MUNDUS NOVUS
Há dias lhe escrevi extensamente acerca do meu regresso das terras novas, que, na frota a expensas deste Serenissimo rei de Portugal, corremos e descobrimos; as quaes terras nos deve ser permitido chamar Novo Mundo, porque, entre os nossos maiores, não houve o menor conhecimento de que fossem habitadas, e, para todos que ouvirem, será uma novidade. E, entretanto, esta opinião vai além da dos antigos, pois, deles, a maior parte dizia que, além da equinocial, para a banda do meio-dia, não existia terra continental, mas somente o mar Atlântico, e os que afirmaram haver aí terra negaram que fosse habitada de racionais. Mas, o ser esta opinião falsa e a contrária verdadeira, se provou nesta minha ultima viagem, pois naqueles meridianos encontrei terra continental habitada de mais povos e animais que a nossa Europa e a Asia ou Africa, e os ares mais temperados e amenos que em qualquer outra região conhecida, conforme direi, tratando do que vi ou ouvi digno de notar neste Novo Mundo e segundo se verá mais abaixo.
Aos 14 de Maio de 1501 partimos de Lisboa por ordem do dito rei, com tres navios, em busca das novas terras austrais. Com viagem feliz, navegamos, de contínuo, dez meses para as bandas do sul, pela forma seguinte. Fizemos caminho pelas ilhas, antes ditas Fortunadas, e que hoje se dizem Grã-Canarias, que ficam no terceiro clima e confins do ocidente povoado. Depois corremos, pelo oceano, todo o litoral africano e parte do etíope, até o promontório chamado de Etíope por Ptolomeu; o qual agora, pelos nossos, se diz Cabo Verde e pelos etíopes Bezeguiche, e a região Mandinga, em 14° ao norte da equinocial, habitada por pretos.
Aí, recuperadas as forças e providos do necessario, levantamos âncoras, largamos velas e segulmos viagem para o sul, caindo um tanto para oeste, aproveitando os ventos de leste E navegamos, desde o dia que partimos do dito cabo, durante dois meses e sete dias antes de encontrar nenhuma terra.
Quanto sofremos, que perigos de naufrágio e de corpo aguentamos, em que ansiedades de ânimo nos vimos, deixo à consideração dos que têm exato conhecimento das coisas, e do que seja buscar o incerto e investigar o ignorado; e, para dizer tudo em poucas palavras, acrescentarei que, dos sessenta e sete dias que, de contínuo, navegamos, quarenta e quatro tivemos de chuva, trovões e raios; e tão escuros que nem víamos de dia o sol, nem de noite o sereno céou. O fato é que tanto aumntara em nós o medo, que havíarnos perdido quase toda a esperança de vida. No meio destas terríveis tormentas aprouve ao céu altissimo mostrar-nos terra continental e novas regiões, e outro mundo desconhecido, com o que tanto nos alegramos quanto podem imaginar os que tenham experimentado várias calamidades e fortunas contrárias. No dia 17 de agosto de 1501 surgimos na costa daquela terra, agradecendo a Deus, com solemnes preces, e celebrando uma missa cantada, a qual terra reconhecemos não ser ilha, mas sim um continente, pois corremos ao longo do seu litoral, sem a rodear, e era povoada de inumeros habitantes e de muitas sortes de animais silvestres, que não se encontram nos nossos países, e muitas outras coisas nunca de nós vistas, que seria longo de referir. Muito devemos à clemencia de Deus, que nos fez aportar naquela região, porque já nos faltava água e lenha, e poucos dias mais poderíamos aturar no mar. Por isso a ele honra e glória em ação de gracas.
Resolvemos navegar seguindo o litoral, que pende para o oriente, sem dele no afastar e tanto o costeamos que chegamos a um ângulo, para diante do qual a costa propendia para o sul. E desde o lugar, em que primeiro surgimos até o dito ângulo, contamos trezentas léguas, durante as quais nos comunicamos muitas vezes com a terra e os seus habitantes, como abaixo narrarei. Esquecia-me de dizer que, desde o Cabo Verde até a dita primeira parada desse continente, há perto de setecentas léguas. Ainda que avaliemos em mais de mil e oitocentas as que navegamos - em parte por ignorância dos lugares e do capitão e em parte pelas tempestades e ventos que nos impediam seguir caminho reto - fomos obrigados a fazer muitas singraduras. De modo que, a não ser os que entendíamos de cosmografia, não seria o nosso chefe que, durante quinhentas léguas, saberia onde estavámos. Andariamos vagos e errantes, se não nos valêssemos dos nossos instrumentos de tomar a altura - o quadrante e o astrolábio, bem conhecidos. E assim, desde então, todos nos fizeram muita honra, e lhes provei que, sem conhecimento da carta de navegar, não há disciplina que valha para a navegação, a não ser pelos mares já pelos mesmos indivíduos muito navegados.
Do lugar, porém, em que o litoral quebrava em ângulo para o sul, resolvemos continuar a navegar, e ver que região fosse essa. Navegamos, pois, seguindo a costa umas seiscentas léguas, baixando muitas vezes em terra, tratando com os habitantes, e sendo bem recebidos e morando com eles amigavelmente às vezes quinze e vinte dias contínuos, como abaixo se verá.
Uma parte deste continente jaz na zona tórrida, ao sul da equinocial desde o oitavo grau. Tanto ao longo dele navegamos que, passado o trópico de Capricórnio, chegamos à altura de cinquenta graus, na distância de dezesete e meio do circulo antartico. E do que vi e investiguei da natureza daquelas gentes, dos seus costumes e trato, da fertilidade da terra, da salubridade dos ares, da disposição do céu e dos corpos celestes, e, especialmente das estrelas fixas da oitava esfera, nunca aos nossos maiores vistas ou tratadas, passarei a dar conta.
Começarei pela gente. Foi tanta a multidão dela, mansa e tratável, que encontramos naquelas regiões, que, como diz o Apocalipse, não se pôde contar. Os de um e outro sexo andam nus, sem cobrir nenhuma parte do corpo, como saem dos corpos das mães, e assim vão até a morte. Têm os
oscorpos grandes e robustos, bem dispostos e proporcionados, de cor tirante a vermelha, o que, segundo creio, lhes procede de serem tintos pelo sol, andando nus.
Têm os cabelos negros e crescidos; são ágeis e fáceis no andar e nos jogos, e de muí belas feições, as quaes contudo a si próprios desfiguram, furando as faces, os labios, as ventas e as orelhas. E não se creia que os buracos sejam pequenos ou tenham apenas um, pois vi muitos com sete, cada um dos quais tão grandes como um abrunho. Tapam estes buracos com bonitas pedras azuis de mármore, cristalinas ou de alabastro, e com ossos alvíssimos e outros objetos elaborados segundo seu uso, que é insólito e monstruoso. Homens há que levam nas faces e lábios sete pedras, cada uma de metade da palma da mão de comprido. Não sem admiração, muitas vezes achei pesarem essas sete pedras dezesseis onças, além das que trazem pendentes de três buracos nas orelhas.
Mas este uso é somente dos homens. As mulheres não furam as faces, mas somente as orelhas.
Outro costume têm extravagaute, e que parece incrível: que as mulheres, sendo libidinosas, fazem inchar o membro de seus maridos tanto, que parecem brutos, e isto por meio de certo artifício e mordedura de uns bichos venenosos, por cujo motivo muitos deles o perdem e ficam como eunuchos.
Não possuem panos de lã nem de linho, nem mesmo de algodão; porque os não necessitam, nem têm bens de propriedade; porém tudo lhes é comum. E vivem juntos, sem rei nem imperio, e cada qual é senhor de si.
Tomam tantas mulheres quantas querem, e o filho se junta com a mãe, e o irmão com a irmã, e o primo com a prima, e o caminhante com a que encontra. Basta a vontade para matrimoniarem, no que não observam ordem alguma. Além disso não possuem templos nem leis, nem são idólatras. Que mais direi? Vivem secundum naturam, e se podem conceituar de epicureos mais que de estóicos. Não há entre eles comerciantes nem comercio. Guerreiam-se entre si, sem arte nem ordem. Os mais velhos, com alguma parcialidade, obrigam a quanto querem os jovens, e os levam à guerra, na qual se matam cruamente; e aos que cativam não poupam as vidas senão para que os sirvam toda a vida, ainda que a outros comem, sendo certo que é entre eles a carne humana manjar comum; e se há visto haver o pai comido mulher e os filhos. E um conheci eu, a quem falei, que se gabava de haver saboreado trezentos corpos humanos, e até estive vinte e sete dias em certa povoação, onde vi dependurada pelas habitações carne humana salgada, como entre nós se usa com o toucinho e a chacina de porco.
Digo mais: até se admiram de como nós não comamos os nossos inimigos, nem façamos uso de sua carne, que dizem saborosíssima. Suas armas são arcos e flechas; e, quando se afrontam em ação não cobrem nenhuma parte do corpo para defender-se, e nisto são semelhantes aos animais. Procuramos dissuadi-los quanto nos foi possivel destes bárbaros costumes, e eles nos prometeram deixá-los.
As mulheres vão nuas, e conquanto libidinosas, como disse, são assaz belas e bem formadas; e pasmoso nos pareceu que, entre as que vimos, nenhuma se notava que tivesse os peitos caidos; e as que já haviam parido, pela forma do ventre e sua contração, não se diferençavam das virgens, e se Ihes semelhavam nas outras partes do corpo, do que por decênencia deixo de ocupar-me; mas quando podiam tratar com os nossos cristãos, impelidas pelo desejo, não tinharn o menor pudor.
Vivem cento e cinquenta anos e raras vezes adoecem. E se adoecem, a si proptios se curam com certas raízes de plantas. Eis quanto de mais notável entre eles observei. Os ares aí são temperados e bons; e, pelo que pude deduzir de suas narrações, não há pestes nem doenças provenientes da corrupção do ar, e, se não morrem de morte violenta, vivem larga vida; segundo creio, porque sempre aí predominam os ventos austrais, e principalmente o que denominamos euro ou aquilão.
Deleitam-se na pesca, e o mar é aí mui próprio para ela, porque é copioso em toda sorte de peixes.
Não se dão à caça; penso que porque havendo aí muitas sortes de animais, maxime leões e ursos e muitas cobras e outros bichos hórridos e disformes, e porque os bosques são extensos e as árvores muito grandes, não ousam arriscar-se nus e sem comprimento a tantos perigos.
A terra daquelas regiões é fértil e amena, de muitos montes e morros, e infinitos vales, e regada de grandes rios e fontes, coberta de extensos bosques, densos e apenas penetráveis, e povoada copiosa.mente de feras de todas as castas. Nela nascem, sem cultura, grandes árvores, as quais produzem frutos deleitosos, e de proveito ao corpo e nada nocivos, e nenhuns frutos são parecidos com os nossos. Produzem-se inumeráveis gêneros de árvores e raízes, de que fabricam pão e ótimos mingáus, além de muitos grãos ou sementes não semelhantes aos nossos.
Metais nenhuns aí se encontram, exceto o ouro, do qual há abundância, se bem que desta viagem nenhum conosco trouxemos; mas deram-nos dele notícia os habitantes, afirmando que nos sertões havia muito, mas que não o estimavam nem apreciavam.
As pérolas abundam nesta região, como em outro lugar escrevi. Seria demasiado prolixo e descomedido se quisesse dar conta uma por uma de todas as coisas dignas de notícia e das numerosas espécies e multidão de am mais. E verdadeiramente creio que o nosso Plínio não conseguiu tratar da milésima parte dos animais, nem dos papagaios e outros pássaros, os quais, naqueles países, são de formas e cores tão variadas, que o artista Policleto não conseguiria pintá-los. Todas as árvores tão odoríferas, e produzem gomas ou óleos, ou algum outro licor, cujas propriedades todas, se fossem conhecidas, não duvido que andaríamos todos sãos. E por certo que se o paraíso terreal existe em alguma parte da terra, creio que não deve ser longe destes países, ficando situado ao meio dia, com ares tão temperados, que nem no inverno gela, nem no verão faz calor.
O céu e os ares, na maior parte do ano, são serenos, repassados de densos vapores. Chove aí a miúdo e dura a chuva três e quatro horas, e como nimbulos se esvai. O céu se adorna de belíssimos signos e figuras; e notei umas vinte estrelas de tanta luz, como algumas vezes tinhamos visto Vênus e Júpiter. Estudei os seus movimentos e órbitas, e medi suas circunferências e diâmetros por um breve processo geométrico, e reconheci serem de grandeza maior. Vi naquele céu três Canopus, dois sem questão de maior grandeza, e o outro escuro. O pólo antártico não é figurado com as Ursas maior e menor, como o nosso, nem junto dele se vê nenhuma estrela brilhante; e, entre as que giram em seu derredor em breves órbitas, três têm a figura de triângulo retângulo, cuja semi-periferia tem de diâmetro nove gráus e meio. E quando nascem da esquerda, se vê um canopo branco de exímia grandeza, e quando chegam a meio céu têm esta figura:
Após estas vêm duas, cuja semi-periferia tem doze graus e meio, e com ela se vê outro canopo claro. Seguem mais seis estrelas formosíssimas e claríssimas entre outras da oitava esfera, que, na superfície do firmamento, têm no diâmetro da periferia trinta e dois graus, e são acompanhados de um canopo escuro de imensa grandeza, que se vê na via láctea, e quando se acham na linha do meio-dia apresentam esta figura:
Muitas outras belíssimas estrelas reconheci, notando suas órbitas, as quais descrevo graficamente no meu livro desta viagem, ainda em poder deste Serenissimo rei, que espero m'o restituirá.
Naquele hemisfério vi coisas não de acordo com as razões dos filósofos. Perto da meia-noite, foi visto o arco-iris brilhar, não só por meus olhos, como por todos os nautas. Igualmente vimos a lua nova no dia da conjunçãocom o sol. Todas as noites percorrem naquele céu inumeros vapores e flamas ardentes. Disse hemisfério, ainda que, com respeito a nós, não o seja mui rigorosamente, mas só para que nos entendamos.
Assim, partidos de Lisboa a trinta e nove graus e meio ao norte da linha, navegando além de cinquenta graus sul, se contaram uns noventa graus na latitude, os quais, perfazendo um quarto de círculo máximo, é manifesto que, segundo as noções que herdamos dos antigos, navegamos a quarta parte do mundo. E por esta razão, os que moramos em Lisboa, em trinta e nove graus e meio de latitude setentrional, estamos em relação, com os que se encontrem em cinquenta graus do lado do sul, no quadrante, em linha a transversal; ou mais claro: a linha vertical, que parte de nós ao ponto do céu sobre nossas cabeças, fica-lhes a eles de lado, formando com a deles um triângulo-retângalo, cuja altura nos corresponde, e a eles a base, ambas reunidas na extremidade pela competente hipotenusa, como se vê da seguinte figura:
E o dito baste quanto à cosmographia.
Tais foram as coisas mais notáveis que vi nesta minha última viagem, que denomino Jornada Terceira, pois as outras duas foram as viagens que para o ocidente fiz por mandado do Serenissimo rei de Hespanha, nas quais assentei, dia por dia, todas as coisas admiráveis e mais de notar do sublime Creador, nosso Deus, para, quando tenha tempo, me dedicar a coligir todas estas singularidades e maravilhas, escrevendo, geográfica ou cosmograficamente, um livro, para que minha memória passe à posteridade, e se conheça o imenso certifício de Deus Onipotente, em parte dos antigos ignorado e de nós conhecido. Pelo que rogo a Deus clementíssimo que me proIongue os dias de vida, a fim de que com saúde e a sua boa graça possa reaIizar este desejo e boas disposições. As outras duas Jornadas as reservo; e restituindo-me este Sereníssimo rei a terceira, regressarei tranquilamente à pátria, conferindo com os peritos, e com auxílio e animação dos amigos, espero que poderei levar a cabo estes intentos. Peço desculpa de não lhe enviar esta derradeira Jornada, conforme prometi na minha última. É disso causa o não haver podido conseguir a sua restituição deste Serenissimo rei. Penso fazer ainda uma quarta viagem; e já dois navios estão para isso armados, e a promessa feita para eu ir, peIo sul, rumo de África, em busca de novas regiões no oriente. E nesa nova viagem muito penso realizar em louvor de Deus e utilidade do seu reino, e honra da minha velhice, e nada mais espero senão a ordem do mesmo Serenissimo rei. Deus nisso permita o que creia melhor, e o que for resolvido constará.
"O tradutor Giocondo (Jocundus) verteu a presente epístola do italiano em latim, para que os latinos reconheçam quantas coisas admiráveis se viram nesta viagem, e se reprima a audácia dos que pretendam perscrutar o erro e a magestarle, e saber mais do que é lícito; quando, havendo tanto tempo que começou o mundo, é desconhecida a vastidão da terra e quanto ela contém -Deus louvado."
(Extraído de VARNHAGEN, Francisco Adolfo, Visconde de Porto Seguro. Cartas de Amerigo Vespucci. Revista Trimensal do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, 41 (1878): 20-31.)