Especial para Gazeta Mercantil-RS - publicado em 21/11/00]

 

PARTIDOS DE COMUNIDADE PARA UMA NOVA ESTRUTURA DE REPRESENTAÇÃO*

por Eduardo Dutra Aydos**

No momento em que se reunirá, pela segunda vez, desde a sua constituição em 1997, a Associação Brasileira de Ciência Política, a variedade dos temas e abordagens que estão sendo apresentadas na pauta de discussões deste Encontro, sinaliza, o grande desafio contemporâneo da liderança social, no afrontamento simultâneo da complexidade e da relevância da democracia.

É inviável deixar de considerar-se a enorme teia de relações interdependentes e auto-constitutivas, onde está inserida a nossa possibilidade de sobrevivência planetária; e é indescartável a relevância estratégica, que o manejo adequado da questão institucional projeta neste cenário.

A contribuição que estamos levando a esse debate, sob a capa de uma agenda política para o Brasil do século XXI, ao descortinar os múltiplos vetores do desenvolvimento, que se articulam nos interesses da racionalidade, credibilidade e governabilidade democráticas, responde ao desafio da complexidade. E, ao postular o princípio da autonomia e da irredutibilidade das três instâncias de integração social, constituídas pelo Estado, Mercado e Comunidade, destaca a relevância de uma efetiva mudança na estrutura da representação política.

A democracia no século XX institucionalizou duas vertentes da representação:

nos partidos políticos, onde se agregam e articulam interesses e projetos orientados ao Estado; e

nas grandes centrais sindicais, onde se agregam e articulam interesses e projetos orientados ao Mercado.

O espaço estrutural da Comunidade, entretanto, foi tomado pelo fenômeno de serendipity: o particularismo e a fragmentação de vontades e projetos - dos quais é paradigmático o movimento de ação afirmativa - que designa a segmentação da intervenção política nos mais variados grupos de interesse (verdes, feministas, gays, etc.). Sua tônica na super-especialização de demandas (one issue politics); sua orientação ao Estado, cuja intervenção passam a exigir como instrumento de regulação e repressão; e uma crescente dependência do Mercado, via filantropia, comprometeu e ameaça erodir, nas suas próprias raízes tanto o princípio auto-gestionário [nas fundações do self government], como a construção mais ampla e genérica da identidade pública [nacional, regional e planetária], que nutrem a idéia e o processo da democracia.

Sem desconhecer o papel exercido pelo princípio integrador das identidades coletivas na construção estatal, é forçoso reconhecer, que a esfera pública globalizada o transcende, articulando interesses e identidades que têm vida própria e forçam passagem na contramão ou à margem da ação possível e da intervenção tolerável do Estado. Por outro lado, é insuficiente e, até mesmo, indesejável, o mero deslocamento desses interesses e identidades emergentes, desde o modo e a abrangência da esfera estatal, para o âmbito exclusivo esfera concorrencial do Mercado, tornada a panacéia de todos os seus estrangulamentos.

Não há outra via, para avançarmos produtivamente a radicalização da democracia, senão encararmos de frente, na sua especificidade e nas suas exigências próprias, as questões inerentes à irredutibilidade das três instâncias de integração social: Estado, Mercado e Comunidade. E isso implica em gestar-se, no âmbito da Comunidade, uma estrutura de representação própria, capaz de atender à formação de identidades e à formulação de projetos que perpassem os novos espaços, que a complexidade da sociedade contemporânea tem aberto à participação, como autonomia, e à regulação, como solidariedade.

O surgimento de movimentos agregadores de interesses (mais amplos e generalizantes, que o foram os seus precursores no contexto da ação afirmativa), aponta um caminho relevante para o reencontro necessário com a tradição do auto-governo e a projeção viável da idéia democrática no limiar do novo Século. A autonomia política e gestionária das Comunidades Locais e das instituições do chamado Terceiro Setor, exige e parece orientar-se à constitucionalização destes movimentos, enquanto partidos-comunitários. Esses novos partidos, poderiam organizar-se ao estilo dos já existentes. Mas sua esfera de atuação, entretanto, alcançaria tão somente a articulação e agregação de interesses nos processos de participação e organização auto-gestionárias da Comunidade; e, no seu limite, se projetaria como representação política da cidadania na composição do Poder Legislativo.

Essa proposta implica uma clara e inequívoca divisão de competências e de prerrogativas, entre essa nova instância de articulação político-comunitária e a organização dos atuais partidos políticos. Estes passariam a se especializar na articulação de interesses e formulação de projetos de governo e na disputa pelas posições de autoridade executiva na estrutura do Estado. Os novos partidos comunitários, ao lado dos atuais partidos políticos e centrais sindicais representariam, assim, os canais privilegiados de articulação e agregação de interesses, nas três esferas correspondentes da Comunidade, do Estado e do Mercado.

A constituição dos partidos comunitários implica uma reforma político-institucional profunda e uma efetiva mudança de concepções e procedimentos da própria atividade política. Tem como alvo prefixado da sua engenharia institucional, declaradamente, a assintonia crescente entre os partidos políticos tradicionais (que não têm e dificilmente virão a ter ou consolidar militância de base nas instituições do Mercado e da Comunidade) e os partidos de implantação social vertical (cuja estrutura de arregimentação e mobilização política atua no campo eleitoral e nas demais esferas de participação social: sindicatos e corporações, conselhos da administração, movimentos sociais, instituições do terceiro setor, etc.). Por seu estilo e por sua dinâmica própria (senão fora por sua ideologia), essas estruturas partidárias são antagônicas. E, entregue à sua própria dinâmica, esse antagonismo é explosivo, podendo, na esteira das suas incompatibilidades, comprometer a própria institucionalidade democrática: seja pelo estímulo ao golpismo político, por parte dos partidos tradicionais, despreparados para enfrentar com as mesmas armas o poder de fogo dos seus adversários; seja pela conquista de uma hegemonia política pelos partidos verticais, tendencialmente indutora do regime de partido único e do totalitarismo (senão de direito, ao menos de fato).

A terapêutica recomendável nesse conflito é homeopática e segue a fórmula similia similibus curantur. Cura-se um mal, pela aplicação de doses infinitesimais do mesmo veneno. Se o objetivo é a inibição do atrelamento e do aparelhamento político-partidário dos movimentos sociais; o remédio é promover essa mesma partidarização, mas de forma diferenciada e referenciada a focos de interesses específicos da própria comunidade. A democracia aplica de há muito essa receita. O remédio contra o poder absoluto, não se o visualizou no contra-poder (de classe) ou mesmo na negação do poder (anárquica) - mas, na apropriação do poder pela cidadania e sua delimitação nas diferentes esferas institucionais ao alcance da sua participação.

Assim, portanto, a reversão dos processos hegemonistas, que conduzem ao monopólio da narrativa e da articulação política na base da sociedade, por estruturas partidárias proto-totalitárias, de militância centralista, não pode ser alcançada eficazmente, pelo maniqueísmo de um confronto final e decisivo entre esquerda e direita, entre os partidos tradicionais e um qualquer, auto-credenciado partido único da sociedade. Até porque, nesse embate, os partidos tradicionais já estão previamente derrotados. São ineptos para oferecer-lhe resistência, na mesma medida em que são incapazes de auto-corrigir as suas próprias carências de representação. E se o lograssem, seria apenas para reproduzirem com sinal trocado o próprio monstro que pretendem combater.

O enfrentamento desses sucessos indesejáveis sob o prisma da institucionalidade democrática, recomenda uma reforma política, orientada à sua prevenção. Neste sentido, trabalha a constitucionalização e legitimação da intervenção dos movimentos sociais - como, por exemplo, MST e UDR - em instâncias auto-gestionárias e legislativas da sociedade. Como efetivos partidos de comunidade, sua atuação delimitaria a esfera dos partidos de Estado nas disputas pelo poder Executivo, constituindo-se num efetivo mecanismo de pesos e contrapesos ao exercício da autoridade política. De outro lado, tais partidos de comunidade, transformados em canais de acesso privilegiado ou exclusivo ao auto-governo e à representação legislativa, nas estruturas de base da Comunidade, representariam um fator de indução (quase coercitiva, assim como o voto obrigatório) à implantação de uma estrutura competitiva e pluralista em todo o espectro da militância social. Pressionados pela impossibilidade de atuarem nos movimentos sociais e articularem sua força política, sem efetiva participação nas instâncias comunitárias de agregação de interesses, as forças políticas hoje articuladas nos partidos tradicionais se veriam constrangidas a atuar junto às suas bases, sob pena de abdicar do respectivo espaço de articulação e poder político. Da mesma forma, seriam refreadas tendências oligarquizantes e burocratizantes no espectro das forças políticas nucleadas em torno dos partidos de militância vertical.

Não se comunga aqui, obviamente, a ingenuidade de supor que não persistiriam laços e alinhamentos entre partidos do Estado (as atuais siglas), partidos do Mercado (centrais sindicais) e os novos partidos de comunidade. Mas, com organização autônoma e institucionalizados em base de regras de conduta e padrões éticos construídos, que coíbam o trampolim político e o atrelamento fisiológico de uns aos outros, os partidos de comunidade poderiam oferecer espaço para a prevenção ou contenção dos antagonismos sociais e reforçar a capacidade instalada da democracia na solução pacífica e regrada do conflito de interesses.

*Esta proposta integra um conjunto de idéias que foram originariamente elaboradas para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimeto - PNUD/Instituto do Política, e foram apresentadas no 2º Encontro da ABPC em São Paulo, de 20-24/11/00, na forma do paper: Uma Agenda Política para o Brasil no Século XXI. Este e outros textos do autor são disponíveis em sua Home Page: http:// www.geocities.com/edaydos

**O autor é doutor em ciência política e professor da UFRGS

E-mail: edaydos@adufrgs.ufrgs.br

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