D. Afonso Henriques em sua época. Perguntas e respostas

     1)Em que fontes se baseia para falar de Châmoa Gomes? Que sabemos dela? Onde procurar mais?

     Resposta: Baseamo-nos principalmente na análise interna de passos dos livros de linhagens, editados pelos renomados José Mattoso e Joseph Piel, bem como no testamento religioso que ela deixou. Châmoa Gomes era famula Dei ou Deo vota (Cf.DURAND, Robert, Le Cartulaire Baio-Ferrado du Monastère de Grijó, Paris, 1971, p. XXXIX) e fez doação a seu mosteiro (Grijó), nesse testamento, de bens havidos de sua avó materna, também chamada Châmoa. O conhecimento das fontes leonesas publicadas por Julio GONZALEZ (Regesta de Fernando II. Madrid, 1943, p. 70, 112) no que dizem respeito a Teresa Fernandes, mulher do rei leonês e prima-irmã de Châmoa, como filha de seu aio, o famoso Fernão Peres de Trava, também ajuda. Maiores detalhes podem ser encontrados em nosso trabalho sobre Afonso de Portugal (Fernando Afonso), p. 835 e seguintes.

     2) Terá mesmo havido casamento entre ela e Dom Afonso Henriques? Que prova temos disso? E anulação houve?

     Resposta: Cremos que sim. A união entre Afonso Henriques e Châmoa Gomes, sobrinha de Fernão Peres de Trava, deve ter ocorrido à época do Concílio de Latrão de 1139, sem que o rei tivesse tomado conhecimento de suas decisões sobre as devotas, como era o caso de Châmoa. Só em 1143 é que isso aconteceu formalmente, tendo Afonso Henriques resistido à ordem papal de separar-se de sua mulher do que resultou ter sido o novo reino interditado pelo cardeal Guido, legado papal. O documento que melhor indica a existência de uma rainha em Portugal, antes de 1146, é o analisado e publicado por A. de Almeida Fernades em seus valiosos e lúcidos ensaios "Guimarães, 24 de junho de 1128" (Revista de Guimarães, 88:149) e A honra de Gouviães e sua estirpe, p. 96. Todo o episódio do cardeal de Roma, reconstituído por Antonio José Saraiva em seu A épica medieval portuguesa pode ser compreendido à luz dessa resistência. A boa fé de Afonso Henriques teria sido invocada em inícios do século XIII para permitir a legitimação de Afonso de Portugal (Fernando Afonso) por Inocêncio III e, em consequência, sua designação para o grão-mestrado da Ordem do Hospital. Parece-nos claro que Afonso Henriques já teria feito ver ao papa, antes de 1143, que queria ser reconhecido como rei. O pontífice se dispôs a tratar do assunto, mandando um legado, com as condições do reconhecimento, e autorizando um concílio, o de Valladolid, que pudesse ser realizado ao mesmo tempo que a conferência entre as partes envolvidas na independência de Portugal. Quem teria levado ao papa o desejo de Afonso Henriques e quem lhe dera conhecimento sobre a situação política e pessoal do rei? Certamente, dois correspondentes que se opunham, o arcebispo João Peculiar, de Braga, e o bispo Bernardo, de Coimbra. As notícias sobre a pessoa do rei teriam sido dadas por Bernardo, através de emissários, nas queixas deste contra João Peculiar. Indícios dessa situação podem ser encontrados nesse famoso episódio do Bispo Negro (Cf. SARAIVA, Antônio José. A épica medieval portuguesa. Lisboa, 1979, p. 61-68), em que se evidencia ter o rei tomado partido contra o bispo Bernardo, tentando substituí-lo, o que lhe rendeu acusações de heresia, presentes tanto no relato de Santa Cruz, como na Crônica de Vinte Reis (SARAIVA, op. cit., p. 66). O fato de Afonso Henriques se esforçar em dizer ao legado que em Coimbra, sua capital, havia tão bons livros de fé quanto em Roma está a indicar divergências do rei com a Igreja relativamente aos cânones então vigentes. Dentro desse raciocínio houve, pois, anulação e quem a pronunciou foi o cardel Guido.

     3) O Fernão Peres de Trava, de que Châmoa Gomes é sobrinha, é o mesmo homem que foi amante da nossa Rainha D. Teresa?

     Resposta: Sim.

     4) Quem era Pero Pais? Filho ilegítimo? De que mulher?

     Resposta: Pero Pais era filho de Châmoa Gomes com Paio Soares. Foi alferes de Afonso Henriques no período de 1147 a 1169, ano em que se passou para o reino de Leão. Paio Soares foi um dos magnatas que sustentaram Afonso Henriques nos primeiros tempos. Châmoa enviuvou de Paio por volta de 1129, aos 16 anos. Mem Rodrigues de Tougues tornou-se o segundo marido de Châmoa. Só depois dele Châmoa envolveu-se com o rei.

     5) Quem eram, além de Fernando Afonso, os outros filhos ilegítimos de Dom Afonso Henriques? Todos filhos também de Châmoa? Como saber mais?

     Resposta: Filhos ilegítimos de Afonso Henriques com Châmoa Gomes, antes dos havidos de Elvira Gualter, foram, em nossa opinião, Sancho I e João. Fernando Afonso, quando nasceu entre março de 1140 e fevereiro de 1141, era legítimo pois, de outra forma, não teria sido designado mais tarde por Inocêncio III, sempre apoiado no direito canônico, grão-mestre da Ordem do Hospital, cargo ao nível de bispo e privativo de pessoas nascidas de casamentos não considerados nulos pela Igreja. O casamento de Afonso Henriques com Châmoa fora certamente anulado, mas não era nulo e, em nossa opinião, serviu também de base jurídica para a célebre decretal Per venerabilem, de 1202, sobre os filhos de Felipe Augusto com Agnçs de Méranie. Os filhos havidos de Elvira devem ter nascido antes de 1169 ou até poucos anos depois, já que, após esta data, o rei se acidentou gravemente e foi progessivamennte se debilitando. Elvira Gualter, mencionada no Livro do Deão, devia ser descendente direta (neta?) de Alberto Gualter, natural da França, a quem o Conde D. Henrique e sua mulher, a Rainha D. Theresa, doaram um campo que possuiam na vila de Guimarães, o qual se localizava junto ao palácio real. Nessa condição de herdeira de Alberto, Elvira seria vizinha do rei.

     6) Porque é que Dom Afonso Henriques terá voltado para Châmoa Gomes? Em que época?

     Resposta: Dom Afonso Henriques voltou a ter relacionamento com Châmoa Gomes - se é que alguma vez se separaram de fato - depois do nascimento de Urraca (1148) e antes do de Sancho, em 1154. A razão pode, naturalmente, ter sido a fraqueza física de D. Mafalda após os partos, que a tradição confirma, ou a grande diferença de idade e temperamento entre eles. Devia ser muito forte, na cabeça do rei, a imagem de Châmoa, pertencente à família não reinante mais destacada de Portugal e Galícia (os Travas) e atuante, de longa data, na corte. Era ela, provavelmente, apenas dois anos mais nova que Afonso Henriques.

     7) Que mais sabemos da vida amorosa movimentada de Dom Afonso Henriques?

     Resposta: Vida amorosa movimentada é expressão que usamos em funçcão do longo e tumultuado relacionamento do rei com Châmoa Gomes, do casamento de conveniência celebrado com D. Mafalda e dos filhos havidos, estes sim, em drudaria, com Elvira Gualter.

     8) É verdade que D. Mafalda recolheu a um convento em vida? Quando? Porquê?

     Resposta: Sim. Ao mosteiro de Grijó, em 1138. A razão deve ter sido o fim de seu segundo casamento, por morte de Mem Rodrigues de Tougues. A situação política no território português, não favorável, às vésperas da independência, à sua família, deve igualmente ter influenciado.

     9) Em que documentos nos baseamos para saber que houve, em 1173, uma co-regência de D. Teresa e D. Sancho?

     Resposta: No doc. 319 do repertório de Rui de Azevedo, de 31 de outubro de 1173, Sancho e Teresa são apresentados como co-herdeiros do reino. O documento evidencia, em nossa opinião, que Sancho não é mais um príncipe associado ao trono mas uma espécie de rei de fato e Teresa rainha. Os documentos seguintes reafirmam definitivamente a situação, sendo que o de nú 323, de março de 1175, apresenta de novo Sancho e Teresa como co-herdeiros mas indica também um dapifer para a rainha Teresa, Gonçalo Viegas, que se tornará, pouco mais de um ano depois, em documento no qual o rei usa a expressäo concedente filio meo rege domno Sancio mestre da Ordem de Évora. Um signífer para Sancho, que passava a ser preparado para exercer funções militares, era natural mas um dapífer para Teresa, aparentemente não. É verdade que Sancho já ganhara também um dapífer, mas apenas três meses antes. O fato de logo vir a dar um dapífer para Teresa é um contrapeso que serve de indício seguro, a nosso ver, para se considerar que, entre os dois co-regentes, o rei pensava apenas em Teresa para sua sucessão e dá lógica à hipótese da frase ... si regnum meum tenuerit ... , que Afonso Henriques aventa, relativamente a Teresa, no ato anterior de doação do castelo de Monsanto.

     10) Como se explica que na doação de Monsanto fosse D. Teresa a única herdeira apontada e, depois, em 1173, tenha aparecido também o D. Sancho como co-regente?

     Resposta: Explica-se da seguinte maneira: Humilhado e doente após a derrota de Badajoz, Afonso Henriques honrou por três anos o acordo feito com Fernando II para ser libertado. Durante o período, ocorreu a passagem, sem traumas, de Pero Pais para o reino de Leão e a gradual ascensão de Fernando Afonso, irmão de Pero e filho do rei, como decorrência da supremacia leonesa. Mesmo passando para o reino de Leão, Pero Pais esteve em Portugal até agosto de 1172, o que indica prevalência do partido leonês até este último ano. Reagindo pouco a pouco, Afonso I foi-se fortalecendo com a ajuda dos magnatas da fronteira até que pôde aproveitar um momento de enfraquecimento de Fernando II diante dos cavaleiros de Santiago da Espada (futura Ordem de Uclés), que passaram a ser apoiados por Castela contra o rei leonês. O mestre deles Pedro Fernandez assiste à entrega, à sua milícia, do castelo de Monsanto e Fernando Afonso deixa de ser signifer de Sancho. Pedro Fernandes, magnata da fronteira leonesa assume a liderança na confirmação de atos do rei. &Eeacute; justamente neste momento (1172) de recuperação política do rei que Teresa é indicada como possível sucessora, deixando Fernando Afonso, significativamente, pouco após, de ser signífer de Sancho, passando então também para Leão. Em 1170, Sancho é armado cavaleiro e em 1173 aparece como co-regente. Em 1175, Teresa ganha um dapífer, sinal claro de funções reais, e Sancho só vai aparecer em ação militar cinco anos depois (1178), o que indica longa e prudente preparação. A falta de notícias sobre ações políticas do rei ou de Sancho, no período de 1173 a 1178, responde a essa situação. Os magnatas da fronteira leonesa zelavam pela estabilidade e segurança de Teresa e fortaleciam Sancho contra o ressurgimento do partido leonês. O quadro, assim delineado, indica preeminência de Teresa desde 1169, em coerência com a manifestação do rei a seu respeito no ato de doação de Monsanto. Seu casamento, em 1184, foi a oportunidade natural que se ofereceu a ela e aos magnatas do reino para colocá-lo em primeiro lugar na linha de sucessão, afastados que estavam todos os perigos com o reconhecimento do reino pelo Papa. Este ato da Igreja demorou, em nossa opinião, por causa do caminho tortuoso do rei no encaminhamento de sua sucessão e a essência do problema deve ter estado na situação, perante o direito canônico, de Fernando e Sancho. Assim que ficou claro para o Papa que Teresa, a filha indubitavelmente legítima, sucederia e que a paz prevalecia entre Portugal e seus vizinhos, veio o reconhecimento. Paz, também, entre os personagens principais desta cena, Teresa, Sancho e Fernando Afonso, como evidenciam a designação, anos depois, de Fernando por Sancho para emissário junto ao Pontífice na questão do pagamento do censo devido e o encontro entre Teresa e Fernando, em Corbeil. Deste encontro trata o documento que redescobrimos no Arquivo Nacional de Paris. Nosso trabalho sobre Afonso de Portugal dá detalhes a respeito. São fontes que constituem pista valiosa, a ser mais explorada, para a questão do relacionamento entre Teresa e Sancho na política de ambos, de 1190 em diante.

     11) Onde procurar mais notícias sobre o conflito entre D. Fernando Afonso e D. Sancho?

     Resposta: A melhor fonte continua sendo o repositório de Rui de Azevedo, Documentos medievais portugueses, cujo conteúdo deve ser sempre relido e analisado internamente, tantas são as informações subjacentes que pode propiciar.

     12) Quais as razões para crer que Dom Afonso Henriques tenha sofrido (quando?) um acidente vascular cerebral grave? Não é isso incompatível com o facto (conhecido) de Dom Afonso Henriques ter assinado o seu testamento em 1179 (com 70 anos de idade)?

     Resposta: O melhor indício é a escassez de notícias de sentido político sobre o reinado desde 1175 até sua morte, em contraste com a grande riqueza de fatos das cinco décadas anteriores. Como a passagem de um período para o outro foi abrupta, é de se crer que o rei adoeceu gravemente. A hipótese que levantei assenta-se na seriedade do ferimento de Afonso Henriques em Badajoz, quando já era homem de idade e no conteúdo do texto médico de Paul de Aigina, usado na época, sobre tratamento de fraturas da coxa. As informações sobre o estado do rei, nos meses que se seguiram a Badajoz, depõem em favor de fratura não consolidada, que pode acarretar, entre outras conseqüências, acidentes vasculares. Quanto ao documento de 1179, deve-se lembrar que não há assinaturas de reis senão a partir de D. Dinis. Os notários usavam, no lugar de assinaturas, como sabemos, linhas verticais a cortar uma horizontal. Indicam elas apenas que o monarca e filhos e/ou esposa estavam vivos, não necessariamente presentes ao ato respectivo. A rotina da presença de Sancho e Teresa de 1173 até 1184 indica igualmente que o rei estava vivo, mas não atuante. Os documentos do período são quase todos administrativos (doações, forais, cartas de couto), outro indício de ausência de ação efetiva do monarca. Seu testamento, que Rui de Azevedo data entre 1176 e 1179, é significativo para a busca da época em que o rei ficou definitivamente inutilizado. Acredito que o fato ocorreu entre 1175 e 1176 porque foi em 1175 que Sancho e Teresa apareceram juntos com dapifer (Pedro Fernandes e Gonçalo Viegas, respectivamente) e Viegas é justamente um dos beneficiários do testamento do rei. Creio ainda que se pode delimitar mais o período. O documento de 1175 é de março mas Sancho já tinha dapífer no mês de dezembro anterior. A função era mais de governo (o signífer tinha atribuições militares, como se sabe) e não se deve esquecer que o dapífer, na França, chegou a ser considerado, praticamente, o primeiro dignitário depois do rei. Só um fato extraordinário faria surgir a figura de dapíferes para cada um dos dois co-regentes. Se considerarmos que o de Teresa foi beneficiado no testamento do rei, não será inverossímil considerar que o agravamento definitivo de sua saúde ocorreu durante o ano de 1175.

     13) Se Dom Afonso Henriques já tinha optado a favor de D. Sancho em 1155 (quando lhe mudou o nome), como se explica que D. Fernando Afonso só tenha iniciado a sua luta pela sucessão 14 anos mais tarde (1169), a seguir ao desastre de Badajoz? Talvez por Dom Afonso Henriques ter então ficado muito debilitado?

     Resposta: A perda repentina de saúde, por parte de Afonso Henriques, estimulou Fernando Afonso a lutar para ser o sucessor do rei. Não ousaria fazer essa tentativa se Sancho fosse filho verdadeiro de Afonso I e D. Mafalda. Além disso era 14 anos mais velho que Sancho. Em 1155, Afonso Henriques estava casado de acordo com a Igreja, exercia o poder em sua plenitude e Fernando Afonso era muito jovem para ter pretensões declaradas em tal situaçcão. Em 1169 era já um homem de 29 anos, provado em muitas batalhas, a ponto de se tornar signífer do rei.

1