Tradução dos textos latinos Américo Vespúcio.
| Autor: Dr. Miguel Menezes
| Fonte: ZWEIG, Stefan. Américo Vespúcio. Tradução de José Francisco dos Santos. 3. ed. Porto, Livraria Civilização, 1956. 211p.
| Textos latinos traduzidos por Miguel Menezes e transcritos por Zweig em seu livro:
| Quatuor Navigationes. Incluído na "Cosmographiae Introductio", de Waldseemüller (Edição de 1507).
| Mundus Novus. Reproduzido na "Raccolta Colombiana" (Parte III, vol. II).
Zweig,
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| As quatro navegações de Américo Vespúcio
| A Renato, muito ilustre rei de Jerusalém e da Sicília, Duque de Lorena e Bari, envia Américo Vespúcio humilde reverência e devida recomendação.
| Talvez, ilustríssimo Rei, V. M. se admire de eu ousar escrever tão prolixa carta, não obstante saber-vos permanente ocupado com árduos conselhos e frequentes negácios de Estado. Julgar-me-ão decerto petulante e ocioso por me atribuir o dever de vos endereçar a relação de fatos de menos interesse para o vosso Estado, lavrados num estilo desagradável e bárbaro, como se estivesse longe de toda a cultura das humanidades - fatos esses nomeadamente escritos para Fernando, Rei de Castela; mas a confiança que tenho na vossa virtude e a manifesta verdade das coisas seguintes, nunca referidas dos antigos nem dos
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| modernos, desculpar-me-ão perante vós. Move-me, sobretudo, Benevenuto, portador desta carta, vosso humilde servo e meu amigo sincero, o qual, encontrando-se comigo em Lisboa, me rogou que fizesse V. M. sabedor das coisas que vi nas diversas regiões do mundo durante quatro navegações. Na realidade, fiz quatro viagens para encontrar terras novas. Duas delas empreendi-as através do grande golfo do Oceano, para Ocidente, por mandado de Fernando, ínclito Rei de Castela.
| Lancei-me a esta empresa, na esperança de que V. M. não me excluirá do número dos vossos mais humildes servos, se se recordar que mantivemos mútua amizade no tempo da nossa mocidade, quando bebíamos os rudimentos da gramática sob a comprovada vida e ensino do venerável e religioso irmão de S. Marcos, Frei Jorge Antônio Vespúcio, meu tio materno, cujos passos oxalá pudesse ter seguido, porque seria diferente do que sou, como diz Petrarca. Seja, porém, como for, não me envergonho de ser assim, porque tive sempre grande prazer na virtude e no estudo. Se estas narrações não vos agradarem, direi como Plínio a Mecenas: "Outrora costumavas deliciar-te com as minhas brincadeiras". Posto que V. M. esteja sempre ocupado com os negócios de Estado, contudo arranjareis tempo bastante para lerdes estas coisas desprezíveis mas de agradável novidade. Efetivamente, depois dos cuidados e negócios de V. M., a minha carta dar-vos-á imenso prazer, tal como o funcho costuma dar cheiro aos manjares e tornar melhor a digestão. Se for mais prolixo do que devo, perdoar-me-eis. Guarde Deus V. M.
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| Muito ínclito rei: saberá V. M. que a principal razão da minha vinda a estas regiões foi o comércio. E, embora eu me ocupasse durante quatro anos nesta atividades e notasse as mudanças várias da fortuna, vendo de que modo os homens tinham os seus bens caducos e transitórios durante algum tempo no cimo da roda, e em seguida eram precipitados até ao mais baixo grau os que podiam dizer-se muito abastados, resolvi, esgotados os vários casos da sorte, deixar o trabalho e pôr fim aos meus labores, para me ocupar de mais louváveis e duradouras obras. Assim me aventurei a contemplar as várias partes do mundo e a ver a admirável diversidade das coisas. Para esta empresa foram-me oportunos tempo e lugar, pois que Fernando, Rei de Castela, preparava então quatro naus para descobrir novas terras a Ocidente e me designou para o serviço dessa frota.
| Largamos a 20 de amio de 1497 do porto de Cádis, navegando através do mar Oceano. Nesta viagem gastamos 18 meses e achamos muitas terras firmes e um número quase incontável de ilhas, na maior parte habitadas e de que os nossos maiores nenhuma menção fizeram, pelo que cremos também que os antigos não tiveram conhecimento delas. E, se a memória se não falha, lembro-me de ler algures que eles defenderam que o mar era sem ilhas e desabitado. O nosso poeta Dante assim julgou, quando no capítulo XVIII dos "Infernos" fabula a morte de Ulisses. V. M. saberá na narração seguinte as maravilhas que vi.
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| Descrição de várias terras e ilhas que os
| autores antigos não mencionaram, encon-
| tradas há pouco, a partir do ano de 1497
| da Encarnação do Senhor em quatro
| navegações marítimas: duas no mar
| ocidental sob as ordens de D. Fer-
| nando de Castela e outras duas
| de D. Manuel de Portugal, se
| reníssimos reis. Publica
| Américo Vespúcio, um
| principais pilotos
| capitães de navio,
| a narração seguin-
| te de ilhas e ter-
| ras ao mencionado
| D. Fernando de
| Castela.
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| A 20 de maio do ano do Senhor de 1497, saímos com quatro navios de conserva do porto de Cádis. Atingimos na primeira viagem, com o vento a soprar entre o Sul e o Lebécio, as ilhas chamadas outrora Fortunadas e ora Grande Canária, situadas no extremo do Ocidente habitado, no terceiro clima sobre o qual o Pólo Norte se eleva 27° e 2/5 acima do seu horizonte, e distante 280 léguas desta cidade de Lisboa, em que escrevi o presente opúsculo.
| Quando, gastos quase oito dias na provisão de lenha, água e outras coisas necessárias à vida, levantamos primeiro oração a Deus e desferimos as velas ao vento, começando a nossa navegação do Poente, corremos com tal velocidade sob o
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| impulso de uma quarta de Lebécio, que passados apenas 27 dias, aportamos a uma terra, que julgamos firme, e que jaz perto de mil léguas da ilha da Grande Canária, fora da parte habitada da zona tórrida. Disto ficamos certos por notarmos que o Pólo Norte se eleva 16° acima do horizonte dessa terra e que fica mais ao Ocidente 75° do que as ilhas da Grande Canária, conforme nos mostravam os instrumentos. Neste lugar ancoramos e obrigamos os nossos navios a surgir de fora légua e meia do litoral. Nalguns batéis, guarnecidos de gentes de armas, chegamos à costa. Tanto que demos em terra, vimos muita gente nua caminhar pela praia, fato que nos deu bastante alegria, porque todos que se viam caminhar nus pareciam também muito admirados de nós, provavelmente por nos verem com vestidos e feições diferentes. Ao darem conta de nós, refugiaram-se num monte próximo, do qual não puderam ser chamados à fala por acenos de paz e amizade. Entretanto, sendo já sobre a tarde, e receando deixarmos os navios em lugar mal defendido contra as procelas do mar, concordamos sair dali ao romper da aurora, e procurar um porto seguro. Tomado este conselho, abrimos as velas ao vento que soprava ao correr da costa. Com a vista acompanhávamos a terra, e vendo de contínuo gentes na praia, navegamos dois dias, no fim dos quais descobrimos um lugar bastante próprio para ancoradouro. Nele paramos, à distância de meia légua da terra árida, onde vimos uma inumerável multidão de gente. Para a observarmos de perto e lhe falarmos, aproximamo-nos nesse mesmo dia do litoral com canoas
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| e batéis, dos quais saltamos em terra cerca de 40 homens em ordem perfeita. Contudo, esta gente mostrou-se de tal forma alheada de nós e do nosso convívio que não conseguimos trazer à fala mais do que uns poucos, que, após muitos trabalhos, atraímos com ofertas de guizos, espelhos, cristais e outras bugigangas. Confiados, vieram então fazer tratos de paz e de amizade. À noitinha, desembaraçamo-nos deles para regressarmos aos navios. De manhã, vimos uma infinita multidão de homens e mulheres com os filhos, e soubemos que traziam consigo todos os haveres, que abaixo se dirão. Logo que nos aproximamos de terra, muitos lançaram-se ao mar, como grandes nadadores que são, e a nado vieram ao nosso encontro, à distância de um tiro de dardo. Receberam-nos afavelmente, e tão confiados e seguros se misturaram conosco, que pareciam ter há mais tempo convivido e igualmente com mais frequência ter praticado com os nossos. Este caso agradou-nos muito.
| Dos costumes que lhes observamos, já que se nos refere ocasião, vamos dar notícia.
| Costumes e modos de vida
| Quanto à sua vida e costumes, todos, homens e mulheres, andam nus, sem mais vergonha do que quando saíram do ventre de sua mãe. São de estatura pequena e mui bem proporcionados; a sua carne tende para o vermelho como o pelo dos leões, mas, se andassem vestidos, penso que seriam brancos como nós. Não têm
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| no corpo outros cabelos que não sejam os da cabeça, compridos e negros. Sobretudo as mulheres trazem formosíssimas cabeleiras longas e negras. De rosto não são muito belos por terem as faces largas como os tártaros. Nào deixam crescer os pelos nas sobrancelhas, nem nas pálpebras, nem noutra parte do corpo, exceto na cabeça, porque os consideram uma manifestação vil e brutal. Homens e mulheres são muito ágeis e velozes, quer no caminhar quer no correr, porque, como muitas vezes observamos, até as próprias mulheres percorrem uma ou duas léguas, como se nada fosse; nisto excedem os cristãos. Nadam admiravelmente e além do que é crível, muito melhor as mulheres do que os homens. Tende isto por certo, porque as vimos muitas vezes nadar duas léguas pelo mar adentro, sem apoio algum.
| As suas armas são arcos e setas que sabem fabricar com muita perfeição. Como não têm ferro nem outros metais, armam as setas com dentes de animais ou de peixes e, para as tornar mais fortes, queimam-nas muitas vezes nas pontas. Os seteiros, e nalguns lugares também as mulheres, têm pontaria certíssima, porque ferem com seus dardos quanto querem. Além destas armas possuem ainda outras, como lanças, paus pontiagudos e clavas com a parte de cima mui bem trabalhada. Costumam combater, de preferência, contra os vizinhos de língua diferente, contra os quais lutam mui cruelmente, sem os poupar; e se os poupam é para os guardarem para maiores tormentos. Quando vão para o combate, levam as mulheres, não para lutar, mas
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| para, na retaguarda, lhes levarem o necessário, visto que só elas podem pôr às costas e transportar uma carga à distância de 30 ou 40 léguas, conforme vimos. Não têm chefes nem ordenadores de combate, nem sequer observam ordem alguma na marcha, porque cada um é senhor de si. Não combatem por desejo de reinar ou de estender o seu domínio ou outra desordenada cobiça, mas por velhas inimizades. Quando, interrogados sobre a causa desse ódio, só apresentam por motivo a vingança da morte dos seus antecessores.
| Vivem em liberdade e sem obediência a alguém, rei ou senhor.
| Animam-se e armam-se para o combate, sobretudo quando prendem ou matam algum deles, porque, então, um dos parentes mais velhos do prisioneiro ou do morto vai cedo para as praças e aldeias, clamando, convidando e aconselhando todos a que se apressem com ele para o combate, a vingar a morte do seu parente. E, todos, levados pela compaixão, em breve se aprestam para a luta e se lançam sobre o inimigo.
| Entre eles não se observam direitos ou justiça alguma, não se punem os malfeitores, e os apis não ensinam nem castigam os filhos.
| Vimos algumas vezes que questionavam uns com os outros a mais não poder. No conversar, mostram-se simples, mas muito espertos e manhosos; falam pouco, baixo e com os mesmos sons que nós. A maior parte destes sons são formados entre os dentes e os lábios, e os seus vocábulos diferentes dos nossos. A variedade destes idiomas é grande, porque, de 100 em 100 léguas, encontramos línguas diferentes e ininteligíveis umas às outras.
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| O seu modo de alimentação é muito extravagante: não comem a horas certas, mas todas as vezes que, de dia ou de noite, têm vontade; tomam as refeições deitados no chão, sem toalhas nem guardanapos, visto que não possuem panos de linho ou de outra espécie, e põem as iguarias e todos os elementos em vasos feitos de terra, por eles próprios trabalhados, ou cascas de cabaças.
| Dormem em redes grandes, feitas de algodão e suspensas no ar, e, embora este modo de dormir possa parecer insólito e rude, eu julgo-o suavíssimo. De fato, quando tive ocasião de dormir nas suas redes, verifiquei que se repousava melhor nelas do que nos nossos colchões.
| São muito polidos e limpos de corpo, porque se lavam muitas vezes,e, quando são obrigados a ir à sentina - com a devida reverência - esforçam-se por não serem vistos. Nisto são tão honestos quão porcos e desavergonhados no urinar, tanto homens como mulheres, porque muitas vezes os vimos fazê-lo descaradamente, ao falar conosco. Os casamentos não são regulados por lei nem tratados: tomam quantas mulheres lhes apetecem, e cada um pode ter e repudiar quantas mulheres queira e quando queira, sem ver nisto injúria ou opróbrio. A liberdade neste assunto é igual para homens e mulheres. São pouco ciumentos mas muito luxuriosos, e mais as mulheres do que os homens. Omitimos por honestidade os artifícios que usam para satisfazer os seus insaciáveis desejos. São muito fecundas e, enquanto grávidas, não evitam as fadigas ou os trabalhos; parem com tal facilidade e sem dor que, no dia seguinte, andam por toda
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| parte alegres e curadas. Depois do parto, sobretudo, vão lavar-se a qualquer rio e saem de lá sãs e limpas como peixes. Por outro lado, são tão cruéis e odeiam tão malignamente que, se os maridos as irritam, logo lhes fazem mal certo, com o qual, muito raivosas, matam no próprio ventre os filhos, e abortam em seguida. Este fato leva à morte muitíssimas crianças.
| O seu corpo é forte, de proporções elegantes e graciosas, sem disformidade. Andam nuas, mas apesar disso, cobrem as coxas tão honestamente que se não pode ver, exceto aquela pequena região anterior a que decentemente chamamos "pectusculum imum". A própria natureza faz-lhas encarar com honestidade; e certo é que nem dão importância a isto, porque - para acabar - comovem-se tanto com a visão das suas partes vergonhosascomo nós com a do nosso rosto ou da nossa boca.
| Eu achava muito de admirar que, devendo as mulheres ter os seios lassos e o ventre enrugado por causa de muitos partos, todas nos aparecessem sempre íntegras e fortes como se nunca tivessem parido. Estas mulheres mostravam-se muito desejosas de nós.
| Não vimos lei alguma nesta gente, nem lhes podemos chamar judeus ou mouros, visto que são piores do que gentios ou pagãos. Não notamos, com efeito, que façam alguns sacrifícios ou que tenham lugares ou casas de oração.
| Eu considero epicúrea a sua vida totalmentevolutuosa. Vivem em comum. As casas, tão grandes nalguns lugares que numa só calculamos caberem 600 pessoas, são construídas à seme-
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| lhança de cabanas, firmemente solidificadas com grandes árvores, cobertas de palma e muito defendidas contra os ventos e tempestades. Entre elas vimos oito muito habitadas e de forma a levarem 10.000 almas. Mudam as habitações de oito ou de sete em sete anos. Interroguei-os sobre o motivo, e deram-me uma resposta natural: que assim faziam por causa do calor ardente do sol, pois que o ar se tornava infecto e corrupto devido à permanência no mesmo lugar, e daí se originavam várias doenças. Este motivo pareceu-nos razoável.
| As suas riquezas consistem em plumas de aves multicolores e em lâminas ou pedrinhas verdes ou brancas, no feitio das que vulgarmente chamamos padre-nossos. Usam estes ornatos com certa graça nos lábios, nas faces ou nas orelhas. Consideram também riquezas outras coisas igualmente fúteis e desprezíveis, a que nós não damosimportância.
| Em compra e venda não se servem de permutas ou pagas, porque é bastante o que a natureza lhes dá. Desprezam a posse do ouro, jóias, pérolas e coisas semelhantes, que nesta Europa temos como riquezas.
| São de sua natureza muito liberais no dar, e são-no de tal forma que nunca negam o que se lhes pede. Mas, como são liberais no dar, são gananciosos no pedir e no receber, assim que semostraram amigos de qualquer pessoa. O seu maior e mais preferido sinal de amizade é porem à disposição a posse das esposas e das filhas. Os pais consideram-se muito honrados, se alguém se digna levar para o leito as filhas, mesmo virgens,porque têm esta usançacomo o melhor penhor de afeição.
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| Praticam vários ritos fúnebres. Alguns sepultamosmortos em água, outros em terra; põe-lhes junto à cabeça vitualhas com que, julgam eles, se alimentam e comem. Prantos e cerimônias não fazem. Nalgumas regiões, enterram os mortos de um modo desumano: quando adivinham a proximidade da morte de algum deles, os parentes levam-no para um grande bosque, onde o deitam suspenso entre duas árvores, nas redes em que dormem, e depois dançam, em volta dele assim suspenso, um dia inteiro, até que, chegando a noite, lhe põem junto da cabeça água e víveres de que se poderá alimentar cerca de quatro dias; depois, deixando-o sozinho e suspenso, voltam para casa. Feito isto, se o doente comer, e viver, recuperar a saúde e regressar a casa, os seus afins e parentes recebem-no com grandes cerimônias. Poucos são, todavia, os que passam tão grande perigo, porque ninguém depois os visita. Se acontece de morrerem no lugar onde os puseram, não têm depois outra sepultura. Observam ainda outros ritos, que omitimos por brevidade.
| Nas doenças empregam várias e diferentes mezinhas, tão diferentes das nossas, quenos admiramosmuito como poderá alguém escapar. Por exemplo: quando algum deles tem febre, na hora em que está mais atacado, dão-lhe, como muitas vezes vimos, um banho de água frigidíssima, depois obrigam-no a correr de um lado para outro, durante duas horas à rodade uma fogueira forte até aquecer ao máximo e, finalmente, deitam-no a dormir. Com este remédio, vimos que muitos se restabeleceram. Com as frequentes dietas, que também fazem, ficam sem comer nem
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| beber durante três ou quatro dias. Sangram-se muitas vezes no ante-braço, nos lombos e nas barrigas das pernas. Provocam frequentemente o vômito com ervas que metem na boca para medicamento. Servem-se ainda de outros remédios e antídotos que seria longo enumerar. Abundam em sangue e humor fleumático por causa das comidas que fazem de raízes, frutos, ervas e peixes vários. Não têm sementes de trigo nem outros grãos; a sua comida ou pasto comum é uma raiz de árvore que transformam em farinha bastante boa que chamam alguns Iucha, outros Cambi e outros Igname. Raríssimas vezes comem carne que não seja a de homem. Devoram-na tão cruel e sofregamente que excedem todas as feras e animais, porque mastigam com tal ferocidade e bruteza que maior não se pode ver nem dizer, todos os inimigos que matam ou aprisionam, tanto homens como mulheres. Tive ocasião de ver muitas vezes alguns desses, assim ferozes e desumanos, admirarem-se de não comermos os nossos inimigos.
| Tenha V. M. por certo que os seus numerosíssimos costumes são a tal ponto bárbaros, que não se podem nesta carta suficientemente narrar. E, porque nestas minhas quatro navegações vi coisas tão várias, tão diferentes e tão afastadas das nossas maneiras, lancei-me a escrever um livrinho a que chamo "Quatuor dietae sive quatuor navigationes", no qual coligi, segundo a fraqueza do meu engenho, a maior parte das coisas que distintamente observei; contudo, ainda não o publiquei. Mas, porque nele se trata tudo mais particular e minuciosamente, volto a completar
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| a primeira navegação, de que me arredei um pouco, com mais algumas generalidades.
| A princípio,porque não aprendíamos a língua indígena, não vimos coisa de notávelproveito, a não ser uma amostra de ouro, que alguns sinais indicavam existir naquela terra. Esta, quando ao sítio,é a melhor que pode ser. Assentamos em deixá-la para levarmos maislonge a viagem, e, por unanimidade, costeamos sempre esta terra árida, fazendo muitas voltas e escalas. Entretanto, depois de falarmos commuitos e vários habitantes daquele lugar, chegamos a um porto, no qual aprouve ao Espírito Santo livrar-nos do grande perigo. Tanto que nele entramos, vimos uma povoação, isto é, uma aldeia ou lugar situado sobre a água, como em Veneza, na qual havia cerca de vinte edifícios em forma de cabanas e firmemente edificados sobresólidas e fortes paliçadas de madeira, e em frente de cujos pórticos estavam pontes levadiças que davam passagem de um para o outro como firmíssimas estradas. Os habitantes desta povoação, mal nos viram, encheram-se de temor, e, imediatamente levantando todas as pontes, refugiaram-se em casa. Quando, admirados, observávamos este espetáculo, vimos vir, pelo mar, em direção a nós, cerca de doze canoas cavadas em trocos de árvores, espécie de navios que utilizam, enquanto que os marinheiros, admirados da nossa figura e vestidos, nos rodeavam e observavam de longe. Por nossa vez, voltamo-nos para eles, fazendo-lhes sinais de amizade com que os exortávamos a que viessem sem medo, mas não fizeram caso. Quando talpercebemos, começamos a remar para eles, mas não nos esperaram e reco-
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| lheram-se todos a terra, acenando-nos que demorássemos um pouco, que em breve voltariam. Então correram para um monte do qual regressaramcom dezesseis raparigas que traziam em canoas, e depois puseram em cada um dos nossos navios quatro delas. Ficamos perplexos, conforme V. M. pode julgar, com este procedimento. No entretanto, misturaram-se conosco e nossos navios com as suas canoas, e tão pacificamente nos falaram que os considerávamos amigos fiéis. Mas eis que uma grande multidão começa a chegar das mencionadas casas, por mar, a nado. Quando começavam já a aprimar-se dos nossos navios, sem daí suspeitarmos mal, vimos às portas das mesmas casas algumas velhas a vociferar desabridamente, enchendo o céu de grandes gritos e arrancando os cabelos em sibnal de ansiedade. Este fato fez-nos suspeitar de grande mal, e na verdade, as raparigas, que se haviam metido nos nossos navios, saltaram de repente ao mar, enquanto que os das canoas, afastando-se, nos atiravam arcos e nos seteavam cruelmente. Os que, nadando por mar, chegavam das casas, traziam escondidas na água lanças, pelas quais conhecemos sua traição. Começamos então a defender-nos valorosamente e a atacá-los com dureza. Desfizemos e submergimos a maior parte dos barcos com grande carnificina. Em face disso, deixaram com grande dano os restantes barcos e, a nado, refugiaram-se em terra. Morreram cerca de vinte e feriram-se mais, enquanto que dos nossos se feriram somente cinco, que se restabeleceram todos com a graça de Deus. Prendemos então duas das ditas raparigas e três homens.
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| Em seguida, entramos em suas casas, achando só duas velhas e um homem doente, mas não quisemos queimá-los por escrúpulos de consciência.
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| Remamos depois para os nossos navios com os cinco mencionados cativos e prendemo-los com peias de ferro, exceto as raparigas. Porém elas e um dos homens fugiram-nos muito habilmente ao anoitecer. Nesta emergência, concordamos abandonar aquele porto e seguir avante, a par do monte. Percorridas quase oitenta léguas, achamos outra gente diferente na língua e trato, onde resolvemos ancorar e arribar depois nas canoas. Vimos então no litoral uma multidão de cerca de quatro mil pessoas, que, ao sentirem aproximarmo-nos, não nos esperaram e, deixando quanto tinham, se refugiaram nas selvas. Saltamos em terra e, percorrendo um tiro de besta no caminho quelevava ao bosque, depressa encontramos muitas tendas que aquela gente ali fizera para pescar. Nelas tinham fogos acesos para cozer os alimentos e assavam já animais e muitos peixes de várias espécies. Vimos assar um aninmal que, tirante as asas, era semelhante a uma serpente e que parecia tão bruto e selvagem que estranhamos muito a sua ferocidade. Passeando pelas tendas, encontramos muitas de tais serpentes vivas que, além dos pés, tinham os focinhos ligados com cordas para não os poderem abrir, como se costuma fazer aos cães ou a outras feras para não poderem morder. Estes animais têm um aspecto tão selvagem que nós, considerando-os venenosos, não ousamos sequer tocá-los. São da grossura de cabritos, mas do comprimento de braço e meio; têm os pés longos, muito grossos e armados de unhas fortes,
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| uma pele incolor e variada. Têm um focinho, de cujas ventas sai uma crista que se estende pelas costas até o extremo da cauda. O seu aspecto é de verdadeiras serpentes. Contudo, o mencionado povo alimenta-se deles.
| Fabricam o pão de peixes que pescam no mar; primeiro cozem peixes pequenos em água, a seguir esmagam-nos, amassam-nos, depois cozem-nos em brasas e, finalmente, comem-nos. Provamos destes pães, que são muito gostosos. Seria fastidioso enumerar todas as espécies de comidas e alimentos que eles fazem dos frutos e das várias raízes.
| Ora, como eles não voltavam do refúgio dos bosques, não quisemos tirar-lhes nda para que tomassem confiança em nós. Chegamos mesmo a deixar nas tendas muitas das nossas coisas em lugares que eles pudessem ver, e, como era já de noite, regressamos aos navios. No dia seguinte, ao nascer do sol, avistamos muita gente no litoral; aproximamo-nos, e, posto que se mostrassem tímidos, misturaram-se conosco e começaram a falar-nos com segurança, simulando que haviam de ser muito nossos amigos e insinuando que não eram ali as suas habitações. Diziam que tinham vindo para pescar e que, por isso, nos pediam que fôssemos com eles às suas povoações, porque nos queriam receber como hóspedes, acrescentando que nos tinham ganho amizade por causa daqueles dois cativos, seus inimigos, que trazíamos.
| Perante tão importunos rogos, concordamos 23 dos nossos, em boa ordem e dispostos a tudo, a morrer valorosamente, combatendo com eles, se
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| preciso fosse. Ao fim de três dias que com eles estivemos, e ao cabo de três léguas que, juntos, caminhamos pela praia daquela terra, fomos ter a um povo de nove casas somente, onde nos reveberam com tantas e tão bárbaras cerimônias, que a pena não pode descrever, como, por exemplo, coros, cânticos, prantos misturados de hilaridade e banquetes de muitas iguarias. Descansando ali aquela noite, ofereceram-nos prodigamente as próprias mulheres, que tanto nos solicitavam que a custo seríamos capazes de lhes resistir. Depois de estarmos ali uma noite e meio dia, veio ver-nos uma grande e admirável multidão, sem hesitação nem espanto, e os mais velhos pediam-nos que fôssemos com eles às aldeias do interior. Fizemos-lhes a vontade. Estivemos em muitas povoações, onde andamos com eles nove dias, o que levou os nossos companheiros a dizer que muito haviam receado pela nossa vida. Depois de andarmos cerca de dezoito léguas em terra, resolvemos regressar às naus. Na volta, tão grande multidão de homens e mulheres acorreu para nos acompanhar ao navio, que era coisa de espantar.
| Quando sucedia alguns de nos cansarem-se da viagem, levantavam-nos e traziam-nos com muito zelo nas redes de repouso. Na passagem dos rios, que são muito numerosos e cabedais, tão seguramente com seus artifícios nos passavam que nada tínhamos a recear. Muitos acompanhavam-nos carregados de ofertas que nos haviam feito, e que transportavam nas redinhas de dormir: ornatos de penas muito ricos, muitos arcos, muitas setas e muitas aves de várias cores; e
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| outros traziam todos os seus haveres e até os seus animais. De maravilhoso direi que se considerava afortunado e feliz o que nos passava na água, ao colo ou às costas.
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| Quando chegámos ao mar e quisemos subir para os batéis, tanto era o empenho e porfia dos que nos acompanhavam no embarque para ver os nossos navios, que os barcos quase soçobravam de peso. Recebemos e levamos quantos pudemos; a nado, porém, e ao nosso lado, chegaram tantos que os consideramos estorvo, porque neles haviam entrado mais de mil, embora nus, e desarmados. Admiraram o aparelho, o artifício e a grandeza das nossas naus e foi então que se deu um caso risível: como desejássemos disparar algumas das nossas máquinas e engenhos de guerra que fizeram um estrondo horrível ao chegar-se-lhes o lume, a maior parte lançou-se ao mar, como costumam as rãs, quando, sentadas na margem, ouvem algum ruído. Assim fez aquela gente, e os que se haviam refugiado nas naus tão atemorizados ficaram que nós mesmos nos arrependemos de tal fato. Porém, com isto conseguimos torná-los confiados e menos brutais, insinuando-lhes que com tais armas matávamos os nossos inimigos.
| Depois de os termos tratado festivamente em todo aquele dia, mandamo-los embora, porque desejávamos largar na noite seguinte. Obedeceram e saíram das naus com grande amizade e benquerença.
| Muitos usos vi e soube desta gente e terra; não desejo, porém, descrevê-los, porque V M. poderá depois saber as coisas mais admiraveis
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| e dignas de nota das minhas navegações, que coligi, em estilo geográfico, num livro a que chamo "Quatro navegações", minuciosamente tratado, mas que ainda não publiquei por me ser necessário revê-lo e corrigi-lo.
| Aquela terra é muito povoada e por toda a parte cheia de variados animais, muito pouco semelhantes aos nossos, excepto leões, ursos, cervos, porcos, cabritos e corças. Não têm cavalos, mulas, burros, cães, gado miúdo, como ovelhas, etc., e ainda gado vacum. Contudo, abundam muitos animais de vários gêneros, difíceis de descrever. São, porém, todos selvagens, e usam-nos pouco no seu serviço. Que mais direi? Em tantas e tamanhas aves, de diferentes feitios, cores e penas são ricas, que maravilha seria vê-las. A região é muito amena e frutífera, cheia de grandes bosques e florestas de constante verdura e folhagem. Os frutos são copiosos e de todo diferentes dos nossos.
| Esta terra está situada na zona tórrida, logo abaixo do paralelo que traça o trópico de Câncer, donde o pólo do mesmo horizonte se eleva 23( no fim do segundo clima. Quando ali paramos, veio muito povo ver-nos, espantado do nosso rosto e da nossa brancura. Perguntaram-nos de que terra vínhamos, e nós respondemos que descêramos do Céu para ver a Terra, o que eles acreditaram de todo. Aqui levantamos batistérios ou várias fontes sagradas nas quais se batizaram muitos daqueles que se chamam, na sua língua, Charabi, isto é, homens de grande sabedoria. Essa província era por eles chamada Párias.
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| Deixamos depois o porto e a terra, e navegamos ao longo da costa, sem a largarmos de vista. Percorremos desde aquele porto 870 léguas, demos muitas voltas e conversamos com muitas gentes. Em vários lugares resgatamos ouro em pequena quantidade, porque nos bastava . encontrar aquelas terras e lá saber se o havia.
| Visto que já levávamos treze meses de navegação e quase estavam gastos os navios e aparelhos, e os homens arrasados de cansaço, assentamos em restaurar os navios, que metiam água por todos os lados, e regressar à Espanha.
| Enquanto permanecíamos nesta unânime resolução, estivemos perto do melhor porto do mundo, no qual entramos com os nossos navios, e encontramos muitíssima gente, que nos acolheu amavelmente. Nesta terra fabricamos um bastião com os batéis e com pipas, e refizemos, corrigimos e totalmente reparamos as nossas máquinas de guerra. Os indígenas auxiliaram-nos muito nesta obra e espontaneamente nos deram das suas vitualhas, o que nos fez poupar muito. Consideramos este fato como um grande favor, porque pouco era o que tínhamos, para não regressarmos à Espanha na miséria.
| Estivemos trinta e sete dias naquele porto e fomos muitas vezes às povoações, que nos faziam grandes honras. Ao desejarmos sair do porto e regressarmos pela nossa rota, queixaram-se de que havia uma gente, sua inimiga, muito feroz, que, em certa época do ano, insidiosamente entrava por mar na sua terra, matava à violência, comia depois muitos deles, e a outros os levava cativos para a pátria; que dificilmente se podiam
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| defender e que aquela gente habitava uma ilha, obra de cem léguas dentro do mar. Contaram-nos este fato com tanta paixão e lástima que, condoídos, acreditamos e prometemos vingá-los de tamanhas injúrias. Alegres por isso, ofereceram-se espontâneamente para vir conosco, mas, por varios motivos, recusamos aceitar mais de sete, que recebemos mediante a condição de regressarem à terra nas suas canoas, porque de nenhum modo tencionávamos tomar o cuidado da recondução. Anuíram com agradecimentos, e, deixando assim aqueles nossos amigos muito penhorados, saímos dali. Navegamos sete dias nos navios, restaurados e reparados, sob o impulso do vento entre o grego e o levante. Durante aqueles dias achamos muitas ilhas, umas habitadas, outras desertas. Aproximamo-nos de uma, em que paramos e vimos infinita gente, que lhe dava o nome de Ity. Vistas estas coisas e armados os nossos bastiões e botes com homens robustos e três peças de artilharia, aproximamo-nos mais de terra e avistamos quatrocentos homens com muitas mulheres na praia. Como os primeiros, também estes andavam nus, eram fortes de corpo e pareciam muito aguerridos e robustos, pois que estavam armados de arcos, setas e lanças; alguns deles traziam também pequenos escudos quadrados de que se muniam tão habilmente que não ficavam impedidos de atirar as setas. E, como nos aproximássemos com os nossos barcos de terra, na distância de um tiro de seta, todos mais depressa saltaram ao mar e começaram a defender-se valorosamente, seteando-nos para não podermos desembarcar.
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| Tinham todos o corpo pintado de várias cores e estavam ornados de penas de aves. Os que tinham vindo para nos ver, disseram-nos que, sempre que estes homens se pintavam ou ornavam de plumas de aves, se preparavam para o combate. Tanto nos impediram o desembarque que fomos obrigados a disparar as nossas máquinas de guerra, que, com seu tumulto e ímpeto, os fizeram recolher a terra, por verem a maior parte deles cair mortos. Então, devidamente preparados, quarenta e dois de nós concordamos saltar e combatê-los com coragem. Na luta deparamos com tal resistência que esta durou quase duas horas. Levamos vitória com a morte de alguns deles a dardo, conseguida pelos nossos besteiros, e artilheiros, que entraram em ação por eles se subtraírem habilidosamente às nossas lanças e espadas. Todavia, com tal ímpeto os atacamos de perto que os atingimos com espadas e punhais. Ao sentir estas armas, fugiram por bosques e florestas, deixando-nos vencedores do campo e a maior parte dos seus mortos e feridos. Naquele dia não quisemos persegui-los muito longe, por estarmos fatigados; preferimos regressar aos navios, com tamanha alegria dos que conosco vinham que não cabiam em si. No dia seguinte, vimos aproximar-se um grande bando de gente, buzinando em chifres e outros instrumentos usados nas guerras. Vinham pintados e ornados de variadas penas de aves, como fora maravilha ver-se. Ao avistá-los, deliberamos de novo juntar-nos todos e esforçar-nos por os tornar nossos amigos, no caso de nos prepararem guerra. Se não aceitassem, trata-los-íamos como inimigos, e
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| faríamos nossos escravos e servos perpétuos quantos pudéssemos apanhar. Juntamo-nos então na praia, o mais armados possível. Não nos impediram de saltar em terra, como penso, de espantados que ficaram com os engenhos de guerra. Fomos contra eles em quatro grupos de cinquenta e sete homens cada um, comandado por um decurião, e com eles combatemos muito tempo. Contudo, depois de um combate longo e renhido, matamos alguns e a outros pusemo-los em fuga e perseguimos até à povoação. Presos vinte e cinco deles, incendiamos a aldeia e trouxemo-los para os navios, depois de matarmos e ferirmos muitos, enquanto que dos nossos morreu um e ficaram feridos vinte e dois, com a ajuda de Deus mais tarde restabelecidos.
| Entretanto, deliberamos e ordenamos o regresso à patria, e aqueles sete homens que conosco ali tinham vindo, cinco dos quais ficaram feridos na dita guerra, pegaram numa canoa da ilha e com sete cativos que lhes demos, três homens e quatro mulheres, voltaram à sua terra com alegria e admiração do nosso poder. Nós, seguindo o rumo da Espanha, alcançamos o porto de Cádis com duzentos e doze cativos, a 15 de Outubro do ano do Senhor de 1498 (sic). Receberam-nos com alegria e vendemos os nossos cativos.
| Estas são as coisas que julgamos mais dignas de nota na nossa primeira navegação.
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