Radicalização da Democracia: um Manifesto pela Autonomia das Comunidades Autogestionárias!

    Na radicalização da democracia que o limiar do Século XXI permite projetar, nem o Estado deve deter o monopólio da participação, nem o Mercado pode assumir o controle da associação.

    A nova estrutura de checks and balances que vai garantir a democracia e a liberdade no século XXI, portanto, não se restringe à divisão dos poderes de Estado (Executivo, Legislativo e Judiciário) ou à dinâmica das suas várias instâncias territoriais no pacto federativo. Implica no reconhecimento da autonomia das diferentes forças que se articulam nas três esferas de integração social e nas suas interfaces.

    Estado, Mercado e Comunidade desenvolvem interações, cuja regulação está a exigir um novo pacto social. Só nesse contexto, quando se especificar com clareza o papel de cada parte, suas responsabilidades e interditos, é que a idéia de um efetivo governo de parceria e o espaço de intervenção da cidadania autogestionária ganharão solidez.

    A emergência da Comunidade, como princípio e vetor dos processos de radicalização da democracia, é preciso que se advirta, tende a ser obstaculizada por uma dupla tendência que a Contemporaneidade deixa entrever, no sentido da sua degradação e aparelhamento: seja pelo Estado (como tem sido o caso das experiências que focalizam o incentivo à direta participação popular na elaboração dos orçamentos públicos); seja pelo Mercado (como tem sido o caso da crescente influência e controle corporativo - via filantropia - dos processos de desenvolvimento do terceiro setor).

    Preservar-se a autonomia da Comunidade será crucial na perspectiva da radicalização da democracia, mas para isso há que se repensar os limites e estabelecer as linhas e trincheiras de uma nova resistência civil, destinada a bloquear os processos contemporâneos da apropriação estatal e do aparelhamento corporativo dos movimentos sociais.

    É consenso entre os analistas, que vivemos um tempo de transição no processo civilizatório. O paradigma da Modernidade se esgotou e a civilização, dita Pós-Moderna, ensaia os seus primeiros acordes, na composição de uma nova sinfonia humana. Trata-se de trabalhar com as dissonâncias e integrar os novos instrumentos, cuja interferência irrecusável na dramaturgia simbólica do mundo da vida, ultrapassa os limites da harmonia possível no compasso da velha ordem - que é binário.

    Dos processos civilizatórios que marcaram o projeto da MODERNIDADE, destacamos:

a legitimação da AUTORIDADE - cujas fundações podem ser figuradas pelos conceitos de: Estado, Mercado e Comunidade.
a institucionalização do PODER - cujas consignas formuladas pela Revolução Francesa foram: Liberdade, Igualdade, Fraternidade;
o aperfeiçoamento dos mecanismos de GOVERNO - cujos critérios são: Viabilidade, Desejabilidade e Consentimento;

    Comunidade, Fraternidade e Consentimento, no desdobramento histórico dessa construção, resultaram os terceiros excluídos de um processo que se polarizou na tripla tensão de:

Estado x Mercado
Liberdade x Igualdade
Viabilidade x Desejabilidade

    O casamento, em ideologias antagônicas, destes três pares conceituais, reservou à história a experimentação de dois modelos ou matrizes do desenvolvimento político no processo da Modernidade, que poderíamos designar provisoriamente como "realismo liberal" e "voluntarismo socialista".

    No REALISMO LIBERAL, a hegemonia do MERCADO e a idéia força da LIBERDADE como fim último do Estado, casaram-se ao critério da VIABILIDADE como parâmetro de formulação e implementação de políticas.

    No VOLUNTARISMO SOCIALISTA, a hegemonia do ESTADO e a idéia força da IGUALDADE concebida como condição excludente do MERCADO, adotou o critério da DESEJABILIDADE, como parâmetro de formulação e implementação de políticas.

    Como sensor da VIABILIDADE, o realismo liberal institucionalizou os mecanismos de uma democracia representativa que tem no PARLAMENTO sua instituição suprema.

    Como expressão da DESEJABILIDADE, o voluntarismo socialista engendrou e consolidou historicamente uma democracia popular que tem no PARTIDO a sua instituição suprema.

    Uma singular simbiose, promovida pela história, reuniu com sinais trocados essas duas instituições da MODERNIDADE:

na chamada democracia popular a hegemonia do PARTIDO, de alguma forma, incorpora e domestica o PARLAMENTO;
na chamada democracia liberal, a hegemonia do PARLAMENTO, de alguma forma, absorve e prepondera sobre os PARTIDOS.

Pesadas e contrapesadas as respectivas experiências, algumas constatações se impõem:

os dois modelos são marcados pela exclusão da COMUNIDADE, da SOLIDARIEDADE e do CONSENTIMENTO, como dimensões autônomas e irredutíveis do drama social;
a democracia liberal, mostrou-se mais flexível como estratégia de institucionalização do poder e implementação de decisões, razão pela qual emerge hegemônica no presente quadrante da história;
de qualquer forma, na vigência dessa experiência histórica, o regime representativo de PARLAMENTO e PARTIDO tornou-se sinônimo e sucedâneo do próprio conceito de democracia.

    É exatamente isso que está em crise no momento atual. Vivemos um tempo em que, vitoriosa e, portanto, já sem o inimigo externo a justificar suas insuficiências, a democracia liberal desenvolve-se em terreno suficientemente aplainado para deixar entrever suas contradições, num contexto suficientemente frouxo de desafios externos que lhe permitem espaço à formulação de alternativas e estratégias de reforma.

    Isso posto, demarca-se o campo de nossas preocupações, a partir do qual se desvelam pontualmente algumas observações, convergentes ao tema desta investigação.

    A grande lição a ser retirada na reflexão da crise da Modernidade, que oportuniza a emergência da CONTEMPORANEIDADE e viabiliza a formação de políticas que lhe dão conseqüência, é a necessidade de romper-se a noção que o Estado monopoliza a esfera do público e que o Mercado constitui a esfera do privado.

    A cidadania - enquanto Comunidade (pólis) - contém em si essas duas dimensões, e não pode ser reduzida: nem às razões de Estado; nem aos interesses do Mercado; nem a qualquer combinação ou tensão com dominância entre essas duas dimensões da vida em sociedade.

    O monopólio da subjetividade política pelo Estado, resulta inevitavelmente em alienação do princípio da solidariedade no seio da Comunidade. Opera uma apropriação indébita, oportunista ou aparelhista, das condições de participação que radicam, ética e instrumentalmente, na tensão própria da constituição simbólica do social.

    A representação exclusiva da autonomia pelo conceito de Mercado, por sua vez, constitui-se numa redução espúria dos interesses multifacetados que compõem a identidade do social. Opera uma simplificação interessada nos processos de socialização, que resultam na adesão da Comunidade a valores e na sua expressão como identidade política.

    A emergência da Comunidade, como terceiro incluído, na dialética de Estado e Mercado, altera substancialmente a natureza do processo institucional: qualificando a constituição das esferas do público e do privado, mediante a sua dissociação dos conceitos de Estado e Mercado. Torna-se possível então visualizar e equacionar teoricamente, não apenas os fenômenos da privatização do Estado (hegemonia do Mercado) e da regulação do Mercado (hegemonia do Estado); mas, avançar também, para o reconhecimento de uma esfera de interesses da Comunidade, que são irredutíveis face ao Estado (o caráter social-público da soberania, que constitui suporte à voz e ao direito de escolha) e ao Mercado (o caráter social-privado da lei, que promove a lealdade e assegura a obediência).

    O que vai aqui formulado faz sentido ao visualizar-se, nas esferas do público e do privado, as facetas diferenciadas mas indissociáveis de um mesmo comportamento político, que:

como fazer comunicativo ou capacidade de realização resulta público (remete os processos de participação política ao conceito de cidadania e à construção de identidades coletivas);
e como agir comunicativo ou capacidade de legitimação origina-se inevitavelmente privado (remete os processos de socialização política à livre adesão dos indivíduos e movimentos sociais).

    A superação da polaridade excludente entre o público e o privado, como esferas territorialmente distintas e intangíveis, insere-se no contexto de uma nova concepção da política, que enfatiza sua dinâmica triádica e sua estrutura de rede auto-constitutiva.

    Têm-se, por esta via - que é a primeira da democracia, sedimentada no processo civilizatório, em que a política é concebida como estratégia da liberdade - o fundamento para a construção de uma ordem social igualitária e fraterna.

    Deve-se ressaltar que é a sua efetiva irrealização, que origina as grandes contradições sociais da modernidade. Que não foram e nem podem ser resolvidas pela mera inversão das prioridades, ou seja, substituindo-se a estratégia da liberdade, por uma outra da igualdade ou da fraternidade.

    Exatamente por isso, que tais contradições foram e não podem ser resolvidas por uma segunda via... a social-democrata ou melhor dito estadocrata; e, que também não podem ser equacionadas, por qualquer sorte de opção fundamentalista, entre incluídos e excluídos - como se bastasse o recurso de uma solidariedade militante, para resolver-se desde logo todas as frustrações que envolvem as tensões da liberdade e da igualdade. A ordem dos fatores, aqui, altera definitivamente o produto. A estratégia é o fundamento, que torna indescartável a dimensão política do conceito liberal na afirmação do poder democrático.

    No esboço que empreendemos, de uma agenda para a radicalização da democracia, é necessário sinalizar os estrangulamentos do debate atual, sobre o antagonismo dos sistemas socio-econômicos, que se projetaram como alternativas polarizadas no curso da modernidade: do capitalismo e do socialismo - do mercado-centrismo e do estado-centrismo na organização da sociedade. A superação necessária das suas limitações e estrangulamentos aponta no sentido das propostas mais compreensivas, quer venham as mesmas apelidadas com o rótulo de uma terceira via para o desenvolvimento na pós-modernidade, quer se construam sobre o resgate e a conseqüência da primeira via da liberdade, na fundação e desenvolvimento de uma sociedade que se pretende mais humana, integrada e sustentável.

    O campo, aqui, é fértil para se trabalhar uma estratégia de mudança que una dois focos propulsores: na frente interna o movimento de comunidade e na frente externa o que se possa capitalizar da terceira via e adjacências, para uma audaciosa redefinição do internacionalismo.

    É o que nos oferece a defesa militante das instituições democráticas e a preocupação pedagógica de sua conscientização pela cidadania.

    Finalmente, na conclusão deste texto, cabe uma provocação ao debate das questões aqui abordadas, apontando a convergência dos processos da mudança política no ponto focal do DESENVOLVIMENTO HUMANO em nosso país, explicitando, com alguma audácia e licença, como seu:

Objetivo político: A implementação da agenda da radicalização da democracia e a instrumentação da luta pela sua realização.

Estratégia: A luta pela afirmação da autonomia política e gestionária das Comunidades Locais e das instituições do chamado Terceiro Setor, deverá abrir espaço para a constitucionalização dos movimentos sociais, enquanto partidos-comunitários. Esses novos partidos, organizar-se-iam ao estilo dos já existentes, mas sua esfera de atuação, entretanto, alcançaria tão somente a articulação e agregação de interesses da cidadania nos processos de participação e organização auto-gestionárias da Comunidade e, no seu limite, se projetaria como representação política da cidadania na composição de uma instância (as câmaras baixas) do Poder Legislativo (cuja bicameralidade, destarte, asseguraria a dupla inserção da base da sociedade no processo das decisões coletivas, mediante suas representações comunitária e partidária). Essa proposta implica uma clara e inequívoca divisão de competências e de prerrogativas, entre essa nova instância de articulação político-comunitária e a organização dos atuais partidos políticos. Estes passariam a se especializar na articulação de interesses e formulação de projetos de governo e na disputa pelas posições de autoridade na estrutura do Estado. Os novos partidos comunitários, ao lado dos atuais partidos políticos e centrais sindicais representariam, assim, os canais privilegiados de articulação e agregação de interesses, nas três esferas correspondentes da Comunidade, do Estado e do Mercado,

Tática: A constituição dos partidos comunitários implica, portanto, uma reforma político-institucional profunda e uma efetiva mudança de concepções e procedimentos da própria atividade política. A reforma da política visualizada nesta proposta, por sua vez, implica: ou a sua consensualização por uma coligação hegemônica dos partidos políticos existentes, comprometida com a sua implementação; ou a construção e fortalecimento, ao ponto de tornar-se hegemônico, de um novo partido político, cujo estatuto e programa teria como escopo de atuação o compromisso dessa estratégia de mudança (uma alternativa oportuna aos partidos da estadocracia e da mercadocracia); ou, o que parece mais realista, uma combinação de ambas estas táticas de atuação partidária.

Operação: É pouco provável que os partidos políticos atuais, acomodados no seu monopólio da representação, sejam simpáticos e, em última instância, subscrevam a mudança da política aqui proposta. É indescartável, portanto, a formação de um novo partido, cujos prospectos da sua militância democrática deverão focalizar a articulação de redes de solidariedade militante, ocupando espaços de intervenção política supra designados e promovendo o empoderamento da cidadania autogestionária, necessário à constitucionalização desta proposta.

    O novo partido, desde logo, terá o caminho da sua estruturação e crescimento menos bloqueado, se tornar claro e inequívoco que não pretende constituir-se em instrumento para a conquista e ocupação do poder de Estado; mas numa articulação de forças interessadas na sua regulação. Não deve ocupar, portanto, o espaço privilegiado dos partidos políticos existentes, que é a disputa pelo governo; mas objetivar prioritaria e programaticamente a ocupação, em caráter permanente, sistemático e orgânico, dos espaços que os partidos já existentes: ou, simplesmente desprezam pela sua carência de militância e política de base; ou, meramente, aparelham na consecução da sua estratégia de conquista do poder de Estado.

    O programa do novo partido, neste sentido, deverá enfatizar e articular a militância política e a ocupação de espaços:

nas instituições da democracia participativa: conselhos de políticas públicas (inclusive nos Conselhos Regionais e Conselhos de Orçamento Participativo);
nas instituições do Terceiro Setor;
nos processos culturais e educacionais (nas redes de informação e no sistema educacional);
na implantação de comunidades gestionárias sustentáveis e na articulação de ações locais de desenvolvimento;
no acesso às instituições do Poder Legislativo (em todos os níveis - municipal, estadual e federal);
nas instituição multilaterais e nos espaços de articulação e convergência das Comunidades globais.

    Paradoxalmente, o compromisso ético e político com o empoderamento da cidadania autogestionária e com a afirmação do princípio da Comunidade, deverá impor ao novo partido: a exclusão de sua participação em eleições ou cargos de confiança nas instituições no governo (enquanto instituições fulcrais do Estado); assim como, a exclusão de sua participação e intervenção nas atividades sindicais, patronais ou trabalhistas (enquanto instituições do Mercado).

O texto integral do Relatório de onde foram extraídas essas sugestões pode ser encontrado em: www.geocities.com/edaydos/artigos.htm - clique em "SOBRE A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA DA MODERNIDADE: O CONTEXTO, O CONCEITO E OS OBSTÁCULOS." e em "RADICALIZAÇÃO DA DEMOCRACIA NO BRASIL: O CONTEXTO, O CONCEITO E A AGENDA."

Informações sobre o ENCONTRO DO ANO 2.000 poderão ser acessadas diretamento no site www.forum21.org.br.

OBSERVAÇÕES ADICIONAIS:

Este texto avança proposições que, com certeza, não são consensuais - até porque não estamos ainda, na teoria política e no movimento social, preparados para retirar dos processos autogestionários que se alinhavam na sociedade contemporânea todas as suas conseqüências...

Pode soar estranho propor-se um novo sistema partidário... e um novo partido... e, de alguma forma deixar intocados os que aí estão, quando os problemas que enfrentamos parecem originar-se no mau funcionamento e na lógica particularista das instituições políticas existentes.

Para este - e outros tantos e necessários questionamentos - existem respostas... que nos permitem aprofundar o sentido das sugestões oferecidas e a compreensão das condições sobre as quais se desdobra a nossa atuação cidadã.

Mas seu desdobramento produtivo precisa balizar-se na contribuição das críticas, comentários e sugestões, que os nossos concidadãos julgarem oportuno oferecer-nos à reflexão.

Para enviar sua MENSAGEM utilize o endereço eletrônico: edaydos@adufrgs.ufrgs.br

Home Mapa do site Agenda Política

1