A epistemologia de síntese é a abordagem conceitual do processo da auto-reflexão comunicativa, que se esboça a partir da clarificação e das derivações do enquadramento conceitual e paradigmático de uma dupla-tríade, conformada, a sua vez:
pelos pressupostos funcionais do entendimento, nas três categorias do agir comunicativo em HABERMAS [falante-proferimento-ouvinte]; e, | |
pelos pressupostos estruturais do conhecimento nas três categorias do fazer comunicativo na lógica de PEIRCE [fundamento-interpretante-objeto]. |
Estes pressupostos, e sua tensão dialética que o novo paradigma expressa, respectivamente, pelos conceitos de CAMPOS DE ESTRUTURAÇÃO DO SABER e de INTERESSES EPISTEMOLÓGICOS, se reproduzem no âmbito de toda a ciência parcelar - como é o caso da ciência política - dando lugar a conformações epistemológicas específicas, que atendem os objetivos precípuos do entendimento e do conhecimento nas respectivas áreas de investigação.
O paradigma emergente não se apresenta, entretanto, como uma criação ex nihilo - produto-produtora de uma qualquer nova consciência - tão abstrata quanto alienada da própria história dos conceitos que utiliza. Bem ao contrário, radica nas dimensões cognitivas que se foram consolidando na própria sucessão dos paradigmas da ciência, no curso do processo civilizatório em que estamos inseridos.
É nessa perspectiva, buscando aqui também a compatibilidade do que é novo e do que remonta à tradição nesse âmbito de estudos, que este texto resgata, num primeiro momento, a algumas concepções clássicas da ciência política.
O conceito dos Campos de Estruturação do Saber na construção de um modelo paradigmático para a ciência política. Nosso ponto de partida será uma visão de conjunto, ainda que necessariamente tosca e elementar, mas capaz de introduzir, pela sua simplicidade e sentido, a perspectiva de uma ciência política no paradigma da epistemologia de síntese.Utilizamos para isso, o esquema conceitual oferecido por Leslie LIPSON [1967:84] numa figuração simplificada das relações entre sociedade, política, Estado e Governo. Trata-se de um diagrama de círculos inclusivos, onde a "sociedade" aparece como o ambiente de um sistema, que se especializa, nos anéis concêntricos, da "política", do "Estado" e do "Governo", como resta desenhado no Quadro I.
Quadro I: Diagrama da sociedade, política, Estado e Governo, cfr. LIPSON
Ao se estabelecerem os nexos entre as categorias propostas por LIPSON, obvia-se o fato que o conceito mais inclusivo "Política", compreende e circunscreve as outras duas noções de "Estado" e de "Governo".A utilidade que, imediatamente, pode ser vislumbrada nessa figuração dos círculos concêntricos da "Política", do "Estado" e do "Governo", reside no fato que permite clarificar uma estrutura hierárquica de condicionamentos - que permeia as três esferas de atividade social - onde as que são menos inclusivas têm origem e radicam, portanto, nas determinações das esferas que lhes são mais abrangentes. Fica transparente, portanto, que a "Política" é constitutiva do "Estado"; e que este, por sua vez, é constitutivo do "Governo". E é tão somente isso que o autor pretende dar por esclarecido em sua formulação: que esse último conceito, designando o campo mais restrito dos três círculos inclusivos, é circunscrito e assim condicionado na sua configuração pelas esferas mas amplas e assim mais incondicionadas do "Estado" e da "Política".
A dificuldade que surge, por outro lado, como uma decorrência lógica dessa figuração dos conceitos, diz respeito à obscuridade que paradoxalmente se lança sobre os impactos possíveis e indescartáveis, das esferas menos inclusivas sobre as que lhes são abrangentes. Numa linha possível de interpretação, à luz do diagrama de LIPSON, poderíamos supor que as relações significativas possíveis, do "Governo" sobre o "Estado", se retringiriam à parcela do conteúdo definicional do "Estado" que estivesse indissociada no próprio conceito de "Governo"; e assim também, que as relações significativas possíveis do "Estado" sobre a "Política", se restringiriam ao âmbito particular da atividade "Política" que integrasse o próprio conteúdo definicional do "Estado". Alternativamente, entretanto, poderíamos supor que essas relações significativas se projetassem de forma regressiva, desde as esferas menos inclusivas, em determinação das mais abrangentes, configurando-se uma estrutura piramidal da ordem social, onde o "Governo" submeteria ao "Estado" que, a sua vez, determinaria a "Política".
Nenhuma, dessas duas linhas de conseqüência, faz justiça ao pensamento de LIPSON que pretendeu, na figuração proposta, tão somente distinguir os três conceitos, mostrando que nem tudo que é político é estatal, e nem tudo que é estatal é governamental - e que o inverso não é verdadeiro.
Não obstante, essa abordagem "territorialista" do conteúdo substancial desses conceitos, encobre a análise das relações significativas entre essas instâncias de atividade social, onde se pode constatar que o inverso pode se tornar realidade, nos autoritarismos de vário matiz, que tem aparelhado o Estado, e assim também as diferentes instâncias da atividade política, a partir da conquista do governo - ou seja, do núcleo central inclusivo do diagrama de LIPSON.
A ambigüidade definicional no quadro analítico proposto por LIPSON, encontra uma variante mais contemporânea na versão de uma concepção aristotélica da política, que Robert DAHL [1966] pretende traduzir na explicitação de três conteúdos definicionais do conceito de política: SOBERANIA, TERRITORIALIDADE e AUTORIDADE.
Nessa perspectiva, a SOBERANIA - designando a comunidade de mais alta posição na estrutura social e que, assim e por isso, se basta a si mesmo - caracterizaria propriamente o conceito que emerge no primeiro círculo inclusivo no diagrama de LIPSON [Quadro I] - o campo estrutural da polis... ou da "Política". A delimitação dessa soberania operada pelo conceito de TERRITORIALIDADE, por sua vez, daria lugar ao conceito do "Estado". E, afinal, o exercício legitimado do poder como AUTORIDADE, no âmbito da soberania territorializada, configuraria o conceito do "Governo".
Na interpretação de Robert DAHL [1966 - Nota 3] , entretanto, os nexos entre essas categorias definicionais, que insiste atribuir a uma concepção aristotélica da política, são figurados num diagrama, algo diferente do proposto por LIPSON, mas caudatário ainda da mesma ambigüidade definicional que resulta do seu caráter territorialista - ou planimétrico. Ademais, o diagrama de DAHL trabalha na esteira das definições de "governo" e "política", oferecidas por Max WEBER e por Harold LASSWELL, resultando ao nosso ver num distanciamento significativo das concepções teóricas do estagirita. [Quadro I, a seguir].
Quadro II: Diagrama das categorias definicionais da "política" na interpretação de Aristóteles por Robert DAHL [1966, pág. 19].
Interpretando a concepção aristotélica de política, como um espaço de propriedades restrito à imbricação das três condições definicionais, na interseção ABC (no diagrama do Quadro II), Robert DAHL insurge-se contra isso, que considera um reducionismo a priori e injustificado do campo de estudos de uma ciência da política. Mas nessa reação, contrapõe-lhe como alternativa o que, afinal, resulta em desconsideração das condições expressas pelos requisitos de "SOBERANIA" e "TERRITORIALIDADE", no conteúdo definicional deste campo de investigação
DAHL pretende subscrever, nesse sentido, o ponto de vista de Harold Lasswell, que estende o campo dos estudos políticos a todas as áreas onde ocorrem relações de AUTORIDADE ou PODER (ou seja, tudo que abrange o círculo A - incluídas as interseções AB, AC e ABC -, no diagrama do Quadro II). Ao fazê-lo, entretanto, Robert DAHL perde de vista o significado inclusivo da "polis" aristotélica [Nota 4]. No seu diagrama, o conceito de autoridade ou poder, que pretende considerar como o mais inclusivo dos três, mantém, mesmo assim, nexos definicionais circunscritos a uma pequena interseção no âmbito dos conceitos de soberania e de territorialidade.
Cabe aqui questionar-se o a priori desta outra versão do mesmo reducionismo que, sistematicamente, tem forçado passagem na tentativa de se estabelecer o estatuto contemporâneo de uma ciência da política. Emerge agora no enfoque de Robert DAHL, não apenas sob o ponto de vista da abrangência "territorial" do campo de estudos da política, mas também numa perspectiva estritamente conceitual que:
estabelece a noção relacional ou processual de poder enquanto fundamento próprio e suficiente, ou mesmo exclusivo, ao estatuto epistemológico da ciência política; | |
distancia-se do sentido original e preciso das categorias aristotélicas, que são figuradas no diagrama do Quadro II, as quais, na interpretação de Robert DAHL, carecem do fundamento próprio que lhes reconheceu o estagirita. |
Uma análise contemporânea, dessa problemática definicional da ciência política, remete ao conteúdo das observações consignadas em obra anterior [AYDOS, 1995], onde procurei explicitar as imbricações necessárias dos conceitos de PODER e SOBERANIA, e a crítica de sua desconsideração na elaboração teórica de Robert DAHL:
"O afrontamento desse campo de análise e suas implicações práticas cobram, inexoravelmente, um posicionamento do analista, relativo aos detentores da soberania e ao exercício efetivo do poder de Estado. Postula-se aqui o conceito de soberania, como princípio de legitimação para o exercício do poder; a tese radical da sua origem popular; e a defesa intransigente da sua irrenunciabilidade.
A soberania é atributo da própria existência do ser humano. Subscreve-se, neste particular, o conceito enunciado em Sociopsicoanálisis: El poder de lo político es El poder que tine el indivíduo de tomar consciencia del lugar que ocupa en la sociedad donde vive y de ejercer un poder real sobre esta (Mendel, 1973, vol. 2, p. 86). O ato humano de existir, pura e simplesmente, é a origem; e, sua sociabilidade intrínseca, é o fundamento de todo o poder. Da mesma forma, o trabalho, ou o ato humano de transformar a natureza, é a origem de todo o valor, e sua utilidade para os trabalhadores, a própria legitimação do capital.
Não significa isso, que a parcela do poder social de uns não seja passível de expropriação por outros; ou, até mesmo, por instituições destinadas à sua própria tutela; de forma análoga, verifica-se, historicamente, a expropriação do valor-trabalho, constituindo mais-valia e desencadeando uma lógica de acumulação do capital, contraditória de sua própria origem e justificação.
Tal deslocamento do exercício do poder (assim como aquele do valor de uso socialmente produzido), relativamente aos seus detentores originários, compagina o drama de uma historicidade fragmentada. Em conseqüência geram-se focos competitivos de racionalidade, antagonismos entre a parte e o todo, o indivíduo e a sociedade, numa dinâmica perversa de contradições. O poder, assim deslocado, resulta num hiato de legitimidade e retorna sobre os detentores da soberania, como exercício degradado da autoridade (da mesma forma, o valor trabalho, expropriado aos seus produtores, alimenta a ilusão consumista de sua própria utilidade, retornando a eles, no entanto, como mero valor de troca).
Sendo passível de expropriação, o exercício da soberania, até mesmo por métodos coercitivos, tal alienação compromete o axioma de uma racionalidade intrínseca ao processo histórico. A expropriação possível da soberania, dessarte, dificulta, no plano social, a imediata afirmação do exercício do poder político, como tomada de consciência e auto-realização da sociedade. Como conseqüência, este enquadramento teórico, vinculando o conceito de poder à noção de soberania, abre caminho para uma crítica do autoritarismo, como deslocamento do exercício do poder face à sua finalidade. Eis que se a visualiza, como a apropriação plena de capacidade de ação política pela cidadania.
Robert Dahl incorre em grande equívoco, ao obscurecer essa condição teórica - em que a noção substantiva do poder expressa o princípio da soberania popular - numa concepção mecanicista, de corte behaviorista.
Essa abordagem, focalizando exclusivamente uma relação abstrata - a influência de A sobre B - que se qualifica como poder político, em função apenas da natureza coercitiva dos recursos mobilizados nesta empresa - encobre o significado possível da acumulação do poder, como um sistema de relações concretas, resultando alternativamente em afirmação ou alienação de soberania. A capacidade de ver numa relação de troca de influências, um processo institucional de dominação - no conceito de mais-valia de poder - e a correspondente necessidade da emancipação (tal como Marx a visualizou na sua crítica da economia política) é a condição mínima de uma teoria contemporânea da democracia, compatível com o estado da arte neste campo do saber.
Há diferença, ademais, entre o afrontamento político da democracia: de um lado, pelo significado concreto dos conceitos subjacentes ao legado das suas lutas históricas (no lema dos revolucionários de 1789 - igualdade, liberdade e fraternidade); e, de outro, pelo cálculo racional do individualismo metodológico. Como parâmetros de decisão social, o primeiro enfoque explora, de dentro, a potencialidade dos recursos em jogo na sociedade para a satisfação de necessidades sociais e de imperativos éticos universais; o segundo projeta, de fora, uma lógica de acomodação aos resultados prováveis de uma loteria de determinações políticas, viciada por mecanismos que, surpreendentemente, se recusa investigar. [AYDOS: 1995, pags. 29-34]
Na esteira dessas considerações, trata-se, agora, de delinear os contornos de uma operação de resgate - da indissociabilidade da ética e da política - desde o conteúdo substantivo e originário das concepções aristotélicas da Cidade - ou seja da polis. Para tanto, faz-se necessário questionar uma interpretação insulacionista do conceito de SOBERANIA, aprofundando-se a compreensão sentido próprio de "auto-suficiência" - como autárkeia - que integra a visão aristotélica da pólis [Nota 5].
A noção de soberania em Dahl (como anteriormente em Weber), reduzindo o significado desse conceito à mera condição da efetividade do poder [como capacidade de auto-sustentação do governo], perde de vista o seu fundamento e o seu objeto; os quais, na concepção aristotélica da pólis agregam-lhe dois conteúdos substantivos, que lhe são essenciais e indissociáveis: que esta auto-suficiência refere à idéia de comunidade - koinonia - como seu próprio objeto; e que carrega implícito um sentido ou finalidade - telos - que lhe é inerente ou intrínseco: o princípio da felicidade.
Tal configuração de sentido, torna indissociável o conteúdo ético vis a vis da atividade política:
A Cidade não se reduz a uma comunidade de lugar, onde os homens se acham associados para prover à existência material. Ela é, essencialmente, uma associação para viver para viver bem, para viver em comum [que melhor traduz-se como comunidade] da melhor maneira possível, tanto moral como materialmente, para realizar a felicidade e a virtude não só de todos em conjunto como de cada membro em particular numa vida perfeita e independente. Aristóteles formula o princípio de que "a comunidade política tem em vista a realização do bem, e não apenas a vida em sociedade". [CHEVALLIER, 1982: 94]
Assim compreendida a Cidade, é impossível reduzir-se a política à condição de uma mera autarquia de poder, territorialmente eficaz. É inviável, também, visualizar-se no conceito aristotélico da comunidade autárquica uma mera condição, necessária e formal, a ser combinada com outras duas para figurar o conceito de política.
No enfoque que Robert DAHL dá ao conceito aristotélico da política, [1966], a complementaridade das três dimensões que integram o diagrama do Quadro II, se daria apenas por interseção parcial dos seus espaços de propriedades. Isso implica definicionalmente, e se expressa figurativamente, numa interpretação reducionista das categorias aristotélicas da AUTO-SUSTENTAÇÃO, AUTORIDADE e TERRITORIALIDADE da política, e numa opção definicional - centrada no conceito de PODER - que, embora pretendido como uma alternativa a esse suposto reducionismo, não deixa de ser parcializante nos limites do esquema teórico em que é utilizado.
De fato, em sua interpretação do conceito aristotélico da POLÍTICA - figurando-o pela interseção ABC no diagrama do Quadro II - o que DAHL lhe propõe como alternativa, constitui-se, ainda, numa redução de significado. Confinada nas fronteiras de um conceito de PODER [que está figurado, no mesmo diagrama pelo círculo "A"], a noção de POLÍTICA em DAHL torna-se absolutamente autônoma e independente do condicionamento finalístico e ético da visão aristotélica da pólis.
Contrasta o reducionismo de corte funcionalista na perspectiva de Robert DAHL, com o modelo que havíamos introduzido à análise pelo diagrama de LIPSON [1967:84], figurado no Quadro I, onde a POLÍTICA é visualizada como um contexto estrutural, inclusivo de outras duas estruturas: do ESTADO e do GOVERNO. O esquema de LIPSON denota, mais do que uma delimitação de espaços de propriedades entre conceitos analíticos da interação social, a articulação dos espaços privilegiados dessa mesma interação em níveis de diferenciada complexidade estrutural.
O que lhes falta a ambos entretanto, para verem o conteúdo das suas proposições validado numa conformação paradigmática da ciência política contemporânea, é um conceito capaz de integrar as dimensões, respectivamente funcional e estrutural, da sua análise, numa visão de totalidade do fenômeno político. Isso que resultaria numa efetiva ruptura com o reducionismo na interpretação dos próprios conceitos que utilizam, e que se projeta desde o resgate da tradição aristotélica da imbricação necessária da ética e da política numa totalidade de sentido.
Tanto uma quanto outra perspectivas de análise, de LIPSON e DAHL, tangenciam apenas a compreensão sistemática e articulada da POLÍTICA, que remonta aos escritos de Platão e Aristóteles. A pretensão deste texto, ao derivar o quadro conceitual de uma epistemologia da ciência política, desde a estrutura e o modo de operação do paradigma sintético, faz-nos avançar uma concepção, que supera as limitações do enfoque tradicional, e nos orienta à identificação e clarificação dos CAMPOS DE ESTRUTURAÇÃO DO SABER e dos INTERESSES EPISTEMOLÓGICOS que emergem na confrontação das suas lacunas.
Transcodificando essa pretensão na perspectiva da epistemologia de síntese, uma primeira operação conceitual trata de estabelecer os nexos propiciados pela aplicação de uma dialética triádica aos conceitos estruturais que integram o diagrama de LIPSON. Focaliza-se, nesse sentido, o conceito lipsoniano de "sociedade", como um ambiente inclusivo da realidade, que é denotado no paradigma epistemológico pela sua subdivisão em três CAMPOS DE ESTRUTURAÇÃO DO SABER, para cuja caracterização e denominação poderíamos aceitar os conceitos gregos dos DOMÍNIOS DE TEOS, PHYSIS e NÓMOS:
Correspondendo à categoria habermasiana de "sociedade" - e ao conceito sintético de CAMPO DA FUNDAMENTAÇÃO TRANSCENDENTAL DO SABER - o âmbito estruturado da interação que LIPSON figura como Política, enquadra-se no arcabouço dessa epistemologia especial como o DOMÍNIO DE TEOS [numa referência à cidade grega que representava o centro da confederação das unidades-políticas soberanas]: um espaço estrutural, originariamente configurado pelo princípio da centralidade dos bens e das intervenções públicas da cidadania-guerreira, que está ancorado na exigência da publicidade dos despojos da guerra [na prática cívica das antigas falanges hoplitas da Grécia antiga] e no soberano direito de cada um reivindicar a parte que lhe cabe no respectivo butim; | |
Correspondendo à categoria habermasiana de "natureza interna" - e ao conceito sintético de CAMPO DA RECONSTRUÇÃO TEÓRICA DO SABER - o âmbito das relações sociais estruturadas que LIPSON figura como "Estado", enquadra-se na epistemologia da ciência política como o DOMÍNIO DE NÓMOS: estabelece os limites e as regras essenciais para o exercício da soberania, um espaço estrutural construído pela cristalização dos atos políticos originários do poder e pelo consentimento sobre o respectivo exercício; | |
Correspondendo à categoria habermasiana de "natureza externa" - e ao conceito sintético do CAMPO DA REALIZAÇÃO PARTICIPATIVA DO SABER - o âmbito das relações estruturadas que LIPSON figura como "Governo", enquadra-se nesse exercício de compatibilização conceitual do paradigma sintético como o DOMÍNIO DE PHYSIS: concretiza o potencial de atualização do processo de auto-reflexão comunicativa, configurando o espaço estrutural da intervenção política no mundo da vida. |
Na perspectiva aberta pela configuração dos CAMPOS DE ESTRUTURAÇÃO DO SABER em ciência política, uma segunda operação conceitual trata de visualizar o modo como impactam, sobre esses domínios estruturais, o conteúdo e a função dos INTERESSES EPISTEMOLÓGICOS. Isso que propomos sistematizar no seguinte sistema de proposições:
nas fronteiras das esferas estruturais da "Política" e do "Governo", o INTERESSE DA CREDIBILIDADE [correspondência do Interesse da Compreensão Participativa do Discurso - Pístis]. | |
nas fronteiras das esferas estruturais do "Governo" e do "Estado", o INTERESSE DA GOVERNABILIDADE [correspondência do Interesse da Reconstrução Teórica do Significado - Díke]; e, | |
nas fronteiras das esferas estruturais do "Estado" e da "Política", o INTERESSE DA RACIONALIDADE [correspondência do Interesse da Fundamentação Transcendental do Significado - Lógos]. |
O campo de investigação da ciência política, que assim perpassa os três domínios estruturais e se dimensiona na esteira desses três focos vetoriais de análise, é constitutivo de um fazer e de um agir comunicativos, cujo núcleo sígnico é o locus do PROCESSO DE FORMAÇÃO DE POLÍTICAS e de INSTITUCIONALIZAÇÃO DO PODER; definindo-se, aqui, pelo conceito de "políticas": regras para a tomada de decisão em situações passíveis de serem antecipadas; pelo conceito de "poder", a capacidade correspondente para assegurar-se a implementação dessas "políticas".
Nota 3 - "Aristóteles, Weber e Lasswell e quase todos os outros cientistas políticos, concordam em que as relações políticas devem encontrar-se em algum ponto no círculo A, o conjunto de relações implicando em governo, autoridade ou poder. Lasswell, por definição chama de político a tudo que se contém em A. Aristóteles e Weber, por outro lado, requerem para a definição de "político" mais algumas características, indicadas pelos círculos B e C. Por exemplo, para Weber, o reino do político não seria tudo que está em A nem tudo em B (territorialidade), mas tudo na área de superposição AB, implicando em ambos os aspectos governo e territorialidade. Embora Aristóteles seja menos claro do que Weber e Lasswell quanto a este ponto, sem dúvida limitaria ainda mais o reino do político - isto é, a relações em associações suscetíveis de auto-suficiência (C); donde, para Aristóteles, "política" seria encontrada apenas na área ABC." [DAHL, 1966: 18-19] Voltar ao texto
Nota 4 - Não se veja nessa crítica, entretanto, um demérito ao autor, cuja obra, no seu conjunto, se constitui num marco de enorme relevância para a consolidação da moderna ciência política. O que destacamos, constitui-se um excesso de simplificação do intérprete, compreensível no seu propósito de oferecer à divulgação ampla, uma exposição didática dos fundamentos de uma ciência ainda emergente academia contemporânea. Voltar ao texto
Nota 5 - "Sem menosprezar o esforço realizado por Robert Dahl, no sentido de formalizar uma abordagem processualística da democracia e, assim, o espaço de aplicação possível do seu construto, é importante ressaltar, pelo confronto e divergência, o quanto distante este texto se posiciona face a uma teoria marginalista da democracia.
No ponto de partida dessa constatação, visualizem-se as implicações políticas dessa abordagem, tal como resultam explícitas na própria lavra daquele autor:
Na maior parte, somos marginalistas. De modo geral, experimentamos utilidade marginal decrescente quando atingimos uma meta ou, na linguagem da psicologia moderna, o atingimento de uma meta reduz o valor motivador do estímulo. A igualdade política e a soberania popular não são metas absolutas. Temos que nos perguntar o quanto de lazer, privacidade, consenso, estabilidade, renda, segurança, progresso, status e provavelmente muitos outros objetivos estamos dispostos a renunciar em troca de um aumento adicional de igualdade política. É fato observável que quase ninguém considera a igualdade política e a soberania popular como valendo o sacrifício ilimitado desses outros objetivos. (Dahl, 1989, p.53).
Se bem o compreendemos, no conceito normativo de sociedade que subjaze ao conceito de poliarquia, e que enquadra a conseqüência política da abordagem de Robert Dahl, a todo momento, todos estariam cotando num pregão de valores políticos, uma miríade de objetivos, que integram a sua condição particular de vida e as metas da democracia. Inexistiria, neste sentido, uma diferença substancial entre as cotações estimadas para o direito à propriedade privada, ou para o cachorro quente que se pretenda consumir no almoço, e o valor conjuntural atribuído à conseqüência política dos princípios democráticos da igualdade e da liberdade. A realização dos objetivos sociais e, assim os processos de legitimação da ordem poliárquica, obedeceriam ao deslocamento das preferências registrado na bolsa dos valores políticos, obedecendo ao fluxo dos movimentos de opinião.
Dessa forma, uma caricatura livre, mas fiel ao conceito, apontaria que aos sábados e domingos, preocupada com seu lazer, assim como todos os dias, ao meio-dia e ao anoitecer, aproximando-se a hora do almoço ou da janta, a democracia se pautaria pela predominância dos valores individualísticos do lazer e do comer, sobre as demais constelações de interesses. O que, até pode ser verdade como tendência de comportamento, e eficaz como condição tática ao proselitismo do marketing político. Mas que isolado e reificado, como aspecto particular da realidade em análise, obscurece a compreensão da sua totalidade, relativizando a caracterização do conceito democracia, à circunstancialidade da hora, do tempo e do modo de observação adotado pelo analista.
Com quase meio século de atraso, em relação à física de Einstein, essa improvisada teoria da relatividade política não partilha, entretanto, da compreensão de que, afinal, todas as percepções fragmentárias que se possam formular sobre a realidade concreta, da natureza ou da sociedade, se integram num universo de relações, cuja lógica e racionalidade, embora ultrapassem a capacidade particular de observação do cientista, é suscetível de apreensão e modelagem no campo de sua compreensão teórica. Ao contrário, permanecendo na superfície de um relativismo, incapaz de atingir o âmago das suas próprias indeterminações, a poliarquia política de Dahl remete ao irracionalismo de uma regressão ao infinito qualquer tentativa de fundar a democracia, como um sistema de relações calcadas sobre valores universais. Inútil é a tentativa de concebê-la como método, se a este método não se reconhece uma finalidade estruturante, que lhe confira significado e o legitime.
Sob um outro prisma, não obstante sua aparente neutralidade, as variações da conduta postuladas pelo critério marginalista da decisão, de fato, obedecem a um viés bem determinado, que expõe a sua fragilidade empírica. Contrafactualmente ao que se tem observado na história da civilização, a teoria democrática em Dahl nos levaria a crer que os mais proprietários, provavelmente, mais se disporiam a sacrificar seus direitos sobre bens, em favor de outros objetivos democráticos; da mesma forma como supõe, que os mais famintos teriam menos inclinação para abrir mãos de sua ração essencial, em favor de objetivos democráticos mais amplos do que os limites de um prato de comida. Do que pouca explicação nos conforta sobre a realidade palpável de nossos dias: a insensibilidade social das elites e a disponibilidade política das massas.
Essa abordagem, pela sua linearidade, subestima a capacidade humana de viver, apreender e moldar a complexidade da estrutura; de hierarquizar objetivos e de conformar a ação aos próprios nexos de uma racionalidade instrumental afeita à categoria da complexidade. Este descortino impõe requisito sobremodo exigente à simploriedade do argumento marginalista: a clareza e a consistência das decisões na imbricação de meios e fins - que, a sua vez, se sobrepõem, se excluem e se reforçam. Da mesma forma, essa abordagem revela-se incapaz de perceber essa capacidade humana, de responder ilimitadamente ao imperativo ético, sinalizado pelos valores substantivos da democracia e que responde pela designação de altruísmo. Esse conceito - é preciso que se esclareça - não representa, necessariamente, uma obsessão maniqueísta e maximalista de um dado e específico valor, sobre outros que compõem um conjunto de alternativas socialmente desejáveis.
Ao contrário, a convicção e o modo de ser democráticos denotam uma disponibilidade, permanente e necessária dos indivíduos em sociedade, para a contraposição à capacidade humana - também ilimitada - de corrupção dos valores socialmente desejáveis, nas particulares e cotidianas alienações de poder que nos defronta o processo da vida institucional, ou no jugo de uma ordem social intolerável. O altruísmo, nesse caso, é a correspondente ética do direito de resistência, que a teoria democrática tem reconhecido entre as prerrogativas da cidadania. Um conceito que é insuscetível de conjugar-se pelos parâmetros de uma abordagem linear a valores, numa teoria marginalista da democracia.
Reduzidos a quantidades e linearmente balanceados, valores tais como igualdade política, lazer, privacidade, consenso, estabilidade, renda, segurança, status, podem constituir constelações de interesse tão diferentes, e por igual intensamente desejáveis, quanto a submissão ao Füehrer ou o movimento da Resistência na Europa ocupada da II Guerra; e tão próximos ao nosso tempo e lugar, como a conspiração dos quartéis e a rebeldia dos campus nos anos sessenta. Ademais, o cálculo político e o respectivo ganho marginal de segurança ou estabilidade, que enquadrasse a aceitação do Füehrer na Alemanha nazista, ou do golpe de 1964 no Brasil, poderia até mesmo compreender-se como alternativa de sobrevivência, mas nunca legitimar-se como uma opção ético-democrática." [AYDOS: 1995, pags. 29-34] Voltar ao texto