A poiésis como expressão da tensão diádica de legitimidade e eficácia políticas. |
Uma abordagem de política comparada no modelo paradigmático. |
Na seqüência de sua abordagem, que introduziu em nossa análise o diagrama simplificado do Quadro I supra, explicitando em círculos concêntricos a estrutura das relações que permitem enquadrar estruturalmente a atividade política, Leslie LIPSON desvela as categorias que compõem as relações entre Estado e Governo na tensão de uma dupla tríade, composta pelos conceitos de "proteção-ordem-justiça" e "força-poder-autoridade" [Nota 12].
Ilustrativamente, LIPSON oferece uma figuração da sua concepção da política, como relação entre os fins do Estado e os meios do Governo, no diagrama, que segue figurado no Quadro IX:
Quadro IX: Diagrama da relação entre fins e meios, do Estado e do Governo, na concepção de LIPSON [1967: 115].
Os conceitos dispostos neste diagrama, corroboram a hipótese de uma tensão diádica entre as duas faces do processo político, reconhecidas por DUVERGER [1966] e aqui visualizadas como: [a] os fins do Estado [proteção-ordem-justiça] e [b] os meios do Governo [força-poder-autoridade].A poiésis como expressão da tensão diádica de legitimidade e eficácia políticas.
Nessa perspectiva de análise, ressalta a questão e o INTERESSE DA GOVERNABILIDADE - expressão da POIÉSIS política - como uma via de reconstrução teórica do significado no processo da formação de políticas e institucionalização do poder.
No pensamento de LIPSON, essa abordagem articula a complementaridade e a tensão permanentes denotadas pelos tradicionais conceitos de LEGITIMIDADE [relativamente aos fins do Estado] e de EFICÁCIA [relativamente aos meios do Governo]. No modelo paradigmático que se desvela, essa tensão designa os elementos constitutivos dos processos orientados à solução dos problemas fundamentais da formação de políticas e institucionalização do poder, e assim, portanto, funcionalmente designados: [a] pelo seu impacto no DOMÍNIO DE NÓMOS à institucionalização do conflito; e, [b] pelo seu impacto no DOMÍNIO DE PHYSIS à distribuição dos recursos necessários para a manutenção dessa capacidade institucional.
A partir dessa correspondência conceitual, que focaliza o INTERESSE DA GOVERNABILIDADE, como a expressão, na epistemologia da ciência política, do conceito geral e sintético do Interesse da Reconstrução Teórica do Significado - Díke, podemos reconstruir o diagrama de LIPSON no enquadramento teórico do paradigma em desenvolvimento (Quadro X).
Quadro X: Categorias de LIPSON, figurando, no modelo paradigmático da epistemologia de síntese, a dialética triádica do INTERESSE DA GOVERNABILIDADE e o locus da AÇÃO ORIENTADA À SOLUÇÃO DE PROBLEMAS.
Dessa abordagem, que formaliza o enfoque da GOVERNABILIDADE ao núcleo conceitual de uma ciência da política, Leslie LIPSON deriva os "cinco problemas eternos que dela fazem o que é". [LIPSON, 1967:115]
Segundo a ótica desse autor, esses problemas podem ser assim resumidos: [1] A extensão da cidadania. É exclusivista ou a todos inclui? [2] As funções do Estado. É a esfera do Estado restrita ou limitada? [3] A fonte da autoridade. Origina-se esta do povo ou do Governo? [4] A organização da autoridade. São seus poderes concentrados ou dispersos? [5] A magnitude do Estado e suas relações externas. Que unidade de Governo é preferível e exeqüível? Que sistema existe em matéria de relação entre Estados? [LIPSON, 1967:36]
Em síntese, para LIPSON, a problemática da ciência política gira em torno da solução institucional, que se pretenda oferecer, aos desafios do privilégio, do preconceito, do autoritarismo, do centralismo e do imperialismo [Nota 13].
Uma abordagem de política comparada no modelo paradigmático.
A preocupação expressa por LIPSON, nessa visualização dos grandes problemas da ciência política, reflete e é partilhada, em suas grandes linhas pelo esforço teórico da ciência política americana dos anos cinqüenta a sessenta. Sua preocupação central é o estudo comparado dos sistemas políticos, focalizando a viabilidade de uma pax americana - como extensão da democracia e/ou sustentação política das formas de governo compatíveis com a tensões estruturais e o quadro político dos países em desenvolvimento.
Essa preocupação, que enfatiza os impactos e a dialética da EFICÁCIA e da LEGITIMIDADE que promovem uma efetiva hermenêutica dos regimes políticos e que, afinal, orientam os esforços teóricos da ciência política anglo-saxônica na compreensão de uma lógica do desenvolvimento político, é resgatada, mais contemporânea e precisamente, no conceito e, afinal, na categoria epistemológica do INTERESSE DA GOVERNABILIDADE.
Ao desenvolver esse tema, uma primeira observação incidente, concerne à necessidade de uma redução das cinco dimensões ou problemas visualizados por LIPSON, a partir da constatação que, neles, se superpõem e se confundem dois níveis de análise: as quatro primeiras questões dizem respeito à política, circunscrita às fronteiras dos Estados-nacionais; o quinto problema reproduz um destes questionamentos no contexto do sistema internacional.
De fato, ao separar, como um quinto problema, a questão do imperialismo x soberania nacional, LIPSON reproduz no âmbito do sistema internacional, as preocupações já trabalhadas na oposição de preconceito x pluralismo, do estado federativo ou unitário, no âmbito do Estado-nação. O isolamento dessa questão - da subordinação ou autonomia entre Estados - como expressão da problemática política internacional, é conseqüência típica de um momento histórico em que o tema dominante da política internacional restringia-se às condições e implicações da "guerra fria".
Na era que hoje vivenciamos, da globalização acelerada das relações sociais, econômicas e políticas, percebe-se com maior clareza que se aplica - nas devidas proporções e com a devida adequação conceitual - à análise das relações políticas internacionais, o mesmo quadro conceitual que origina os quatro primeiros problemas da ciência política enunciados por LIPSON.
De outro lado, é de se ressaltar, que os quatro primeiros problemas identificados por LIPSON, permitem caracterizar as quatro grandes soluções construtivas do saber político, como seguem:
no enfrentamento do privilégio [igualdade x desigualdade], a afirmação da soberania popular e a cobrança da responsabilidade política dos incumbentes perante o povo, no espaço da REPÚBLICA; | |
no enfrentamento do autoritarismo [liberdade x ditadura], o reconhecimento dos direitos fundamentais e o contingenciamento do poder de Estado na forma do GOVERNO CONSTITUCIONAL; | |
no enfrentamento do preconceito, [Estado unitário x Estado pluralista], o reconhecimento da autonomia das partes e o respeito à dignidade da sua representação, na organização do GOVERNO REPRESENTATIVO [incluindo-se aqui o conceito de FEDERAÇÃO]; e | |
finalmente, no enfrentamento da tirania [divisão dos poderes x unificação], a efetividade da participação e do controle sobre o exercício da autoridade no Governo (checks and balances), pelos mecanismos e técnicas da DEMOCRACIA. |
Essa sistematização do saber político clarifica algumas questões e estabelece algumas rupturas conceituais, que tem implicações relevantes na dialética dos fins e dos meios, do Estado e do Governo. A principal delas é a identificação dos quatro estágios, progressivos ou simplesmente cumulativos, que constituem os processos da política, como AÇÃO ORIENTADA À SOLUÇÃO DE PROBLEMAS.
Nessa perspectiva, seja qual for o seu ponto de partida, uma sociedade será tanto mais GOVERNÁVEL, quanto mais tiver experienciado a capacidade de ultrapassar e resolver cada um e, afinal, todos esses quatro problemas - que ressaltam, dessarte, como escolhas cruciais no processo da sua construção política [Nota 14].
O Quadro XI formaliza essa abordagem, propiciando, ademais, uma primeira visualização dos conteúdos intrínsecos à DIVISÃO ESTRUTURAL dos estudos políticos, que a quaternidade dos problemas e soluções identificados pelo INTERESSE DA GOVERNABILIDADE permite explicitar.
Quadro XI: Uma abordagem construtivista da AÇÃO ORIENTADA À SOLUÇÃO DE PROBLEMAS no paradigma epistemológico da ciência política.
Nota 12 - "Tudo indica, pois, em face dessa análise, que tanto os fins do Estado quanto os meios de Governo sofrem uma progressão. Ante o fato de ser a proteção, embora necessária, insuficiente, os seres humanos elaboram um sistema de ordem; a partir da ordem, lutam pela justiça, porque é mais duradoura a ordem que os homens consideram justa. Progressão semelhante ocorre no campo das técnicas que o Governo emprega para a fim de alcançar esse propósito. A força é imprescindível à proteção. Mas, desde que esta não consegue, por si só, sustentar um sistema de ordem, o poder se origina da combinação entre a força e o consentimento dos governados. Finalmente, deve a ordem culminar na justiça para que o poder possa transmutar-se em autoridade." Retorna ao texto"Por conseguinte, cada estágio se ergue sobre aquele que o precede e vai mais adiante. A autoridade seria mera carapaça, privada de conteúdo, se não dispusesse do poder. E este sofreria o escárnio da impunidade, se não fosse capaz de exibir a força. A justiça, se revigora na ordem, depende dela, sem o que os homens não teriam confiança uns nos outros ou qualquer sentimento de fé nos semelhantes; enquanto a própria ordem há de basear-se na proteção que os torna seguros." [LIPSON, 1967: 107/108]
Nota 13 - "O traço característico de todos esses problemas é o fato de oferecerem a oportunidade de opção entre pelo menos duas possibilidades. (...) O primeiro problema consiste na escolha entre a igualdade e a desigualdade. O segundo problema se resume na opção entre um Estado pluralista e um Estado unitário. O terceiro problema consiste em decidir entre a liberdade e a ditadura. O quarto problema significa preferir a divisão dos poderes ou sua unificação. O quinto problema vale por escolher entre uma pluralidade de Estados e o Estado universal." [LIPSON, 1967: 36-37] Retorna ao texto Nota 14 - O INTERESSE DA GOVERNABILIDADE, tem sido uma preocupação permanente e tradicional dos estudos políticos, embora o conceito "governabilidade" tenha uma definição muito contemporânea. Remonta à Dike das teogonias clássicas, como "poder de ordenação da equidade" - conceito que polariza uma dimensão substantiva da governabilidade, relativamente ao aspecto mais formal, ressaltado na preocupação aristotélica com a "estabilidade" dos regimes políticos. Aliás, é na perspectiva de um resgate aos aspectos substantivos da governabilidade democrática que os estudos contemporâneos de ciência política têm se orientado no sentido da exploração de uma relação constitutiva entre "estabilidade", e as dimensões que aparecem articuladas em nosso enfoque da política orientada à solução de problemas, e que emergem da tensão diádica entre as categorias da legitimidade e da eficácia. Uma abordagem contemporânea, convergente nesse enfoque, está formulada em BAQUERO e CASTRO: "(...) a relação entre estabilidade democrática e opinião pública se dá na medida em que uma interfere na outra: um sistema estável e que resolva e equacione a solução dos problemas sociais será entendido pela população como positivo, obtendo apoio e legitimidade. Por outro lado, sendo sustentado pela população, determinado regime poderá criar as condições de tornar-se (ou continuar) estável." [BAQUERO e CASTRO, 1996: 19 - grifei] Retorna ao texto