Posição: contra o plebiscito da dívida externa!
 
Em 1986, a proposta defendida no Senado Americano pelo Sen. John Kerry, com base em trabalho de pesquisa-ação de minha autoria, (www.geocities.com/edaydos/solucao.htm e www.geocities.com/edaydos/moratoria.doc), prevendo a criação de um Programa Internacional de Desenvolvimento, para a renegociação multilateral, sistemática e transparente, da dívida externa do III Mundo, foi considerada pelo Congressional Research Service - USA, como a mais completa em discussão no cenário econômico-financeiro do momento: "A complexidade desta proposta pode ser um obstáculo à sua implementação, não obstante a proposta reconhece as grandes questões relacionadas com o problema da dívida internacional". (CRS-IB86124)  Desde então, a posição do Brasil no quadro do endividamento externo dos países em desenvolvimento, evoluiu positivamente nos limites das alternativas canônicas da política de reajuste estrutural e da estratégia de negociação caso-a-caso, propugnadas pelo sistema financeiro, através do Fundo Monetário Internacional.

Hoje, o nosso país tem por resolvidos os principais estrangulamentos do seu endividamento externo, como se apresentavam à época da  malograda experiência de moratória conduzida pelo Ministro Dilson Funaro. A partir de 1993, a implementação do Plano Real e as renegociações internacionais conduzidas pelo então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, avançaram uma significativa mudança do perfil da nossa dívida externa. Vimos, assim, abolida a exigência de aval do governo federal na dívida externa privada, que representava efetiva nacionalização de 100% do endividamento externo do país. Hoje a dívida pública está reduzida a cerca de 40% do estoque total e o gargalo dos vencimentos de curto prazo, que inviabilizavam a gestão-econômico financeira no final dos anos oitenta, foi reduzida a cerca de 4% do montante da dívida externa pública. As amortizações de médio e longo prazo foram renegociadas a taxas de juros civilizadas e a reconquista da credibilidade financeira, assegurou a retomada do fluxo de capitais para investimento produtivo, promovendo taxas positivas e diferenciais de crescimento sustentado à economia brasileira nesta passagem do século.

Em 1982, quando o México suspendeu o pagamento do serviço da sua dívida externa, quem pagou a conta dessa bravata, foi a América Latina como um todo. O fluxo de capitais para a região caiu drasticamente, de 37,8 bilhões de dólares em 1981, para 4,4 bilhões de dólares em 1983. O efeito desse refluxo foi devastador sobre a economia regional: em dois anos regredimos ao início da década de 70 nos indicadores de emprego e renda. Calcula-se que, nos quatro anos da crise da dívida no início dos anos oitenta o Brasil sucateou 20% a 40% dos seus recursos humanos, excluindo-os do mercado de trabalho estável e formal. Desnecessário dizer que, na economia, o que se perde rapidamente, se recupera muito lentamente... e a um custo muito mais alto. Isso é tão verdade que, no bojo da "crise da dívida mexicana", perdemos uma década de desenvolvimento, e estamos levando duas décadas para resgatá-la, com um acúmulo de problemas emergentes, entre os quais o colapso da seguridade social e a disseminação e banalização da violência em nossa sociedade.

Quem já assistiu esse filme, não pode deixar de se estarrecer, diante da enorme soma de equívocos, e temer pelas conseqüências dessa tentativa grosseira de manipulação da opinião pública nacional, contidos no plebiscito sobre a dívida externa, implementado pela CNBB e outras instituições. Nem por isso, entretando, considero a questão da dívida externa pública (e especialmente o equacionamento da dívida interna) um não-problema, ou uma questão irrelevante. A crucialidade do seu manejo, como instrumento de gestão macro-financeira e, sobretudo, a repercussão da posição assumida pelo Brasil, no quadro das relações multilaterais da ordem econômica global - onde a crise da dívida ainda impacta dramaticamente sobre economias, que não tem a capacidade negocial e não lograram alcançar o sucesso da posição brasileira nesse setor - assegura um lugar destacado à questão da dívida externa dos países em desenvolvimento na agenda política do Brasil no Século XXI.

Em grande medida, as propostas avançadas pela proposta Kerry, já em 1986, para uma superação da estratégia de negociações caso-a-caso e o reforço do multilateralismo na formulação da política financeira global, persistem atuais. Representam, de fato, o passo que ainda não foi dado para o incremento das relações comerciais, a estabilização financeira e o desenvolvimento sustentado nos países em desenvolvimento.

Mas, é exatamente nesse ponto, que reside o maior descompasso da posição assumida pela CNBB no plebiscito da dívida. De um lado, porque as questões cruciais, no enfrentamento dos problemas remanescentes do endividamento externo e interno - da regulação multilateral do fluxo de capitais internacionais e da implementação de um regime de responsabilidade fiscal interna nos países tomadores de empréstimos - são obscurecidas, pelo enfoque dado a essa consulta plebiscitária, que não ultrapassa os limites fixados de há muito pelo establishment da Banca Mundial, em sua estratégia de enfrentamento caso-a-caso, empréstimo a empréstimo, com os páises devedores. É o que, afinal, e na melhor das hipóteses, poderia resultar levado à mesa das negociações pelos resultados da auditoria da dívida externa brasileira proposta no plebiscito. Isso que, de outro lado, releva a desconsideração, pelos promotores do plebiscito, relativamente ao fato que esta renegociação já foi  realizada pelo governo brasileiro e, certamente, com maior eficácia e competência do que a margem de sucesso que se poderia consignar à alternativa propugnada pelos seus interlocutores (auditoria da dívida). Quanto às propostas adicionais (suspensão de pagamento do serviço da dívida externa e interna), constituem-se em pseudo-soluções, contraditórias das  próprias premissas e objetivos em que se fundamentam os propositores do plebiscito.

a) Ao propor uma "auditoria da dívida", o plebiscito focaliza essa questão nos contornos de uma avaliação técnico-contábil - supostamente neutra e supostamente passível de identificar ilegalidades ou vícios jurídicos, capazes de permitir a denúncia e arbitragem de uma parcela da dívida - que reforça, perante a opinião pública internacional a imagem, que durante duas décadas nos esforçamos por reverter, de uma economia delinqüente e perdulária. Sabe-se, de há muito, que a formação do volume crítico da dívida, no fim da década de 70 e início dos anos 80, se deveu a opções políticas (financiamento das importações de petróleo 52%) e estruturais (deterioração dos termos de intercâmbio 20% e elevação da taxa de juros internacionais 8%) assumidas pelos países devedores. Enquanto o Primeiro Mundo fazia racionamento de combustível e auto-limitava suas taxas de desenvolvimento para poupar energia e dar-se o tempo necessário de absorver os impactos da crise do petróleo e mudar sua matriz energética, nos demos ao luxo de desprezar a adoção de medidas impopulares como o racionamento de gasolina e de sustentar uma economia aquecida em período de crise mundial, com base no endividamento fácil, representado pela captação da liquidez internacional gerada pela reciclagem dos petrodólares. Os resultados mais conclusivos que uma auditoria da dívida externa brasileira poderá produzir já são, portanto, conhecidos... e por aí já se está chovendo no molhado. Eis que, dificilmente se poderá retirar conseqüências práticas e, muito menos soluções, dessa constatação já bem estabelecida, que os governos militares no Brasil e, ademais na América Latina, foram incompetentes e irresponsáveis na gestão econômico-financeira do projeto Brasil-potência. Pretensão nossa, êrro nosso... por mais que tenhamos sido induzidos a esse desfecho, pelos interesses concretos de quem nos vendeu petróleo e de quem nos emprestou dinheiro para comprá-lo.

b) Sabe-se, portanto que, dos 500 bilhões de dólares devidos pelos países não-exportadores de petróleo, em 1982, apenas 20% representaram capital de investimento. De sorte que, supondo que tivessem ocorrido desvios no processo de endividamento externo, por corrupção, superfaturamenteo, etc., ou desperdício destes recursos em projetos faraônicos, inconclusos ou inefetivos, o percentual do estoque da dívida comprometido nessas operações, desde logo, seria restrito a uma parcela, com certeza restrita, da sua parte menor de 20%. Isso que, obviamente, não justificaria o recurso a um plebiscito, com toda a repercussão negativa que o mesmo poderia acarretar sobre o fluxo extremamente sensível dos capitais no momento da economia global que estamos vivenciando. Além disso, os dados sobre os quais se deteria essa avaliação técnica, são públicos e transparentes, e acessíveis, portanto, a quaisquer das instituições promotoras do plebiscito, que desejassem formar ou contratar equipe técnica para o competente exercício de análise. Desnecessário, portanto, chamar um plebiscito para conhecer fatos de política econômico- financeira, ao alcance da capacidade técnico-científica instalada em nossas universidades ou empresas de consultoria, ou que, na pior da hipóteses constitui tema para um inquérito policial, no limite, para uma CPI.

b) A suspensão dos pagamentos do serviço da dívida, por outro lado, durante o andamento da sua pretendida auditoria, representa um posicionamento de força e uma atitude unilateral, com inevitáveis repercussões, minimamente acautelatórias e no seu limite retaliatórias, no mercado de capitais. A suspensão de novos empréstimos por parte do sistema financeiro internacional e a evasão do capital especulativo seriam as conseqüências mínimas previsíveis; na sua esteira, com maior ou menor intensidade, se somaria o desencadeamento de um processo recessivo, com perda de empregos, redução de renda e sucateamento da atividade produtiva e de serviços e o desencadeamento da espiral inflacionária. Obviamente, os promotores dessa hecatombe, uma vez confrontados à sua dura e crua realidade, encontrariam todas as razões do mundo para atribuir essas mazelas à conspiração sistêmica, de um consenso qualquer do neoliberalismo e da globalização. Mas nem isso nos impediria de pagar essa conta, com outros dez anos de atraso e mais vinte de recuperação. Nós aqui no Rio Grande do Sul, também, já assistimos a este filme... quando jogamos fora, pela arrogância do discurso e a unilateralidade das atitudes, a possibilidade de construirmos o maior e mais moderno parque automotivo da América Latina, reunindo os projetos de instalação das novas montadoras da GM e da FORD na mesma região metropolitana de Porto Alegre. Por isso que nos estarrece, ainda mais, a reprodução ampliada dessa mesma inconseqüência e irresponsabilidade, em escala nacional e com abrangência de todos os segmentos da economia, no plebiscito da dívida externa.

c) Finalmente, a votação do calote à dívida interna, na esteira do calote à dívida externa, reúne no mesmo saco os alhos e os bugalhos, da xenofobia política e do esquerdismo utópico, que um certo fundamentalismo religioso, patrocinado pela CNBB, consubstancia nessa aventura plebiscitária. É típico dessa atitude fundamentalista, a irresponsabilidade dos seus agentes em face das soluções efetivas para os problemas que pretendem equacionar. O fundamentalismo simplifica a complexidade do real, nos limites dos seu próprio discurso, e com isso reduz a solução dos problemas, ao enunciado dos seus próprios conceitos. Não se enchergam as causas eficientes, mas tão somente as conseqüências necessárias dos seus próprios efeitos; mais importante que a solução de um problema é o conteúdo que dele apropria, como irrealização do futuro, numa alienação vivida e projetada do próprio presente. É nessa visão tradicional-moderna, sacerdotal-profética, que movimenta as massas e promove a circulação das elites, que o fundamentalismo religioso lança as suas raízes para consolidar sua presença na sociedade e na política. E não vai além, desse apelo demagógico e dessa inconsistência assumida, o fundamento ético do plebiscito da dívida. Pois se está cansado de saber, que a dívida pública interna tem uma origem clara e inequívoca, no déficit público e no enfrentamento das pressões inflacionárias dele decorrentes. Suspender o seu pagamento, por outro lado, como princípio tout court de política pública, tem por condão apenas, absolver a ineficiência gestionária do Estado e socializar as suas perdas, pelas artes da mão oculta da inflação. Uma linha de intervenção, cujo efeito é sobretudo regressivo, fazendo recair sobre a maioria mais pobre da população os ônus do desenvolvimento e a exclusão dos seus benefícios. Isso que, no mínimo, é auto-contraditório no comportamento de uma CNBB que assumiu, desde há algum tempo, a consigna de uma opção preferencial pelos excluídos...

Mas, acima de todas essas observações, que me ocorrem a propósito dos objetivos declarados e dos equívocos substanciais do plebiscito da dívida, me desgosta profundamente o mau uso, de um importante recurso da cidadania, que a sociedade brasileira conquistou no processo da sua redemocratização.

Ao apropriarem-se privadamente do instituto da consulta plebiscitária - que é um procedimento público e formal de democracia direta, a ser convocado pela autoridade competente e conduzido por uma estrutura jurisdicionada, minimizando-se nisso a possibilidade de fraudes e manipulações grosseiras da opinião pública - a CNBB e demais instituições promotoras do plebiscito da dívida, prestam um desserviço à democracia que precisamos consolidar e radicalizar neste país. Coordenado e implementado por minorias, ativistas e atreladas aos movimentos de oposição, a credibilidade dos resultados obtidos pelo plebiscito não será maior que o prestígio dessa militância e das instituições que a sustentam. Mas, ao transformar-se esse instituto de decisão popular, em mero instrumento de propaganda e agitação ideológica e partidária, sujeito ao questionamento da sua validade e da sua conseqüência por todos os segmentos discordantes da intencionalidade explícita ou implícita desse protesto, promove-se a incineração em praça pública de uma instituição da democracia direta; isso que, afinal, repercute inevitavelmente, como um efeito boomerangue, num questionamento grave à seriedade e conseqüência políticas dos promotores dessa insensatez.

Eduardo Dutra Aydos
Professor de Ciência Política da UFRGS
 

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