vti_nexttolasttimemodified:TR|04 Jul 2000 18:47:48 -0200 vti_title:SR|Shared Top Border vti_modifiedby:SR|edaydos

O GOLPISMO E A DEMOCRACIA*

por Eduardo Dutra Aydos

A extraordinária conquista da estabilidade monetária, que ortodoxos e heterodoxos não haviam logrado consolidar, rendeu ao Presidente Fernando Henrique Cardoso, uma estrondosa vitória eleitoral de primeiro turno em outubro de 1998, e com ela o mandato popular para governar este País durante mais quatro anos.

Concomitantemente, realizaram-se as eleições governatoriais em 26 Estados e no Distrito Federal. Concorreram à reeleição 22 governadores, dos quais sete não lograram novo mandato. O instituto da reeleição, a que muitos atribuíram a fatalidade de um continuísmo monolítico, revelou-se suficientemente flexível para assegurar a derrota de cerca de 1/3 dos governadores candidatos, registrando-se uma taxa global de renovação (incluindo os Estados em que não houve candidatos à reeleição) da ordem de 44% dos governos estaduais. O País mostrou-se capaz de utilizar um instituto democrático, que viabiliza a continuidade administrativa dos governos acreditados pela cidadania, sem que isso viesse a significar uma condenação ao imobilismo político. O que se pode considerar um avanço institucional importante na conquista governabilidade democrática.

Nos primeiros seis meses da nova administração da República, uma cumulativa combinação de fatores determinou a mais vertiginosa queda da popularidade de um governante na história deste País. Entre estes, têm sido apontados: 1) os efeitos das crises financeiras internacionais; 2) a agudização da crise social interna, pela continuidade e aprofundamento da recessão e do desemprego; 3) o questionamento ético ao comportamento de importantes operadores e agências governamentais; 4) a dificuldade de se produzir consenso na formulação e na implementação das mudanças de estrutura, que viabilizam esse duplo enfrentamento; e, afinal, 5) a desagregação interna na correlação de forças que apoiam a Administração e sua estratégia de reformas, pelo prematuro desencadeamento da campanha sucessória.

O País sangrou divisas no enfrentamento do primeiro; balançou entre o sofrimento partilhado e a banalização de uma violência inaudita, pelos efeitos do segundo; escandalizou-se pelas dimensões e implicações do terceiro; exasperou-se nas disputas corporativas, que tem bloqueado a agenda das reformas; mas, sobretudo, indignou-se com a desfaçatez do comportamento político, manifesto pela rede de "intrigas e futricas" (como se ressente o Presidente em seu discurso de anúncio do novo Ministério da República), que têm transformado a disputa de espaço no governo, acima e além desse coquetel explosivo, numa guerra suja e clandestina que consome as energias e a capacidade de realização política dos nossos mandatários.

O que surpreende, diante de tudo isso, é que tenhamos sobrevivido até o presente (sem desconhecer-se as pesadas baixas sociais - de uma exclusão que se tem denunciado como genocida); e que, apesar de tudo, o Governo tenha preservado seu rumo e a democracia ainda nos ofereça espaço para o questionamento e a análise consistente dos fatos; e para o seu enfrentamento na formulação de uma política pública conseqüente.

O programa de estabilização monetária, que a população referendou na ainda recente recondução do Presidente Fernando Henrique, tem sido mantido e permitiu que superássemos o pico da crise de origem externa, que abalou e desagregou economias mais dinâmicas e estruturadas que a nossa. Perdemos significativas reservas cambiais, face aos desacertos conjunturais da política cambial, mas o Governo revelou capacidade de auto-correção no bojo da crise. E no afrontamento político da crise, é preciso que se o reconheça, o Presidente Fernando Henrique Cardoso tem oferecido à Nação uma sólida demonstração de duas qualidades importantes, talvez mesmo as mais essenciais na condução do governo democrático: respeito às regras do jogo político-institucional e lealdade à sua própria equipe de governo.

Insisto nessa constatação, porque não são qualidades comuns nos dias que passam. E, até mesmo, porque é possível que se encontre na postura pública, que essas duas qualidades performam, a razão mais imediata do atual declínio da popularidade presidencial.

O fato que o Presidente não tenha promovido a condenação antecipada dos membros do seu governo, envolvidos em denúncias de desvio ético-administrativo, parece ser razão suficiente para que se lhe estenda o estigma de uma cumplicidade, que se expressa no preconceito e no discrime antidemocráticos, segundo os quais todo o cidadão se presumirá culpado até que se prove o contrário. O mesmo padrão de comportamento, que a sociedade chocada tem repudiado na condenação do terror policial - da saga da repressão política às chacinas promovidas pelos grupos de extermínio, que atingiram cidadãos inocentes, sem comprovar seu crime e nem medir as conseqüências e as dimensões do castigo - tem sido cobrado, felizmente e por enquanto sem efetivo sucesso, ao Presidente Fernando Henrique.

E que o Presidente tenha assegurado, com desenvoltura e credibilidade, o socorro financeiro do FMI, necessário ao enfrentamento da crise, é motivo suficiente para que se o condene publicamente por crime de lesa pátria. Tornou-se, aliás, um parâmetro da "análise política" mais disseminada pela mídia, uma linguagem adjetivada e carregada de estigmas, onde a qualidade do analista se mede mais pela sua capacidade de agredir a imagem e a dignidade pessoal dos operadores políticos, do que pelo conteúdo propriamente crítico e propositivo de sua mensagem.

Não pode ser desconsiderado o fato positivo do Presidente Fernando Henrique ter-se recusado consistentemente a transformar uma investigação de rotina polícial-judiciária (onde, aliás o Ministério Público avançou importante demonstração de autonomia institucional, avocando-se responsabilidades até então inusitadas no processo de investigação), num espetáculo deplorável de violação de direitos, deslealdade política e crise institucional. Não pode ser desconsiderado, também, que não existem parâmetros de política pública que autorizem afirmar-se - e nem interlocutores sérios da política governamental que assumam o risco de avalizá-lo - que estivesse disponível no bojo da crise uma saída institucional menos onerosa para o desequilíbrio induzido pela crise da banca financeira, que a manutenção do rumo da política governamental e o recurso ao financiamento internacional.

A oposição mais consistente à política econômica do governo, focaliza um quadro de opções estratégicas, que se consolidaram ao longo dos primeiros quatro anos de governo. Resulta num discurso e numa proposta política, que teve o seu tempo de confrontação aberta assegurado no recente processo eleitoral, e que mesmo assim foi derrotada nas urnas. A equipe econômica é essencialmente a mesma de antes da eleição, não há surpresas e nem mudanças significativas (maior que uma episódica concessão à oposição, na liberação das bandas de oscilação cambial) no manejo da política monetária. O governo que a Nação tem, com sua cara e com sua coragem, é o que foi autorizado pelas urnas. E as regras do jogo democrático lhe asseguram o mandato de quatro anos... até porque é da natureza da engenharia política do regime presidencialista, que os governos disponham de um tempo determinado, que lhes permite inclusive programar, com expectativas de desempenho de médio prazo, a superação de dificuldades transitórias que venham a enfrentar no interregno entre duas eleições.

Para a escolha de um Presidente, ademais, a experiência democrática engendrou um processo complexo e delicado, que visa preservar ao máximo a autêntica manifestação da vontade popular. Embora haja muito ainda por construir, avançamos longe desde o tempo em que o voto não era secreto e as eleições refletiam o poder de intimidação da própria administração pública em resultados eleitorais quase unânimes e no entretanto fraudulentos. Nesse contexto, a campanha nacional pela renúncia do Presidente Fernando Henrique, encabeçada pelo PDT, não pode mais ficar sem a resposta de uma análise política conseqüente.

É surpreendente, que alguns dos mais ardorosos defensores do Presidencialismo no plebiscito de 1993, como o ex-Governador Leonel Brizola, estejam agora na linha de frente de uma campanha pela interrupção do mandato popular do Presidente Fernando Henrique Cardoso. Pretendem com isso negar-lhe a natureza essencial do regime que reivindicaram em causa própria. É mais surpreendente ainda, que pretendam vender à sociedade brasileira, e de barato, a idéia que um punhado de assinaturas (cujo número essencialmente não importa, sejam os milhares que forem, porque arbitrariamente colhidas) possam superpor-se à vontade popular, consignada nas regras aceitas do jogo democrático e expressa pelo exercício soberano do voto. Por mais digno e respeitável que seja um abaixo-assinado, não tem a capacidade de substituir o voto direto, universal e secreto, que culmina o processo de auto-esclarecimento, amplo e democrático, de uma campanha eleitoral presidida pelo Poder Judiciário especial.

Mas não surpreende, por outro lado, o fato que seja exatamente o partido do Doutor Brizola, que esteja a frente dessa pouco sutil tentativa de estelionato eleitoral. Não se poderia esperar outra, de um partido que se caracteriza notoriamente pelo exercício arbitrário do poder pessoal e pela submissão acrítica à vontade de um chefe vitalício, e que tem proporcionado à Nação o reiterado e sistemático expurgo das suas vozes dissidentes.

É também muito óbvio, que um partido que foi conivente com as práticas deletérias de governo do ex-Governador Alceu Collares, que cultivava confessadamente o uso de informantes furtivos no acompanhamento sistemático dos passos dos seus próprios subordinados no governo; que promoveu impunemente o denuncismo anônimo, a infâmia e a covardia da calúnia; que abusou do direito de ação nos processos persecutórios, que sua Administração moveu contra os seus desafetos políticos; e que promoveu a prática deletéria de efetivos linchamentos políticos, atingindo deslealmente seus próprios companheiros de partido; é muito óbvio que esse partido, em nome de qualquer fundamentalismo corporativista ou chauvinista, não terá dificuldade em pactuar, também, com o espetáculo deplorável dos métodos proto-fascistas que assomam à esfera da confrontação na arena pública, onde se inscrevem hoje a escuta clandestina e o achincalhamento moral das instituições democráticas.

Isso não significa, que as políticas governamentais não possam ou não devam mudar, ou que a oposição não faça sentido e nem possua meios para exigir correções de curso ao longo do exercício de uma Administração. Quer dizer tão somente, que essa mudança deve respeitar as regras do jogo; que existem competências do Congresso Nacional e recursos legitimados de negociação e barganha, que atendem a essa prerrogativa da democracia; que precisamos exorcizar os desfechos cíclicos das soluções disruptivas e das catarses institucionais, que paralizam a Nação mas garantem sobrevida aos seus problemas irresolutos, como nos foram legadas pelos Presidentes Getúlio Vargas, Jânio Quadros, João Goulart e Collor de Mello.

Significa mais, ainda, que se as regras existentes porventura não são adequadas para assegurar uma desejável interação entre oposição e situação - mais radicalmente entre povo e governo, ou Sociedade e Estado - haverá que se trabalhar prioritariamente o seu aperfeiçoamento. Exatamente por isso que, aí está, proposta pelo Governo e aberta ao potencial de negociação que as oposições possam manejar com competência e sustentar com consistência, na ordem do dia do Congresso Nacional, a AGENDA DA REFORMA POLÍTICA...

Aliás, uma competência e uma consistência que lhes faltaram no passado! Perderam a oportunidade de negociar a reeleição. Têm agora a chance de negociar a responsabilidade fiscal... pela invenção de uma institucionalidade democrática que venha a assegurar-nos uma mais efetiva cobrança de responsabilidade política neste País.

* Este texto esteve disponível no site Política Hoje no mes de julho de 1999.

(Leia também a proposta do autor para a institucionalização do OSTRACISMO, como instrumento para a cobrança de responsabilidade política).

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