Tradução dos textos latinos de Américo Vespúcio.

     Autor: Dr. Miguel Menezes

     Fonte: ZWEIG, Stefan. Américo Vespúcio. Tradução de José Francisco dos Santos. 3. ed. Porto, Livraria Civilização, 1956. 211p.

     Textos latinos traduzidos por Miguel Menezes e transcritos por Zweig em seu livro:

     Quatuor Navigationes. Incluído na "Cosmographiae Introductio", de Waldseemüller (Edição de 1507).

     Mundus Novus. Reproduzido na "Raccolta Colombiana" (Parte III, vol. II). Zweig, p. 171:

     AS QUATRO NAVEGAÇÕES

     Do curso da segunda navegação

     Descrevem-se a seguir as coisas notáveis que dizem respeito ao curso da segunda navegação, iniciada com a saída do porto de Cádis num dia de maio do ano do Senhor de 1489 (sic). Tomamos o rumo das ilhas de Cabo Verde, e, passando à vista das da Grande Canária, navegamos até chegar a uma que se diz do Fogo.

     Fizemos ali provisão de lenha e aguada, e, começando a navegação pelo vento Lebécio, chegamos, após dezenove dias de viagem, a uma terra nova que pensávamos ser firme, a par daquela de que fizemos menção anteriormente, e que está situada na zona tórrida, fora da linha equinocial para a parte sul. Sobre ela eleva-se o pólo meridional 5º fora de qualquer clima. Dista esta mesma terra quinhentas léguas, pelo vento Lebécio, das nomeadas ilhas. Vimos que, a 17 de junho, quando o sol está no trópico de Câncer, os dias eram iguais às noites. Vimos ainda que a

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mesma terra, que se apresentava muito verde e de grandes árvores, era banhada de água e sulcada de grandes rios, mas sem espécie de gente. Paramos então, e, ancorando a armada, tentamos em algumas canoas aproximar-nos de terra. Procuramos a entrada nela, e, dando muitas voltas, vimo-la tão banhada de rios, que de nenhum lado se mostrava enxuta. Notamos, no entanto, nalguns rios muitos sinais de que a terra era habitada. E, porque, em vista destes sinais, não podíamos desembarcar, concordamos regressar às naus.

     Levantamos âncora e cortamos entre o levante e o siroco, costeando a terra, tentando muitas vezes entrar nessa ilha numa distância de mais de 400 léguas, mas em vão, porque, naquele lado, a corrente do mar, que do siroco para o mistral corria, de violenta tornava-o inavegável.

     Perante estes inconvenientes, assentamos navegar para mistral e seguir a linha da costa até encontrarmos um porto de belíssima enseada.

     Navegando, a fim de nele entrarmos, vimos uma imensa mole de gente na ilha a cerca de quatro léguas do mar, o que nos trouxe grande alegria. Preparadas as nossas canoas para sairmos nesta ilha, vimos vir do mar alto um barco com muita gente. Deliberamos atacá-lo e aprisioná-lo. Começamos a navegar na sua direção e a cercá-los para não fugirem. Esforçaram-se por sua vez e vimo-los, apesar do tempo fresco, com os remos levantados, como a quererem significar-se firmes e resistentes. Pensamos que o faziam para nos provocarem a admiração, mas, ao verem aproximar-nos, deitaram os remos à água e

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começaram a remar para terra. Nós, porém, trazíamos uma caravela muito veloz, de quarenta e cinco tonéis, que foi lançada com tal impulso que logo obteve vento sobre eles, e, chegada a altura de os arribarmos, dispuseram-se ordenadamente com seu aparelho numa canoa e deram-se a toda a velocidade, mas nós ultrapassamo-los e cortamos-lhes a fuga. Soltos alguns batéis com homens robustos, atacamo-los com tenção de os fazer prisioneiros. Lutamos quase quatro horas, e tê-los-íamos perdido por completo, se a caravela, que os ultrapassara na corrida, não voltasse sobre eles. Ao verem-se apertados pelos nossos barcos e pela nossa caravela, todos, em número de vinte, saltaram ao mar, a uma distância de quase duas léguas da terra. Apesar de os perseguirmos durante todo o dia com as nossas canoas, só conseguimos prender dois, enquanto os outros se puseram a salvo. Na canoa que deixaram estavam quatro mancebos, que tinham roubado em terra alheia, recentemente castrados.

     Ficamos espantados com esta pratica, e quando os recebemos nos navios, por sinais nos informaram que os traziam para comer, indicando que estes tão ferozes e cruéis antropófagos se chamavam canibais.

     Depois levamos a canoa conosco e dirigimo-nos para terra com os navios. Paramos e ancoramos somente a meia légua daquela praia. Como víssemos muito povo, apressamo-nos com os navios para lá sob a guia daqueles dois que aprisionáramos. Mal pusemos pé em terra, foram-se esconder nos bosques vizinhos,

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cheios de medo. Soltamos um dos prisioneiros com sinais de amizade, cascavéis, címbalos e espelhos, para lhes pedir que não se espantassem, porque desejávamos ser seus amigos. Este partiu e satisfez muito bem o que lhe mandamos, porque trouxe dos bosques toda aquela gente de quase quatrocentos homens com muitas mulheres.

     Vieram todos inermes para onde estávamos com os navios, e com eles firmamos uma boa amizade, restituindo-lhes o outro cativo. Igualmente mandamos restituir-lhes pelos marinheiros dos navios, junto dos quais estava, a canoa que tínhamos tomado. Esta canoa, cavada num tronco de árvore e engenhosamente fabricada, media vinte e seis passos de comprimento e dois pés de largura. Quando a houveram e a puseram em lugar seguro do rio, fugiram sem mais nos quererem falar. Tanto que de tal nos apercebemos, vimos a sua má fé e condição.

     De ouro, só vimos o pouco que traziam nas orelhas.

     Deixada assim aquela praia, navegamos ao longo dela cerca de oitenta léguas, e achamos uma estação segura para navios, na qual entramos e vimos tantas gentes que parecia maravilha. Conseguimos a sua amizade e em sua companhia fomos a muitas povoações que nos receberam honesta e seguramente.

     Trouxemos quinhentas pérolas compradas com um único cascavel, e uma pequena porção de ouro, gratuitamente dada!

     Nesta terra, o vinho que se bebe é tirado de frutos e sementes como chícharo e cerveja branca e vermelha; contudo, o melhor era feito de muito

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bons pomos de mirra, que abundantemente comemos com muitos frutos saborosos e saudáveis, porque chegamos no tempo deles. Esta ilha é muito abundante em bens de fortuna, e a sua gente de boa conversação e fácil de pacificar, como não encontramos outra.

     Estivemos neste porto dezessete dias, com muito agrado; todos os dias vinham para nos ver povos que ficavam admirados da nossa brancura, da nossa figura, dos nossos vestidos, das nossas armas, e da grandeza dos nossos navios. Referiram-nos também que a ocidente demorava um povo seu inimigo, possuidor de muitissimo grande quantidade de pérolas que tinham roubado a povos com que travaram guerra, e ensinaram-nos o modo como nasciam. Verificamos que as suas palavras eram verdadeiras, conforme V. M. poderá compreender depois.

     Deixamos este porto e, seguindo ao longo da mesma costa a que vimos afluir de contínuo gente, chegamos para refazer um navio dos nossos, a outro porto, no qual notamos muita gente com quem não pudemos falar, nem à força nem a bem, porque, se desembarcávamos, defendiam-se asperamente, e se não nos podiam conter, refugiavam-se nas selvas.

     Perante tamanhos selvagens, saimos dali. E, então, navegando, avistamos uma ilha no mar, na qual acordamos ver se havia gente. Felizmente fomos e encontramos o mais selvagem e simples, mas também o mais dadivoso e benigno, de todos os povos.

     Os seus ritos e costumes eram muito brutais e os homens ferinos de vulto e gesto. Traziam

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todas as maxilas cheias, por dentro, de ervas verdes, que ruminavam a modo do gado, e que lhes embargavam a fala; traziam também ao pescoço duas cascas pequenas e secas, uma cheia de erva e outra de uma farinha branca parecida com gesso miúdo, e com uma varinha que umedeciam e mastigavam na boca e metiam na casca cheia de farinha, tiravam uma porção que punham nos dois lados da boca e com ela borrifavam a erva. Não pudemos conter a nossa admiração, ao saber a causa e segredo de tal fato.

     Esta gente tão familiarmente se abeirou de nós que parecia ter negócio e amizade conosco de há mais tempo. Passeamos e falamos com eles pela praia; e, quando desejávamos beber água fresca, diziam-nos, por sinais, que não tinham, mas ofereceram-nos espontaneamente da tal erva e da tal farinha. Daqui se causou que, andando com eles um dia na praia, nunca achamos viva água e soubemos então que a que eles bebiam era apanhada do orvalho caído de noite em certas folhas, parecidas com orelhas de burro. Estas folhas enchiam-se, de noite, de ótimo orvalho que o povo bebia; contudo não as havia na maior parte dos lugares. Não têm víveres que na terra sólida existem e vivem dos peixes que copiosamente pescam no mar. Como grandes pescadores que são, ofereceram-nos tartarugas e outros peixes de boa qualidade.

     As mulheres não usam daquela erva que os homens traziam na boca. Não têm casas nem aldeias, a não ser umas folhas grandes sob as quais se defendiam do sol e da chuva, porque é crível que chova pouco naquela terra. Quando

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vem para pescar, cada um traz uma folha tamanha que, presa no chão e voltada para o sol, os esconde sob a sua sombra.

     Nesta ilha são muitos os animais de várias espécies, os quais bebem uma água muito lodosa.

     Vendo que não encontrávamos aqui vantagem alguma, abandonamo-la para nos fixarmos noutra ilha, a qual, entrando à procura de água para beber, pensamos que era desabitada, porque não víamos ninguém. Achamos, porém, ao andar na areia, algumas pegadas e delas concluímos que, se aos pés correspondessem os restantes membros, os habitantes seriam muito grandes.

     Andando assim pela areia, descobrimos um caminho que levava à terra, ao longo do qual fomos nove de nós, preparados para ver a ilha, porque pensávamos ser pouco espaçosa e pouco povoada. Percorrida quase uma légua, vimos, num vale, cinco casas que pareciam habitadas. Entramos e achamos nelas cinco mulheres, três velhas e duas raparigas, todas de tamanha estatura que ficamos maravilhados. As velhas falaram-nos então na sua língua e, recolhendo-se todas a uma casa, ofereceram-nos muitos víveres. Eram elas maiores do que o mais alto homem e do tamanho de Francisco de Albício, mas de melhor constituição do que nós.

     Depois determinamos roubar as raparigas e trazê-las para Castela como coisa de admirar, mas, quando estávamos nesta deliberação, começaram a entrar trinta e seis homens muito mais altos do que as mulheres e tão bem feitos que dava gosto olhá-los. Ficamos tão perturbados que mais seguro julgamos estar nos navios do que com tal

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gente. Traziam grandes arcos e setas, bastões e grandes varapaus semelhantes a clavas. Ao entrarem, falavam uns com os outros como se quisessem prender-nos. Considerando tal perigo, tomamos vários conselhos: uns queriam que os atacássemos naquela casa, outros, fora, na praça, e outros, que não os atacássemos até compreendermos o que queriam fazer. Entretanto, saímos simuladamente e começamos a voltar para os nossos navios, mas eles perseguiram-nos, sempre a falar, a um tiro de pedra, com medo igual ao nosso, segundo pensamos, porque, quando olhávamos para trás, ficavam longe, e, se não andávamos, também não andavam. Quando alcançamos os navios e entramos em boa ordem, logo todos se lançaram ao mar e atiraram um sem-numero de setas, então, pouco de recear. Disparamos até duas das nossas peças de artilharia, mais para os assombrar do que para os matar. E eles, ao ouvirem o arruído, imediatamente se refugiaram no monte próximo. Desta forma nos livramos e partimos.

     Todos estes homens andam nus, como os primeiros que descrevemos. Demos a esta ilha o nome de ilha dos Gigantes, devido ao tamanho dos seus habitantes. Mais além, já um pouco distante da terra, sucedeu-nos combater muitas vezes com eles, porque não queriam que dela alguma coisa se tirasse.

     Entretanto, o propósito de voltar a Castela acudia-nos à mente, sobretudo porque havia já um ano que andávamos no mar e pouco tínhamos de alimentos e coisas necessárias à vida. Para mais, esse pouco que tínhamos fora contaminado

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pelos grandes calores do sol, porquanto, desde a saída de Cabo Verde, navegamos sempre na zona tórrida e duas vezes atravessamos, como se disse, a linha equinocial. Perseverando nesta vontade, aprouve ao Espírito Santo livrar-nos assim de trabalhos.

     Quando procurávamos um porto para restaurar os nossos navios, fomos ter a um povo que nos recebeu com grande amizade e que soubemos possuir muitas pérolas orientais. Ficamos, por isso, com ele quarenta e sete dias e compramos cento e dezenove marcos de pérolas por um preço inferior, como pensávamos, a quarenta ducados.

     Em troca demos cascavéis, espelhos, cristais e algumas folhas de âmbar. Obtivemos umas tantas pérolas por cada guizo que demos. Aprendemos também o modo e lugar onde as pescavam, e deram-nos ainda das pequeninas em que nascem. Compramos algumas, em parte das quais encontramos cento e trinta pérolas e noutras menos. Saberá V. M. que, se não estiverem muito maduras, não despegam das conchas em que nascem, não prestam e em breve, como muitas vezes experimentei, mirram e desfazem-se. Quando estão maduras, separam-se, na ostra, de entre as carnes a que estão pegadas. Estas são as boas.

     Passados quarenta e sete dias, deixamos esta gente que tornamos muito nossa amiga e, saindo dali por falta de muitas coisas, chegamos à ilha de Antilha, descoberta há poucos anos por Cristóvão Colombo.

     Ficamos nela dois meses e dois dias a recompor os nossos navios e mantimentos, sofrendo

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muitas ofensas dos cristãos seus conviventes, as quais omito para não me tornar prolixo. Deixamos esta ilha a 22 de julho, e, com mês e meio de navegação, chegamos ao porto de Cádis a 8 de Setembro, onde nos receberam com muita honra e proveito. E assim, com a graça de Deus, acabamos a segunda navegação.

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