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O Fórum e seus espectadores

por Eduardo Dutra Aydos

     O Fórum e seus Algozes” foi mais do que um título dado a artigo recente do Prefeito Tarso Genro nos prólogos do Fórum Social Mundial. Ato falho ou frase de efeito, essa manchete comunicou mais que o texto que lhe segue. Por que haverá sempre uma certa esquerda de identificar, nas críticas que a atingem, o síndrome da violência e da tortura? Compreendo o trauma e respeito a marca indelével que essa postura possa revelar, de um passado de lutas contra a repressão. Mas não posso aceitar a sua projeção – como patologia da liberdade – sobre o debate contemporâneo das alternativas para o desenvolvimento humano.

    É lastimável que um discurso, aparentemente tão equilibrado e descomprometido com os excessos previsíveis daquele evento, quanto suficientemente erudito e simbólico para certificar-se num “ISO 2001” do pensamento politicamente correto –  sic: “queiramos ou não, somos hoje cidadãos da Terra” – tenha a sua credibilidade tão flagrantemente comprometida. Sutileza que se confirma, no entanto, a um exame mais acurado do seu conteúdo, onde ressalta uma tentativa clara de eliminar as próprias contradições que haveriam de dominar os debates e o sentido dado, pelos seus promotores e participantes, ao grande “happening” Januário de Porto Alegre.

    De um lado, opera-se a incorporação de uma visão crítica da globalização recente, já amadurecida nos altos escalões das próprias instituições gestoras do sistema financeiro internacional, cujo Presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, é convenientemente citado. Uma aplicação exímia da ars retorica, destinada à legitimação simbólica, no campo ideológico da direita, de uma intervenção política de esquerda. Tem como endereço certo o auto-apreço de todas as burocracias – nacionais e multilaterais – bem como o despreparo intelectual e a reserva de consciência dos setores do empresariado e da academia, que se deixam fissurar pelo toque de Midas da uma militância política, useira e vezeira de se apropriar da verdade histórica e da ética política, das iniciativas e dos projetos, dos movimentos e das instituições autônomas da sociedade civil. No seu alvo, a submissão da autonomia inerente à sociedade civil ao serviço dos seus interesses partidários e à defesa das posições de circunstância que assume no jogo do poder.

    De outro lado, ressalta uma tentativa explícita de neutralizar qualquer crítica ao próprio evento, incorporando-a – pela sua desqualificação liminar – à eficácia da ação política que se projeta do próprio espetáculo de massas e dos seus efeitos subsidiários sobre a economia da cidade. À epígrafe do texto, os eventuais críticos do Fórum são demonizados. Na sua conclusão, os iconoclastas da nova ordem pagam tributo, pelo mero ato de se manifestarem, aos objetivos que o oficialismo promove, eis que no seu argumento circular, sic: “as críticas ao fórum, de qualquer origem, só evidenciam a sua importância histórica”.

    Diante de tal habilidade retórica – que fechou sobre si mesmo o espaço discursivo do Fórum Social Mundial – e da sua apropriação partidária, clara e inequívoca nos clips de propaganda do PT, a grande surpresa está no fato que este evento tem recebido resposta, ampla e significativa, por parte de uma consciência crítica reflexiva, sobrevivente e espectadora. Porque não pactuamos com a impostura da afinidade ideológica apregoada pelos seus promotores e denunciamos as suas contradições, Porto Alegre e o RS merecem aplauso e o futuro do Fórum Social Mundial ainda justifica consideração.

    Mais importante que o episódio que se encerra é o que se projeta na agenda política do próximo ano eleitoral: em 2002 seremos novamente anfitriões do Fórum Social Mundial. A contagem regressiva para a sua organização já teve início, cabe à sociedade porto-alegrense e gaúcha, agora, decidir se aceita a falta de transparência organizativa e o atrelamento político partidário que deram a tônica da sua primeira edição, ou se vai impor limites, condições e diretrizes, ao envolvimento da esfera pública municipal e estadual na realização desse evento. Essa, aliás, é uma responsabilidade indescartável, perante a coerência do próprio discurso, de todos os que nos recusamos abrir mãos dessa prerrogativa cidadã, que é a expressão de uma consciência reflexiva e crítica diante do monólito – de um pensamento único anti-neoliberal que, sob a capa de uma alternativa à barbárie, promove a neutralização e a absorção da democracia no totalitarismo, do pacifismo no elogio da violência, da autonomia da sociedade civil na promoção da burocracia estatal. Ou encontramos a condição democrática para essa intervenção, com igual efetividade e maior transparência organizativas e, substancialmente, num nível mais elevado de pluralismo e competência na formulação de políticas focalizadas na articulação indissociável da liberdade, igualdade e solidariedade, ou veremos reduzido a pó de mico todo o esforço reflexivo e o potencial proativo da consciência crítica, ora desperta em nossa sociedade. 

*Publicado na Gazeta Mercantil-RS, 16-18 FEV/2001.

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