Os três pilares da modernidade e a "teoria simbiótica" da democracia. |
O compromisso ético emergente na imbricação da teoria democrática na ciência política. |
Um dos desenvolvimentos do pensamento social contemporâneo, que mais claramente expressa a estrutura conceitual da dupla tríade, como explicitada no paradigma da epistemologia de síntese, vamos encontrá-lo na obra de Boaventura SANTOS [1995, já mencionado no Capítulo 4.3].
Os três pilares da modernidade e a "teoria simbiótica" da democracia.
Sua análise do projeto sócio-cultural da modernidade, fá-lo apoiar-se sobre dois pilares conceituais - o que denomina pilar da regulação [o qual pretendemos assumir que expressa a perspectiva do fazer comunicativo] e o que denomina pilar da emancipação [o qual pretendemos assumir que expressa a perspectiva do agir comunicativo].
Cada um destes pilares, a sua vez, articula três princípios [ou seja, uma tríade sígnica]: o pilar da regulação é composto pelos princípios do Estado, do Mercado e da Comunidade; enquanto o pilar da emancipação é constituído pelos princípios da racionalidade ético-política, da racionalidade cognitivo-instrumental e da racionalidade estético-expressiva. (Quadro XII)
Quadro XII - Convergência do pensamento social de SANTOS no diagrama categorial da epistemologia de síntese.
O INTERESSE DA RACIONALIDADE, como trazido a essa análise, na esteira das categorias propostas por SANTOS, tem o mérito de explicitar a relação necessária entre o estudo da formação de políticas e o seu enquadramento histórico-estrutural. De fato, uma abordagem holística do fenômeno político, não pode excluir a consideração explícita dos processos econômicos e da sua implicação na realização dos valores sociais. Essa consciência emerge, com clareza e precisão, nas abordagens contemporâneas de cultura política, como ressaltam as proposições e advertências de BAQUERO e CASTRO:
"Teorias sobre a democracia têm-se constituído o centro das atenções dos estudiosos nas últimas décadas. O debate sobre esse tema no presente demonstra que não é uma discussão única e exclusiva sobre forma de governo, mas abrange conceitos como: estado social, ética e até um modo de vida. Retrospectivamente, o advento da democracia liberal, como proposta humana para administrar a permanente tensão existente entre as diversas forças sociais, foi e é motivo de encantamento por quem estuda a história política. E não poderia ser diferente, uma vez que a invenção democrática foi fruto de um misto de proposição intelectual normativa , em certa medida idealista, com uma profunda ligação orgânica de seus fundadores com o mundo em que viviam. (...)
O que, em realidade, tornou a democracia um sistema político hegemônico mundialmente foi a sua simbiose com o capitalismo. Este feliz casamento de um sistema econômico com uma forma de organização política, ambos baseados em princípios manifestos de liberdade individual, permitiu que um servisse de apoio e argumento para o outro, possibilitando assim uma abrangência e domínio mundial. Assim, pensar em democracia nos termos em que ela se nos apresenta nos dias de hoje significa entender que ela é, em sua origem e essência, indissociável de um determinado modelo econômico com o qual surgiu.
Nos países gestores e berço dessa construção simbiótica de capitalismo e democracia, como a Inglaterra e os Estados Unidos, esse sistema político faz parte do cotidiano das pessoas. A valorização do sistema democrático foi internalizada pelos cidadãos desses países através de um sólido processo de socialização política. Entretanto a realidade latino-americana e brasileira é substancial e historicamente diferente. Por exemplo, o surgimento do capitalismo se deu sem que existisse qualquer tipo de base social, política, econômica ou ideológica de cunho liberal. Desta forma, para os brasileiros, como de resto para todos os povos do chamado terceiro mundo, ao contrário dos povos chamados desenvolvidos, a democracia liberal não é tão natural. Não são sem fundamento, portanto, as controvérsias conceituais sobre as bases da legitimação da democracia em seu modelo liberal entre nós." [BAQUERO e CASTRO, 1996:11/12 - grifei]
Nessa abordagem, ressalta a preocupação dos autores na explicitação de uma dialética triádica de corte histórico, que vincula a análise contemporânea da questão democrática: ao modelo político-organizacional da democracia-liberal; à racionalidade econômica do sistema capitalista; e, à mediação teórica dos founding fathers - como intelectuais orgânicos - e sua influência na conformação da cidadania emergente. Como resultado dessas condições específicas e únicas, a "construção simbiótica" da democracia liberal - de origem historicamente determinada e amplitude localizada - enfrentaria problemas de legitimação nos países terceiromundistas, que carecem da mesma base econômica e tradição sócio-cultural.
Na obra de SANTOS, por sua vez, essa mesma consciência da contextualização da democracia, se amplifica, para incluir os problemas de legitimação decorrentes do esgotamento do projeto civilizatório da modernidade, pela frustração da sua promessa. Nessa análise da modernidade, evidencia-se uma dissociação significativa, entre o projeto da modernidade, o qual, desde sempre, gestou aquilo que, afinal, conseguiu realizar, tornando-se hegemônico: uma racionalização extensa e profunda da vida social; e a promessa de uma vida emancipada e regulada, que se demonstrou deficitária no bojo desse desenvolvimento. O excesso cientificista, que sustenta a megaeconomia e a cultura midiática da globalização, coexiste, assim, com a insuficiência do seu modelo político-social para assegurar a realização dos "ideais da identidade, autonomia, solidariedade e subjetividade". A "construção simbiótica" da democracia-liberal enfrenta, assim, desafios de legitimação decorrentes da liberação de forças, que se engendraram no processo de construção da sua própria hegemonia.
Inobstante a severidade destas proposições, a "estabilidade" dessa "hegemonia democrático-liberal", entretanto, é questionada desde argumentos que refletem uma nítida ambigüidade: de um lado, a diversidade da cultura política e a desigualdade relativa no timing e qualidade do desenvolvimento econômico de centro-periferia, em nível mundial, tornariam problemático o enraizamento do projeto "hegemônico" da democracia liberal nos países do terceiro mundo; de outro lado, a etapa contemporânea do desenvolvimento do sistema capitalista, que se poderia designar como o período do capitalismo desorganizado [SANTOS, 1995:79], apresentaria desafios paradigmáticos irrespondíveis pelo modelo de democracia-liberal mundialmente "hegemônico".
Desde logo, essa controvérsia explicita a necessidade de um aprofundamento analítico da questão subjacente, que diz respeito ao significado dessa "hegemonia democrático-liberal" - cuja consolidação se questiona e cujas abrangência e efetividade, contraditoriamente, se afirmam. Isso que, sugere três linhas de questionamento:
Em que medida, o processo da "hegemonia mundial" em curso, efetivamente, propõe e viabiliza o "transplante" globalizado da "construção simbiótica" da democracia-liberal? | |
Responde eficazmente, o modelo político da democracia-liberal, aos desafios da etapa contemporânea do capitalismo - mais especificamente, ao enfrentamento das potências midiáticas e do jogo de poder financeiro-transnacional, que caracterizam essa etapa do desenvolvimento global? | |
Finalmente, será possível, nessa etapa do desenvolvimento histórico, descartar-se os elementos essenciais do modelo político da democracia-liberal, como base para a regulação e emancipação de um projeto civilizatório, conseqüente com os ideais democráticos? |
Note-se que o encadeamento dessas interrogações, propositadamente, reflete uma perspectiva de solução à questão democrática subjacente: uma resposta afirmativa à questão "b", resolve, implicitamente, a questão "a"; uma resposta negativa à questão "c", dissolve, implicitamente, o sentido específico das questões "a" e "b", no conteúdo de um desafio maior, qual seja, a perspectiva da reconstrução teórica do modelo democrático-liberal - ou seja da sua poiésis... como condição da sua viabilidade prática.
Essa colocação do problema, desde logo, revela os limites [e até mesmo o partis pris] desta análise, que pretende, tão somente, substanciar um quadro teórico para o enfrentamento do desafio intelectual proposto pela pergunta "c". De fato, parece impensável, hoje, a construção de uma promessa hegemônica, que atenda ao estágio do desenvolvimento global das forças econômicas e à respectiva ampliação da comunidade de comunicação, que não tenha por base o construto democrático-liberal.
Não se veja nisso o mero descarte ou simplificação das questões postas pelos questionamentos anteriores. Bem ao contrário, se os percebe mais efetivos e mais complexos. Pela primeira vez, na sua história, a teoria democrática é confrontada pelo desafio da amplificação, para além das fronteiras do Estado nacional, da construção do bem-estar social, e da incorporação da diversidade cultural na engenharia do consenso. Trata-se de um desafio que a democracia-liberal não enfrentou satisfatoriamente nas suas origens. Onde teve que enfrentá-lo: ou resolveu-o de forma regressiva a padrões autoritários de solução de conflito, pela repressão; ou foi incapaz de lhe oferecer solução duradoura. A Guerra da Secessão e a Questão Irlandesa são parâmetros dessa inconsistência, lá mesmo, onde se consolidaram as experiências originárias da "simbiose" democrático-liberal.
É importante reconhecer-se, no entanto, que esse problema - que, efetivamente, não foi resolvido nas etapas preliminares da consolidação democrática - tem sido sistematicamente trabalhado e apresenta resultados históricos indiscutíveis nas experiências recentes de integração regional político-econômica. É importante reconhecer, também, que, embora se possam apontar frustrações e gargalos, identificar contradições e sugerir, como o fazem alguns teóricos da pós-modernidade, a exemplo de SANTOS [1996], "guiões" para a pesquisa e a militância das transformações sistêmicas, capazes de promover os valores democráticos, nessa etapa do desenvolvimento histórico, a mudança paradigmática em perspectiva é qualificada por uma condição, também, inusitada, em qualquer revolução do pensamento científico-social que lhe tenha sido anterior: o estabelecimento de um consenso de base, relativamente à indescartabilidade dos valores e, afinal, do modelo político democrático-liberal.
A democracia-liberal, torna-se efetivamente hegemônica quando, longe de se constituir no fantasma virtual de uma burguesia obituária ou no mero disfarce de uma dominação de classes, formaliza um "estado mínimo" da arte da convivência em sociedade, que a sabedoria do tempo acumulou e o processo civilizatório consensualizou.
Há que se distinguir aqui entre as duas dimensões do processo sociocultural em curso: entre o paradigma que se esgota e o que se consolida: de um lado o cientificismo, de outro o modelo político democrático-liberal.
Se o projeto da modernidade esgotou sua capacidade de realização no hiperdesenvolvimento da tecnologia científica, que hoje nos coloca em cheque a própria capacidade de sobrevivência no planeta; a democracia é uma experiência ainda incipiente, mas cavaleira de uma ampla base de consenso, que lhe abrem uma perspectiva de expansão consolidação. Uma base de consenso, ressalte-se, semelhante àqueles que, na história do conhecimento, têm permitido reconhecer os sinais de uma ruptura muito especial: a que preside o surgimento de uma ciência e o estabelecimento da sua capacidade de avançar, cumulativamente, sobre os seus próprios passos e suas próprias conquistas.
O compromisso ético emergente na imbricação da teoria democrática na ciência política.
Essa análise reconhece a imbricação da teoria democrática na ciência política, e resgata, assim, o compromisso ético, que impõe ao homem de ciência a consideração das implicações normativas dos seus construtos.
Diante do esgotamento do paradigma cientificista, esta posição, pelo seu conteúdo crítico, relativamente ao insulamento ético na construção de teoria, tem recebido fácil aceitação na academia.
Mais difícil, no entanto, é que se retirem dela as conseqüências práticas, do compromisso militante do homem de ciência com o paradigma em consolidação da democracia liberal. É nessa direção de trabalho, no entanto, que navega a elaboração deste texto e sua vocação poiética.
O INTERESSE DA RACIONALIDADE no modelo paradigmático da formação de políticas, cumpre uma parcela dessa missão. Explora a condição teórica que nos permite visualizar nos processos da realização histórica da emancipação e regulação sociais, os quatro valores básicos da modernidade democrática nos "ideais da autonomia, da identidade, da solidariedade e da subjectividade", propostos por SANTOS [1995,83]. E, ao fazê-lo, nos oportuniza derivar dessas categorias uma divisão estrutural dos estudos de CULTURA POLÍTICA, que sedimenta e objetiva a consolidação dessa área, como um enfoque da ciência política. (Quadro XIII)
Quadro XIII - Categorias de SANTOS no diagrama da epistemologia de síntese, identificando uma divisão estrutural dos estudos de CULTURA POLÍTICA.
Ao completar esse esforço de formalização dos conteúdos propiciados pela análise dos três enfoques paradigmáticos da ciência política, temos cumprido uma etapa inicial na pretensão final texto, de oferecer um arcabouço para a discussão dos nexos teóricos que permitam uma visualização de conjunto dos estudos políticos na atualidade.Inspira-nos a pretensão de contribuir para a convergência dos estudos contemporâneos da racionalidade política [normalmente agrupados no chamado enfoque de public choice] com a perspectiva de um construtivismo lógico que, operando na base de uma sistematização estrutural-funcional da vida política, seja capaz de derivar dela, conteúdos proposicionais empiricamente controláveis [REIS, 1982: 195].
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