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Estando eu em Sevilha a descansar um pouco das penas e fadigas passadas nas referidas navegações e desejando voltar depois à terra das pérolas, a fortuna, ainda não satisfeita dos meus trabalhos, mandou, não sei como, que aquele sereníssimo Rei de Portugal D. Manuel me enviasse um mensageiro, com carta real, a rogar-me que fosse depressa a Lisboa, pois que me faria muitas mercês. Não dei logo resposta afirmativa, e até pelo mesmo mensageiro lhe signifiquei que estava mal disposto e com pouca saúde, mas acrescentando que, quando a recuperasse e aprouvesse a S. M., estaria ao seu dispor.
Vendo o Rei que eu não podia ir, enviou-me de novo Juliano Bartolomeu Giocondo, que então estava em Lisboa, para de todos os modos me levar. Fui obrigado com a chegada e rogos deste a aceder, fato que levaram a mal quantos me conheciam. E assim parti de Castela, onde me haviam feito grandes honras e o rei dispensado muita estima, e o que é pior, sem dizer nada a ninguém.
Em breve me apresentei ao rei D. Manuel que pareceu folgar com a minha chegada, rogan-
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do-me que partisse com três navios de conserva, preparados para sair e conhecer terras novas. E, porque os seus pedidos eram ordens, acedi.
Partimos, portanto, do porto de Lisboa com três naus de conserva, a 10 de maio de 1501, com rumo às ilhas da Grande Canária, ao longo e vista das quais instantemente navegamos, seguindo para ocidente, pelo lado da África. Ali, sem demorar mais que três dias, pescamos muitos peixes chamados pargos. Depois chegamos à parte da Etiópia dita Beselga, que fica na zona tórrida 14 graus abaixo do Pólo Norte no primeiro clima. Ficamos nela onze dias a fazer provisão de água e lenha, porque era minha tenção navegar para o sul, através do Atlântico. Deixamos este porto da Etiópia e tanto navegamos pelo Lebécio que sessenta e sete dias depois fomos dar a uma ilha distante do mesmo porto 700 léguas para a parte daquele vento; nestes dias sofremos pior tempo do que antes em qualquer mar, por mor da impetuosidade dos ventos e das chuvas que nos causaram grandes estragos, fato por que a nossa navegação continuamente seguiu a linha equinocial. Lá é inverno no mês de junho, os dias são iguais às noites, e as nossas sombras estão sempre voltadas para o sul.
A 17 de agosto, aprouve a Deus mostrar-nos uma praia nova, junto da qual surgimos obra de meia légua.
Depois partimos com algumas canoas a ver se era habitada, e vimos que o era muito de homens mais selvagens do que feras, como V. M. depois lerá.
Porém, logo de entrada não vimos ninguém;
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não obstante isso, conhecemos por muitos sinais que a terra era povoadíssima.
Tomamos posse dessa praia para o sereníssimo rei de Castela e notamos que era muito amena, verde e de boa aparência. Fica 5 graus ao sul da linha equinocial. No mesmo dia regressamos às naus; mas à falta de água e lenha, concordamos voltar à terra no dia seguinte para fazermos provisão do necessário. Estando nela, vimos no cimo de um monte gentes que não ousavam descer. Andavam todos nus e eram de rosto e cor semelhante aos outros povos. Como os convidássemos a aproximar-se, não pudemos conseguir que confiassem em nós. Perante a sua obstinação e altivez, voltamos para as naus ao anoitecer deixando na terra, à vista deles, guizos, espelhos, etc. Quando nos viram la pelo mar dentro, desceram do monte, por causa das ninharias que deixamos, fazendo muitos sinais de admiração.
Por então só fizemos provisão de água.
Na manhã seguinte vimos das naus uma multidão maior do que a anterior, fazendo aqui e ali fogos e fumos. Consideramos isto um convite e fomos para terra, onde então vimos chegar muito povo, que, longe de nós, fazia sinais para que com ele entrassemos no interior da ilha. E, então, sucedeu que dois cristãos dos nossos, para isso preparados, se expuseram ao perigo de se abeirar deles, a fim de saber que gentes eram ou se tinham riquezas e especiarias. Depois de muitos rogos, alcançaram a anuência do capitão. Lançando-se então à empresa com muitas coisas miúdas para vender aos povos de outros lugares,
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despediram-se de nós, sob condição de os esperarmos cinco dias, o máximo. Desta sorte, tomaram o caminho da terra, e nós o das naus, onde ficamos oito dias à espera. Todos os dias vinha nova multidão de gente, mas nunca quiseram falar conosco. Ao sétimo dia, desembarcamos de novo e vimos que aquela gente tinha trazido todas as suas mulheres. Logo que ali chegamos, muitos enviaram as suas para nos falar; contudo, mesmo estas confiavam pouco em nós. Percebendo tal, deliberamos mandar-lhes um dos nossos rapazes, muito ágil e forte, e, para que elas temessem menos, entramos nas nossas canoas. Tanto que o rapaz foi em terra, e com elas se misturou, todas o cercavam, tocavam, apalpavam e admiravam; mas nisto chega do monte uma mulher com um grande pau na mão, e aproximando-se do lugar onde estava o mancebo, com tamanha pancada o feriu nas costas que o pobre de repente caiu por terra.
Imediatamente as outras mulheres pegaram nele e arrastaram-no, pelos pés, para o monte; e, então, os homens que nele estavam, vieram para o litoral arremessar-nos setas, tal medo metendo à nossa gente que esta nem se lembrava de pegar em armas, porque os batéis, em que estavam, encalharam e não podiam fugir. E, desta maneira, muitos nos seteavam. Foi então que disparamos quatro tiros da nossa artilharia que, embora não atingissem ninguém, só com o ruído os fizeram acolher ao monte onde estavam as mulheres a cortar o mancebo que tinham trucidado e cujos pedaços, mostrando-no-los, queimaram numa grande fogueira e depois comeram.
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Os homens, por sinais, deram-nos a perceber que tinham comprado e comido dois outros cristãos nossos. Nós acreditamo-los, porque falavam verdade. Depois mais nos ofendemos quando, com os próprios olhos, vimos a crueldade que exerciam sobre o morto. Por isso, mais de quarenta dos nossos resolvemos firmemente atacar a terra à uma e nela entrarmos para vingar tão desumano fato e tão bestial crueldade. Mas o capitão-mor dos navios não consentiu e, assim, depois de tamanha e tão grave injúria, com má vontade e grande vergonha nossa, saímos sem vingança.
Depois de abandonarmos aquela região, começamos a sulcar entre o levante e o siroco, na direção da própria terra, fazendo muitas voltas e rodeios, durante os quais não vimos gentes que quisessem conosco praticar ou aproximar-se de nós. Navegamos tanto que achamos uma terra nova que se estendia para Lebécio, na qual rodeamos um cabo a que demos o nome de S. Vicente, e começamos a navegar no sentido daquele vento. Este cabo de S. Vicente dista 150 léguas para levante daquela terra onde ficaram mortos os nossos cristãos e 8 graus para o sul da linha equinocial. E, indo assim ao acaso, vimos noutra terra muita gente que admirava as nossas feições e a grandeza dos nossos navios. Junto deles logo ficamos a bom recato e desembarcamos. Notamos que eram de condição mais branda que os anteriores, porque, embora gastássemos tempo em domá-los, conseguimos torná-los nossos amigos. Ficamos com eles cinco dias a negociar e praticar; achamos aí canas fístulas verdes muito grossas e algumas secas nos cumes das árvores.
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Resolvemos trazer dois naturais para ensinarem a língua, mas foram três os que espontaneamente nos acompanharam para vir para Portugal. E, porque me pesa tudo descrever, digne-se V. M. saber que, deixando nós aquele porto pelo vento Lebécio, corremos sempre à vista da terra, fazendo muitas escalas e rodeios e falando com muitos povos até sairmos para o sul, fora do trópico de Capricórnio, onde o Pólo Sul se eleva 32 graus acima do horizonte e onde tínhamos já perdido de vista a Ursa Menor, e a Maior parecia muito baixa num horizonte quase infinito. Então guiamo-nos pelas estrelas do Pólo Sul, que são mais numerosas, maiores e mais brilhantes do que as do nosso pólo. Por isso, desenhei a maior parte delas, sobretudo das de primeira e maior grandeza, juntamente com a descrição dos seus diâmetros e raios e dos círculos que faziam em redor do Pólo Sul, conforme se poderá facilmente ver nas minhas "Quatro Navegações".
Nesta viagem começada no cabo de Sto. Agostinho, percorremos 700 léguas, 100 para poente e 600 para Lebécio. Para descrever o que vimos nelas não bastariam outras tantas folhas de papel. Não encontramos coisas de grande importância, a não ser muitas cássias, muitas outras árvores que produzem umas certas lâminas e ainda outras muito maravilhosas que seria fastidioso enumerar.
Gastamos quase 10 meses nesta viagem. Assente que não encontraríamos minerais, concordamos demandar outro lugar. Tomada esta resolução, logo foi promulgado e divulgado a toda a companhia que se fizesse por completo tudo o que eu ordenasse em tal viagem. Ordenei imediata-
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mente que cada um fizesse provisão de água e lenha para seis meses, porque os oficiais de navios julgaram que este era o tempo que poderíamos navegar.
Terminada a provisão, deixamos aquela praia, e, iniciando a nossa viagem pelo vento siroco, a 13 de Fevereiro, quando o sol já estava próximo de Equinócio e tornava para o nosso hemisfério norte, tanto navegamos que encontramos o Pólo Sul 52 graus acima daquele horizonte, de forma a não podermos ver as estrelas das duas ursas. A 3 de abril já nos tínhamos afastado 500 léguas do porto de que saíramos pelo siroco. Neste dia tão forte tempestade se levantou no mar que dificilmente pudemos colher as velas. Fomos levados a navegar a mastro seco, porque o Lebécio soprava muito forte, o mar enfurecia-se e o ar estava turbadíssimo. Os nossos ficaram todos mui espantados com tão violento turbilhão; para mais, as noites ali eram muito longas. Efetivamente, a 7 de abril, no fim de Aries, viram-se noites de 15 horas e ainda era inverno, como V. M. poderá considerar. Mas, nós, navegando sob esta tormenta, vimos a 2 de abril uma terra, da qual nos aproximamos, com cerca de 20 léguas de curso; era, porém, selvagem e estranha, sem portos nem gentes, talvez devido ao frio insuportável. Além disso, em tanto perigo e tempestade nos achamos que dificilmente nos víamos uns aos outros por causa do turbilhão. De acordo com o capitão-mor, fizemos sinais a todos os navios da nossa armada para deixarmos aquela terra e regressarmos a Portugal.
Este plano foi são e útil, visto que, se
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ficássemos ali só aquela noite, nos perderíamos de todo. A tempestade foi tão grande no dia seguinte ao da nossa saída que receávamos de todo soçobrar. Fizemos, por isso, muitos votos de peregrinação e outras cerimônias, como é de ,- usança dos marinheiros.
Sob o infortúnio desta tempestade, navegamos a árvore seca cinco dias. Durante estes dias, engolfamo-nos no pego do mar obra de 250 léguas, aproximando-nos da linha equinocial e de mar e ares mais temperados, pelo que aprouve ao Altíssimo Deus livrar-nos dos ditos perigos.
Seguíamos a nossa navegação, segundo o vento transmontano e o grego, porque desejávamos dar no lado da Etiópia, de que distávamos 1.300 léguas, pelo golfo do mar Atlântico.
A 10 de maio chegamos, por graça do Supremo Senhor, àquela terra e ali estivemos 15 dias na praia, do lado do sul, que se chama Serra Leoa, tomando refrescos, e depois seguimos para as ilhas chamadas Liazori, que distam da Serra Leoa 750 léguas; chegamos aí ao fim de julho e igualmente demoramos 15 dias para descansar. No fim dos quais, saímos e retomamos o curso de Lisboa de que distávamos 300 léguas para ocidente e cujo porto finalmente tocamos a salvamento, por graça do Senhor, com dois navios somente, porque o terceiro tínhamo-lo queimado na Serra Leoa por mais não poder navegar. Porém, nesta nossa terceira viagem gastamos cerca de 16 meses, 11 dos quais sem ver a estrela transmontana e as duas ursas. Entretanto, regíamo-nos por outra estrela do Pólo Sul.
Isto foi o mais notável que vi na 3a navegação.