Eleições 2.000 no RS: do voto partidário ao voto constitucional.
por Eduardo Dutra Aydos*
Os resultados eleitorais no RS registram para os 493 municípios com o pleito encerrado no primeiro turno: 275 candidatos à reeleição (55,7%); e, apenas, 157 prefeitos reeleitos (ou seja 31,8% do total e 57% dentre os candidatos à reeleição).
Tanto quanto dependesse do RS, esses números consolidam o instituto da reeleição, desautorizando a sua demonização, como foi promovida pela oposição sistemática capitaneada pelo PT, no Congresso Nacional, contra as reformas institucionais introduzidas pelo governo do Presidente Fernando Henrique. Na sua esteira, embora ainda cedo para creditar-lhe todos os méritos da alternância no governo com e a despeito da reeleição, a Lei da Reponsabilidade Fiscal passa a integrar nosso ordenamento jurídico, como um complemento necessário ao disciplinamento do regime eleitoral, ora flexibilizado pela possibilidade de uma recondução das Administrações.
Com apenas 31,8% de prefeitos reconduzidos ao cargo, a reeleição provou não constituir-se num passe livre para o continuísmo político. Com apenas 55,7% de prefeitos postulantes à permanência no cargo, a reeleição provou não representar sequer uma alternativa de escolha inevitável dos administradores e seus partidos. Em Porto Alegre, por exemplo, o Prefeito Raul Pont, aguerrido opositor desse instituto político, não obstante, pretendeu recandidatar-se e foi barrado nesse intento, pelo seu próprio partido em favor de outro candidato. Uma exceção, aliás, para o PT que, via de regra, postulou neste pleito a reeleição dos seus prefeitos. Isso que levou o cientista político Antônio Octávio Cintra a retirar desse comportamento, adotado nacionalmente pelas administrações petistas, a lição de casa, sobre a qual deveriam humildemente meditar: "O pensamento democrático repousa sobre a reciprocidade de perspectivas. Os governantes de hoje devem pensar se apoiariam o instituto da reeleição caso estivessem do outro lado. Também a oposição deve considerar se teria combatido tal instituto caso fosse governo quando ele foi aprovado. Os prefeitos petistas ou de coligações em que o PT tem papel de relevo, que agora postularam a reeleição, mostram com seus atos terem deixado de julgá-la condenável."
Mais do que isso, os resultados eleitorais demonstram que a demonização da reeleição, sob o argumento corrente que favoreceria a manipulação política do processo eletivo, constituiu-se, antes de qualquer outra coisa, num desrespeito flagrante ao discernimento da cidadania. Seus promotores repisaram a velha e surrada tese que o povo não sabe votar - ou que a democracia é incapaz de assegurar que o interesse público prevaleça na escolha dos governantes, sujeitando-se o resultado das eleições a um jogo de circunstâncias, onde o que haveria de pesar decisivamente seria o fato de alguém estar no governo, acima e além de quaisquer argumentos, projetos ou, mesmo, da sua adequação às reais expectativas da cidadania. O povo encarregou-se de os desmentir.
Analisando-se em maior profundidade o tema que os fatos eleitorais relevam, verifica-se que o instituto da reeleição: (a) acrescenta flexibilidade ao processo da escolha eleitoral - sem perder essa prerrogativa, a cidadania não fica entretanto constrangida a ter que, obrigatoriamente, trocar a chefia do governo decorridos o estrito prazo de quatro anos de um mandato executivo; (b) favorece a governabilidade democrática, eis que, no horizonte de planejamento exigido pela complexidade contemporânea das tarefas de governo, um mandato de quatro anos pode ser insuficiente para a maturação dos projetos estratégicos de uma administração; (c) extende o prazo, mas não revoga o princípio da alternância no poder, nem sempre enfatizado com a devida profundidade e conseqüência em nosso debate político.
Deixo de analisar, pela sua obviedade, as duas primeiras características apontadas, para deter-me no aprofundamento da terceira, de longe a mais importante e significativa para o desenvolvimento da teoria democrática. De fato, a reeleição, assegurando a possibilidade de mais um - e apenas dois mandatos consecutivos - reitera e sacramenta a obrigatoriedade da alternância de pessoa-a-pessoa no exercício constitucional do poder em nossa democracia. Isso não impede, entretanto, que o regime eleitoral-partidário vigente deixe em aberto a possibilidade do continuísmo - por via de diferentes e interpostas pessoas - das máquinas políticas individuais ou partidárias no governo. Isso que nos leva a questionar o sentido e a efetividade do princípio da alternância no poder, como exercitado em nossa ainda frágil e incipiente experiência democrática. É um dos aspectos obscuros e ainda intocados do mandonismo político que permeia nossa história política.
Mais uma vez aqui, a discussão institucional pode ser pautada na denúncia da inconsistência flagrante de um certo discurso pseudo-democrático, que se opôs à reeleição de indivíduos, mas propugna o continuísmo de partidos políticos no exercício do governo. Pois o PT, que foi contra o instituto da reeleição, prepara-se para emplacar a sua quarta administração no Município de Porto Alegre. Mais do que isso, o PT que enfrentou nas eleições de 1998 o favoritismo eleitoral dos 9 candidatos Secretários de Estado, projetados ao Poder Legislativo pela Administração do PMDB, revidou na mesma moeda no ano 2.000, elegendo para a representação da sua bancada na Cãmara Municipal 5 candidatos Secretários Municipais. Talvez, por isso mesmo, o fantasma da corrupção política que povoou seu discurso contra a reeleição, não os tenha igualmente mobilizado em apoio à Lei da Responsabilidade Fiscal, que coíbe o uso eleitoreiro dos recursos e da capacidade de endividamento do setor público.
Dá para entender? Talvez. Mas na hora de aceitar, no mínimo, somos obrigados a parar para refletir... sobre a coerência tática desse discurso e a sua inconsistência em face de uma concepção estratégica da democracia.
Entende-se assim, que a oposição do PT à aprovação da emenda constitucional 16/97 - como agora o comprova a sua farta utilização dessa prerrogativa constitucional - foi casuísta. Ao votar contra a reeleição, tinha como horizonte de sua atuação parlamentar, pura e simplesmente, a tentativa de barrar a recondução do Presidente Fernando Henrique Cardoso... ainda que isso implicasse em bloquear, pelo jogo das formalidades democráticas, a manifestação clara e amplamente majoritária da cidadania, como afinal se manifestou nas urnas. Votaram contra a flexibilidade da escolha popular, votaram contra a reconstrução da governabilidade, num país que recém emergia de uma dramática crise hiper-inflacionária, e sacramentaram taticamente nesse voto uma concepção estreita - pessoa-a-pessoa - do princípio da alternância no poder.
Nada contra o direito de assim se posicionarem. Tudo a favor, no entanto, do direito de se lhes cobrar a inconsistência. Pois, em sua estratégia de ação política, o PT alimenta uma efetiva contradição do princípio da alternância no poder, que radica no conceito e na prática do hegemonismo político, que absolve a ilegitimidade das suas práticas e assim desconhece o continuísmo político, como abuso do poder, desde que invocado na primeira pessoa. E é exatamente esse tema, que pauta os debates no segundo turno da eleição municipal de Porto Alegre. Isso que, imediatamente, nos alerta para uma característica emergente, muito nítida e salutar, que a implantação do escrutínio de segundo turno está conformando no nosso sistema político.
A lógica do comportamento eleitoral no primeiro turno seguiu as tendências canônicas associadas ao sistema de representação proporcional, mediante: (a) a diferenciação do quadro partidário; (b) a radicalização do espectro ideológico; e (c) a polarização eleitoral de esquerda-direita, como estágio final desse processo, nos centros de maior estruturação ideológica do eleitorado. A luz desse desempenho do sistema eleitoral-partidário, tudo levaria a crer, nos municípios onde se realizará o segundo turno e onde o pleito se polarizou entre candidatos identificados como de esquerda e direita, que essa clivagem ideológica comandasse, de um lado, a construção da pauta de campanha e, de outro, o esforço de reconstrução e ampliação das alianças eleitorais. Ledo engano.
Em São Paulo, os debates do segundo turno pautam o tema da corrupção administrativa, com o PSDB apoiando a candidata do PT, e com o PFL favorecendo-a com a sua negação de apoio ao candidato Paulo Maluf, para não falar do apoio que lhe está emprestando a liderança ultra-conservadora e liberal do empresariado paulista representado pelo ex-presidente da FIESP Mário Amato.
Em Curitiba, os debates do segundo turno pautam o tema do continuísmo político da equipe administrativa do Ex-Prefeito e atual Governador Jaime Lerner, e em torno dessa definição o candidato petista Angelo Vanhoni recebeu o apoio do PSDB, partido que o PT elegeu como seu arqui-inimigo em escala nacional. É de se observar que o tema factual da corrupção administrativa, incorpora-se na dimensão mais ampla do continuísmo político. Mesmo sem elementos fáticos a denunciá-la no campo mais chulo dos escândalos e das negociatas que estigmatizaram o malufismo em São Paulo, a prevenção da corrupção é uma dimensão latente na rejeição do continuísmo político. Advirta-se, nesse sentido, que o continuísmo - como possibilidade do exercício continuado e ininterrupto do poder durante várias administrações - incorpora, na sua própria condição de ser, a corruptela do desvio de finalidade do governo, cuja dinâmica tende, gradativa mas inexoravelmente, a subordinar-se ao objetivo particular da auto-preservação de uma dada estrutura de poder pessoal ou coletivo.
Ao denunciar, no fundamento teórico das análises empreendidas por José Hildebrando Dacanal e do cientista político José Giusti Tavares, o caráter totalitário do governo petista em Porto Alegre e no RS, cujo partido pratica a dualidade da luta constitucional e insurrecional; e alinhando-se, nesse contexto, também à crítica penetrante de Olavo de Carvalho ao hegemonismo marxista-gramsciano que articula o quadro doutrinário do PT, a candidatura trabalhista (PDT+PTB) conseguiu polarizar a eleição de Porto Alegre - como exceção ao quadro nacional das eleições de primeiro turno - entre dois partidos, que se costumam auto-identificar no chamado "campo" das esquerdas (embora seja tão discutível essa rotulação, quanto a própria identidade que ela releva).
Mais do que projetos alternativos de governo, o debate eleitoral na capital do RS - e desbordando-se daí para os quatro municípios onde se realiza o segundo turno das eleições nesse Estado - pauta o tema do comportamento anti-democrático e anti-constitucional do partido que ocupa a Prefeitura de Porto Alegre e o governo estadual. Em torno dessa questão e num confronto de natureza eminentemente institucional, reuniram-se virtualmente todos os partidos relevantes no RS, numa frente de oposição ao PT, cuja candidatura mantém o apoio, tão somente de partidos menores, irrelevantes e ideologicamente radicalizados como o PSTU. A exceção que, nesse caso confirma a regra, é de um PSB municipal que integra a Frente Popular hegemonizada pelo PT, em posição visivelmente desconfortável, face à atitude crítica, tão sensata como aberta, que pauta a posição de independência, que as suas lideranças maiores cunharam em relação ao governo estadual.
O mais importante a ressaltar nessa análise, entretanto, é que, de alguma forma, o tema do partido totalitário incorpora e magnifica os dois anteriores, eis que a corrupção máxima da política democrática consubstancia-se no continuismo hegemonista dos governos totalitários. O RS, que já tem uma tradição de antecipar historicamente os grandes debates nacionais, por esse prisma constitui-se num caso paradigmático - quase um ideal tipo - para a análise do quadro institucional brasileiro, como este se delineia a partir das eleições do ano 2.000.
Examinados esses três casos - das eleições em São Paulo, Curitiba e Porto Alegre - torna-se possível identificar um traço comum que permeia a todas: percebe-se, claramente, que a lógica do comportamento eleitoral prevalecente nas eleições de primeiro turno é diferente daquela que parece cristalizar-se no segundo turno. O debate é eminentemente institucional, pelo que nos questionamos sobre a possibilidade de se estar projetando, além e acima das clivagens ideológicas que determinaram o comportamento eleitoral no primeiro turno, a oportunidade e, afinal a reemergência, daquilo que Fábio Wanderley Reis cunhou no conceito do voto constitucional, que pautou o crescimento eleitoral do partido de oposição à ditadura militar no Brasil. Obviamente, a utilização desse conceito precisa ser contextualizada para adequar-se à caracterização da lógica do comportamento eleitoral na nova conjuntura política, do funcionamento regular de um sistema político constitucional - o qual, entretanto, não resolveu ainda todos os problemas básicos, em torno dos quais se deverá consolidar e radicalizar a construção da democracia. Corrupção, continuísmo político, dualidade de poder, são os temas em torno dos quais se aglutina a nova expressão do voto constitucional. Traduzem a racionalidade do eleitor, que emerge nas eleições de segundo turno, inserindo-se na sua pauta, para sustentar alianças vencedoras ou perdedoras, mas, de qualquer forma, para ampliar a nossa capacidade de reflexão sobre sentido da democracia que queremos construir. E, o que é talvez ainda mais relevante, expressam um nível de consciência e postulação política que, por seu próprio fundamento constitutivo do pacto social democrático, deverá permanecer na pauta desta e de quantas eleições venham a ocorrer até o encaminhamento da sua efetiva solução. Foi bem assim, que a tenacidade da cidadania pautou e encaminhou, num crescendo, a solução constitucional da implantação do governo civil, na seqüência dos pleitos que sucederam a eleição de 1974.
Será legítimo que o governo democrático, albergue a truculência política e, na sua esteira, veja banalizada a corrupção, ao ponto de não podermos confiar a guarda dos bens públicos aos seus administradores?
Será legítimo que um partido governe ininterruptamente, pelo tempo de uma ou mesmo várias gerações, ainda quando conduzido a essa posição pela maioria dos eleitores?
Será legítimo que os detentores da autoridade pública dela se utilizem para endoutrinar a juventude e a população, numa visão confessional e partidária da história, comprometendo a própria essência da democracia na formação das gerações futuras?
Será legítimo que os detentores da autoridade pública estimulem o conflito social e sejam coniventes com a transgressão da lei, ao ponto de não podermos confiar a defesa dos bens privados aos organismos do Estado e ao poder de polícia da Administração?
São essas as questões que estão postas em pauta de decisão pelo voto constitucional no processo eleitoral em curso. A prática democrática, neste sentido, avançou muito e salutarmente. Postula a consolidação dos institutos da reeleição e nos oferece uma singular condição de legitimação ao instituto do segundo turno nas eleições executivas, canalizando nesse nível do confronto eleitoral as demandas constitucionais insatisfeitas da cidadania e viabilizando a prática da tolerância e da convivência, do respeito e da cooperação, entre partidos com posições diferenciadas no espectro ideológico.
Isso, de alguma forma, conforta a esperança trágica, que a consciência democrática tem arrostado em nosso tempo, em face das truculências e desmandos, que assomam e se cristalizam no cotidiano da vida política.
* O autor é professor de Ciência Política da UFRGS. Home page: www.geocities.com/edaydos.