vti_nexttolasttimemodified:TR|04 Jul 2000 18:47:48 -0200 vti_title:SR|Shared Top Border vti_modifiedby:SR|edaydos |
Consistência
no exercício dos mandatos e independência na fiscalização, dois requisitos essenciais
à consolidação das instituições democráticas.*
por Eduardo Dutra Aydos
O exercício pleno da função eletiva é pré-condição de uma avaliação eficaz, por parte da cidadania, do desempenho dos incumbentes. O melhor contra-exemplo em nossa história será, talvez, o do Presidente Jânio Quadros, cuja escalada política abreviou etapas, impedindo-o de concluir mandatos antes de se eleger Presidente da República - cargo ao qual acabou renunciando. Não teria passado, na sua ascensão meteórica, pelo critério institucionalizado da consistência no exercício dos mandatos. Numa outra perspectiva de análise, a desincompatibilização do cargo, para concorrer a nova eleição é presunção de abuso de poder, típica de uma democracia frágil e de uma política de expedientes. Introduz, ao final de cada governo, uma ruptura do processo administrativo, pela troca de liderança e descontinuidade de estilo, e não garante que a máquina administrativa, efetivamente, não será manipulada eleitoralmente. Inibe esse mau uso, apenas, quando a desincompatibilização implica, também, em descontinuidade política - o que é bom para o processo eleitoral, mas ruim para o processo de governo. Quando a desincompatibilização se processa no quadro intrapartidário, ou pelo menos num ambiente de continuidade político-administrativa, é totalmente inócua, e até contraproducente no seu intuito. Quem a pretende utilizar, deixa um testa de ferro no seu lugar, e tem a vantagem de não ser diretamente envolvido no eventual ilícito. Ademais, o requisito da consistência no exercício dos mandatos, é condição inibidora da utilização do Legislativo, como trampolim para o Executivo - uma prática danosa e institucionalizada no processo político brasileiro. Quando um parlamentar se licencia do seu mandato, para ocupar cargo de confiança no Executivo, várias conseqüências se desencadeiam, sobre as quais muito pouco se tem refletido. Primeiro, frauda a decisão expressa do eleitor que o escolheu legislador - e não administrador. Segundo, ocupa uma posição no Executivo e faz o seu jogo de poder, mantendo, no entanto, uma posição de influência no Legislativo. Para ser mais explícito, quando alguém se licencia em tais condições, abre vaga para um suplente de deputado ou vereador. Trata-se, no entanto, de uma situação provisória, porque o licenciado ainda permanece na titularidade do mandato, que será retomado quando por bem - ou por mal, houver de decidi-lo. Nesta perspectiva, chantageando suplentes com o retorno dos titulares, o chefe do Poder Executivo pode controlar um razoável número de cadeiras no Legislativo. Em pequenos municípios pode, com facilidade, manter sob cabresto a maioria dos votos na Câmara de Vereadores. Acrescente-se a este expediente, a influência exercida pelo mandatário do Executivo, na eleição de líderes Partidários e na indicação do líder do Governo. Não sobra muito espaço, na contagem numérica dos votos parlamentares, para se falar em independência e separação dos poderes, quando se desloca do nível federal (em que o tamanho do Congresso minimiza esse efeito) para o estadual e municipal. Paradoxalmente, fragiliza-se, também, o Executivo, pela utilização desse recurso institucional. A promoção de titulares de mandato legislativo ao primeiro escalão do governo, promove a feudalização da Administração e dificulta a governabilidade, pela excessiva independência dos incumbentes face à autoridade do Chefe do Poder Executivo. A lógica da representação que temos, ao fazer de cada homem um partido, erode a solidariedade entre os titulares de um mesmo governo, e, pelo mecanismo do trampolim político, incide direta e imediatamente sobre o comportamento do Executivo, destroçando a unidade política, porventura construída ao longo da campanha majoritária. Um deputado no governo é um candidato em causa própria, a quem se reserva, como ao donatário de uma capitania, uma parcela dos recursos políticos no loteamento da máquina administrativa do Estado. Não significa isso, que o mesmo efeito não possa verificar-se a partir da nomeação de qualquer outro cidadão - a diferença persiste no fato que uma mera possibilidade, contra a qual os processos coordenativos do governo tendem a exercer função eficazmente inibitória, na circunstância em apreço, da cumulatividade do mandato parlamentar, ganha foros de fatalidade política. O que a classe política vê como uma prerrogativa profissional e sinaliza uma carreira bem sucedida, de fato, fragiliza o Executivo e depõe contra a instituição do Parlamento, sua autonomia e liberdade de ação. Devia ser coibido com a perda do mandato legislativo de qualquer parlamentar, que optasse pela nomeação para um cargo no Executivo. - x - Independência das diferentes instâncias de governo, por sua vez, é um requisito indispensável ao funcionamento consistente do sistema presidencialista. Do ponto de vista do Legislativo, ela se constrói pela estatura das suas lideranças, e pela capacidade de concentrar demandas e recursos da sociedade organizada. Um Legislativo forte saberá canalizar as pressões e a iniciativa popular, utilizar o referendum, legitimar a sua intervenção fiscal e ampliar o seu campo de normatividade, relativamente ao exercício do Poder Executivo, e assim consolidar a sua independência. Mas, na democracia das sociedades complexas, a integração de valores e procedimentos, não depende de um único perfil de capacidades institucionais. A diferenciação estrutural, gradativamente, especializou agências, repartiu e até mesmo superpôs atribuições, para a plena responsabilização do exercício da função pública, destacando-se aqui a institucionalização do Poder Judiciário, do Ministério Público e do Tribunal de Contas. Não obstante, as suas regras de investidura - a nomeação dos membros dos Tribunais Superiores, dos Procuradores Gerais, dos Conselheiros dos Tribunais de Contas pelo exercício de prerrogativas conjugadas do Executivo e do Legislativo - tornam-nas subsidiárias de especial deferência e vinculação estamental aos poderes que lhes incumbe fiscalizar. No âmbito do Poder Judiciário, eis talvez porque, nos julgados superiores, tem prevalecido as razões de Estado aos direitos da cidadania, e se tenha aberto espaço para uma sensação generalizada de omissão nas retribuições de responsabilidade política. Não parece essa, uma questão suscetível de resolver-se pelo pretendido controle externo, sobre a atividade jurisdicional, que orienta uma proposta corrente de reforma constitucional. Além de ferir o princípio da separação dos poderes, a superposição de instâncias burocratizadas de contrôle - é um truísmo - não resolve uma questão de fundo da democrácia: quem controlará os controladores? Genericamente falando, para todas essas instituições, e muito especialmente na organização do Poder Judiciário, a adoção de uma instância de investidura popular-eleitoral, reforçaria a independência e consolidaria os prospectos de uma ação, mais consoante com as exigências da legitimidade democrática. - x - Pela sua complexidade, foge aos limites deste texto uma abordagem compreensiva da necessária reforma do sistema judiciário neste país. Não obstante, deve-se dar atenção à proposta de eleição popular para os juizados de primeira instância. O pluralismo no recrutamento, certamente, representa uma fundação em bases democráticas, para a consolidação de uma instituição, que viesse a ter no seu topo, uma liderança de carreira, menos politizada e mais comprometida com a missão da justiça retributiva. Na prática jurisdicional brasileira, tem sido uma constante a prolação de sentenças corajosas, do ponto de vista político e social, pelo enfrentamento das razões de Estado, e rigorosamente consistentes com a sistemática do direito positivo, as quais, posteriormente, sofrem o desgaste da postergação dos seus efeitos ou de sua revisão, pela ótica politizada dos Tribunais superiores - ainda que, muitas vezes, encobertas pelo expediente de algum formalismo, tão desnecessário como inconsistente ao interesse da Justiça. A estrutura burocratizada e profissionalizada da judicatura das primeiras instâncias, tem sido, assim, submetida ao controle revisional, de uma elite dirigente do Poder Judiciário, que, até pela sua investidura, é muito mais sensível ao jogo do poder de Estado, além de caudatária de interesses corporativos, politicamente articulados, no âmbito de associações de classe, como a OAB e as Associações do Ministério Público. Situação, que retroage, aliás, com efeitos disruptivos sobre a solidariedade orgânica destas instituições. Não conforta nossa pretensão, a idéia pueril de que o processo jurisdicional se possa desencadear, alheio à dinâmica do poder e à influência dos processos políticos, inerentes à solução de conflitos de interesse e à própria sociabilidade democrática. Não obstante, é próprio da democracia, submetê-los ao controle da cidadania, pelo que ressalta dar-lhes visibilidade e instância de apelação, capaz de clarificar-lhes a disciplina dos princípios ético-jurídicos. Eleitos, os juízes de primeira instância, estariam mais suscetíveis ao influxo de razões políticas, nos seus julgados individuais. Mas, os seus êrros e desvios, seriam passíveis de correção nas instâncias superiores, mais burocratizadas e suscetíveis de representar agregados de consenso, estruturados ao longo das linhas hierárquicas do Poder. O contrário do que ocorre nos dias atuais, quando o descortino da magistratura de primeira instância é, frequentemente, emasculado pelo viés político dos níveis hierárquicos superiores. No caso das demais instituições de fiscalização e controle, se deveria estudar a possibilidade da eleição direta, para os postos mais elevados dos Procuradores Gerais e dos Conselheiros dos Tribunais de Contas. Este pleito, diferenciado da eleição das outras instâncias de poder, abriria oportunidade para que a problemática e as alternativas, ao exercício democrático das suas prerrogativas, pudessem vir a ser debatidas e conhecidas em profundidade pela cidadania. - x - No que se refere às procuradorias públicas, aliás, é preciso clarificar-se com mais precisão, a distinção e as funções a serem exercidas pelo Ministério Público e pela Advocacia Geral do Estado, sob pena de se duplicarem, competitivamente, as suas atribuições e prerrogativas, com desnecessário ônus para o erário e grave prejuízo para o exercício das funções jurisdicionais. No Rio Grande do Sul, em particular, esse paralelismo encontrou o seu clímax na Administração Collares (1991-1994), clarificando os pressupostos e consequências de uma grave assintonia com a própria sistemática constitucional. Pois, que é essencial ao Ministério Público, como instituição de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional (art. 127 da Constituição federal). São estes atributos que lhe asseguram a utilização adequada da iniciativa para instaurar, presidir e concluir inquérito, e assim levar às barras dos Tribunais, os cidadãos que atentarem contra o interesse do Estado de Direito democrático. Interesse, diga-se de passagem, que bem deveria ser visualizado, em termos mais amplos do que a acepção corrente, incluindo toda a gama do ilícito, seja ele penal ou administrativo. Ora, o interesse do Estado não se confunde com o interesse do Governo, numa democracia; sendo isso, entretanto, no extremo da subordinação da Constituição às razões do Estado, e do Estado à vontade do Governo, próprio dos autoritarismos de vário matiz. Para defender o ponto de vista, particularizado e viesado, do gestor político do Governo, é que a sistemática constitucional vigente previu a instituição da Advocacia Geral da União, dos Estados e do Distrito Federal, como organismo distinto do Ministério Público, e cuja missão precípua é a de representar o Poder Executivo no conflito de interesses, judicial ou extrajudicial, e prestar-lhe consultoria e assessoramento jurídico. É essencial à postura ética, a ser preservada no mister da Advocacia Geral da União e demais níveis de Governo, o fato de que intervém no conflito de interesses, como parte e nunca como julgador. Do que decorre, que a utilização da Advocacia Geral de governo, como instância para a promoção de sindicâncias e inquéritos, assim como para a elaboração de pareceres normativos e vinculativos de procedimentos administrativos, representa, de duas uma: ou a mera subrogação, de uma corporação, nas prerrogativas administrativas do gestor político e no interesse do Governo, que por seus acertos e desacertos deve ser responsabilizado; ou a invasão das prerrogativas próprias do Ministério Público, ferindo os atributos da sua unidade, indivisibilidade e independência funcional, com graves consequências para as funções jurisdicionais do Estado. Exemplo, da impropriedade dessa última acepção, foi o Estado do Rio Grande do Sul, ao tempo da Administração Alceu Collares, quando se usou e abusou da instituição de Advocacia Geral de governo - alí denominada Procuradoria Geral do Estado - na promoção de inquéritos públicos espúrios, submetendo à perseguição política, em moldes inquisitoriais, os desafetos do governador, no âmbito do próprio aparelho estatal. Para além da inconveniência intrínseca destes procedimentos, o mau direcionamento dos recursos institucionais da Advocacia Geral do governo, acarretou prejuizos muito concretos ao erário público. Processos judiciais relevantes, envolvendo conflitos de interesse de grandes proporções, em que o Estado foi parte - como foi o caso de um grande número de reclamatórias trabalhistas, ajuizadas contra a Companhia Estadual de Energia Elétrica - restaram desatendidos ou inadequadamente respondidos pela procuradoria do Estado. Tais episódios, divulgados a saciedade pelos meios de comunicação, servem para alertar contra os desvios de finalidade, inerentes à manipulação política das funções jurisdicionais do Estado. Particularmente danosa é a utilização do processo administrativo ou judicial imotivado, como uma arma de confronto político, destinada, tão simplesmente, a calar, pela condição de réu, os desafetos da Administração. No bôjo desses expedientes, a imposição do ônus da prova ao acusado, o cerceamento à defesa, e um enfrentamento desigual, com adversários políticos ou seus sequazes, travestidos de julgadores imparciais e defensores do interesse público, têm reintroduzido o autoritarismo nas relações sociais, pela porta dos fundos da nossa incipiente experiência democrática. Face a esse virtual desbordamento, da Advocacia Geral de governo, sobre as funções jurisdicionais do Ministério Público, há que se precisar melhor o enquadramento constitucional das suas funções e investidura. Nesse sentido, há que se prever a ampliação das funções do Ministério Público, contemplando uma efetiva institucionalização da sua unidade, indivisibilidade e independência. Um primeiro e importante passo nessa direção, pelas consequências sobre a dinâmica do processo jurisdicional, seria a eleição do Procurador Geral da República (no Rio Grande do Sul, do Procurador Geral da Justiça). O mandato popular, como princípio de legitimação dessa investidura, se constituiria num fator de quebra do imobilismo burocrático da instituição e da sua acomodação política. Movido por uma proposta eleitoral, o titular do cargo, terá publicizado o seu modo de atuação e assumido compromissos, que podem, eventualmente, contrapô-lo criticamente ao modo de atuação dos demais poderes de Estado. O que reforça, pragmáticamente, o interesse próprio da instituição para uma intervenção militante na execução da justiça. Nesse contexto, a Advocacia Geral de governo, restaria, ainda, mais necessária; embora redirecionada para dois objetivos fundamentais: a representação judicial, dos interêsses programáticos e operacionais da Administração, contra terceiros; e a defesa jurídica do próprio gestor político, face à consequência dos seus atos administrativos e à própria atividade fiscalizadora das promotorias públicas. Configuraria, assim, função eminentemente fiduciária, como se deduz do próprio texto constitucional, que institui suas prerrogativas de consultoria e assessoramento jurídico. É de se questionar, nesse sentido, a necessidade e até mesmo a desejabilidade de, no curso de uma efetiva Reforma do Estado, manter-se a Advocacia Geral de governo, como uma corporação e um quadro administrativo de caráter permanente na estrutura do setor público. Regras claras e precisas, para a contratação e remuneração comissionada de consultores e assessores jurídicos pelas agências estatais; assim como critérios, que assegurem a contratação e remuneração de advogados, comissionados, para a defesa jurídica da Administração, poderiam cumprir, com economia de recursos e clara vantagem, no plano ético e profissional, as atribuições da Advocacia Geral do governo, tanto quanto essa análise alcança, e com certeza no caso do Rio Grande do Sul, hoje precariamente atendidas. De um lado, se resolveria o constrangimento ético, que envolve o fato da mesma corporação, que defendeu e assessorou jurídicamente, como parte em litígio, um determinado administrador, assumir "ex offício" a defesa e assessoria do seu sucessor, que pode efetivamente constituir-se, seu declarado adversário político. De outro, se asseguraria ao administrador, o conforto de uma assessoria jurídica e defensoria, que não se circunscrevesse ao período em que esteve efetivo na função pública; mas que o acompanhasse, pois desvinculada de laços corporativos, enquanto persistissem os efeitos jurídicos dos seus atos administrativos. Para finalizar esse tema, em qualquer das hipóteses de eleição aqui tematizadas - seja para a judicatura de primeira instância, para o Conselho do Tribunal de Contas ou para a chefia do Ministério Público - critérios de barragem deverão ser respeitados, pela apresentação das candidaturas, a fim de que se assegure a qualificação especializada ao exercício das respectivas funções. Nada há de inusitado, neste particular, eis que semelhantes critérios têm sido opostos à prerrogativa da sua nomeação. - x - Transparência dos atos de administração, por outro lado, é um requisito essencial à democracia - é condição para a participação efetiva da cidadania, pela racionalidade do voto, na realização do governo. A experiência contemporânea, no entanto, tem demonstrado que o agente estatal, seja qual for a sua base institucional, agrega um nível de opacidade, insofismável e irredutível, como força de resistência à tensão emergente nas relações: cidadania x burocracia estatal; e burocracia estatal x liderança política. O papel, tradicionalmente ocupado pelos meios de comunicação, que lhes grangeou o espaço e o prestígio de Quarto Poder, nas democracias avançadas, sofre, não obstante, o desgaste de práticas e obstáculos, que relativizam-nos como condição suficiente, para a consecução das exigências contemporâneas de informação da cidadania. Especialmente, isso se aplica, em contextos de grave hipertrofia do Estado e de nebulosa diferenciação do público e do privado. Não é lícito desconhecer o fato que, estruturas privadas de comunicação tornam-se, muitas vezes, caudatárias de interesses monopólicos, em determinadas circunstâncias, densamente comprometidos com a manutenção ou pretensão de favores do Estado, sob a forma de rubricas publicitárias e outros privilégios. De outro lado, estruturas públicas de comunicação, na ausência de um forte ethos profissional-democrático, e de uma sustentação sólida na cultura política da cidadania ativa, tendem a cultivar uma atitude que oscila entre a acomodação de uma neutralidade acrítica, e o proselitismo dos incumbentes no governo. Deve-se reconhecer, que estas dificuldades extremas são temperadas, e até mesmo contornadas, pelas estratégias de legitimação, que forçam as estruturas de comunicação a desenvolver estilo e personalidade democráticos, no processo competitivo das sociedades abertas. Não obstante, obstáculos de natureza processual, persistem no caminho da necessária transparência das ações do Estado. O cotidiano da comunicação de massas é factual, sua abordagem da realidade é segmentária, sua capacidade de investigação é restrita pelo interesse momentoso da notícia e pela limitação dos recursos de que dispõe, para o acesso e desvelamento dos mecanismos decisórios do Estado. Exatamente por isso, líderes poderão sentir a necessidade de recorrer a uma capacidade de fiscalização menos genérica; mais persistente e sistemática, capaz de incidir sobre dimensões várias, e até mesmo localizadas, da ação governativa; mobilizando diretamente potencialidades latentes da sociedade civil. Recentes apelos à cidadania fiscal do consumidor têm essa conotação, e da mesma forma, o recurso a organizações privadas de pesquisa, consultoria e auditagem, se constitui num mecanismo legítimo de complementação para a formulação e avaliação de políticas públicas e, até mesmo, para a aferição da própria capacidade fiscalizadora dos agentes estatais. O tema é polêmico, na medida em que se devem evitar os extremos: da privatização do poder de polícia e do monopólio dos recursos de investigação, para atribuição de responsabilidade política, pelas burocracias especializadas do Estado. Não obstante, sinalizando o frágil entendimento e ausência de uma solução institucional satisfatória, a sociedade tem reivindicado o primeiro, tentando fazer justiça com as próprias mãos, e o Estado tem reivindicado o segundo, bloqueando iniciativas para a auditagem privada de instituições públicas.Tributária dessas vertentes, a clandestinidade dos grupos de extermínio encontra o seu paralelo no abuso de poder dos agentes estatais, incentivando o denuncismo e o anonimato, e propiciando episódios de linchamento moral e condenação sumária de desafetos políticos. É particularmente discutível, neste sentido, a efetiva externalidade de uma auditagem processada por quem, rotineiramente e de offício - como é o caso dos Tribunais de Contas da União e dos Estados - avalia e chancela os atos de uma administração. A reivindicação de uma interpretação estrita do dispositivo constitucional, que define a competência dos Tribunais de Contas, como um virtual monopólio da auditagem externa das agências estatais, por outro lado, mais configura uma contradição. Inviabiliza o socorro de um enfoque diferenciado, de uma capacitação técnica não institucionalizada, e de uma avaliação efetivamente independente, capaz de penetrar a relativa opacidade da ação governativa, exatamente ali onde a miopia corporativa do agente estatal não consegue ultrapassar o formalismo da rotina ou o contágio de sua parte interessada. Neste contexto, se agudizam as tensões na região fronteiriça do interesse público e privado, com a perda dos respectivos referenciais éticos. E, na tentativa do seu enfrentamento se multiplica a burocracia, sem que se resolva a questão que lhe dá origem. Cite-se, neste particular, o caso da fiscalização contábil e financeira, hoje duplicada nos institutos constitucionais do controle interno e externo (Arts. 71/74), com elevados custos para o erário e discutível ganho de eficácia. Aperta-se, ademais, pela extensão das competências fiscais monopolizadas, o cerco corporativo às lideranças eleitas, submetidas, por critérios racional-burocráticos supostamente neutros, a juízos de valor em regiões limítrofes de sua responsabilidade política. É questionável, neste sentido, a extensão das competências hoje constitucionalmente reconhecidas para as instâncias do controle contábil e financeiro, que lhes reivindicam exclusividade. Quando se fala em auditoria operacional, adentra-se o terreno da discricionaridade administrativa - da competência executiva dos incumbentes; e quando se extrapola os limites da fiscalização da legalidade dos atos, para uma avaliação e julgamento da sua legitimidade, se penetra no terreno de sua responsabilidade política. Não parece útil à democracia, que se reconheça numa corporação do Estado a capacidade para prescrever receita de governo, ou para julgar a legitimidade da ação governativa, a menos que se pretenda discricionariamente subrogar no agente fiscal a usurpação das funções de um Executivo de reserva ou mesmo de um Judiciário ad hoc. * Este artigo esteve disponibilizado no site Politica Hoje - em junho de 1999
|