O Quarto
(Anônimo)

Naquele lugar entre a consciência e o sonho, encontrei-me em um quarto. Nele não havia nada de incomum, exceto por uma parede coberta por um arquivo de fichas.

Era como um daqueles de biblioteca, com várias gavetas que listam títulos por autor ou assunto em ordem alfabética. Porém, estas gavetas que se estendiam do chão ao teto e aparentavam não ter fim para nenhum dos lados, tinham cabeçalhos um tanto diferentes.

Ao me aproximar da parede, o primeiro a chamar minha atenção era um que dizia “Pessoas de quem gostei”. Eu abri a gaveta e comecei a folhear os cartões. Fechei-a rapidamente, chocado em perceber que reconhecia cada um dos nomes escritos ali.

Então, sem que ninguém me dissesse nada, soube exatamente onde estava. O quarto sem vida com suas pequenas gavetas era um perturbador arquivo da minha vida. Nele tinham sido escritos meus atos em cada momento, grandes ou pequenos, em detalhes inalcançáveis à minha memória.

Os títulos iam do banal ao bizarro. “Livros que eu li”, “Mentiras que eu contei”, “Consolos que eu dei”, “Piadas que me fizeram rir”.

Alguns eram quase hilários em sua exatidão: “Coisas que eu berrei para meus irmãos”. Outros não tinham tanta graça: “Coisas que eu fiz nos momentos de ira”, “Murmurações que tive em secreto sobre meus pais”.

Eu não parava de me surpreender com o que encontrava. Quase sempre haviam muito mais fichas do que eu esperava.

Algumas vezes menos do que gostaria. Fiquei impressionado pelo enorme volume de minha existência. Seria possível eu ter tido tempo em meus 27 anos para escrever cada um dos milhares ou talvez milhões de fichas? Mas cada cartão confirmava esta verdade. Todos estavam escritos com minha letra. E todos tinham sido assinados por mim.

Quando puxei a gaveta “Músicas que eu escutei”, concluí que as gavetas tinham o tamanho exato dos seus conteúdos. As fichas estavam colocadas bem justas, mas mesmo depois de dois ou três metros ainda não tinha conseguido encontrar o final. Fechei de volta, envergonhado, nem tanto pela qualidade da música, mas pela vasta quantidade de tempo que eu sabia que aquilo representava.

Quando vi a etiqueta que dizia “Pensamentos luxuriosos”, senti um arrepio atravessar o meu corpo. Abri a gaveta uns poucos centímetros, sem coragem de descobrir seu tamanho, e puxei uma ficha. Estremeci ao ler sua descrição detalhada. Me causou náusea pensar que momentos assim pudessem ter sido registrados.

Uma cólera quase selvagem se apoderou de mim. Só um pensamento dominava minha mente: “Ninguém jamais pode ver estas fichas! Ninguém deve encontrar este quarto! Eu tenho que destruí-los!” Num impulso insano arranquei a gaveta. Seu tamanho já não importava. Eu tinha que esvaziá-la e queimar os cartões. Porém, mesmo segurando suas extremidades e balançando com toda a minha força, nenhum saiu de seu lugar. Em desespero tirei um cartão, apenas para descobrir que ele era forte como aço quando tentei rasgá-lo.

Sentindo-me derrotado retornei a gaveta ao seu lugar. Encostei a testa na parede e deixei escapar um longo e profundo, suspiro. Então eu vi. O título era “Pessoas com quem compartilhei o Evangelho”. O puxador brilhava mais do que os outros ao seu redor, era mais novo, quase sem uso. Puxei-o e uma pequena gaveta com uns quatro dedos de comprimento saiu nas minhas mãos. Dentro havia tão poucos cartões que nem precisei contar.

Aí as lágrimas vieram. Caí em prantos. Soluçava tão forte que sentia uma dor que começava no estômago e se expandia pelo corpo todo. Caí de joelhos e gritei. Eu gemia de vergonha, da sufocante vergonha de tudo aquilo. As fileiras de gavetas confundiam-se em meus olhos lacrimejantes. Ninguém poderia jamais saber deste quarto. Eu precisava trancá-lo e esconder a chave.

Então, enquanto enxugava as lágrimas, eu O vi. Não... Não Ele. Não aqui. Qualquer um, menos Jesus. Eu olhava, indefeso(a), enquanto Ele abria os arquivos e lia os cartões. Eu não podia suportar ver sua reação. Nos momentos em que consegui fitar sua face vi um pesar mais profundo que o meu. Ele parecia ir intuitivamente para as gavetas mais podres. Porque Ele tinha que ler cada uma das fichas?

Finalmente Ele se virou e me encarou do outro lado do quarto. Ele me olhava com pena em seus olhos. Mas era uma pena que não me zangava. Abaixei minha cabeça, cobri minha face com as mãos e tornei a chorar. Ele se aproximou e me abraçou. Ele poderia ter dito tantas coisas. Porém nenhuma palavra saiu de sua boca. Ele apenas chorou comigo.

Depois se levantou e se dirigiu à parede de arquivos. Começando de uma extremidade Ele puxou uma gaveta e, um a um, assinava seu nome sobre o meu nos cartões.

Eu gritei, correndo até Ele. Tudo o que eu conseguia balbuciar era “Não, não!” enquanto tirava a ficha de suas mãos. Seu nome não poderia estar nos cartões. Mas lá estava, escrito com um vermelho tão intenso, tão escuro, tão vivo. O nome de Jesus cobria o meu. Estava escrito com seu sangue.

Ele delicadamente tomou de volta o cartão. Ele sorriu, com tristeza, e continuou assinando. Acho que jamais entenderei como Ele pôde fazê-lo tão rápido, pois no momento seguinte eu o vi fechando a última gaveta e tornando à minha direção. Colocou sua mão no meu ombro e disse: “Está consumado”.

Logo Ele me levou para fora do quarto. Não havia trancas na porta. Ainda existiam cartões a serem escritos...

 

 

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