Fundamentos da história externa do português do Brasil
Por Ariel Castro
1. O português falado no Brasil é um descendente direto do português popular quinhentista e seiscentista. Suas origens devem ser buscadas no português medieval ou, mais precisamente, no português medieval da segunda fase.
Quando Portugal se tornou independente, em meados do século XII, a realidade lingüística lusitana compreendia o espaço territorial que vai das imediações da atual Lisboa até o território da Galícia, no noroeste da Espanha. Na verdade, a Galícia era o principal centro de irradiação cultural do ocidente da Península e sua cidade principal, Santiago de Compostela, era o local de onde partiam os movimentos que buscavam reconquistar aos árabes os territórios dominados. Compreende-se, pois, que, na primeira fase da história do português medieval, houvesse, desde o início, uma acentuada influência lingüística por parte do território galego.
As manifestações mais evidentes dessa influência são as cantigas dos trovadores, no campo literário, e o grande número de documentos que, no norte de Portugal, serviam de meio para a graduação implantação da língua viva. A independência de Portugal marcou o início da divisão desse idioma comum, o galego-português. Com a conquista de novos territórios, ao sul, foi sendo incorporada ao idioma, que então emergia, a língua dos moçárabes, com todos os seus arabismos e seus desenvolvimentos fonéticos independentes. Esse período de separação do português do antigo galego-português durou cerca de duzentos anos. A partir de 1350, começamos a ter o português medieval propriamente dito. Foi desse português que saíram muitas das futuras características do português do Brasil. De modo geral, o português medieval da segunda fase apresenta-se como uma realidade lingüística de base marcadamente setentrional, ou seja, com predominância dos elementos lingüístico da região que tinha o Porto e Braga como centros de irradiação.
Com o fortalecimento do poderio econômico português, alcançou a cidade de Lisboa e toda a região central, sob sua influência, pela primeira vez, uma situação capaz de provocar mudanças no terreno lingüístico.
2. Em meados do século XVI, Portugal passava por um período de grande intensificação de seu caráter de nacionalidade, após um meio século de grande expansão econômica, cultural e territorial. Sendo uma das nações mais fortes do mundo de então, teve, pela primeira vez, em sua história, a oportunidade de voltar-se para si mesmo em busca de uma individualidade que pudesse destacá-lo culturalmente no conceito das nações européias. Muitas ações foram empreendidas na busca desse objetivo. No campo cultural, seus escritores recriavam aquilo que era produzido no exterior, principalmente na Itália. Seus artistas faziam surgir um estilo verdadeiramente português, principalmente na arquitetura. No plano político, a busca de afirmação acabou por se consubstancias na pessoa do rei Dom Sebastião, chegado ao trono ainda na adolescência, praticamente. Empreendendo ele uma campanha no norte da África com o fim de se tornar um campeão da religião e um símbolo do poderio português, foi morto, deixando o trono sem herdeiros diretos.
Numa época em que as sucessões se faziam com base estrita no parentesco, tal fato pronunciou dias perigosos para a nação. Seu sucessor, parente distante e idoso, faleceu sem deixar descendente direto português. Disso se aproveitou o rei da Espanha para ajustar contas com o reino vizinho, num contexto de luta pela hegemonia política mundial, que já durava cem anos. Portugal foi ocupado e, oficialmente, desapareceu como nação independente. Os nobres, os religiosos e o povo voltaram-se, em conseqüência, para um passado recente, em busca de um símbolo que os pudesse manter unidos na retomada da independência política e cultural. Esse símbolo foi o rei Dom Sebastião e, através dele, procurou-se preservar os valores mais caros da nação portuguesa.
Dentro desse contexto, situou-se o Brasil no século XVI. Iniciada oficialmente a colonização em 1530, com Martim Afonso de Souza, desenvolveu-se ela, sem uma base efetiva de ocupação da terra e conseqüente absorção dos elementos nativos, até a chegada dos jesuítas. A Companhia de Jesus, fundada por Inácio de Loiola, pregava a implantação do evangelho por meios de natureza basicamente intelectual e doutrinária. Caracterizavam esses meios, antes de mais nada, a persuasão no trabalho de catequese de pagões ou reabsorção de cristãos transviados.
No Brasil, ao chegarem em meados do século XVI, iniciaram os jesuítas o trabalho de catequese dos índios, no qual deixaram, desde o primeiro momento, a marca da persuasão. Esse tipo de ação foi fundamental para o desenvolvimento cultural da colônia, em geral, e de sua realidade lingüística, em particular. A estratégia básica dos jesuítas, entre os quais estavam José de Anchieta, Manuel e Luís de Grã, foi a de aprender para, depois, ensinar.
Ao estudarem a realidade étnica, conscientizavam-se da existência de um grupo principal de índios na costa brasileira que vai dos limites entre o Rio de Janeiro e São Paulo até os limites entre a Bahia e Sergipe. Fixaram-lhe o nome Tupinambá. Um jesuíta, em particular, entregou-se ao trabalho de estudar sua língua: José de Anchieta. Verificando que havia um denominador entre as variedades de tupinambá faladas na costa, Anchieta o transformou num conjunto de normas, que acabaram por constituir sua gramática da língua mais falada na costa do Brasil. Ao que tudo indica, compôs também um dicionário que deve ter sido usado, por muito tempo, entre os padres da ordem e, muito provavelmente, refundido bem no final do século XVI para se adaptar à nova realidade de uma colônia em expansão.
3. A língua geral, tal como foi estabelecida por Anchieta, não existia concretamente quando aqui chegaram os jesuítas. Havia um grupo lingüístico, o dos tupinambás (mais conhecido como tupi), que era realizado, com toda a certeza, sob a forma de inúmeros falares. O estabelecimento dos jesuítas em um território tão grande como o assinalado acima, levou-os à consciência dessas inúmeras variantes da língua dos tupinambás, mesmo porque mudavam, freqüentemente, os padres de lugar de trabalho. A consciência dessa variedade levou, em particular Anchieta, à conscientização da existência de uma unidade. Realizando um trabalho que, no fundo, tem caráter metódico, observou a realidade, colheu dados, agrupou-os segundo suas semelhanças, descreveu-os segundo suas semelhanças, descreveu-os segundo uma visão de estrutura lingüística baseada essencialmente na teoria gramatical que vinha dos tempos dos gregos, classificou-os e, a partir do momento da observação, estabeleceu normas correspondentes. Estas normas assumidas, em conjunto, a forma de uma gramática, a gramática da língua mais falada na costa do Brasil.
Sucedeu, então, que seu trabalho foi aceito naturalmente por todos os padres da colônia e, após ser reproduzido em várias cópias manuscritas, voltou à comunidade lingüística de todo aquele imenso território como instrumento nivelador, já que passava a ser ensinado como padrão da língua indígena tanto a padres quanto aos índios e colonos em geral. É dessa situação que tem surgimento o tupi, tal como é hoje conhecido: língua geral, unificada, da realidade brasileira dos séculos XVI, XVII e XVIII.
A expressão tupi-guarani é totalmente desprovida de apoio na realidade de então, já que foi criada artificialmente, na década de 30 do século XX, por Plínio Ayrosa para designar a cadeira que criou em São Paulo para o estudo do tupi antigo . Faltando-lhe documentos históricos da antiga língua geral - eram em número insuficiente - buscou exemplificar muitos de seus fatos com material de uma língua aparentada, porém estruturalmente diversa, ou seja, o guarani. Para esta não faltavam documentos, desde o século XVI até os dias de hoje, quando é língua oficial no Paraguai. Na verdade, portanto, jamais existiu qualquer realidade concreta "tupi-guarani".
4. Não se pode dissociar o estudo do português da América da história do Brasil. Nem sempre, porém, tal condicionamento é levado em conta pois, freqüentemente, estuda-se o português do Brasil na base da comparação entre fatos da gramática ou do vocabulário dos diversos falares. O simples fato de terem existido, ao longo de nossa história, diversos tipos de contato social, como, por exemplo, o do colonizador com o índio somente, o do colonizador português com o negro, o do colonizador português, ao mesmo tempo, com o negro e o índio, o do índio, já usuário do português, com o negro ou o do imigrante estrangeiro com todos eles, serve de amostra para o caráter particular de nossa realidade lingüística. Tudo isso pode ser encarado num plano de justificativa histórica. Mas, a própria origem social do colonizador e o sistema sócio-educacional desenvolvido, em nosso território, pelos jesuítas, serão, igualmente, fatores muito importantes para a caracterização da língua portuguesa no Brasil, em geral, ou do português de cada região, em particular.
Encarado sob todos esses aspectos, começa o estudo de nosso português por nos apresentar o problema da época em que teria apresentado suas primeiras particularidades. Nesse ponto, há os que preferem utilizar datas históricas conhecidas como demarcadores ou os que preferem considerar fatos históricos, com primazia sobre datas, como demarcadores principais. entre as datas, teríamos o ano de 1532 (chegada ao Brasil de Martim Afonso de Souza), o de 1654 (derrota final dos holandeses) e o de 1808 (chegada de Dom João VI). Entre os fatos, teríamos o estabelecimento das capitanias (a partir do início da colonização), o contato único dos colonizadores com os índios (entre 1532 e 1550), a chegada dos jesuítas, a expulsão destes, a mudança da capital para o Rio de Janeiro, as entradas e bandeiras, etc.
Na verdade, o problema das origens do português, no Brasil, deve ser relacionado mais particularmente a fatos históricos do que a datas ou épocas, mesmo porque fatos históricos ocorridos numa época ocorreram igualmente em épocas posteriores.
Portugal, no século XVI, vivia, antes de sucumbir perante o poder espanhol, uma atmosfera cultural de conscientização plena de sua individualidade nacional e uma atmosfera religiosa de forte adesão à reação contra recentes idéias reformistas que lavravam no seio da Igreja. Dentro desse contexto, Estado e Igreja se uniam para, com ajuda mútua, realizarem, cada um, seus objetivos. O Estado necessitava da emergente Igreja intelectualizada para, através da educação, realizar o ideal da unidade nacional forte; a Igreja portuguesa, nas mãos dos que dirigiam a reação contra as idéias reformistas, necessitava do Estado para desalojar os grupos religiosos fracos de ação e de idéias, colocando-se em seu lugar e pondo em prática os ideais da contra-reforma. Tudo isso para servir de modelo e de exemplo para as nações tradicionalmente católicas, como a França, que atravessavam um período de forte hesitação.
O Brasil tornou-se, em conseqüência, um lugar ótimo para a realização dos objetivos do Estado e da Igreja.
A exploração do Brasil iniciou-se debaixo do objetivo principal de garantir aos portugueses uma hegemonia econômica mundial e, em consequência, política. Para realizar essas metas, foi plantado em nosso território o domínio da Casa Real através de seus agentes, que podiam ser nobres ou militares destacados. Como a colonização tinha de ser feita em termos de alto rendimento, para o Brasil se deslocou mão-de-obra barata, de camponeses ou criminosos. Ao mesmo tempo, leis protecionistas orientavam a política, dentro da colônia, de máxima produção de determinados produtos, com comercialização em Portugal, e mínima absorção de recursos externos que, sendo realizados, o eram quase que exclusivamente a partir da metrópole. Tal política, naturalmente, não levava em consideração, do ponto de vista oficial, qualquer ação de desenvolvimento cultural. Oficialmente permaneceu o Brasil durante praticamente todo o período colonial fora das iniciativas da coroa portuguesa no campo educacional.
Não havendo uma política oficial para a língua, no Brasil - só existiria se houvesse política educacional -, acabou sendo desenvolvida, em nosso território, uma prática educacional de caráter exclusivamente privado e dirigido unicamente pelos que poderiam realizar isso, ou seja, os jesuítas.
5. Por ocasião de sua chegada ao Brasil, os jesuítas eram, em Portugal, os detentores do monopólio do ensino. Isso significa que sua chegada foi uma conseqüência natural de seu poder na época.
Como manifestação das mais importantes da contra-reforma, a Companhia de Jesus traçou, desde o início de sua organização em 1534, 14 anos após a excomunhão de Lutero, até sua aprovação pela bula de Paulo III, em 1540, as linhas básicas para o seu trabalho de controle às idéias protestantes: ação evangélica, por vias de caráter intelectual, disciplina quase militar e submissão total ao Papa.
Dentro desse contexto, os indígenas eram excelente material para desenvolvimento das técnicas capazes de levar a Companhia a seus objetivos mais altos. Sua experiência, no Brasil, concorreu para a expansão da religião cristã por toda a América Latina, principalmente o Paraguai, onde criaram um verdadeiro Estado teocrático, pela América do Norte e pelo Oriente. Tradicionalmente, o trabalho dos jesuítas tem sido avaliado segundo campos opostos. Oliveira Martins, por exemplo, apresenta-se como inimigo da contribuição dos jesuítas, dentro de uma linha tradicional entre os historiadores portugueses. Primitivo Moacyr, historiador brasileiro, ao contrário, ressalta a importância de seu trabalho no desenvolvimento da nacionalidade brasileira. Gilberto Freire, todavia, prefere considerar a atuação dos padres da Companhia de Jesus como um conjunto de males, em termos de nacionalidade, que teriam sido amortecidos se aqui tivessem, igualmente os franciscanos.
A atitude básica dos jesuítas foi a de aprender, primeiro, a realidade nativa, para, em seguida, apresentar os valores europeus e cristãos. Uma das conseqüências dessa política foi o bilingüismo que, durante três séculos, seria uma característica da realidade brasileira. De modo geral, preocupavam-se com os meninos índios e não com os adultos, nesse trabalho de ensino do português. É sabido que, na infância, a capacidade de expressão automática em duas línguas é muitas vezes mais desenvolvida que na fase adulta. Os colégios dos jesuítas foram feitos para os indiozinhos de cada região, e, neles, ensinava-se a ler, escrever e contar. Saindo de suas aulas, os pequenos voltavam para casa e continuavam a exprimir-se na língua de seus pais. Com o passar dos anos, a situação se cristalizava e, em conseqüência, já adultos, serviam os antigos estudantes de eficiente meio de atração em relação a outras populações indígenas ainda não atingidas culturalmente pelos portugueses. Esses milhares de intérpretes, formados a partir de 1550, foram usados, paulatinamente, pelos primeiros sertanistas, ou seja, aqueles que, nas entradas ou bandeiras, procuraram realizar a posse efetiva do território brasileiro. Um processo como esse não podia levar a nenhum falar de emergência, no Brasil, e, muito menos, à sua cristalização sob a forma de falares crioulos. Falavam-se o português e a língua geral, nada mais.
O procedimento lingüístico dos jesuítas consistiu em aprender a língua da maioria dos índios encontrados ao longo do litoral brasileiro, entre São Paulo e Bahia, conscientizar-se de sua estrutura, sistematizar-lhe os fatos destacados e gerais e, com base nestes, estabelecer uma gramática. É bem verdade que essa gramática acabou refletindo uma língua que não era exatamente o tupi, na variedade falada pelos tupinambás, em sua estrutura, porém os fatos do tupi tratados, valorizados e, até em certos casos, modificados pelos padres que trabalhavam sobre ela a partir de uma atitude lingüística condicionada pelos conhecimentos e domínio que tinham da língua latina. Isso não significa, porém, que não tenham desenvolvido seu trabalho segundo as etapas acima assinaladas. O resultado, ou seja, a gramática, é que, em sua concretização, esteve subordinado aos conceitos lingüísticos dos jesuítas que, afinal, eram os da época.
A gramática estabelecida ao longo do litoral, por refletir, em última análise, um denominador comum, passou a ser conhecida como gramática da língua geral e, dentro desse contexto, refletiu mais de perto a língua dos tupinambás, que constituíam, como já assinalamos, a tribo mais espalhada da costa brasileira.
O português ensinado aos índios pelos jesuítas adquiriu, desde logo, caráter estável porque, percebendo que os adultos, atraídos para o ensino da língua, logo voltavam para suas tribos, esquecendo, em muitos casos, o aprendido, passaram a dedicar-se aos meninos indígenas. Essa atitude revela o desejo de realizar um trabalho contínuo de catequese, cujos instrumentos não podiam ser diversificados, ao longo dos anos, não somente por causa dos objetivos unificadores da mesma, mas também porque a disciplina de trabalho dos jesuítas era rígida. A conseqüência de tudo só poderia ser a disseminação, por parte dos padres e, naturalmente, de seus alunos, de um mesmo tipo de português durante muito tempo. Para tal resultado contribuía, fortemente, a prática de concentrarem seus esforços nos alunos mais inteligentes, para logo os utilizarem como professores de seu povo e intérpretes da doutrina e da política dos padres da Companhia.
Não era realmente importante a diversidade de origem dos colonos portugueses que ao Brasil chegavam, pois não somente eram muito inferiores, numericamente, à população dos índios e de seus descendentes caboclos, como também tendiam a ficar estabelecidos em suas propriedades do litoral. Quando surgiu a economia da criação do gado, foram os colonos lentamente penetrando no interior, acompanhados, porém, da instável população de índios semi-escravizados e dos mestiços. Esse conjunto de fatos caracteriza uma situação em que se destaca a difusão de uma língua realizada não pelos portugueses, mas por seus descendentes imediatos e pelos caboclos, os quais a tinham desenvolvido dentro de um contexto de forte bilingüismo. sob essa perspectiva, tornam-se inúteis as tentativas de ligar o português, no Brasil, a esta ou àquela região da metrópole lusitana, como a Galícia, a Beira, os Açores, etc. Importante para a identificação do caráter original do português, no Brasil, é a verificação do tipo de sistema da língua portuguesa ensinada pelos jesuítas à população nativa. Como uma ordem religiosa intelectualizada, a Companhia de Jesus assentava seu trabalho sobre valores que considerava permanentes. Em conseqüência, tendia ele a adquirir caráter conservador, despido daquelas inovações que se lhe afiguravam passageiras e sem aqueles detalhes que, para ela, tinham sido as causas imediatas das inovações.
No campo lingüístico, o resultado só poderia ser a valorização da língua dos antepassados de gerações recentes, mas não imediatamente anteriores. Isso significa que o português, disseminado pelos jesuítas no Brasil, foi o da segunda metade do século XV. A necessidade de manutenção do caráter unificador de seu trabalho fez com que esse português da segunda metade do século XV se mantivesse, no Brasil, durante todo o período em que os jesuítas puderam aqui viver e trabalhar. Até o século XVIII, portanto.
A observação das características dos falares brasileiros tem levado os estudioso, em inúmeras oportunidades, a atribuir as diferenças entre os mesmos à força da influência dos diversos grupos que tiveram contato com os portugueses.
Entre os lingüistas, já nomes que se destacam pelas posições assumidas: Renato Mendonça e Jacques Raimundo realçam a influência do negro na formação do português do Brasil; Mário Marroquim, embora destaque as características arcaicas lusitanas de nosso português, tende a valorizar mais decididamente a influência indígena; Artur Neiva e Amadeu Amaral, jornalista e folclorista, respectivamente, colocam-na em primeiro plano; Serafim da Silva Neto e Gladstone Chaves de Melo enfatizam, como lusófilos, o caráter essencialmente lusitano de nosso português, dentro de uma perspectiva de variedade na unidade; Manuel de Paiva Boléo procura ver, em nossa realidade lingüística, o caráter original de certos falares portugueses, principalmente do linguajar açoriano; Leite de Vasconcelos enxerga nele, em termos abrangentes, uma simples ramificação do português continental; Serafim da Silva Neto pretende, ainda, ser ele o resultado de uma forma inicial crioulizante, o que '
e posto em dúvida, até certo ponto, por I.S.Révah.
Todas essas idéias têm sua base, umas com maior e outras com menor intensidade, não chegando, porém, à essência do fato de que o português do Brasil é fonética, morfológica, sintática e lexicamente diverso do português de Portugal, embora não deixe de ser língua portuguesa pois, no plano fonológico, dele não se diferencia.
Na busca de caracterização do português do Brasil, é necessário, preliminarmente, levar sempre em conta as condições históricas de implantação e desenvolvimento do idioma lusitano em nosso território, para que se possa estabelecer com precisão sua individualidade.
Duas fases caracterizam, na realidade, a história do português no Brasil: o período que vai da chegada dos jesuítas, em 1549, até sua expulsão, em 1750, e o período que vem da chegada de Dom João VI, em 1808, até os dias de hoje. Entre os dois houve uma fase intermediária, a segunda metade do século XVIII, que criou as condições para a fixação das características básicas da primeira fase e implantação de algumas da segunda, menos importante e essencialmente política. Numa tentativa de síntese, pode-se dizer, preliminarmente, que a primeira fase delineou as características do português do Brasil de modo a poder ele ser fixado pela política do idioma da segunda.
Esse tipo de afirmação não pode servir de biombo para esconder a complexidade do português do Brasil, sujeito, na primeira fase, a diferentes e numerosos fatores de ordem social interna, em nível mais baixo, e, na segunda fase, a numerosos fatores de natureza social externa, de cima para baixo.
O português do Brasil, já no século XVI, começou a patentear fatores que, em maior ou menor grau, devem ser considerados como parâmetros para sua caracterização: a relação jesuíta-índio, a relação colono português-negro, a relação colono português-índio e a relação negro-índio.
7. As relações entre os jesuítas e os negros eram distantes e, por isso mesmo, incapazes de acarretar eventuais conseqüências lingüísticas.
Vários fatores contribuíram para esse tipo de relacionamento.
O contexto político foi o principal condicionador das relações distantes entre jesuítas e negros, embora já fosse tradição entre as religiões admitir a escravidão dos africanos. Na verdade, os jesuítas, ardorosos defensores dos índios, chegaram até a propor a substituição da escravidão destes pela daqueles, tendo em vista, talvez, que « tocar no tráfico africano seria tocar nas rendas do rei, pois o monopólio do tráfico estava em mãos do soberano português...» .
Ao chegarem ao Brasil, portanto, os negros se situavam em um contexto inteiramente desfavorável. Depois de longas viagens, em que deitados acorrentados, o tempo todo, em tábuas de sessenta centímetros ou menos de largura, tinham sua resistência física e moral consideravelmente reduzida, a necessidade de adaptação à nova situação era, para eles, quase obrigatória. Essa disponibilidade ao jugo tenderia a se estender, na maior parte da população negra, a todas as esferas, mesmo à lingüística. Na verdade, são isolados os casos de certa manutenção de uma herança lingüística africana na população negra do Brasil.
Com os jesuítas, não aprenderam os negros a religião cristã. Com os seus senhores, aprenderam-na, adaptando-a à sua própria herança religiosa.
Em conseqüência, pôde ser preservada, na essência, a cultura religiosa negra. A do índio, não, porque, diretamente ligado aos jesuítas, em um contexto de relativa liberdade, podia ser dirigido para a religião cristã pela simples persuasão.
Tendo o negro de aceitar a escravidão, até mesmo por ser, no Brasil, um estrangeiro, na visão indígena, tal como o português, precisava aprender logo a língua de seu senhor. Este, voltado exclusivamente para o seu objetivo de obter rendimentos rápidos em sua atividade colonizadora, começava por distinguir seu escravo africano de duas maneiras: como negro ladino e como negro boçal. Negro ladino era o que, de uma maneira ou de outra, sabia se exprimir na língua de seu senhor, tendo, portanto, capacidade de obedecer com eficiência às ordens. Negro boçal era o que não sabia falar português. Para aquele, tolerância; para este, maus tratos. em conseqüência, aprender logo a língua, da melhor maneira possível, era necessidade imperiosa por parte do escravo africano. Ainda como resultado dessa situação, pôde ele falar um português muito mais adaptado ao sistema da língua do seu senhor do que o podia ou o queria fazer o indígena.
Os negros boçais, naturalmente, levavam algum tempo para aprender a língua do seu senhor. enquanto isso, na senzala, falavam uma espécie de língua geral, conforme assinala Artur Ramos. Na Bahia, devido às origens diversas dos escravos, funcionara na senzala, durante algum tempo, o nagô, como uma espécie de língua geral. Tal fato, porém, não deve ser supervalorizado, porque, conforme indica o padre Serafim Leite, já em 1754, pouco tempo depois da chegada dos primeiros escravos os negros boçais já falavam, a seu modo, o português.
Sobre o relativamente rápido aprendizado do português pelos africanos, há depoimentos de outros investigadores. Serafim da silva Neto assinala, baseado em diversos documentos, que a língua portuguesa foi idioma comumente falado nas costas da África durante os séculos XV, XVI e XVII. A esse fato deve-se a existência, desde o início das escravidão, dos já mencionados negros ladinos, embora, com o passar do tempo, em conseqüência da gradual oposição dos ingleses ao tráfico, fosse sendo transformada em regra a captura de negros no interior da África para serem levados aos navios negreiros. Tudo leva a crer que a modificação do português, por parte dos africanos, era fenômeno temporário, ao qual se seguia naturalmente a fase de completa assimilação do idioma do senhor. É importante assinalar que o falar mal uma língua, no processo de aprendizagem, não significa que esta, ao fim, venha a caracterizar-se por modificações estruturais. A situação de contato de dependência entre negro e senhor tinha de resultar em absorção da língua deste por parte daquele. Se considerarmos o problema a partir do colono português, vamos verificar, através de depoimentos dos primeiros tempos que os portugueses se mantinham exclusivamente à base do trabalho dos escravos:
« As pessoas que no Brasil querem viver, tanto que se fazem de moradores da terra, por pobres que sejam, se cada um alcançar dois pares ou seis escravos (que podem custar um pelo outro até dez cruzados) logo têm remédio para a sua sustentação; porque uns lhe pescam e caçam, outros lhe fazem mantimento e fazenda e assim pouco a pouco enriquecem» .
Tal maneira de proceder começou com os índios que eram caçados pelos paulistas, mas logo foi aplicada aos negros, devido à enorme dificuldade de manter aqueles como escravos durante muito tempo.
Em outras regiões do Brasil, particularmente de São Paulo para o sul, o relacionamento entre portugueses e índios teve como resultado o surgimento de desbravadores, os paulistas, que se destacavam por sua dureza no tratamento com os nativos. Como não havia, praticamente, a opção da escravidão negra, tiveram os colonos portugueses e seus descendentes de lutar continuamente para escravizar o índio. Disso surgiu uma atividade econômica que consistia no aprisionamento de índios para venda como escravos. Os bandeirantes foram o produto mais destacado da escravização dos índios e, devido às circunstâncias em que viviam, precisavam aprender sua língua para melhor alcançarem seus objetivos. Faziam isso dentro de um contexto de contato lingüístico, não de interação, o que configura uma diferença fundamental entre a situação do idioma português na Bahia e nordeste e as condições de sua existência em São Paulo.
As relações lingüísticas entre colonos portugueses e negros faziam-se segunda uma pressão dos primeiros sobre os segundos. Não tinham os portugueses nenhuma atitude deliberada no sentido de compreender o sistema lingüístico dos escravos. Simplesmente, na maneira de os tratar, criavam uma expectativa de aprendizado, por parte de seus escravos, do idioma português. Em conseqüência, não chegava a existir, em termos duradouros, um falar de emergência, do tipo pidgin, por parte dos escravos. Os primeiros, naturalmente, depois de sua chegada, permaneciam, por longos anos, a falar um português deturpado devido ao fato de chegarem já adultos ao Brasil. Isso, porém, não tinha significado dentro da problemática do contato lingüístico porque se limitava ao caráter individual do relacionamento. Ao lado de seu próprio esforço no sentido de falar e entender a língua do senhor, havia a situação especifica dos que nasciam na senzala ou que chegavam ao Brasil muito jovens, com todas as condições de falarem o mesmo português do senhor.
A situação de pidginização se realizava na senzala, principalmente, porque, debaixo da pressão lingüística do colono português e da situação de fato da existência, no mesmo contexto, de negros oriundos de regiões diferentes do continente africano, só restava, como alternativa a curto prazo, falar o português do lusitano colonizador.
As simplificações que freqüentemente são apontadas como resultantes da interferência dos idiomas negros no português falado, devem ser assinaladas às possibilidades mesmas desse português. A isso se deve acrescentar o fato de que, no conjunto, não era empregado pelos colonos e seus descendentes nenhuma variedade culta do português lusitano.
A influência do negro, como não poderia deixar de ser, se fazia no plano do relacionamento de culturas. Em conseqüência, somente o léxico pode ser considerado como um campo receptor de contribuições lingüísticas de origem africana.
O português falado pelos colonos era de sabor arcaizante, devido ao fato de que, em geral, eram eles pessoas de poucas letras ou nenhuma. Como a língua portuguesa de então, em Portugal, no contexto rural, denunciava uma origem setentrional, não é de se admirar que muitos dos fatos articulatórios apontados como deturpações espontâneas por parte dos escravos, nada mais seriam do que formas populares de origem rural lusitana.
É preciso notar, igualmente, que no século XVI, segundo depoimentos insuspeitos de gramáticos da época, tinha a língua portuguesa um ritmo muito mais lento que a do século XVIII em diante. Ritmo lento significa sílaba tônica menos forte, sílabas átonas mais nítidas e maior emprego da duração. Em conseqüência, havia melhor distribuição do acento de intensidade pelas sílabas. Como resultado secundário dessa situação, deve-se assinalar a tendência à valorização da abertura das vogais e das sílabas. Dentro desse contexto, o ritmo da língua portuguesa de então é capaz de explicar traços da língua popular como a queda do /r/, que fecha sílabas finais, ou do /s/ e do /l/, na mesma situação. É ilusório querer imaginar uma língua portuguesa, nos séculos XVI e XVII, com aparência de língua culta, no sentido de língua menos distanciada do código escrito.
8. A estruturação segmental das línguas românticas, em geral, e do português, em particular, depende do estreitamente da estruturação suprasegmental ou prosódica. No caso do português da Bahia, por exemplo, que muito bem representa, historicamente, o português do Brasil, isso está patente no sistema vocálico, o que faz com que cada palavra se articule de maneira muito nítida. Há uma distribuição mais eqüitativa do acento de intensidade e a preferência pelas vogais abertas denuncia uma valorização do tom e, em conseqüência, da duração.
A origem desse quadro não deve ser buscada apenas na estrutura mais ampla do português dos dois primeiros séculos, com a argumentação de que a tendência à valorização do acento de intensidade parou. Argumenta-se que essa parada, que terminou por conferir ao falar local um caráter arcaizante, teve como motivo principal o afastamento, e conseqüente isolamento, da população em relação à metrópole lusitana, nos três primeiros séculos. Achamos que essa explicação é por demais simplista já que, na hierarquia social da Bahia da época, predominava o branco que, naturalmente, lá ficava, mas sempre convivia com outros portugueses que vinham da metrópole por motivos diversos.
a classe dominante tenderia a se enriquecer lingüísticamente com novos elementos que chegariam de Portugal na boca dos novos colonizadores ou de viajantes.
A verdade deve ser procurada sob outro ângulo. Como a relação entre os habitantes era de senhor para servo, não haveria porque, em razão desse afastamento social, muitas vezes rancoroso, como era o caso entre os índios e caboclos, viessem os escravos e a população livre de agregados a adotar com perfeição a estrutura prosódica, supostamente estagnada, de sues senhores. Embora não se deva afastar a possibilidade de se ter conservado, de alguma forma, entre os brancos colonizadores, a pronúncia mais lenta dos dois primeiros séculos (atestada por vários gramáticos da época), a causa mais importante da interrupção da marcha do acento de intensidade no português do Brasil deve ser buscada na conjugação do idioma lusitano com a estrutura das línguas originais ou instrumentais da população indígena.
9. Por ser o tupi, para usarmos o termo mais geral, ou o tupinambá, mais particular, uma língua do tipo aglutinante, que juntava numa só palavra os elementos indicativos das relações gramaticais e semânticas, com manutenção de sua individualidade, a pronúncia clara dos componentes de cada ítem de seu léxico teria de ser, como de fato era, uma de suas características principais. Não se trata, pois, de procurar na língua do índio um acento de duração como responsável pela articulação mais clara do português da Bahia. O hábito de pronunciar com nitidez as sílabas surgiu do fato de, em cada palavra da língua materna do índio ou do caboclo, serem elas freqüentemente palavras independentes e oxítonas, em sua maioria. Uma prova disso é a tendência que tinham os nativos, segundo o Conselheiro Macedo Soares de tornarem oxítonas as palavras portuguesas paroxítonas adotadas: cavalo > cabaru; mama (teta) > mamá; açúcar > açuqueri. É interessante, nessas palavras, notar o processo de tornar nítidas as vogais átonas finais, o que, no terceiro exemplo, configura adicionalmente uma vogal átona [e] paragógica. No Atlas Prévio dos Falares Baianos, encontramos: coxo > coxó; dangola (galinha d'angola) > cangolá; coto > cotó; coxo > coxé; calango > gangó; gogo (goela, por processo metonímico) > gogó. deve-se frisar aqui que isso não significa fosse o tupinambá língua oxítônica. Significa que a oxitonização decorria da necessidade de se emitir, com mais clareza para eles, as sílabas das palavras portuguesas, em particular as postônicas e do fato de que só o [a] final podia ser átono. Frei Vicente do Salvador, por exemplo, dizia:
« ..mas nenhuma palavra pronunciam com f, l ou r [entenda-se r forte] não só das suas, mas nem ainda das nossas porque [se] querem dizer Francisco, dizem Pancicú e se querem dizer Luís, dizem Duhi...» .
Serafim da Silva Neto, sempre copioso em seus dados informativos, assinala que cruz tornava-se curuçá, soldado transformava-se em çurara, barriga em marica, livro em marica, livro em riberú, ferreiro em pererú, espeto em cepetú, torto em torotú, mãe em maiá (observe-se o atual manhê), saco em saká, balaio em varaiá, sábado em sabará, chave em xav.iií. Ao citar a Revista do Instituto Histórico, ano de 1927, apresenta exemplos mais recentes. É evidente que dos exemplos de cruz, Francisco e chave, acima citados, depreende-se que os outros tinham igualmente pronúncia exitônica. tudo isso acontecia devido ao processo de aglutinação característico do tupi. Na verdade, articulavam as palavras portuguesas dentro da atitude de receptores que procuravam distinguir no que ouviam os elementos componentes. Também dentro desse contexto, cabe a citação, feita por Wilson Martins:
« Não têm escrita, nem caracteres, nem sabem contar, nem têm dinheiro; commutatione rerum compram uns aos outros; sua língua é delicada, copiosa e elegante, têm muitas composições e sincopas mais que os gregos, os nomes são todos indeclináveis, e os verbos tem suas conjugações e tempos. Na pronunciação são sutis, falam baixo que parece que não se entendem e tudo ouvem e penetram; em sua pronunciação não põem F, L, Z, S e RR, nem põem muta com liquida, como Bra, Craze.»
Outra conseqüência importante dessa situação é a valorização das vogais abertas ou semi-abertas, naturalmente, configuram nitidez de pronúncia. É absoluta na Bahia, por exemplo, a predominância das vogais abertas ou que tendem à abertura. O [a], inclusive, vogal central e aberta, é emitido sem modificações condicionadas pela posição, seja a de sílaba pretônica, seja a de postônica. A preferência pela vogal central, em particular, e pelas vogais abertas, em geral, dá origem a outro fato igualmente importante, ou seja, a manutenção das consoantes alveolares [s], [z], [r]. Em contrapartida, é menor a atração pelas palatais [˜], [™], [ r ] (a seta sotoposta a esta última indica seu caráter retoflexo).
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Trata-se do sistema de transcrição fonética do Atlas Prévio dos Falares Baianos). Naturalmente, havia também essa preferência por parte dos portugueses dos dois primeiros séculos mas, como vimos, em decorrência de um acento de intensidade fraco. Houve, no caso, convergência do hábito com os dos nativos. Em outras palavras, fatores diferentes levavam a resultados semelhantes que, coexistindo, se somavam, acarretando uma intensificação do hábito. Por isso, usam tanto os baianos as vogais abertas. Tal fato se estende até o Nordeste, onde a predominância dos índios, em conseqüência do caráter de mobilidade da economia de criação de gado, se evidencia, ainda hoje, no tipo físico, ao contrário do centro-sul, onde ofereceram grande resistência à aculturação. A causa dessa resistência foi o fato de terem sido objeto de caçada, por parte dos paulistas, com propósitos exclusivos de escravização.
Deve-se notar, também, que numa sociedade bem estratificada é mais comum, no plano lingüístico, chegarem-se os senhores aos servos ou àqueles que deles dependem política e economicamente. Isso, evidentemente, só acontece quando a força que os separa acarreta o surgimento de um poder irreversível. Este último gera concessões ao instrumento lingüístico oposto, as quais começam com o uso mesmo da língua do vencido, nos primeiros tempos, para o inevitável intercurso diário. Se a individualidade cultural do vencido persiste, o uso de sua língua se prolonga, num contexto de bilingüismo, até que esta, finalmente, sucumba, deixando, porém, na língua de colonização, marcas indeléveis de sua existência.
10. A língua dos negros, no caso brasileiro, foi veículo de alterações circunstanciais ou superficiais. Não é difícil entender isso. Uma parte dos negros que chegavam ao Brasil era já conhecedora operacional do português. A literatura colonial, de ficção e de não ficção, é pródiga na referência a negros ladinos e boçais. Os primeiros eram os que já se exprimiam de alguma forma em português antes de chegarem ao Brasil ou que, logo ao chegarem, eram capazes de se entender numa língua de emergência. Os boçais só se exprimiam em sua língua. Na Bahia, era o nagô ou o ioruba. Isso é importante porque muitos que chegavam traziam, eles mesmos, um instrumento lingüístico de emergência, um pidgin, que não chegou a se tornar um falar crioulizante pois, em nosso entender, teve vida curta por causa do tipo de interação social que seus usuários foram levados a ter com os portugueses. O pidgin que traziam da África era produto do tipo de contato que tinham com os portugueses no continente negro. O Atlas Prévio dos Falares Baianos oferece prova do caráter transitório das adaptações e simplificações, típicas dos falares não crioulizados, mas que coexistem com formas normais do português ou que simplesmente não aparecem, quando isso seria de se esperar. Esporadicamente, registra o Atlas essas adaptações ou simplificações, que devem ser consideradas como os últimos vestígios dos últimos negros que no Brasil empregaram um falar de emergência depois de chegarem nos últimos navios negreiros. Note-se que a Bahia é o Estado de população negra mais densa. Boio e fufaco são os vestígios. Assim: 1. boio, ao invés de boi: 5 ocorrências em 36 (paragoge de [o]). 2. fufaco, para sovaco: uma vez apenas (ensudercimento do [v] seguido de assimilação regressiva).
Paragoge de [e], depois de [r] ou [z] (como em dare = dar), troca de [l] intervocálico por [r] (como em Fidere = Fidélis) ou articulação de es- ou ex- como
[ò ] ou [s ], alterações típicas dos negros, no primeiro contato com o português, não ocorrem nenhuma vez no Atlas Prévio dos Falares Baianos. Exemplos desses casos podem ser encontrados no livro de Baltasar da Silva, O dialeto crioulo de Cabo Verde, Lisboa 1957.
O contato entre brancos e negros, na África, não envolvia propriamente colonização, nos termos em que se fazia no Brasil. Isso significa que falares de emergência, ou pidgins, se criaram. Algum pidgin português foi trazido para o Brasil com alguns negros ladinos. Como eram escravos, o aprendizado do português pelos negros boçais se fazia com base, quando existia, no pidgin de seus irmãos de cor, os ladinos. O pidgin, como se sabe, se caracteriza pela extrema simplificação das formas, segundo diretrizes meramente auditivas. Acontece que o negro, como servo, teve um tipo de vida basicamente diferente do dos índios. Seu contato com o branco era direto, dentro de casa, passando a conviver com ele em termos mais efetivos. Isso significa que a estratificação social era compensada por um inter-relacionamento afetivo que favorecia lingüísticamente, uma aproximação com respeito à estrutura do português de seus senhores. este, por sua vez, era mais tendente à concessão lingüística ao índio por não existir para com ele esse fator afetivo. Em outras palavras: o negro simplificava a língua dos senhores, mas mantinha-lhe a estrutura, que se alterara no contato entre brancos e índios, assim mesmo dentro de um processo temporário. As modificações do português da Bahia, passíveis de atribuição ao negro, são meramente circunstanciais e configuram alterações fonéticas que se verificam em todas as línguas: iotizações, assimilações, dissimilações, metáteses, etc.
11. Mattoso Câmara Júnior, ao comentar os pontos de vista de Gladstone Chaves de Melo, afirma que a grande falha da tese do substrato tupi é que ela opera com a língua geral, usada na catequese como meio intercurso nos tempos coloniais. Acrescenta que, como tal, falta-lhe a condição de verdadeiro substrato, que só se verificaria se os habitantes que constituem a nação brasileira fossem sempre uma população tupi com sua língua substituída pelo português. Conclui que a intromissão da língua geral é, quando muito, um caso de adstrato, como é segundo ele, a situação do árabe em relação ao português europeu.
Naturalmente, dizer que o português do Brasil exemplifica ação de substratos implica a investigação minuciosa de pelo menos uma fração do conjunto lingüístico brasileiro, a fim de que, analisado internamente o corpus , se verifique a existência ou não de características que pressupõem influências. Neste caso, o estabelecimento de um quadro fonológico baseado exclusivamente num sistema de oposições, não é suficiente, porque o fonema diz da língua, mas não de variedades dela, principalmente no plano horizontal. É verdade que o apelo ao substrato indígena ou africano não logrou depreender fonemas novos para os dialetos ou para o português em geral, mas isso não significa que o termo substrato deva ser abandonado em favor do termo empréstimo, preferido por Jakobson, mestre de Mattoso Câmara. A utilização do termo substrato é válida porque, no fundo, significa o mesmo que empréstimo porque não se trata de caracterizar o português, mas sim o português do Brasil. O que, no plano português, não serviria para distingui-lo de outra língua românica, serve para distinguir o português do Brasil do Português europeu.
A condição, para reconhecimento da função de substrato, da existência de uma população de maioria tupi a ter sua língua substituída pelo português, existiu, ao contrário do que sugere Mattoso Câmara, pois durante três séculos, pelo menos, os índios e mestiços - estes ligados mais à cultura indígena por razões econômicas - foram numericamente superiores aos brancos com os quais se relacionavam no contexto econômico de mobilidade das fazendas de gado. Ainda hoje, na bacia amazônica, ocorre essa situação.
Resta analisar o fato de como poderia uma língua de intercurso entre colonos e nativos (no caso, a chamada língua geral) exercer o papel de substrato.
Não sendo capaz o aloglota de realizar, por exemplo um fonema, como a língua palatal | |, que não existia em seu sistema, tinha duas opções: realizá-lo como sibilante palatal, | |, no caso dos índios, ou como iode | |, no caso dos negros. Assim, ovelha > obecha e oveia, respectivamente. Podemos, então, dizer que influencia o aloglota por deixar de usar, por incapacidade, traços da língua que aprende e não por compensar esta incapacidade incluindo na nova língua traços da sua. Como se trata de ação negativa de aproximação, com o passar do tempo vai ela sendo amortecida até surgir a situação de empregarem os descendentes do aloglota os mesmo fonemas e alofones da língua de que se aproximaram. Do plano prosódico adviriam resultados da convergência de duas línguas em contato, pela preciptação de tendências latentes no sistema da língua de colonização a partir da soma destas com os hábitos articulatórios negativos dos novos falantes.
Em síntese, podemos dizer o seguinte:
O português do Brasil deve ser avaliado dentro de uma perspectiva cultural e lingüística, ao mesmo tempo. Sob a perspectiva cultural, deve ser considerado como um dos produtos do contexto social que se foi delineado nos séculos XVI e XVII, atingiu o máximo de definição no século XVIII e caminhou para uma estratificação nos séculos XIX e XX. Sob a perspectiva lingüística, deve ser considerado como o produto de fatores estreitamente ligados ao contato e à interação realizados no plano social. Em certas regiões, apresenta-se o português do Brasil como produto do contato social. em outras, como resultado da interação. O contato social deve aqui ser especificado como o existente naquelas regiões em que a atividade econômica não se fez em termos de busca de estabilidade entre grupos populacionais. A interação, ao contrário, deve corresponder àquelas regiões em que a atividade econômica se desenvolveu dentro de um contexto de busca de equilíbrio no relacionamento entre os grupos étnicos. Durante o período de colonização, a interação configurou dois aspectos: atividade econômica com características de mobilidade geográfica e atividade econômica com características de fixidez, também geográfica. Aquela concretizou-se nas fazendas de gado; estas, nos engenhos de açúcar. Os índios e seus descendentes, os caboclos, ligaram-se à primeira; os negros, às segunda. Nas regiões do Brasil em que a interação social não se realizou verdadeiramente, no período colonial, o contato resultante não podeira, naturalmente, configurar a participação do elemento negro mas, apenas, a do índio.
As três situações apontadas contribuíram para a fixação das duas variedades principais do português do Brasil, a do norte e a do sul. A variedade do norte corresponde ao contexto de interação; a do sul ao contexto do contato.
Como vimos, a interação se fez em termos de mobilidade e em termos de fixidez geográfica. A participação lingüística dos índios, no norte, realizou-se intensamente na primeira situação; na segunda, realizou-se a participação lingüística dos negros. Como a primeira configurava mobilidade, não pode ser dissociada do conceito de povoamento. Em conseqüência, a atividade lingüística da população correspondente, ou seja, de brancos índios e caboclos pôde penetrar de maneira difusa em todo o território ao norte de Minas Gerais.
A influência africana no português do Brasil teria, assim, caráter restrito, exercendo-se, em face do relacionamento senhor/escravo, exclusivamente no campo lexical.
A influência do índio seria mais ampla, caracterizando-se por uma caminhada forte da língua geral em direção ao português estabilizado, internamente, dos colonos e uma caminhada pequena deste em relação à língua geral. Esta dupla caminhada configuraria uma convergência entre tendências, do lado dos portugueses, e de hábitos articulatórios negativos, do lado dos índios. O resultado seria precipitação de algumas daquelas, quando intensificadas por estes. Das tendências precipitadas, as mais fortes se situaram no plano prosódico. A tendência do português estabilizado do colono era no sentido de realizar os enunciados de maneira mais descansada, isto é, com menor distinção entre sílabas tônicas e átonas. A tendência da língua geral era a de articular com nitidez os sintagmas normais de sua realidade estrutural, como língua de caráter aglutinante que era. Isso levava à formação de termos ou enunciados mais simples, em que os componentes se distinguiam mais se comparados aos componentes dos enunciados dos colonos. Dentro do contexto de mobilidade social, assinalado atrás, entende-se o de povoamento. Em conseqüência, a prosódia da população correspondente estendeu-se por toda a região. Os fatos do plano segmental, ou seja, a articulação de fonemas e alofones, não tem valor como causas da individualização do português da região, mas apenas como conseqüências da mesma.
No contexto de contato social, mantido, durante o período colonial, na região ao sul de Minas Gerais, a relação branco/índio foi a que se realizou. Como não se estabilizou nos moldes da situação econômica do norte, manteve sempre a característica de primeiro contato, o que configurou, no falar caipira - que é o da região ao sul de Minas Gerais, até o Paraná - um plano prosódico não muito diferente, mas um plano segmental que se ressente da não estabilização de certos hábitos articulatórios. Em conseqüência, o falar caipira reflete muito mais o traço inicial da imitação, na caminhada da língua geral em direção ao português, sem a contrapartida de uma pequena caminhada deste em relação a ela, não havendo, assim, a convergência que se realizou no norte.
No século XVIII, a região do Estado de Minas Gerais foi desbravada. Convergiam para ela as populações dos dois contextos sociais, a do norte e a do sul. O resultado foi um falar de transição, que, hoje, se apresenta estabilizado como tal.
Na região do Rio de Janeiro, até o século XVIII caracterizada pela influência no contexto social do sul, ocorreu o fato novo e inesperado do povoamento maciço por parte de portugueses que, em inícios do século XIX, falavam uma língua prosodicamente diversa da dos antigos colonos que vieram ao Brasil. Surgiu, em conseqüência, um falar fluminense, do qual o carioca é expressão típica. Nestes 150 anos, estendeu-se o falar fluminense até o Espírito Santo.
Na região sul, o falar caipira entrou em processo de divisão devido ao forte movimento imigratório iniciado no século XIX. Permaneceu, de um lado, o antigo falar caipira e espalhou-se pelos núcleos urbanos e respectivas regiões de influência uma variedade dele, surgida naturalmente mas definida pela lenta incorporação de hábitos articulatórios de estrangeiros, principalmente italianos. No extremo sul, o contato fronteiriço com os países de língua espanhola alterou ainda mais o falar caipira modificado, ou, como é mais conhecido, o falar paulista, que, paralelamente, se estendera aos Estados do centro-oeste do Brasil, Goiás e Mato Grosso.
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NOTAS
1 SILVA NETO, Serafim da História da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1952, nota 88. Ver também as páginas 366, 386 e 393.
2 ibidem. p. 393 e 395.
3 Wilson Martins, História da inteligência brasileira, São Paulo 1976, vol. 1, p. 185-190. Martins observa, com muita acuidade, a ligação dos jesuítas com o mito do sebastianismo.
4 ibidem. p. 29-38.
5 Frederico G. Edelweiss, O tupi no currículo universitário, comentários em torno de uma iniciativa pulista, in Estudos tupis e tupi-guaranis, Rio (Livraria Brasiliana) 1969, p. 55-56.
6 Eodoro Lincoln Berlinck, Fatores adversos na formação brasileira, 2. ed., São Paulo 1954, p. 239.
7 Berlinck, p.239.
8 ib. p. 241.
9 ib. p. 240.
10 ib. p. 241. Fazemos aqui um aditamento à presente nota, esclarecendo esse pensamento nosso de 1981. No sermão "Xavier dormindo e Xavier acordado. Xavier acordado. Sermão I", (Sermões do Padre Antônio Vieira. Oitava parte. Xavier dormindo e Xavier acordado. Xavier acordado. Sermão I. Anjo. Lisboa, na oficina de MIguel deslandes, 1694, p. 163-165), Vieira explica o método de evangelização de São Francisco Xavier: "E Xavier, que fazia para que eles o entendessem ? Arremedava as suas linguagens com os próprios acentos, nunca mais eloqüente, que quando nos tempos, nos casos, nos gêneros, imitava os seus barbarismos..." Igual procedimento vieram a empregar os jesuítas no Brasil, provavelmente por iniciativa de Anchieta, isto é, falar o português, diante dos índios, como lhes chegava aos ouvidos o português do língua (intérprete) indígena. Desse modo, a distância psicológica entre os padres e os nativos que iam sendo evangelizados diminuía, configurando um processo que já devia existir espontâneamente desde que o primeiro português foi deixado na terra. Com os jesuítas, no entanto, intensificou-se porque era conscientizado pela Companhia de Jesus, resultando do mesmo, ao fim de algum tempo, uma variedade de português já diversa do idoma da metróple, o português do Brasil. Maiores detalhes sobre essa questão, que tivemos a primazia de levantar, em trabalho nosso posterior: Formação e desenvolvimento da língua nacional brasileira ( In: A LITERATURA NO BRASIL, direção de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1986, v. I, p. 258-385.)
11 O padre Serafim Leite, em Novas cartas jesuíticas, p. 109, apresenta uma carta de Manuel da Nóbrega, de 1561, em que assevera que a língua dos índios era para os religiosos e portugueses a << mais principal ciência >>. Cf. Serafim da Silva Neto, Introducão ao estudo da língua portuguesa no Brasil, p. 32 e 33, texto e notas. Ver, adiante, nota 17.
12 Renato Mendonça, A influência africana no português do Brasil, 3. ed., Porto, 1948, 288 p.
13 Jacques Raimundo, A língua portuguesa no Brasil, Rio de Janeiro, 1941, 120 p.
14 Mário Marroquim, A língua do Nordeste, 2. ed., 1946, 250 p.
15 Artur Neiva, Estudos da língua nacional, Rio, 1940, 372 p.
16 Amadeu Amaral, O dialeto caipira, São Paulo, 1955, 195 p.
17 Serafim da Silva Neto, Introdução ao estudo da língua portuguesa no Brasil, Rio de Janeiro, 1964.
18 Gladstone Chaves de Melo, A língua do Brasil, 3. ed., Rio 1975, 209 p.
19 Manuel de Paiva Boléo, Brasileirismos, Coimbra, 1943.
20 José Leite de Vasconcelos, Esquisse d'une dialectologie portugaise, Paris, 1901.
21 I.S.Révah, La question des substrats et superstrats dans le domaine linguistique brésilien, Romania 84 (1963), 433-450.
22 Berlinck, p. 161.
23 Artur Ramos, A aculturação negra no Brasil, Rio 1940, p. 20-21.
24 Serafim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, Rio de Janeiro 1938, vol. 2, p. 353.
25 Silva Neto, op. cit. acima, nota 17, p. 39.
26 Roberto Simonsen, História econômica do Brasil, citado por Berlinck, op. cit. acima, nota 6, p.155.
27 Fernão de Oliveira, Grammatica da lingoagem portugueza, editada por Rodrigo Sá Nogueria, Lisboa 1933, p. 47-48. Assim declarava o primeiro gramático português:
« Huãs gentes formão suas vozes mais no papo, como caldeus e arabicos, e outras nações cortão vozes, apressando-se mais em seu falar: mas nós falamos com grande repouso, como homens assentados» (o grifo é nosso). Dizia ainda:
« ...As nossas vozes acabão sempre em voz perfeita e desempedida, o que não consentem as letras mudas: mas ao contrario atão a boca e cortão as dicções, o que he proprio de mudos e grosseiros, como vemos quasi nas gentes de terras frias: as quaes Dido Virgiliana, respondendo a Ilioneu, quer entender que pela pouca participação do sol são menos perfeitas.» « ... Assi também as nossas syllabas nunca se começão em duas letras de diversa natureza, como speranças: mas sempre lhe daremos nos começos das taes vozes huã vogal que soe com a primeira letra: como esperança, estrado, porque já dissemos que a nossa lingua he muy comprida no pronunciar das letras e syllabas.»
28 Antonio Joaquim Macedo Soares, Estudos lexicográficos do dialeto brasileiro, Rio de Janeiro (Imprensa Nacional) 1943, p. 24.
29 Vicente do Salvador, História do Brasil, Rio de Janeiro 1889, p. 25.
30 Silva Neto, op. cit. acima, nota 17, p. 34.
31 Martins, op. cit. acima, nota 3, p.57.
32 Joaquim Mattoso Câmara, Jr., Os estudos do português no Brasil, Rio de Janeiro (Faculdades de Letras da U.F.R.J), 24 p. mim.
33 Câmara, Jr., p. 18.
34 ib. p. 10.
35 Joaquim Mattoso Câmara Jr., Introdução às línguas indígenas brasileiras, Rio de Janeiro (Livraria Acadêmica), p. 108.