol. XXII, 1891, p. 13, l. 13.

(330) DIOMEDES, edição de Heinrich Keil (edit.), Grammatici latini, Leipzig, 1855-80 e Hildesheim, 1961, tomo I, p. 453.

(331) idem, ibidem, p.439.

(332) SERVIUS, ibidem, tomo IV, p. 444.

(333) CONSENTIUS, gramático gaulês, ibidem, tomo V, p. 394.

(334) SIDONIUS APOLLINARIS, Monumenta Germaniae Historica, tomo VIII, p. 293.

(335) CASSIODORO, Monumenta Germaniae Historica, tomo XII, p. 242.

(336) ALDHELM, De laude virginitatis, 2. 144.

(337) MIGNE, Patrologia latina, tomo 89, coluna 929 B; trata-se de carta do papa Zacarias a Bonifácio.

(338) AVALLE, D'Arco Ailvio. Protostoria delle lingue romanze. Torino, Giappichelli, 1965, p. 8.

(339) MOHRMANN, Christine. Latin vulgaire, latin des chrétiens, latin médiéval. Paris, Klincksieck, 1955, p. 2-3.

"Foi a cultura monástica anglo-saxãnica e a antiga tradição clássica das escolas italianas que constitiuram as duas fontes a que Carlos Magno recorreu quando quis dar a seu imperio um ensino que fosse capaz de continuar a tradição literária de Roma".

(340) MEILLET, Antoine. Esquisse d'une histoire de la langue latine. Paris, Hachette, 1928, p. 279.

"O abaixamento progressivo da cultura antiga deixou que as tendências do latim chegassem a seu resultado natural: o falar corrente se afastou cada vez mais da forma fixada pela escrita; tomou um caráter sempre mais popular.

"A dissolução do Império permitiu a multiplicação das tendências próprias dos falares de cada província; com o cuidado pela correção, se enfraqueceu o sentimento da unidade latina.

"Mas as mudanças não atingiram plenamente senão a língua falada. Nem durante os últimos séculos do Império, nem durante as grandes invasões, as pessoas escreviam voluntariamente como se falava. Para escrever era preciso que se tivesse freqüentado uma escola. Por mais baixo que tivesse caído o ensino, os mestrea jamais ignoravam que deviam permanecer fiéis à tradição do latim escrito. E quem quer que tenha pretendido escrever, pelo menos tentou fazê-lo em latim tradicional.

"Nos séculos VI e VII, as dificuldades eram de tal ordem que até um bispo culto, como Gregório de Tours, escrevia num latim fortemente alterado pela língua corrente. Mas, era o latim tradicional que se buscava empregar por não se saber fazê-lo melhor".

(341) MOHRMANN, op. cit. acima, nota 339, p.2.

(342) MONUMENTA GERMANIAE HISTORICA, Legum Sectio, v. B, segunda parte, p. 288.

"Foi considerado unanimemente que todo bispo se esforce em traduzir claramente as homilias na língua romana rústica ou na tedesca, para que todos possam entender o que é dito".

(343) BURNS, Edward McNall. História da civilização ocidental. 2ª ed. Rio de Janeiro, Globo, 1952, p. 298-299.

(344) BURNS, op. cit. acima, nota 343, p. 378.

(345) CURTIUS, Ernest Robert. Literatura européia e Idade Média latina. Brasília, Instituto Nacional do Livro, 1979, p. 50.

(346) MOHRMANN; op. cit. acima, nota 339, p.4.

"... se o autor põe à luz sobretudo a continuidade literária, todavia a continuidade lingüística me parece ser ainda mais profunda e mais importante".

(347) ibidem, p. 54.

"venerável peça de museu, guardada pelos conservadores devotados, que são os humanistas e os filósofos clássicos."

(348) ibidem, p. 53.

(349) THUROT, Charles. Notices et extraits des diverrs manuscrits latins pour servir à l'histoire des doctrines grammaticalles au Moyen ßge. Paris, Imprimerie Impériale, 1868, p.500.

"...consideravam o latim como uma língua viva; e ele era efetivamente a língua da sociedade religiosa, a língua eclesiástica, como as línguas vulgares eram as línguas leigas".

(350) MOHRMANN, op. cit. acima, nota 339, p. 37-38.

(351) THUROT, op. cit. acima, nota 349, p. 500-501.

(352) CURTIUS, op. cit. acima, nota 345, p. 65.

(353) ibidem, p. 72.

(354) ibidem , p. 73.

(355) MOHRMANN, op. cit. acima nota 339, p. 12.

(356) RICHÉ, Pierre. Recherches sur l'instruction des laics du IXa au XIIe siécle. Cahiers de civilisation médiévale, Université de Poitiers, 5: 175, 1962.

(357) VISCARDI, op. cit. acima, nota 12, p. 8.

"Homens que são absolutamente independentes do mundo monástico e parecem, ao contrário, estranhos ao mundo clerical: são homens que exercem, na alta Idade Média, profissões que nós chamamos liberais; e são, particularmente, gramáticos e retóricos, que exercem privadamente, nas cidades, a profissão de mestres das "artes", da medicina, do direito, em total independência das orientações e dos métodos das escolas elesiásticas".

(358) ibidem, p. 8.

"do patrimõnio ideal do qual resulta a cultura clássica".

(359) TORRES, Manuel. La vida privada en los tres primeros siglos de la Edad Media. In: MENENDEZ PIDAL, Ramón, org. Historia de España - España visigoda. Madrid, Espasa-Calpe, t.3, p. 343.

(360) MOHRMANN, op. cit acima, nota 339, p. 13.

(361) BEDE. A history of the English Church and people. Edinburgh, Penguin Books, 1965, p. 330.

(362) BEDE, op. cit. acima, nota 361, p. 332.

(363) BATTELLI, Giulio. Lezioni di paleografia. 3. ed. Città del Vaticano, Pontificia Scuola Vaticana di Paleografia e Diplomatica, 1949, p. 186-193.

(364) THUROT, op. cit. acima nota 349, p. 4-26.

(365) PAGUÉ, Enrique. Historia de la Iglesia; La Iglesia y el imperio carolingeo. In: PERICOT GARCIA, Luis et alii. El hombre a través del tiempo. Barcelona, Labor, 1958, p. 664 (Vol. V, 1a parte, da EnciclopEdia Labor).

(366) RICHÉ, op. cit. acima, nota 330, p. 175.

(367) ibidem, p. 177.

(368) ibidem, p. 177.

(369) VISCARDI, op. cit. acima, nota 12, p. 396.

"Gramática é a ciência do bem falar, origem e fundamento das artes liberais."

(370) ibidem, p. 397.

"Gramática é a ciência da interpretação de poetas e historiadores e o conjunto de regras do falar e escrever bem."

(371) ibidem, p. 399.

"A gramática toda, entretanto, consiste principalmente no entendimento, com exata explicação, de poetas, escritores e historiadores e no conjunto de regras para falar e escrever bem."

(372) LEFF, Gordon. Medieval thought. Aylesbury, Great Britain, Penguin Books, 1958, p. 87.

"Apesar de não ter tido o império carolíngeo capacidade de durar, suas realizações educacionais estiveram longe de perder-se; na verdade, foram o ponto de partida para a renovação do saber no século XI. Em primeiro lugar, tornaram as sete artes liberais o curriculum básico e em relação a elas se elegeram os principais livros de estudo. Durante os séculos seguintes, essas matérias constituiram os fundamentos dos cursos universitários, muito embora seu conteúdo tenha mudado com a descoberta de Aristóteles. Em segundo lugar, a organização de todo o ensino em escolas de mosteiros e catedrais manteve a continuidade do saber até que as universidades se tornaram os centros principais: durante os séculos IX e X, as escolas monásticas permaneceram como os principais lugares de ensino e em centros como Tours, Fulda, Reichenau, com homens como Rabano Mauro e Walafrido Strabo, que já mencionamos. Com o advento do século XI, todavia, as escolas das catedrasis assumiram a liderança dando lugar, por sua vez às universidades. Em terceiro lugar, uma das realizações mais desatacadas de Alcuino foi sua ênfase sobre a necessidade de bem escrever e de bem copiar manuais."

(373) VISCARDI, op. cit. acima, nota 12, p. 385-386.

(374) ARIAS Y ARIAS, Ricardo. La poesia de los goliardos. Madrid, Gredos, 1970, p. 7.

(375) ARIAS Y ARIAS, op. cit. acima, nota 374, p. 8.

(376) ibidem, p. 11.

(377) ibidem, p. 96.

O poema faz parte da coleção de canções amorosas do mosteiro de Ripoll e é do séc. XI. Nele se diz que o poeta, no mês de abril, estava a caçar em um bosque quando, à tarde, ao retornar a casa, pôs-se a procurar os cães, mas acabou encontrando pela primeira vez o amor que o prendeu em fortes ardores. O tema é recorrente e há alguns anos, por exemplo, em um Festival da Canção, no Rio de Janeiro, foi utilizado pelos compositores Antonio Adolfo e Tibério Gaspar na canção Juliana.

"Andando a buscá-los /aos cães durante uma caçada no bosque/, apareceu-me o filho de Vênus /Cupido/ apoiado em seu arco, como um ser divino, e disse: `Aonde vais jovem formoso'?

"As aljavas de Diana estão outra vez rasgadas; recorrerá então ao arco de Cupido: te digo, pois, que deixes teu trabalho".

(378) ibidem, p.20.

"A fome e a sede, dupla fera, nos perseguem
E com sua boca dilacerante nos ferem.

Não temos, pra nos alegrar, a opulência;
Antes nos aflige a horrível indigência.

Não nos presenteiam com os doces dons de Lieo
E se aparta de nós até o suave hidromel.

Não nos alegra o prato o bom vinho mosela
Nem a loura Ceres seus favores revela.

A cerveja frouxa, fera cruel, nos mata.
Bom Cristo! Senhor! Peço que por nós te batas.

Não se pode provar nem tragar tal bebida.
Está do doce fruto de Ceres fugida.

Não vem do Mosela, nem do rio Jordão,
Gerou-a a rude torrente do Cedron.

Todas as artes da mente sábia ofusca.
Tira a alegria, mas a tristeza busca.

Quer nos enganar com uma cor como a de Ceres:
ó deuses! Que esta fera logo se desterre.

Fazei tal monstro no Leteo submergir
ou então nas ondas do Estige se encobrir,

Onde, por seus cruéis agravos pagar possa.
Ganhe o que bem merece a causa da dor nossa!

Por que perder tempo com palavras, com queixas?
ó Padre! Aniquila esta que não nos deixa.

Dá-nos remédio, pastor, contra este esbulho,
Sobretudo para este teu servo Sedúlio.

O bom bispo sorriu quando estes versos leu
aos rogos dos sábios gentilmente acedeu."

(379) ibidem, p.92.

"Ali está Prisciano dando golpes;
Aristóteles açoitando os ventos;
Túlio /Marco Tullio Cícero/ afagando o áspero
com a força de suas palavras;
E Ptolomeu, que se eleva aos astros".

(380) ibidem, p.90.

"Passado já o signo de touro,
quando a lâmpada ardente de Apolo
manda sua flecha de luz ardente,
fui ao interior ensombrado do bosque
em busca da brisa do suave Favonio".

(381) ibidem, p.154.

"Outrora floresciam os estudos, já é algo bem precoce;
hoje tudo é ociosidade. levados pela má vontade,
Antes florescia a ciência se aborrecem com o saber.
hoje valem as diversões. Mas nos séculos passados,
5 A maldade nas crianças 10 mal se permitia aos alunos,

até chegarem aos noventa, Os broncos atraem os ignorantes;
descansarem dos estudos. pássaros implumes se põem a voar;
Hoje na idade de dez sendo pequenos asnos, põem-se a tocar;
se livram das obrigações pulam em aula como bezerros
15 e já se consideram sábios. 20 e perturbam os arautos com o cabo do arado.

De nada valem nas tabernas São Benedito, na vindima,
os ensinamentos de São Gregório; são apenas cochichados
a severidade de São Jerõnimo e vão em seguida ao mercado.
se curva ante a ganância. A meditação de Maria aborrece,
25 Santo Agostinho, na colheita, 30 A ação de Marta também.

O ventre de Lia é estéril, está presa na lascívia.
Sem brilho, os olhos de Raquel. O que antes era mal
A severidade de Catão hoje está entronizado;
está nos prostíbulos Ao quente se chama frio
35 e a castidade de Lucrécia 40 e ao úmido, árido.

A virtude virou vício limpe e descarregue seu coração,
e o trabalho, ócio. para não ter de dizer: "Senhor!",
Resumindo tudo agora: ao fim do caminho,
tudo está fora do caminho. pois diante então do Juiz
45 Reflita bem sobre isso o prudente, 50 não mais terá apelação".

(382) CURTIUS, op. cit. acima, nota 345, p. 98-99.

(383) SCHELUDKO, op. cit. acima, nota 296, p. 36.

"De fato, observando a poesia provençal, parece-me que é mais adequado reconhecer como sua mãe a poesia árabe e não a grega ou a latina. É verdade que nas composições dos poetas provençais não se descobrem vestígios da erudição árabe, nem há sinal algum de se terem formado os poetas provençais a partir das poesias árabes, mas, não se pode perceber também que fossem mais versados nas obras de gregos e latinos, nem se vê uso algum das fábulas gregas e da antiga mitologia".

(384) ibidem, p.40.

(385) PAPON, Jean-Pierre. Histoire génerale de Provence. Paris, Chez Moutard, 1778, v.2, p. 436.

(386) SCHLEGEL, August Wilhelm von. Observations sur la langue et la littérature provençales. Paris, 1818, p. 20.

(387) DIEZ, Friedrich. Die poesie der troubadours, 2. ed. Leipzig, 1883, p. 110.

(388) FARRAL, Edmond. Les arts poétiques du XIIe et du XIIIe siècle. Paris, 1924. Há reprodução anastática desta obra, publicada em Paris, em 1964.

(389) SCHRÖTTER, W. Ovid und die troubadours. Halle, 1908.

(390) SCHELUDKO, D. Beiträge zur Entstehungs-geschichte der altprovenzalischen Lyrik-Klassisch-lateinische Theorie. Archivum Romanicum, 11 (3): 273-312.

(391) BEZZOLA, Reto R. Les origines et la formation de la littérature courtoise en Occident. Paris, 1958, 1958-1967. 3v.

(392) THUROT, op. cit. acima, nota 349, p. 472.

(393) RIQUER, op. cit. acima, nota 80. 3v.

(394) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 76.

"Sobre o facili ornatu /uso de determinações mais simples, mais fáceis, trobar leu/ por meio de determinações de verbos, adjetivos e substantivos: Se quisermos, igualmente, dizer as coisas de maneira mais suave e clara, devemos determinar os nomes e os verbos; Arte do ornatu difficili /uso de figuras para a perfeita expressão artística/: se o assunto original foi fraco, podemos dar-lhe outra aparência, séria e original, de maneira nova usando, a saber: a coisa possuída ao invés do possuidor; o imanente no lugar do transcendente; o conseqüente no lugar do antecedente; a parte ao invés do todo e vice-versa; a causa no lugar do efeito; o continente pelo conteúdo: o gênero pela espécie e vice-versa."

(395) ibidem, p.20.

"segundo propriedade do latim, para quem o entende..., todos os trovadores são chamados de inventores".

(396) SPINA, Segismundo. Manual de versificação românica medieval. Rio de Janeiro, Gernasa, 1971, p.15.

(397) CURTIUS; op. cit. acima, nota 345, p.78.

(398) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 194.

(399) ibidem, p. 291.

"Bem sei que o Amor é tão grande
que bem me pode perdoar se pequei
por amar demais e me portei como
Dédalo que disse que era Jesus
e quis voar para o céu com vaidade,
mas Deus lhe humilhou o orgulho e a soberba."

(400) ibidem, p. 298.

"E por isso quero suportar a dor,
pois com o suportar se compensam muitos gozos,
se humilham muitos orgulhos
e se vendem os maledicentes; porque,
como disse Ovídio, no livro que não mente,
é suportando que se obtém a graça do amor,
são perdoados muitos erros
e tornados felizes muitos enamorados".

(401) ibidem, p. 500.

"A necessidade me circunda e rodeia
pois sei mais que Catão.
Pela cauda eu a freio,
se ninguém mais tolo me detém,
pois no princípio me fiz ser sensato
e tal sensatez agora me faz endoidar."

(402) ibidem, p. 582.

"Hei de servi-la doravante, seja como for,
ser-lhe-ei mais leal e sincero
que Helena o foi com o irmão de Heitor,
e, se lhe agradar, não menospreze meu serviço,
pois Hero jamais amou tanto a Leandro."

(403) ibidem, p. 655.

"Julio César atingiu seu poder
no mundo inteiro, por seu esforço,
não porque fosse senhor ou rei da Irlanda,
ou conde de Anjou, ou duque da Normandia;
pois foi homem humilde, segundo ouvi dizer,
e também porque foi generoso, franco e nobre
fazendo aumentar seus méritos tanto quanto podia".

(404) ibidem, p. 658.

"É mais branca que Helena,
mais formosa que a flor que nasce,
é de cortesia plena,
de dentes brancos para palavras sinceras,
de coração franco, sem vilania,
de tez fresca e de louros cabelos".

(405) ibidem, p. 668.

Nem Rodocesta, nem Biblis,
Brancaflor, Semíramis,
Tisbe, Leda, Helena,
Antígona, Ismênia,
nem a bela Isolda, a de louros cabelos,
tiveram a metade do gozo
ou da alegria com seus amigos,
como eu convosco, creio eu.

(406) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 146.

"Nunca nenhum homem amou tanto em nenhum lugar
e a nenhuma dama quanto eu amo;
porque eu a acho sem par,
meus pensamentos estão com ela
e eu a amo, seguindo seu conselho,
mais do que Píramo amou Tisbe..."

(407) VISCARDI, op. cit. acima, nota 12, p. 542-544.

(408) SCHELUDKO, op. cit. acima, nota 390, passim.

(409) KÖHLER, Erich. Zur Struktur der altprovenzalischen Kanzone (texto em francês). Cahiers de Civilisation Médiévale, 7: 40-51, 1964.

(410) BEC, Pierre. Genres et registres dans la lyrique médiévale des XIIe et XIIIe siècles; essai de classement typologique. Revue de linguistique romane, 38: 26-39, 1974.

(411) ARIAS Y ARIAS, op. cit. acima, nota 374, p.100. A cantiga é do trovador Rigaut de Berbezilh e seu primeiro verso é Atressi con Persavals.

"Estrela clara
das donzelas,
esplendor e flor de tudo,
rosa primaveril
mais nobre que o lírio;
.........
Tua fronte e tua garganta
não têm rugas,
teu rosto é angelical;
por criatura celeste,
mais do que terrena,
os homens te tomam."

(412) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 295.

"Como a estrela matutina,
que não tem par,
é sem par vosso rico mérito,
os olhos amorosos e claros,
francos sem enganos,
o corpo formoso, gozoso e liso,
chave de todas as belezas.
Melhor que dama, e de alta condição,
que me impede
de pensar entristecido:
disso não se pode afastar nem fugir."

(413) Para o provençal Raimbaut, a idade legal de homens e mulheres era, respectivamente, a de 14 e 12 anos, como se comprova no contrato de casamento feito, em 1193, entre Alfonso I de Aragão e Guilherme II de Forcalquier relativamente ao filho daquele, Alfonso, e à neta deste, Garsende. Cf. TOURNADRE, op. cit. acima, nota 180, p. 96.

(414) SCHULTZ-GORA, op cit. acima, nota 137,p. 152.

(415) ARIAS Y ARIAS, op. cit. acima, nota 374, p. 190-192.

"A terra rosada,
os prados cheios de flores
voltam à vida.
As sombras se alargam
e o bosque volta a ser o que era.
A natureza desperta o amor
em todas as criaturas
e no rosto alegre,
cheio de beleza,
ressurge o ardor.
Venus desperta seus súditos
e o néctar da natureza flui;
o ardor do desejo
afogueia os amantes.

Oh! que hora tão ditosa!
em que meu amor
recobra a vida,
tão formosa,
tão amena,
tão festiva!
Que cabelos tão louros!
Nela, nada de feio
encontrei;
no amor
não tem igual.
Com sua fronte coroada,
suas negras sobrancelhas
de extremos recurvados,
à maneira de Iris!"

(416) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 415-416. Trata-se de composição de Bernart de Ventadorn.

"Quando aparece a flor na folhagem verde
e vejo o tempo claro e sereno
e o doce canto dos pássaros pelo bosque,
me adoça e reanima o coração,
pois os pássaros cantam para seu uso;
eu, que tenho mais alegria em meu coração,
devo cantar, porque todos os meus dias
são alegria e canto, e não penso em mais nada.
Aquela que mais quero no mundo,
e mais amo de coração e de fé,
ouve minhas palavras com alegria e as acolhe,
escuta e aceita meus pedidos.
E se por bem amar se morre,
eu disso morrerei, pois dentro de meu coração
dedico a ela amor tão sincero e natural
que diante de mim são falsos os mais leais."

(417) Veja-se, a propósito, o comentário a esta canção em RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 770.

(418) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 70.

"Sem dúvida influiu nele /debate/ o conflictus latino-medieval muito em evidência desde a época carolíngea; todavia, a arte dos jograis acabou por dar-lhe espontaneidade e técnica ao mesmo tempo que os costumes corteses lhe davam a tendência à inventividade e sutilezas".

(419) CURTIUS, op. cit. acima, nota 345, p. 99.

(420) ibidem, p. 99-100.

(421) ibidem, p. 100.

(422) ibidem, p. 100.

(423) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 631.

"Eu sou Arnaut, que abraça o vento,
caça a lebre com o boi
e nada contra a corrente."

(424) ibidem, p. 631.

"Amor, gozo, lugar e tempo
me fazem recobrar o juízo
daquela loucura do ano passado
quando caçava a lebre com o boi..."

(425) ibidem, p. 631.

"Tanto sei que faço parar o curso da corrente.
E meu boi é mais ligeiro que a lebre."

(426) ibidem, p. 1042.

"Com Arnaut Daniel são sete,
que em sua vida não cantou
senão umas tolas palavras que não se entendem.

Desde que caçou a lebre com o boi
e nadou contra a corrente,
seu cantar não vale um tostão".

(427) ibidem, p. 616. Trata-se de um trecho da Vida de Arnaut Daniel transcrito por Riquer segundo o texto de Boutière-Schutz-Cluzel.

(428) ibidem, p. 611, onde se faz referência a G. Contini, Préhistoire de l'aura de Pétrarque (In: ____, Varianti e altra linguistica, Turim, 1970, p. 193-199).

(429) ibidem, p. 628.

(430) Leitura nossa:

"Agora, ao ver verdejar
jardins e bosques e prados,
quero um "descort" começar
sobre um amor desesperado;
devia u'a mulher me amar,
mas tem o afeto mudado;
faço, assim, desacordar
línguas, tons, versos rimados."

(Esta tradução é uma variação da que fizemos no encerramento da Parte II.)

(431) GOURMONT, Remy de. Le latin mystique. Paris, Mercure de France, 1930, p. 380.
"Estava a Mãe dolorosa Tradução do grande Odorico Mendes:
Junto à cruz, e lacrimosa, Estava a Mãe dolorosa
Com seu filho que esvaía. Ao pé da cruz lacrimosa
Sua alma tão gemente Olhando o filho pendente:
Contristada e dolente N'alma, que triste gemia
Por lança de dor se abria." De amargura e de agonia,
Espada a fere pungente,

(432) SCHELUDKO, Dmitri. Beiträge zur Entstehungsgeschichte der altprovenzalischen Lyrik. Archivum Romanicum, 15 (2): 137-206. Mais propriamente sobre esses temas, devem ser consultadas as páginas 193 a 206. Do mesmo investigador, deve-se ver, sobre o mesmo assunto, o artigo "Religiöse Elemente im weltlichen Liebeslied der Trobadors". Está na Zeitschrift für französische sprache und Literatur, vol. 59, p. 202-421.

(433) GENNRICH, Friedrich. Zur Ursprungsfrage des Minnesangs. Deutsche Vierteljahrsschrift, 7: 187-228, 1929.

(434) SCHELUDKO, op. cit. acima, nota 432, passim.

(435) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, p. 97.

"Composta por homens cristãos - não se sabe de nenhum trovador judeu e, muito menos, muçulmano - e para ser escutada por cristãos, a poesia trovadoresca, essencialmente profana em seus gêneros principais, pressupe uma formação religiosa. Nascidos em uma época em que a educação literária estava, quase que exclusivamente, em poder da Igreja e das autoridades eclesiásticas, os primeiros textos que nossos trovadores tiveram nas mãos foram, sem dúvida, catecismos de formação moral cristã e de elementos da fé, textos bíblicos e seus comentários, sendo muito provável que alguns se entregassem à leitura de obras de ascética e de mística."

(436) BECK, Jean, La musique des troubadours. Paris, Henri Laurens, 1910. A edição alemã (Die Melodien der Troubadours) é de Strasburgo, 1908.

(437) LAPA, Manuel Rodrigues. Lições de literatura portuguesa - época medieval. Coimbra, Coimbra Editora, 1952, p. 80.

(438) LAPA, op. cit. acima, nota 437, p. 82.

(439) Entre os principais trabalhos a respeito da seqüência e do descordo devemos citar:

a) APPEL, C. Vom Descort. Zeitschrift für Romanische Philologie, 11: 212-230.

b) SPANKE, Hans. Über das Fortleben der Sequenzenform in den romanischen Sprachen. Zeitschrift für Romanische Philologie, 51: 309-334.

c) LECLERCQ, H. Séquence. In: CABROL, Fernand & LECLERCQ, Henri. Dictionnaire d'archéologie chrétienne et de liturgie, s.v.

d) BAUM, Richard. "Le descort ou l'anti-chanson", obra já citada na nota 34, p. 75-98.

e) MAILLARD, Jean. Problèmes musicaux et littéraires du descort. In: MÉLANGES de linguistique et de littérature romanes dédiées à la mémoire d'István Frank. Sarrebruck, 1957, p. 388-409.

f) KÖHLER, Erich. Deliberations on a theory of the genre of the Old Provençal Descort. In: RIMANELLI, G. & KENNETH, J. A. eds. Italian literature: Roots and branches. ESSAYS in honor of Thomas Goddard Bergin. New Haven, 1976, p. 1-13.

(440) JEANROY, Alfred. La poésie lyrique des troubadours. Paris, Didier, 1934, t.2, p.330.

(441) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 265. Trata-se da canção Las frevols venson lo plus fort (Os fracos vencem o homem mais forte).

"Os fortes são vencidos pelos fracos,
e você pode extrair doçura da amargura,
misturar o quente com o frio,
e destruir qualquer coisa com um nada;
os mortos têm grande força,
os ricos se arruinam com as honrarias
que se dão, e isso é o que deve ser".

(442) ibidem, p. 153-154.

"Sou sábio e tolo, submisso e orgulhoso,
ambicioso e generoso, covarde e atrevido,
feliz e triste de acordo com a ocasião;
sei ser agradável e tedioso, odiado
e querido, vilão e cortês, mau e bom;
conheço o mal e o bem, e tenho de tudo
que é bom, o saber e o sentir;
quando falho, faço-o por não poder."

(443) BAUM, op. cit. acima, nota 34, p. 97.

"Ao lado da canção regular, que segue o princípio da regularidade, concebiam eles a canção irregular, que seue o da irregularidade. Se uma categoria é constituída por variações da forma estrófica, a outra é constituída por variações de uma forma que ostenta a irregularidade. A oposição das categorias regular/irregular é o princípio gerador do descordo. Esta oposição pode se manifestar em um plano ou em vários de uma vez: no da forma, no da música e no do conteúdo.

(444) Para a cantiga de Joahan Soares de Pávia, consultar TAVANI, Giuseppe. A poesía lírica galego-portuguesa. Vigo, 1986, p. 11.

(445) WALLENSKöLD, Axel. Chansons de Conon de Béthune, trouveur artésien de la fin du XIIe siècle. Helsingfors, 1981, p. 6, 173 e 234-235.

(446) BRUGNOLO, Furio. Plurilinguismo e lirica medievale. Roma, 1983, p. 67-100.

(447) BELLART, G. et alii. PAROISSES ET COMMUNES DE FRANCE. Dictionnaire d'histoire administrative et démographique. Pas-de-Calais. Paris, 1975, p. 344-345.

(448) ibidem, p. 13-14.

(449) POTTHAST, Augustus. Regesta pontificum romanorum. Graz, 1957, p. 99.

(450) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 235. Aparece, igualmente, na composição Conseil don a l'emperador, feita em junho ou julho de 1204 por Raimbaut em Constantinopla.

(451) ibidem, p. 225.

(452) WALLENSKöLD, op. cit., nota 445, p. 174 e 239.

(453) HEFELE, Karl Joseph. Histoire des conciles. Paris, Letouzey et Ané, 1913, t. V, deuxième partie, p. 1320.

(454) SCHULTZ-GORA, op. cit. acima, nota 137, p. 154 e segs.

(455) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 218.

"Deus se deixou vender para nos salvar,
sofreu a morte e aceitou a paixão;
por nossa causa, o judeu traidor o ultrajou,
foi açoitado e preso ao poste,
obrigado a erguer-se da lama, cruz ao ombro,
amarrado com correias, tudo por nós,
e coroado de espinhos na cruz;
assim, tem coração duro todo aquele
que não se aflige com o que nos fazem os turcos,
que querem continuar com a terra
onde Deus quis morrer e ser enterrado;
então, só nos resta fazer a grande guerra
e combater o grande combate."

(456) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 18-19.

(457) SCHULZE-BUSACKER, Elisabeth. French conceptions of Foreigners and Foreign Languages. Romance Philology, 41(1): 28, August 1987.

(458) OHLER, Norbert. I viaggi nel Medio Evo. Milano, Garzanti, 1988, p. 91-92.

(459) Esta situação foi tratada com detalhes por A. Throop em Speculum, 13: 379-412, 1938, no artigo Criticism of Papal Crusade Policy in Old French and Provençal.

(460) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 226.

"Pois ele e nós somos culpados por igual
pelo incêndio das igrejas e palácios;
por isso, clérigos e leigos são culpados.
Se êle não socorrer o Santo Sepulcro
e a conquista não prosseguir,
então será maior nossa culpa perante Deus,
e o perdão se tornará pecado.
Mas, se ele for liberal e bravo,
há de conduzir facilmente os exércitos
a Babilônia e ao Cairo."

(461) CASTRO, José Ariel. Afonso de Portugal, 11º grão-mestre da Ordem do Hospital de São João de Jerusalém, e o século XII português. In: CONGRESSO DA ASSOCIAÇãO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS, 3º Actas ... Coimbra, 1992. p. 819-858.

(462) RIQUER, op. cit. acima, nota 80, v.II, p. 851.

(463) LINSKILL, op. cit. acima. nota 75, p.310.

(464) DU CANGE, Charles Du Fresne, sieur. Glossarium mediae et infimae latinitatis. Paris, 1937. V. II, p. 495.

(465) VITERBO, Joaquim de Santa Rosa de. Elucidário. Porto, 1966. s.v. confissão.

(466) LINSKILL, op. cit.acima, nota 75, p. 302.

(467) SCHULTZ-GORA, op. cit. acima, nota 137, p. 30.

(468) CRESCINI, Vincenzo. La lettera epica di Rambaldo di Vaqueiras. Atti e Memorie della Reale Accademia di Scienze, Lettere ed Arti di Padova. Nuova Serie, 18:207-30, 1901-1902.

(469) LINSKILL, op. cit. acima, nota 75, p. 350.

(470) RAYNOUARD, François. Lexique romain. Paris, 1844, v.2, p.10.

(471) PREVOST. M. & D'AMAT, Roman. Dictionnaire de biographie française. Paris. 1948. Sub verbo Alphonse II, de Provence.

(472) Raimbaut de Vaqueiras, em I, 33, e II, 89 (edição de Linskil) fala de um Dragonet, filho mais velho de outro Dragonet, senhor de Mondragon. Não se trata do Dragonet deste documento, que é visconde de Embrun e natural de Rame, segundo Delaville Le Roulx, já citado acima, nota 204, t. II, p. 20-21, sem maiores esclarecimentos. Rame, segundo J. Roman (Repertoire archéologique du Département des Hautes-Alpes col. 74), era localidade à margem direita do Durance, ao norte de Champcella. Citada em Girat de Roussillon ao lado de Gap, Embrun e Briançon, sua importância vinha da mina de prata de seu território, já antes (1155) explorada, por consentimento do Imperador, pelo delfim Guigue V.

(473) Embrun, a partir de 1177, passou à suzerania do conde de Forcalquier, que a dividia, quase que só nominalmente com o arcebispo da cidade. Possuía uma abadia, a de Boscodon e comandava a rota para o col de Mont-Genèvre. Cf. Dictionnair d'Histoire et de Géographie Ecclésiastique, Paris, 1963, tomo 15, s. v.

(474) Guillaume II, de que já falamos.

(475) Abreviatura para Willelmo, Guillaume, Guilherme. Seu nome era Willelmus Brimellus. Cf. TOURNADRE, op. cit. acima, nota 180, doc. VI, p. 229, in fine. Este personagem é a mesma pessoa designada por Urbano III, em 8 de fevereiro de 1186 ou 1187 para, junto com o bispo de Apt, investigar várias questões entre a igreja de Maguelone, em Narbonne, e seu bispo. Cf. JAFFÉ, Philippus. Regesta Pontificum Romanorum. Graz, 1956, p. 514, no15788.

(476) A igreja-catedral de Sisteron, construída no século XI, ainda hoje se conserva. É a igreja de Notre-Dame.

(477) O prepósito era o primeiro prelado de um mosteiro, a quem se incumbia presidir todos os atos da comunidade jurisdicionada por aquela casa religiosa; ao abade incumbia o governo e a inspeção geral da mesma e de tudo que lhe era dependente. Cf. VITERBO, Joaquim de Santa Rosa. Elucidário. Porto, 1984, s. v.

(478) A função de sacrista - sacristão, em sentido geral - incluída no direito canônico, em 1234, como parte das Decretais de Gregório IX, guardava as características que lhe foi atribuída pelo Concílio de Toledo de 636, segundo as quais "ad eius curam pertinere custodiam sacrorum vasorum, vestimentorum ecclesiasticorum, seu totius thesauri ecclesiastici ...". (Corpus Iuris Canonici, edit. Iustus Henningius Boehmer, Halle, 1747, vol II, col. 139). Em conseqüência, passou a ter, com o tempo, a guarda de uma das três chaves do selo do mosteiro ou da igreja, necessário à autenticação dos documentos. Gap, conforme indica o Dictionnaire d'Histoire et de Géographie Ecclesiastique, Paris, 1963, tomo 15, colunas 119-1120, não possuia mosteiros, mas quatro priorados, entre os quais o de Ste. Colombe, dependente da Ordem de São João de Jerusalém desde, pelo menos, 1166, e integrante da Comanderia de S. Martin. Devido à natureza do documento, o G(uillaume) mencionado era religioso ligado aos hospitalários.

(479) Delaville Le Roulx, op. cit. acima, nota 204, t. II, p. 20-21, faz a seguinte nota: On appelle Béal, dans les Alpes, un canal. Peut-être s'agit-il du Grand-Béal, canal et torrent de la commune de Crottes (Hautes-Alpes, arr. et cant. de Embrun).

(480) Personagem não identificada.

(481) Scriptor era o escrevente, isto é, a pessoa que, na produção dos documentos cartoriais escrevia o que outra pessoa ditava; esta, no caso, deve ser o personagem anteriormente indicado, P. Fa ...

(482) DELAVILLE LE ROULX, op. cit. acima, nota 204 T. II, p. 20-21.

"Saibam todas as pessoas, presentes e futuras, que eu, Dragonet, visconde de Embrun, por autoridade e mandato do senhor Conde De Forcalquier, com a assistência e conselho de G(uillaume), prepósito de Sisteron e sacristão de Gap, dei à casa do Hospital de Jerusalém de Embrun os moinhos que se situam além do Durance, em Vachères, com tudo que lhes pertence, inclusive as pradarias, e gado respectivo, por onde correm as águas que movem esses moinhos e irrigam esses prados; e dei e concedi-lhes o direito para que seus animais pastem nas pastagens do canal do Béal. E para que esta doação tenham por firme, com a autoridade e mandato do senhor conde Guilherme, apus a este instrumento o seu selo e o meu. Passado na casa da senhora Guitborch no ano da encarnação do Senhor de 1203, sendo papa Inocêncio e arcebispo de Embrun Raimundo. Esta doação aceitaram P. Fa ... pelo ...o (prepósito?); Romanus Silvester; W. Turcopol ...; Johannes, escrevente. As testemunhas chamadas a confirmar são estas: Berardus, canônico; Bon ..., cavaleiro; Ugo Romano; Ugo de Verdun; P. Agni; L. Agni; P. Moreti; Pons de Montlaur; R. Andreas, cavaleiro; P. Lumbardi, juiz; Agni (?) de Bruges; W. Chabazoli; Guigo Maeuhz; Ugo Ariez; W. Ugo; Aalbertus e seu filho; P. W. Johannes; P. Montel; W. Rispauz; P. Busca; Jacobo, seu irmão; Mazoto; Andreas Morons; R. Anfos; Iterius; Jacobo Radulfo, e muitos outros.

(483) BRADER, David. Bonifaz von Monferrat bis zum Antritt der Kreuzfahrt (1202). Berlin, Verlag von E. Ebering, 1907, p. 220.

"Do vale do Stura saía o caminho que passava pelo Col della Maddalena, seguia ao longo do Ubaye e chegava ao vale do Durance para daí se tomar o caminho para o Delfinado e para a Provença."

(484) DELAVILLE LE ROULX, op. cit. acima, nota 204, T.II, p.20-21. R. Andreas, W. Ugo, W. Chabazoli e Pons de Montlaur aparecem em documentos de Forcalquier. As demais testemunhas, não. Cf. TOURNADRE, op. cit acima, nota 180, p.229, 232,237 e 243.

(485) DELAVILLE LE ROULX. op. cit. acima, nota 204, p. 42-43.

(486) GALLIA CHRISTIANA. t. III, col. 509.

(487) Cf. DELAVILLE LE ROULX, op. cit. acima, nota 204, doc nº 1197. p. 40-42.

(488) ibidem, doc. nº 1213, p. 47 e 48.

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134 - VOSSLER, Karl. The spirit of language. London, Kegan Paul, 1932. 247 p.



AUTOR

Ariel Castro, nascido em Laranjais, Estado do Rio de Janeiro, estudou com os maristas e no Colégio Pedro II. Graduou-se em Letras Anglo-Germânicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e fez estudos formais completos de pós-graduação, especialização, mestrado e doutorado, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em Heildelberg, foi pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt, a nível de pós-doutorado. De volta ao Brasil, tornou-se Livre-Docente em Filologia Românica da UFRJ e Professor Titular, por concurso, desta mesma Universidade após carreira acadêmica como professor colaborador, auxiliar, assistente e adjunto.

É autor de inúmeros trabalhos científicos em atas, miscelâneas e revistas, nacionais e internacionais. Tem sido conferencista em universidades da Alemanha e da Itália, foi estudante e leitor na Universidade de Heidelberg e Gastprofessor na Universidade de Mainz. Foi, ainda, professor-pesquisador convidado da cidade de Berlin e co-editor da revista Iberoromania.

Defendeu na Escola Superior de Guerra, onde foi estagiário, posição de nacionalismo moderado, com autonomia geopolítica para o Brasil, no hemisfério sul, em direção a uma ativa política de contraponto perante as nações hegemônicas lideradas pelos Estados Unidos.

Foi assessor-chefe, na Assembléia Nacional Constituinte, da Sub-comissão de Defesa do Estado e de Organização Eleitoral e Partidária. Por sugestão sua ao Relator, foi acolhida norma, que redigiu, de prevenção de tortura de presos políticos. Colaborou na criação e redação de outras normas. No Executivo, entre outras funções, foi secretário-executivo do Conselho Curador do FGTS, iniciando uma política de transparência na administração do Fundo, até então desconhecida da opinião pública.

Por requisição do Presidente da Câmara ao Ministro da Educação, está em exercício na Câmara dos Deputados, onde redige discursos, pareceres e projetos de lei, todos na linha da preservação do Estado e de seu patrimônio de significado histórico-político. Tabalhou em favor do sistema de governo presidencialista e tem adotado posição contra as reformas constitucionais que ferem direitos adquiridos pelo trabalhador e pelo funcionalismo. bem como contra as que buscam abrir indiscriminadamente as riquezas nacionais ao capital especulador, nacional ou estrangeiro.

Na Filologia, ocupa-se principalmente da Idade Média e do Brasil Colonial, sendo citado por diversos autores de renome.









Esta obra acabou de se imprimir em setembro de 1995 na residência do Autor, no Rio de Janeiro, por meio de impressora Hewlet Packard, modelo LaserJet IIP Plus. Foi encadernada na Gráfica Editora Nórdica, na mesma cidade, em outubro seguinte.

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