REFORMA POLÍTICA: A HORA DE CONSTRUIR UM SISTEMA ELEITORAL- PARTIDÁRIO CONSISTENTE E RESPONSÁVEL.*
por Eduardo Dutra Aydos**Está em pauta de discussão nacional, com o aval de significativas lideranças da maioria congressual, o projeto da REFORMA POLÍTICA que foi amadurecido ao longo da última legislatura e redundou no Relatório da Comissão Especial do Senado elaborado pelo Senador Sérgio Machado.
Os projetos de legislação que integram o Relatório da REFORMA POLÍTICA, formulam políticas destinadas a estabilização do processo eleitoral e à consolidação dos partidos políticos. Na formulação da sua proposta política, dois objetivos são explícitos: a) construir um modelo de legislação político-partidária permanente; e, b) fortalecer os partidos políticos como pressuposto da irreversibilidade do estado de direito.
Para a concretização desta pretensão, os projetos da REFORMA compreendem e integram dois grandes conjuntos de alterações no regime eleitoral-partidário da Constituição Federal, que figuram suas diretrizes básicas: a) na implantação de um sistema eleitoral misto distrital e proporcional; e, b) na construção dos fundamentos de um regime político de participação ativa da cidadania e de militância político partidária responsável. Na perspectiva dessas alterações, delineia-se o Projeto da REFORMA POLÍTICA, como um sistema de objetivos articulados e complementares que inclui, em sua concepção estratégica, um conjunto estruturado de mudanças no sistema eleitoral e no regime partidário. É o que se pode visualizar no Quadro I, a seguir:
Quadro I - Objetivos estratégicos dos projetos da Reforma Política
A - Mudanças no sistema eleitoral |
B - Mudanças no regime partidário |
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Finalmente, para a consecução da proposta política e das diretrizes básicas deste projeto, a Comissão Especial da REFORMA POLÍTICA consensualizou necessidade de se realizarem alguns ajustes táticos no funcionamento do sistema eleitoral e do regime partidário. Esses que seguem alinhados no Quadro II:
Quadro II - Objetivos táticos e operacionais complementares
Mudanças na legislação eleitoral e na relação entre os poderes |
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Adiante-se, que o alvo prioritário dessas propostas combate o individualismo extremado que grassa na política brasileira (e cujo principal sintoma é o desordenado troca-troca de partidos políticos no Congresso Nacional). Não se deve esquecer, no entanto, que a contrapartida desse comportamento anárquico é a natureza oligárquica dos nossos partidos políticos, cuja condição deficitária corre, pontualmente, o risco de ver-se reforçada pelas medidas que, genericamente, atendem à pretensão legítima do fortalecimento do nosso regime partidário. É esse aliás, o foco da abordagem que se pretende desenvolver nesse texto.
1. Uma reflexão sobre a POLÍTICA da REFORMA
Desde o golpe militar de 1964 nosso país tem vivido sob a égide de uma compulsão casuística, que se exercita a cada nova eleição, mediante a aprovação de alterações pontuais na legislação eleitoral-partidária, as quais tem o endereço certo e exclusivo da satisfação dos interesses eleitorais predominantes e momentosos. Basta citar apenas que, nada menos do que seis modificações do texto constitucional, (Nota 1) desde então, alteraram as regras para a composição da Câmara Federal; e um sem número de leis e regulamentos vem alterando de forma, muitas vezes, anárquica e contraditória, a regulamentação infra-constitucional das eleições e da vida partidária.
A matéria é extremamente sensível, pois afeta as bases do poder de Estado. Nem a Constituição de 1988 julgou-se capaz de enfrentar e, assim, deixou irresolutos os problemas subjacentes ao apetite casuísta do Estado autoritário e das suas maiorias congressuais. A transição democrática, portanto, não se completou no campo da regulação eleitoral e partidária, que persiste dessarte como uma área de instabilidade e persistente fator de descontentamento da população, pelas inconveniências cada vez mais óbvias do nosso sistema eleitoral. E o cacoete corporativo das nossa elites políticas, a cada nova legislatura que se dispõe ao encaminhamento da alteração dessas regras, encontra por aí mesmo a justificativa precária para acabar legislando em causa própria, e o que é pior sem resolver os problemas de fundo que a sustentam.
Deve-se, por isso mesmo, ressaltar o enorme avanço político, para a consolidação das nossas instituições democráticas, que representa a construção de um consenso na Câmara Alta do Congresso Brasileiro, relativamente à necessidade de estabelecimento de uma legislação eleitoral permanente e de um enfrentamento claro e decisivo das fragilidades do nosso sistema partidário. Isso que permite assestar os instrumentos da mudança sobre o alvo principal das contradições do nosso sistema eleitoral.
Mais do que os próprios termos em que se formalizou o consenso da Comissão senatorial que tratou da matéria na última legislatura, importa resguardar a iniciativa de consolidar-se - num prospecto de REFORMA POLÍTICA, que seja abrangente na sua concepção e articulado na sua tramitação - todo um conjunto de mudanças estruturais e institucionais, que as vontades políticas do Executivo e do Legislativo têm concertado na presente conjuntura de transição das relações entre Estado, Mercado e Sociedade, neste país.
Vivemos um contexto de mudança, sob vários aspectos único na história desse País - por se processar, paradoxalmente, sem ruptura ou ameaça iminente de quebra da institucionalidade democrática e, ao mesmo tempo, sob pressão do esgotamento de um modelo de Estado, gerador de constrangimentos tão visíveis e tão graves à governabilidade, que rebaixa a capacidade de resistência dos privilégios que lhe estão incorporados. Exatamente por isso, vivemos uma oportunidade única para driblar a reprodução cíclica da crise institucional, que erodiu as outras velhas Repúblicas, e buscar uma saída negocial para a ditadura antes que ela se restabeleça em nosso meio.
Um primeiro passo foi dado. O prospecto de uma REFORMA ELEITORAL, consensualizado no Senado precisa agora construir-se na Câmara de Deputados, onde se manifestam, por sua vez, e de forma mais aguda, as conseqüências operacionais das mudanças pretendidas.
O que se pretende com este texto é: de um lado, o equacionamento teórico da necessidade da REFORMA POLÍTICA, promovendo a defesa do Projeto da Comissão Especial do Senado, no que respeita às suas diretrizes básicas; e, de outro, a formulação de alternativas que, preservando seu enfoque político e seus objetivos estratégicos, permitam dirimir alguns aspectos controvertidos, amplificando e aprofundando o seu conteúdo democratizante e pautando os caminhos da sua viabilidade política.
Para a negociação dos interesses eventualmente atingidos pela implantação do projeto de REFORMA, este texto clarifica os contornos de uma proposta estratégica, capaz de: a) agregar incentivos paralelos ao processo de decisão, viabilizando a compensação de eventuais perdas a serem absorvidas por segmentos relevantes do quadro político representativo; b) promover uma implantação gradual das mudanças, diferindo no tempo o impacto de suas conseqüências mais drásticas no cálculo de sobrevivência política das elites parlamentares e partidárias; c) mobilizar, pela via de uma auto-identificação com as propostas aqui trabalhadas, o suporte extra-parlamentar da Reforma política.
2. O enfrentamento das inconveniências da REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL no Brasil
A reflexão sobre a necessidade de uma REFORMA POLÍTICA no Brasil remonta há, pelo menos, 34 anos, quando, em memorável artigo (Nota 2), o Professor Luís Navarro de Britto apontou e documentou duas graves inconsistências do nosso sistema eleitoral: a fragilização dos partidos políticos e a super-representação dos Estados do Nordeste, Norte e Centro-Oeste na composição da Câmara Federal.
Ao longo desse período de incubação da mudança, o sistema de representação proporcional adotado no Brasil - não obstante a sua qualidade intrínseca (que se impõe preservar) da representação ampla e plural dos diferentes segmentos da opinião pública estruturada nos partidos políticos; e até mesmo pela sua adequação funcional aos objetivos da consolidação do Estado central, potencializando a articulação político-eleitoral da burocracia governativa e das corporações estatais, face ao poder das oligarquias locais e regionais - tornou-se obsoleto.
A literatura especializada tem apontado um conjunto de problemas gerados pelo sistema de representação proporcional implantado no País, que poderíamos caricaturalmente classificar como: sanáveis (passíveis de correção mediante ajustes e aperfeiçoamentos marginais de algumas regras eleitorais - por exemplo, a substituição da lista proporcional aberta por uma lista proporcional fechada) e insanáveis (porque respondem a conseqüências ínsitas do modelo clássico de representação proporcional e exigem a sua modificação mediante o recurso a alguma forma pura ou combinada de voto distrital). Uma síntese não exaustiva dessa problemática está figurada no Quadro III.
Quadro III - Modelo brasileiro de representação proporcional
A - Problemas sanáveis |
B - Problemas insanáveis |
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É um crescente consenso entre militantes e estudiosos da política, a inconsistência de nosso regime eleitoral-partidário aos objetivos da consolidação da democracia neste País. Seja pelas razões apontadas por Navarro de Britto, entre as quais o desfiguramento dos partidos pela saramandaia das coalizões em eleições legislativas e pela indiscriminada migração partidária dos eleitos; seja pelas razões que a análise política aprofundou na sua esteira, entre as quais a busca de candidatos de fora do partido para agregar votos à legenda, numa versão muito peculiar de e disruptiva de pára-quedismo eleitoral, e o caráter contraditório da competição eleitoral, que destrói as bases da solidariedade partidária num processo cíclico de autofagia política. De fato, nas eleições em lista proporcional aberta - como a lógica o demonstra e a prática o tem confirmado - o sucesso eleitoral depende muito menos do confronto entre partidos, e muito mais do apelo pessoal de alguns candidatos a públicos determinados, resolvendo-se freqüentemente no acirramento de uma competição fratricida e intra-partidária.
A Comissão Especial do Senado encarou de frente essa questão da fragilização dos partidos políticos, transformando-a num dos dois eixos de sua proposta de REFORMA POLÍTICA. Cabem, no entanto, algumas observações sobre as medidas propostas para o seu equacionamento.
2.1. Os problemas sanáveis da REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL e a questão das candidaturas sem-partido
Na análise das principais inconveniências do nosso regime eleitoral-partidário, verifica-se que algumas são corrigíveis mediante ajustes marginais que não afetam a sua própria natureza. Nesse sentido, a proibição de coligações, a regulamentação do instituto da fidelidade partidária e a introdução do voto em lista fechada, atendem ao saneamento de problemas manifestos do regime político-partidário vigente, sem alterar a sua essência. Não o fazem, entretanto, sem suscitar outras e ponderáveis questões: tanto o reforço ao instituto da fidelidade partidária, quanto o voto em lista fechada, representam um radical e cumulativo deslocamento de poder, desde as lideranças eleitas pelo voto popular, aos detentores do controle burocrático sobre o partido: introduzem uma clara e inequívoca subordinação, funcional e política, nas relações entre o partido e seus representantes eleitos.
Sobre o organismo de partidos que padecem de fragilidades crônicas - mas até mesmo pelo seu elevado componente oligárquico e pela generalizada amoralidade dos seus compromissos eleitorais - nada garante que a dose do remédio proposto não acabará por matar o doente.
Embora a necessidade de regulamentação da fidelidade partidária seja um consenso - o grau da sua intensidade, aplicável à nossa realidade, sem que se comprometa nisso a liberdade essencial dos operadores políticos, não parece tão solida e inequivocamente estabelecida.
Entre a prática generalizada do aliciamento partidário (que se caracteriza pela pura e simples mudança de partido no exercício do mandato, caracterizando uma concepção radical do mandato virtual) e um regime de dominação coletiva, exercida pelo detentores do poder partidário (em sua expressão real, oligárquico, burocrático e arbitrário) que figura o estilo e a realidade dos nossos partidos políticos) sobre os representantes do povo (caracterizando-se aqui uma concepção radical do mandato imperativo, tão desatualizada quanto inconsistente com os prospectos da institucionalidade democrática no vigésimo primeiro século), certamente haverá que se reservar espaço ao exercício digno, ético e conseqüente, do mandato popular.
O projeto aprovado pela Comissão Especial do Senado, neste particular, estabelece sanção demasiado rígida, qual seja, a perda automática do mandato ao parlamentar que sair do partido em que se elegeu ou que optar pela desobediência das respectivas ordenações. Ao regular um dever, coíbe um direito... aliás dos mais essenciais ao consenso histórico da democracia, que se define também pelo respeito ao o princípio da desobediência civil.
À salvaguarda concedida aos partidos, no sentido de se coibir o aventureirismo político, deverá corresponder a garantia de preservação do mandato popular, oferecendo ao seu detentor a possibilidade de insurgir-se contra ordenações partidárias supervenientes, eventualmente arbitrárias ou até mesmo potencialmente contraditórias dos seus compromissos públicos, mormente aqueles eleitoralmente assumidos.
Neste sentido, a possibilidade de discordar e sair do partido sem perda do mandato, mantendo-se formalmente apartidário na respectiva legislatura, ainda que isso signifique a indisponibilidade de legenda para concorrer à reeleição, deveria ser assegurada a todo parlamentar, como condição para o exercício pleno, em liberdade de consciência, do seu mandato popular.
Este capítulo, aliás, introduz uma reflexão necessária, conducente à institucionalização da possibilidade de candidaturas legislativas sem partido. Condição para a reintegração à representação política, sem quebra do princípio da fidelidade partidária, dos parlamentares que optarem pelo exercício do direito de desobediência ao respectivo partido, as candidaturas independentes cumpririam, ainda, a função relevante de propiciar um caminho para oxigenação do processo político sem o ônus da proliferação desordenada das instituições partidárias.
Infelizmente, essa proposta não consta no projeto da REFORMA aprovado no Senado. Isso que seria tão mais importante, quanto mais se torna patente, nos estudos mais recentes e abrangentes do quadro partidário brasileiro e latino-americano (Nota 3), o fenômeno da oligopolização do sistema partidário, como obstáculo à participação política efetiva da cidadania, bloqueando a expressão do consenso e dificultando a autocorreção da ação governativa pela via eleitoral. (Nota 4)
Quanto à introdução do voto em lista fechada, seja como correção marginal aos efeitos do sistema de representação proporcional vigente, ou seja como modalidade de eleição da parte proporcional num sistema eleitoral misto, como o propõe o Relatório da Comissão senatorial, constitui-se num equívoco de proporções catastróficas.
Merecem todo meu respeito, os que propugnam um sistema partidário responsável, ideologicamente identificado e conseqüente, conduzindo aos palanques do Legislativo os melhores porta-vozes dos seus compromissos estratégicos e da sua capacidade governativa. Mas não creio que essa condição seja alcançada pela benesse de qualquer dispositivo legal. Se é bem verdade, que a instituição das listas partidárias fechadas oportunizaria aos partidos convocarem ilustres figuras da República, para integrar as respectivas nominatas eleitorais; nada, entretanto, assegura que efetivamente o façam; e, em o fazendo, é razoável supor que, sem o respaldo e o prestigiamento pessoal do voto popular, nossos partidos, muito provavelmente, as utilizariam como reféns das suas próprias ordenações e do seu poder de controle sobre a respectiva fidelidade. Condição real, que esfrangalha os bons propósitos desse instituto... pobres figuras da República!
A dignidade do mandato popular haverá sempre que ser conquistada e, nesse particular, o campo indeterminado da disputa eleitoral parece mais propício para a defesa de uma plataforma de consistência ética e democrática, que o território minado da luta interna à vida partidária.
A política responde mais aos interesses do que às boas intenções... essa é uma condição com a qual precisamos aprender a lidar. E, assim, portanto, é razoável supor que, dispondo da lista partidária, como "a faca e o queijo" em suas mãos, será ainda mais poderosa a tentação das nossas elites tradicionais ao aparelhamento manipulativo das estruturas partidárias. E se construirá uma oportunidade a mais para os já detentores do poder oligárquico nos partidos políticos confirmarem essa mesma condição.
2.2. Os problemas insanáveis da REPRESENTAÇÃO PROPORCIONAL e a questão do voto corporativo
Por outro lado, mesmo que se viesse a optar pelo saneamento marginal do sistema de representação proporcional e se desconfirmassem os efeitos colaterais previsíveis da eleição em lista fechada, persistiriam as inconveniências ínsitas à própria dinâmica da representação proporcional, como têm sido salientadas pela literatura política.
Uma primeira dessas inconveniências, que se designa pelo conceito de aparelhismo eleitoral, diz respeito à conformação simbiótica do sistema de representação proporcional ao regime e à estrutura organizativa dos partidos de quadros, que atuam através de células articuladas por uma estrutura de poder centralizada (as vezes designada como centralismo democrático).
O exemplo mais claro e traumático, dessa adequação e das suas conseqüências na hipótese de uma superveniente distritalização das eleições, ocorreu em França, na reforma eleitoral da Quinta República, promovida pelo Gal. Charles De Gaulle, que substituiu o sistema proporcional em listas fechadas por uma modalidade de sistema distrital, com eleições em dois turnos. O Partido Comunista Francês, detinha em 1956, 25,6% dos votos válidos para a Assembléia Nacional, elegendo a sua maior bancada, com 150 deputados; em 1958, após a distritalização, obteve 18,9% no primeiro e 20,7% dos votos válidos no segundo turno, mas conseguiu eleger apenas 10 deputados, ou seja, obteve apenas 2,1% das cadeiras na Assembléia Nacional. Visto por outro ângulo, com a distritalização do pleito o PCF perdeu apenas 19% dos seus votos, mas 93% das suas vagas na Assembléia Nacional. Foi um golpe definitivo no processo ascensional do maior partido francês, do qual o PCF até os dias de hoje não conseguiu se recuperar.
O traumatismo político da reforma gaulista calou fundo no pensamento e no imaginário da esquerda mundial. A idéia de reforma do sistema eleitoral, tornou-se sinônimo de casuísmo político; e o conceito de voto distrital ganhou um estigma de anti-esquerdismo. Seus traços ainda persistem vivos, mais de quarenta anos depois, nas reiteradas manifestações de uma fobia, que ainda grassa em algumas das rodas mais esclarecidas da militância política e da academia. Isso que tem obstaculizado uma análise mais serena e conseqüente do próprio paradigma do anti-reformismo, que se consolidou na saga da Quinta República francesa.
Na passagem de 1956 para 1958, os socialistas também perderam participação na Assembléia Nacional. Mas suas perdas ocorreram numa escala muito diferente, que denuncia um impacto diferenciado do processo de distritalização, de acordo com a estrutura das organizações partidárias que foram atingidas pela emergência e consolidação do gaulismo. Com 14,8% dos votos válidos e 95 deputados em 1956, o PS praticamente não perdeu eleitorado na eleição de 1958, obtendo 15,4% dos votos válidos primeiro e 13,8% no segundo turno. Mas conseguiu eleger quatro vezes mais deputados que o PCF, preenchendo 40 cadeiras na Assembléia Nacional Francesa. Mais importante, ainda, foi a sua capacidade de recuperação política, adaptando-se rapidamente à dinâmica do novo sistema. Poucos se deram conta, que foi à margem da derrota parlamentar e da crise endêmica em que passa a se debater o PCF, que se abriu-se o espaço para o crescimento consistente do Partido Socialista, projetando-se na história de França a possibilidade da construção de uma hegemonia de esquerda, que acabará conduzindo ao poder o Presidente François Miterrand.
A explicação desse efeito prismático da mudança eleitoral, reside na estrutura diferencial da organização partidária daquelas agremiações de esquerda. O PCF possuía a estrutura típica de um partido de quadros (leninista), organizado em células de forte identidade ideológica e disciplina (centralista democrática), arregimentava uma reduzida área de simpatizantes em torno de cada uma de suas unidades de base. Sem política e nem apelo de massas, capazes de projetar lideranças para a disputa das eleições locais, foi tragado pelo efeito mais típico do sistema majoritário de escrutínio adotado nos distritos: a perda dos votos minoritários em cada distrito para a composição da representação partidária.
Já o Partido Socialista de orientação social democrata, estruturava-se em seções locais de filiação aberta, como um partido de massas. Por isso mesmo, tinha expressão e liderança na política local. Sofreu mais na transição do regime para a Quinta República francesa, muito menos por efeito do processo de distritalização das eleições, do que em razão do apelo carismático do Gal. De Gaule sobre o seu eleitorado menos disciplinado. Na proporção do declínio do prestígio do Velho General, o PS demonstrou-se um partido capaz reciclar-se para o aproveitamento integral do potencial político do novo sistema eleitoral, viabilizando o projeto de poder das esquerdas francesas.
Dessa análise decorre uma conclusão importante: os sistemas eleitorais influem decisivamente no potencial competitivo dos partidos políticos, mas em função da sua estrutura organizativa e estilo de arregimentação eleitoral, e não como instrumentos de direta manipulação ideológica dos resultados eleitorais numa dimensão de esquerda ou de direita (a menos que se confundam os conceitos de organização leninista e partidos de esquerda).
E nessa adequação simbiótica - da representação proporcional com os partidos de quadros e do voto distrital majoritário com os partidos de massas - decorrem conseqüências relevantes para o prospecto de uma radicalização da democracia em nosso país. É que os partidos de quadros sempre tiveram pequena relevância eleitoral no Brasil, porque a sua vantagem competitiva no regime político-partidário vigente foi aproveitada - e, assim também, o seu espaço eleitoral foi desde logo ocupado - pelo que podemos caracterizar pelo conceito do "partido do Estado".
De fato, o Estado brasileiro no pós-guerra - inicialmente pelo uso fisiologista da máquina pública e, posteriormente, também, pela estruturação corporativa da sua intervenção política - é que fez uso das vantagens competitivas da representação proporcional no Brasil. No lugar de uma célula partidária, tivemos postos de saúde, escolas, delegacias de polícia, aparelhando-se como instrumentos de arregimentação eleitoral e produzindo os seus efeitos pela sustentação do(s) "partido(s) do Estado". Isso que, diga-se de passagem, num primeiro momento potencializou o enfrentamento do poder das oligarquias locais e regionais - o que foi muito positivo; mas num segundo momento, cristalizou-se em processos de manipulação e tutela da organização autônoma da sociedade civil - o que é muito grave.
Ao propor a substituição do sistema eleitoral vigente, por um sistema misto distrital e proporcional, o Projeto da Comissão Especial do Senado merece aplauso por alinhar-se no enfrentamento dessa adequação simbiótica, que vimos consolidar-se entre o sistema de representação proporcional e o aparelhismo fisiológico e corporativo da máquina pública. (Nota 5)
Outros inconvenientes, também ínsitos ao sistema de representação proporcional e que atuam na fragilização do regime partidário, merecem destaque nessa reflexão.
A confusão do eleitorado pelo excesso de candidatos, propiciando a cada um alguns segundos de propaganda televisiva, torna a eleição legislativa um procedimento pouco reflexivo - inexiste espaço para o debate, para a confrontação de propostas e sequer para a análise da consistência política da biografia dos candidatos; na modalidade alternativa, da lista fechada, o processo eleitoral torna-se complexo e, certamente, ainda menos inteligível pelo eleitor desatento.
Já é difícil para o eleitor comum lembrar o nome do deputado em que votou. Pesquisa realizada em São Paulo (Nota 6), ainda quando existiam apenas dois partidos - MDB e ARENA - demonstrou que, quatro anos depois de uma eleição, 70% da população não lembrava mais em que deputado tinha votado. Substituindo-se o voto pessoal pelo voto na sigla partidária, é lícito supor que esta tendência se acentue.
Uma segunda inconveniência da representação proporcional, em qualquer das suas modalidades é a desconsideração da variável territorial no resultado final da eleição. Exatamente por isso, num país de dimensões continentais como o Brasil é impensável o estabelecimento de uma circunscrição eleitoral única - como o preconiza o princípio puro da representação proporcional. Haveria risco - e tenho a convicção de que isso se converteria numa fatalidade - de que vários Estados ficassem sem representação eleita... E isso não diz respeito apenas aos menores Estados, e nem aos menos politizados.
Na modalidade vigente da eleição em listas abertas, tenho salientado um efeito perverso da representação proporcional, que é o de facilitar a representação das regiões onde o comportamento eleitoral responde com maior presteza à valorização de candidatos locais (suprapartidáriamente) ou, alternativamente, onde se polariza o processo eleitoral numa disputa entre dois partidos. E inversamente, tende a dificultar a representação das áreas, onde a participação eleitoral é mais plural e o voto dividido entre um número maior de candidatos e partidos. Isso é tanto verdade para a representação de Municípios e Microrregiões na circunscrição estadual, como para os Estados e as Macroregiões numa circunscrição única de base nacional. E deveria ser levado em conta pelos que reclamam, com base na experiência de países-municipais, sobre as eventuais distorções da representação proporcional num país de dimensões continentais.
Aplicado princípio da representação proporcional no regime de listas abertas, sem o cuidado do estabelecimento de limites territoriais para a coleção dos votos e a validação de candidaturas, com certeza, veríamos aprofundadas as distorções atuais na composição da Câmara Federal. Estados pluripartidários teriam drasticamente reduzida as suas chances de eleger uma representação local, proporcional às dimensões da sua população ou do respectivo colégio eleitoral. E nos grotões do coronelismo, o acesso à Câmara dos Deputados seria sobremaneira facilitado, pela capacidade de concentração eleitoral dos respectivos candidatos.
Na hipótese da implantação de listas fechadas, a contemplação dos Estados na composição dos eleitos torna-se, ainda mais aleatória. Critérios de toda a ordem haverão de determinar, em cada partido, a ordem dos candidatos na lista. Mesmo que cada partido componha a sua nominata com representantes de todos os Estados, nada impede que, por algum efeito indutor de natureza sociológica (por exemplo, o peso relativo dos maiores colégios eleitorais) ou até mesmo por acaso, os vários partidos relevantes utilizem cumulativamente os primeiros lugares da lista partidária para contemplar os mesmos Estados, do que resultaria muito provavelmente o aprofundamento da vigente desigualdade de representação. Há efetivamente, nesse campo, como em tantos outros, vários caminhos que conduzem ao mesmo destino... pelo que não se pode admitir a ingenuidade na opção das alternativas que se descortinam à frente.
O mais importante é que tudo que se afirmou - para maior clareza e contraste - relativamente à representação dos Estados na Câmara Federal, vale e se reproduz na representação das Microrregiões e dos Municípios na circunscrição estadual. Os vazios de representação, excluindo municípios e Microrregiões relevantes de acessarem, por seus candidatos, as vagas na composição dos Legislativos estaduais e federais são uma constante e representam uma inconveniência grave do sistema eleitoral vigente.
O sistema misto propugnado pela Comissão senatorial, minora o impacto dessas distorções, mas não as resolve. Há aqui um efetivo avanço, pelo fato que nenhum distrito ficará sem representante, promovendo-se assim, uma mais adequada distribuição da representação em face da dispersão demográfico-territorial da cidadania, entre os municípios e Microrregiões das circunscrições estaduais. Não obstante, deve-se alertar que é imprevisível o impacto, da parte proporcional do processo eletivo, sobre a equidade dessa distribuição.
Cabe aqui uma defesa do Projeto da Comissão senatorial, relativamente à acusação de casuísmo que lhe pesa, por não ter adotado a fórmula completa do sistema eleitoral alemão, que prevê a soma dos votos partidários e a composição de uma lista fechada válida para toda a circunscrição nacional. Caso isso ocorresse no Brasil, nada garantiria que as distorções da representação dos Estados na Câmara Federal viessem a apresentar dimensões ainda mais graves do que as atuais, além de variações episódicas, ao sabor de cada eleição, dificultando a engenharia política da sua definitiva correção. Em boa hora, portanto, o Projeto da Comissão senatorial manteve os limites territoriais das circunscrições estaduais na proposta de implantação do sistema misto de eleição proporcional e distrital, e não deve abrir mãos dessa posição.
Aliás, como se verá mais adiante neste texto, a experiência política, consagrada nessa opção da Comissão senatorial, ilumina a teoria. Pois é, exatamente, pela imprescindibilidade da utilização de limites territoriais à extração de candidaturas, que se poderá justificar a aplicação plena do princípio da representação proporcional dos partidos políticos, assegurando-se recursos de engenharia política que permitam visualizar uma perspectiva de correção sistemática, embora taticamente diferida no tempo, das correções necessárias às distorções da representação entre os Estados. Até porque, também, é nessa condição que pode enfrentar outros dois inconvenientes do sistema eleitoral vigente: o custo das campanhas, e a dificuldade (senão impossibilidade) de contato com o eleitor no exercício do mandato.
Obviamente, uma campanha estadual é mais cara e onerosa, que uma campanha distrital; e o atendimento ao eleitor - sob quaisquer ângulos que isso seja visualizado, como contato pessoal ou atenção legislativa - é facilitado pela delimitação da base territorial dos eleitos. Além de deslocar-se de Brasília para os Estados, hoje, um deputado federal é, muitas vezes constrangido, a percorrer distâncias dentro do respectivo Estado para atender suas bases eleitorais, que representam excessivo ônus ao exercício responsável do mandato: computando-se tempo, dinheiro ou até mesmo saúde.
3. A construção de um modelo permanente de legislação eleitoral-partidária e a incorporação das conveniências do voto distrital para a construção de uma cidadania ativa e de um sistema partidário responsável
O debate sobre a REFORMA POLÍTICA, explicitando as inconveniências da representação proporcional - como modelo puro de sistema eleitoral - passa também pela discussão necessária das vantagens e desvantagens da implantação de um sistema eleitoral distrital no Brasil.
Tenho explicitado uma convicção sólida a esse respeito: são tão grandes os inconvenientes do sistema eleitoral vigente no Brasil que a implantação de qualquer modelo consistente (eticamente desenhado) de sistema eleitoral alternativo, que introduza o componente da eleição distrital (pura ou mista) é preferível à continuação do modelo presente ou ao seu ajustamento marginal (sistema proporcional com listas fechadas). É que não se trata, apenas de corrigir as distorções da infidelidade partidária, mas de alterar a dinâmica do processo eleitoral no sentido do desprivilegiamento dos partidos de quadros (que favorecem o aparelhismo fisiológico da vida política) e da promoção de efetivos partidos democráticos de massas. Isso que impõe, pelas suas vantagens ínsitas, a necessidade de se implementar alguma forma de eleição distrital no Brasil.
Consistente com essas considerações, o Quadro IV elenca, sem a pretensão de esgotar o tema, as principais vantagens da introdução da variável "espaço político" (distrito) na própria composição da fórmula eleitoral.
Quadro IV - Vantagens do voto distrital
Elenco das principais vantagens do voto disputado em distritos eleitorais uninominais (onde cada partido apresenta um e apenas um candidato) |
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Sobre esse tema, a nossa experiência diz pouco - e o que diz corre o risco de induzir graves equívocos, pela desatualização dos parâmetros que servem ao respectivo juízo. De fato, a experiência mais recente de eleição distrital no Brasil remonta à Primeira República, quando praticamente nunca tivemos mais de 3% da população brasileira votante (Nota 7), contra os 62,88% atuais; quando éramos uma sociedade rural com menos de 30% da população urbana, contra os mais de 70% atuais; quando as mulheres não votavam e não havia Justiça Eleitoral, sendo as eleições conduzidas pelo Poder Executivo. A realidade mudou, mas os argumentos contrários à implantação do voto distrital no Brasil ainda utilizam como referencial a experiência clássica do coronelismo no tempo da política dos governadores. Argumentos que, muitas vezes, reiteram o preconceito conservador que "o povo não sabe votar", subestimando o descortino e a inteligência da sociedade brasileira contemporânea, para não falar do avanço político da cidadania ativa neste país.
Inobstante, subsistem dois argumentos sólidos a contraditar a adoção, no atual estágio de desenvolvimento das nossas instituições democráticas, de um sistema puro de voto distrital, majoritário e uninominal: a injustiça da representação, representada pelo desperdício dos votos perdedores nos distritos, podendo provocar distorções na composição do parlamento, vis-a-vis da força eleitoral dos partidos políticos; e a questão do paroquialismo na dinâmica de um processo político que se compõe pela mera agregação das idiosincrasias locais (ou distritais).
Para contornar a injustiça da representação, a teoria e a experiência política tem consensualizado a relevância da adoção de sistemas mistos, onde se introduzem mecanismos de compensação das perdas eleitorais promovidas pelo escrutínio majoritário. E para confrontar a possibilidade de uma efetiva "balkanização" do espaço político, reduzindo-se toda a dinâmica do poder às questiúnculas da política local, os países onde se adota o sistema distrital têm-se assegurado de mecanismos e práticas que estimulem uma efetiva interação entre as bases distritais e as direções partidárias (estaduais e nacionais), entre os quais a possibilidade de indução (via homologação) de candidaturas distritais pelo partido estadual, assegurando-se às suas principais e estratégicas lideranças o conforto e a segurança dos "safe seats".
Face à primeira objeção, o Projeto da Comissão senatorial, ao posicionar-se a favor de um sistema eleitoral misto, registra consenso sobre a necessidade de se assegurar a proporcionalidade da representação partidária nas câmaras legislativas. E isso é um ponto extremamente positivo nesse debate, porque rejeita liminarmente a confusão dos argumentos e dos interesses favoráveis à implantação do voto distrital: entre os que o defendem, como instrumento de radicalização do processo da democracia, via maior autenticidade da representação; e os que vêem nele, apenas, um mecanismo para a construção de maiorias artificiais, a sustentar um conceito de governabilidade que carece de fundamentação democrática.
Note-se, entretanto, que, mesmo assim, o sistema proposto no referido Projeto não assegura a proporcionalidade da representação de forma absoluta: de um lado, pelos efeitos que não decorrem da sua própria natureza, e que haverá de herdar do sistema proporcional vigente, face ao desenho das circunscrições estaduais e aos critérios constitucionais da distribuição de vagas entre os Estados da federação; mas, também, e por razões intrínsecas à sua mecânica eleitoral, em virtude da possibilidade de um desempenho excepcional de algum partido, na parte distrital, resultar na necessidade de abertura de vagas adicionais no parlamento.
A segunda objeção, entretanto, é de mais difícil equacionamento. E passou, provavelmente, desapercebida pela Comissão Especial do Senado, uma proposição que leva água ao moinho da fragilização do sistema partidário - que se pretende corrigir - pela via da fragmentação e insulamento do processo político no âmbito dos distritos eleitorais. É quando, ao legislar sobre condições de reforço à organização sólida e consistente dos partidos políticos, se amplia o prazo de filiação partidária para os pretendentes a candidaturas (o que é extremamente positivo), mas também se reitera o critério e se amplia o prazo do domicílio eleitoral, como condição para essa postulação (o que pode atuar num sentido inverso dos efeitos pretendidos pela Comissão).
Desde logo, a condição do domicílio eleitoral engessa a possibilidade de uma interação construtiva entre o partido estadual e o partido local. Em locais onde não existe partido, ou onde o partido apresenta desempenho precário, a designação de um candidato "de fora" pode ser uma condição estratégica para a construção do "partido de dentro". Em locais onde o partido está solidamente estruturado, a designação da candidatura partidária pode obedecer a considerações estratégicas, tais como a promoção de uma liderança partidária, para disputar eleições majoritárias de nível estadual ou nacional, ou para assegurar posições de destaque alcançadas no debate político-institucional. Tudo isso, que é parte do funcionamento maduro do sistema de voto distrital, fica de alguma forma comprometido pela exigência do domicílio eleitoral. O qual, aliás, se constitui numa mera formalidade, considerando-se que não designa o efetivo local de residência de um parlamentar eleito, o qual será efetivamente a capital do respectivo Estado ou o Distrito Federal, onde funcionam as respectivas câmaras legislativas.
Na verdade, a exigência de domicílio eleitoral foi introduzida no sistema proporcional com o objetivo de assegurar, por vias transversas, aquilo que o voto distrital consagra na sua forma própria: a maior autenticidade da representação, através de um critério que assegurasse a relação direta do candidato com a sua base eleitoral. Introduzida a sistemática do voto distrital torna-se desnecessária e até mesmo contraproducente. Penso que, até mesmo para as eleições majoritárias, o critério é inócuo, burocratizando o que deveria ser deixado flexível para o concerto das decisões partidárias.
Por que não assegurar-se a uma importante liderança nacional, por exemplo, um ministro de Estado - cujo domicílio eleitoral seja Brasília - a possibilidade de disputar o governo de um Estado da federação? Exigir mudança de domicílio eleitoral, nestas circunstâncias, e com antecedência de dois anos, pode ter implicações graves no próprio exercício da função, fragilizando a capacidade governativa do titular do cargo executivo, ao sinalizar o desencadeamento da campanha eleitoral. Diante dessas objeções, e sendo carente de sentido num sistema eleitoral de base distrital, a regra do domicílio eleitoral constitui-se em mais um entulho do autoritarismo, a ser removido da nossa sistemática legal.
A construção de um modelo permanente de legislação eleitoral-partidária, tanto quanto seja viável assegurar-se relativa estabilidade nesse campo de intervenção regulativa do Estado, implica hoje, claramente, numa fórmula institucional capaz de: conciliar as vantagens do sistema proporcional (justiça de representação) com as vantagens do sistema distrital (autenticidade de representação); promover a correção das respectivas desvantagens; e, afinal, prevenir a ocorrência de problemas emergentes a essa perspectiva de conciliação, tanto quanto isso se torne possível, com base na experiência contemporânea e na análise comparada da experimentação democrática.
O Projeto da Comissão Especial do Senado, neste particular, é vulnerável nas duas últimas condições mencionadas:
o sistema misto proposto, corre risco de conciliar, ao lado das vantagens, algumas desvantagens significativas dos dois sistemas, ao ponto de anularem-se mutuamente a respectivas conveniências, senão mesmo de prevalecer a concertação dos seus aspectos negativos (refiro-me ao voto em lista fechada, e à desconsideração do aspecto crucial das desigualdades regionais da representação - a regra de ouro: "um homem, um voto"); e, | |
o sistema misto proposto não oferece resposta para algumas questões emergentes à luz do funcionamento do paradigma adotado, que é o sistema alemão (refiro-me à segmentação da representação entre dois perfis de parlamentares - distritais e proporcionais - cujas conseqüências práticas, resultando em discrimes políticos, têm sido alvo de recente atenção e crítica na literatura especializada). |
Neste particular, aliás, o Projeto da Comissão Especial do Senado apresenta a enorme lacuna de não abordar a questão da sub e super-representação dos Estados brasileiros na Câmara Federal, e de, quase por decorrência, não disciplinar os critérios da divisão territorial dos distritos, de forma a preservar-se a relativa eqüidade da sua composição demográfica e do seu peso eleitoral.
Na continuação deste texto, assumimos o risco calculado de abordar essa questão e propor-lhe uma direção de equacionamento: de um lado, apontando direções para a reformulação estratégica na condução do pacto federativo, capaz de permitir num horizonte de médio prazo, a correção das distorções da representação dos Estados na Câmara federal; de outro lado, esboçando a formulação de um sistema eleitoral, capaz de conciliar as vantagens, corrigir as desvantagens e prevenir problemas emergentes, na combinação dos critérios de eleição proporcional e distrital.
4. Sugestões para uma estratégia de reformulação do pacto federativo incluindo a correção das distorções da representação dos Estados na Câmara Federal
Se a bancada do Estado de São Paulo na Câmara Federal fosse proporcional à sua população (Nota 8), ao invés do teto constitucional de 70 deputados, seria integrada por 111 representantes, e a região Sudeste, ao invés de 179, teria hoje 218 parlamentares, ou seja, 42,33% das cadeiras. Quanto à região Norte, ao invés dos 65 representantes que elegeu em 1998, disporia apenas de 37 deputados federais.
O tema da sub-representação do Sudeste e da super-representação do Norte, Nordeste e Centro-Oeste, tem sido responsabilizado como fulcro de crises institucionais de natureza vária - sejam elas resultantes da obstaculização da mudança, pela paralisação do Congresso face ao ímpeto reformador do Executivo (1963/64), sejam elas resultantes da subordinação do Congresso às políticas do Executivo (no período autoritário), ou mesmo da construção de uma hegemonia congressual proativa (como o foi o caso do Centrão na Constituinte de 1988 e de alguma forma se reproduz na coligação dos governos Fernando Henrique Cardoso).
E vão mais longe as assertivas que utilizam essa desigualdade como pano de fundo. Para alguns parlamentaristas convictos, constituiu-se no argumento para uma reserva de consciência, que lhes permitiu votar no presidencialismo enquanto não se corrigissem as distorções regionais na composição do Congresso Nacional. E para alguns governadores incompetentes, foi cavalo de batalha para justificar os indicadores regressivos da participação dos respectivos Estados na repartição do processo do desenvolvimento nacional.
Essa questão é bem mais complexa do que esteja ao alcance de uma mera fórmula eleitoral equacionar.
"Deve-se ter em conta o contexto institucional presente, em que: a) se atribui ao Congresso o monopólio do poder constituinte, submetidos os Estados a uma relação de subordinação face à União; b) se emasculou o papel do Senado, como um dos guardiões do princípio federativo, dissolvendo a sua representação nas sessões unicamerais do Congresso para aprovação de emendas à Constituição; e, c) se encapsulou o Poder Executivo, na competência privativa da formulação conseqüente de políticas públicas. Em função das duas primeiras características, efetivamente, a proporcionalidade da representação dos Estados, atrelaria todo o processo decisório do Estado unitário à hegemonia política do Sudeste, ferindo de morte qualquer resquício ou pretensão de autonomia dos demais Estados membros. Em função da última característica, torna-se simplista a pretensão de resolver problemas de desigualdade na distribuição de recursos, mediante simples alteração do quadro de representação.Ademais, no plano substantivo, é de se questionar o quanto, a desigualdade distributiva no cenário político nacional, é uma função exclusivamente administrativa, localizada no processo da alocação discricionária de projetos e verbas orçamentárias. Conviria investigar, se não radica mais decisivamente, numa dinâmica concentracionista de rendas e investimentos, que os discrimes e fisiologismos da representação e da burocracia estatal, simplesmente, mascaram. Neste caso, a dinâmica centro-periferia, oporia interesses entre Estados e regiões, cujo foco hegemônico é, exatamente aquele, que a doutrina da proporcionalidade viria a reforçar e ratificar. (Nota 9)
A complexidade desse tema e a percepção clara da sensibilidade da matéria, permite compreender - embora não justificar - a reticência da Comissão Especial do Senado no seu afrontamento. Essa atitude, entretanto, corre o risco de apresentar efeitos contraditórios à operacionalidade dos seus propósitos e, até mesmo, à viabilidade política da aprovação congressual da REFORMA POLÍTICA. Esquivar-se ao tratamento da matéria implica em postergar-se indefinidamente o equacionamento de um aspecto essencial ao consenso básico ainda por construir, cuja irrealização inviabiliza a diretriz política da instituição de uma legislação permanente e de um regime político-partidário estável neste País. Ao mesmo tempo, adversários políticos dos prospectos da REFORMA, poderão fazer cavalo de batalha e ganhar tribuna sobre essa lacuna para bombardear a sua credibilidade pública, criando óbices à sua tramitação e aprovação no Congresso Nacional.
Tenho, por outro lado, a convicção que não se deveria deixar passar a oportunidade da tramitação do Projeto de REFORMA POLÍTICA, na mesma conjuntura em que se elabora uma REFORMA TRIBUTÁRIA e FISCAL neste país, para articular um pacto federativo menos estreito que uma mera repartição do bolo tributário, e mais conseqüente que a mera decretação de uma alquimia representativa, que viesse a absolutizar um critério abstrato de proporcionalidade política, numa alteração drástica da correlação de forças congressuais, cujo resultado agrega imprevisibilidade ao jogo do poder e aos prospectos da nossa consolidação democrática.
Visualizo nesse sentido a necessidade de pensar estrategicamente e num horizonte que agregue mudanças de curto e de médio prazo, a questão das distorções na representação dos Estados na Câmara Federal. Penso, também, que o encaminhamento dessa questão deverá articular-se taticamente à pactuação de um esforço nacional pela construção de uma maior equidade na distribuição da riqueza e do desenvolvimento, priorizando metas e instrumentos de política pública destinados prioritariamente à erradicação da miséria absoluta, à integração da Amazônia e, até por essa via, ao redirecionamento dos fluxos demográficos que resultaram na concentração humana insustentável dos Estados do Sudeste brasileiro.
Se a repentina concessão de mais 41 vagas para o Estado de São Paulo e a cassação de outras tantas ao Norte, Nordeste e Centro-Oeste, pela dificuldade de se obter adesões congressuais contra a própria expectativa de sobrevivência política, torna-se imediatamente pouco viável; uma gradativa correção destas distorções, num horizonte de cinco mandatos - ou seja, diferindo-se o seu impacto sobre os interesses eleitorais estabelecidos num prazo de 20 anos - não parece fora de propósito e, nem mesmo, politicamente inviável. O princípio motor dessa distorção de representação é simples e facilmente corrigível: trata-se do teto constitucional mínimo de 8 e máximo de 70 deputados por Estado. Uma redução gradual desses quantitativos, poderia levar-nos, no horizonte do BRASIL 2.020, a uma absoluta paridade de representação dos Estados na Câmara Federal.
Se tal proposta fosse acoplada a uma política de resultados, objetivando metas na reformulação do pacto federativo, a concessão gradativa de maior poder político aos Estados do Sudeste poderia ser barganhada pela aquisição das condições necessárias à construção da eqüidade substantiva que, de alguma forma, envolvem políticas de descentralização de recursos econômico-financeiros. E sendo assim articulada e diferida no tempo, essa ruptura da desigualdade viabiliza, também, o exercício do controle político e da autocorreção do seu curso pelo Poder Legislativo.
Uma questão subjacente e complementar, de outro lado, e que tem sido objeto de debate e se polarizado nas diferentes modalidades de regulação constitucional da matéria que experimentamos, diz respeito à base de cálculo para a proporcionalidade da representação dos Estados: qual seja população ou eleitorado da respectiva circunscrição. É oportuno rediscutir essa questão à luz da proposta de voto facultativo avançada pelo Projeto da Comissão senatorial. Não se pretende, nos limites deste texto, entrar no mérito dessa proposição, mas apontar para o fato que a consistência dessa sua pretensão seria bastante maior, a medida que se propusesse, também, utilizar o critério do comparecimento eleitoral, como um fator de ponderação no estabelecimento da base de cálculo para a distribuição das vagas na Câmara Federal entre os Estados.
Ao invés de um desestímulo objetivo à participação eleitoral, estaríamos introduzindo, a par do critério de qualidade do voto assegurado pelo seu caráter facultativo, um estímulo ao comparecimento eleitoral, de cuja proporção dependeria redistribuição das vagas estaduais. Um elemento de saudável competição entre Estados, pelo aumento da respectiva participação na distribuição do poder político, passaria a emular a participação popular no processo eleitoral, promovendo de forma muito mais concreta e efetiva o que a obrigatoriedade formal do voto pretendera assegurar por decreto.
Assim equacionada essa questão, elaboramos o esboço de uma proposta para a substituição da base de cálculo da distribuição das vagas e para a eliminação gradativa dos tetos constitucionais ao número de deputados por Estados. Nesse exercício de imaginação política, assumimos a vigência dos atuais limites constitucionais de 8 e 70 deputados até a eleição de 2.002 (inclusive), e gradativa redução dos mesmos até a eleição de 2.022, conforme o Quadro V a seguir:
Quadro V - Redução gradual das distorções da representação:
Eleições |
Mínimo por Estado |
Máximo por Estado |
2.002 |
8 deputados |
70 deputados |
2.006 |
6 deputados |
80 deputados |
2.010 |
4 deputados |
90 deputados |
2.014 |
2 deputados |
100 deputados |
2.018 |
1 deputado |
110 deputados |
2.022 |
1 deputado |
ilimitado |
Nesse exercício de imaginação política, muito embora, a queda dos tetos constitucionais fosse diferida no tempo para ter início em 2.006, maximizando com isso a viabilidade de sua aprovação, alguns ganhos imediatos de representação produziriam efeitos marginais na correlação de forças congressuais a partir da próxima eleição federal em 2.002, pela adoção do critério da base de cálculo da população ponderada pela taxa de comparecimento eleitoral. (Nota 10) Uma possível composição da Câmara Federal, eleição por eleição, é simulada no Quadro VI.
Quadro VI - Exercício de simulação da correção das distorsões regionais da representação dos Estados na Câmara Federal
Um detalhe adicional, mas relevante à discussão e ao aprofundamento metodológico dessa proposta, diz respeito ao impacto diferencial das taxas de crescimento demográfico na recomposição da proporcionalidade corrigida. Nosso exercício de imaginação política não as incorporou, mas é lícito supor que as desigualdades relativas de representação - na comparação da distribuição atual das vagas, relativamente à distribuição calculada sem os entraves constitucionais - será amenizada pelos impactos do crescimento demográfico.
As regiões Norte e Centro-Oeste crescendo demograficamente a taxas explosivas de 2,4% e 2,2%, respectivamente, num horizonte de 20 anos, haverão de avançar a proporcionalidade estrita das suas vagas, sobre os espaços de representação que hoje lhes são assegurados pelos tetos constitucionais; eis que, no outro polo do equilíbrio federativo, as regiões Sul e Sudeste apresentam taxas de crescimento de 1,2% e 1,4% respectivamente. Um comportamento demográfico excepcional é o do Nordeste, cuja taxa de crescimento de 1,1% ameaça aprofundar sua desigualdade relativa no contexto de uma representação proporcionalizada. Exatamente por isso, será relevante articular-se neste processo, programas efetivos de erradicação da miséria absoluta e da sua iniqüidade máxima, representada pela altíssima taxa de mortalidade infantil, que se reflete no potencial de crescimento demográfico da Região Nordestina.
5. Sugestões para a construção de um sistema de representação proporcional e eleição distritalizada
Nosso enfoque da mudança institucional sugere que se adote, como estratégia de mudança o teorema do comportamento minimax - ou seja, procurar introduzir o mínimo de mudanças necessárias para a produção do máximo efeito desejado. A luz dessa definição, o Projeto da Comissão Especial do Senado apresenta um grau excessivo de complexidade de mudança, para uma escala insuficiente e precária de resultados previsíveis
Estamos acostumados a votar em pessoas (marginalmente em legendas) e o cálculo proporcional dos quocientes partidários é uma resultante abstrata da soma dessas opções concretas. O Projeto do SENADO altera toda essa dinâmica: cria um voto pessoal no distrito, e o dissocia do voto partidário; cria um vínculo indireto entre o voto partidário e as pessoas que recebem por essa via o mandato parlamentar; e atribui metade das cadeiras parlamentares para cada um desses processos. Não sabemos, na prática, qual o resultado dessa mistura em face do comportamento do eleitorado brasileiro.
Na posição proativa que assumimos, a reserva e a crítica em relação à implantação do sistema eleitoral proposto pela Comissão senatorial, nos obriga à formulação de uma alternativa: que se poderia caracterizar como um sistema de representação partidária proporcional, com extração eleitoral em distritos uninominais.
Na sua concepção, recusamos o viés tradicional que preconiza uma escolha necessária entre as polaridades, que figuram as formas puras dos dois sistemas, proporcional e distrital. Levamos às suas últimas conseqüências teóricas o princípio da compatibilidade dos dois sistemas, que informa o modelo alemão (embora não encontre nesse sistema a sua plena realização). Afirmamos que a representação proporcional dos partidos constitui processo, de natureza substancialmente diversa daquele que promove a individualização dos mandatos aos candidatos de suas respectivas listas. Nada impede, sob o ponto de vista da aplicação ou da constitucionalidade do princípio proporcionalista, que - enquanto se assegure aos partidos sua representação estritamente proporcional nas Câmaras legislativas - a individualização dos mandatos entre os respectivos candidatos, venha a ser decidida por critérios adicionais e complementares, que pouco ou nada dizem à idéia de proporcionalidade. É o que se verifica pela imposição de limites territoriais à respectiva extração (como é o caso das circunscrições estaduais no Brasil) e, até mesmo, pela adoção do princípio majoritário na identificação dos eleitos (que prevalece na atribuição dos mandatos aos mais votados em nossas listas partidárias).
O sistema que preconizamos, avança nessa direção. Mantém intacto o sistema vigente de contagem proporcional dos votos partidários no âmbito da circunscrição territorial mais ampla (talvez fosse oportuno discutir aqui um critério menos oligarquizante para a distribuição das sobras proporcionais). E introduz modificações marginais, que promovem a autenticidade da representação e a efetividade da sua distribuição espacial, vinculando a votação nominal dos candidatos aos respectivos distritos eleitorais, com base na indicação de candidaturas uninominais pelos partidos políticos.
A sugestão alternativa que oferecemos, portanto, ao invés de complicar, simplifica o sistema de votação: o eleitor continua dispondo de um único voto, que dá a um candidato distrital ou a uma legenda partidária. A única diferença é que ao invés de escolher entre todos os candidatos das listas de todos os partidos, vai designar nominalmente o mandatário de sua preferência entre as candidaturas distritais (uninominais, com titular e suplente) oferecidas pelos partidos na sua região eleitoral (distrito).
Na hora do escrutínio, proceder-se-á à contagem dos votos partidários, como ocorre no sistema vigente, retirando-se, através do cálculo do respectivo quociente eleitoral e da distribuição das sobras, o número de vagas a serem preenchidas pelos partidos políticos nas câmaras legislativas. Isso feito, fica assegurado, o número fixo das respectivas vagas no Parlamento, e a proporcionalidade estrita dos partidos, de acordo com a totalidade do respectivo sufrágio.
Passa-se, então ao processo de atribuição das vagas aos candidatos partidários, que obedecerá a critérios muito simples e inteligíveis:
serão considerados eleitos todos os candidatos vencedores (e respectivos suplentes) das eleições distritais, até o limite das vagas conquistadas pelos respectivos partidos, observada a ordem da proporção da sua votação no colégio distrital; | |
a seguir são distribuídas as sobras de vagas partidárias, entre os distritos que não foram contemplados pela atribuição de vagas no procedimento anterior, isso que obedecerá às seguintes regras: (i) iniciando-se pelo partido com maior número de vagas a serem preenchidas, atribuem-se as mesmas aos seus candidatos (e suplentes) nos distritos sobrantes, pela ordem da respectiva proporção de votos no colégio distrital; (ii) procede-se, em seqüência, e pela ordem do número de vagas a serem preenchidas, à mesma operação para os demais partidos; (iii) restando algum(ns) partido(s) detentor(es) de vaga, sem a possibilidade de ocupá-la, pela falta de candidato no(s) distrito(s) sobrante(s), atribui(em)se a(s) respectiva(s) vaga ao(s) candidato(s) vencedor(es) da eleição pelo critério majoritário. |
A utilização destes critérios, assegura a representação proporcional plena dos partidos que estiverem estruturados nos distritos. A excepcionalidade à regra da representação, ocorrerá, apenas, na hipótese de um partido relevante pela sua expressão eleitoral não ter apresentado candidato em todos os distritos, o que representa um fator de indução à efetiva implantação dos partidos em todo o território nacional. Ocorrendo a exceção, no entanto, essa não implica (como no sistema alemão) em aumento do número de vagas congressuais; mas tão simplesmente no deslocamento da respectiva vaga para o partido que tiver vencido o pleito no distrito sobrante. Fica em mãos dos partidos políticos, portanto, a responsabilidade de se assegurarem as condições de competitividade que os capacitarão à representação proporcional plena.(Nota 11)
Penso, inclusive, que a adoção desse sistema, no âmbito das circunscrições estaduais, poderá ser efetivado por legislação infra-constitucional, eis que preserva a integridade do regime de representação proporcional dos partidos políticos, consoante o que dispõe o art. 45 caput da constituição federal. O sistema eleitoral constitucionalmente estabelecido não é afetado pela implantação das circunscrições distritais, porque os votos partidários são contados em toda a circunscrição estadual. Quem não pode ser votado fora do distrito é o candidato e não o partido, e a representação proporcional, por certo, é de partidos e não de candidatos.
Mesmo quando ocorra alguma distorção marginal no resultado proporcional do pleito - o que só acontecerá quando um partido não apresentar candidato em todos os distritos - o direito e a possibilidade concreta de aceder à representação proporcional plena é assegurado a todos os partidos no regime eleitoral proposto. O fato de algum não preencher os requisitos necessários à obtenção das vagas correspondentes à proporcionalidade dos seus votos, qual seja a de apresentar candidato, diz respeito única e exclusivamente à sua própria condição existencial, e não altera a qualidade do sistema eleitoral, nem a justiça da representação. Da mesma forma, a objeção possível de que o sistema combina uma eleição de tipo majoritário (na designação dos eleitos nos distritos até o limite das vagas partidárias) com o critério proporcional, não desfigura a essência da representação proporcional. Note-se que, de forma análoga, um critério majoritário (maioria de votos na lista partidária) é hoje utilizado para a designação dos eleitos dentre a nominata dos candidatos partidários. Finalmente, a possibilidade de eleição de um candidato menos votado, no respectivo distrito, que seus concorrentes, reproduz uma característica típica do sistema proporcional vigente, onde, dependendo do desempenho eleitoral de seu partido, um candidato pode ser eleito com metade ou menos dos votos de seus concorrentes que não lograram a respectiva eleição em outra sigla. Mas, com certeza, no regime de eleição proporcional distritalizada esse efeito será drásticamente reduzido e sua conseqüência mais danosa que é a possibilidade de conjugar-se na produção de efetivos vazios de representação, será erradicada.
Um quadro comparativo das vantagens e desvantagens dessa proposta Quadro VII), permite visualizar a sua efetiva superioridade sobre o regime atual, sobre a alternativa pura de voto distrital (uninominal e majoritário), e sobre o sistema misto (modelo alemão).
6. Aplicações da representação proporcional distritalizada à correção das distorções nacionais da representação partidária.
A análise das distorções nacionais da representação dos Estados, que empreendemos na seção 4 deste texto, encobre um efeito mais sutil, que está implícito no respectivo debate, mas merece maior clarificação. Numa conseqüência prática da correlação de forças entre os Estados federados, que se expressa na composição atual da Câmara Federal, acumula-se uma outra desigualdade, a desproporcionalidade da representação entre os partidos políticos, relativamente aos seus coeficientes nacionais de votação.
Quando se compreende que representação proporcional e circunscrição territorial são conceitos distintos e não necessariamente articulados numa única e rígida fórmula eleitoral, ganha-se a capacidade para trabalhar a correção das distorções da representação partidária sem a necessidade de alterar-se o quadro da distribuição estadual das vagas na Câmara Federal. Bastaria aplicar-se à circunscrição nacional o modelo de sistema eleitoral proposto neste texto e, sem abrir-se mãos dos tetos mínimo e máximo da representação dos Estados, teríamos criado as condições técnicas para a correção da desigualdade da distribuição das cadeiras entre os partidos na Câmara Federal.
O mecanismo seria muito simples e, para a finalidade que o estamos aplicando, não implicaria em nenhuma alteração do processo eleitoral propriamente dito - o que mudaria seria, apenas, o processo de apuração do resultado final das eleições, de acordo com as seguintes regras: [a] com base nos critérios constitucionais vigentes calcula-se o tamanho da representação de cada Estado, que corresponderá ao número dos respectivos distritos eleitorais; [b] computam-se os votos nacionais para a Câmara dos Deputados e se calcula o respectivo quociente eleitoral; [c] tomando-se por base a votação nacional de cada partido, calcula-se o tamanho da sua representação na Câmara dos Deputados, levando em conta o quociente eleitoral nacional (definido pelo procedimento "b") e o regramento vigente para a distribuição das sobras; [d] distribuem-se, a seguir, as vagas partidárias nos distritos eleitorais, seguindo os mesmos critérios do modelo proposto para aplicação nas eleições estaduais.
Quadro VII: Sistemas eleitorais comparados: vantagens e desvantagens
Qualidades desejadas num sistema eleitoral | Sistema proporcio- nal - mode- lo atual | Voto distrital puro | Sistema misto alemão | Proposta alternativa: proporcio- nal-distrital | Detalhamento da proposta alternativa |
Justiça da representação partidária (proporcionalidade da representação das diferentes correntes de opinião político-ideolõgicas) | sim | não | sim | sim | O voto é dado aos candidatos e respectivos suplentes de cada distrito, mas é a soma total de votos aos candidatos da respectiva legenda que define o número de vagas de cada partido |
Justiça da representação territorial (ausência de vazios de representação ou de sub-representação de regiões) | não | sim | parcial (50% da representação) | sim | Todos os distritos elegerão pelo menos um representante. No seu impedimento ou vacância do cargo, assume o respectivo suplente. |
Simplicidade do processo de votação - manutenção do modo atual de votar | sim | sim | não | sim | O partido é representado pelo candidato. O eleitor vota apenas no candidato ou na legenda de um partido (como o faz atualmente) |
Permite maior conhecimento dos candidatos pelos eleitores na campanha eleitoral (impedir a dispersão do eleitor pelo excessivo número de candidatos disputando voto na mesma eleição) | não | sim | parcial (50% da representação) | sim | Cada partido apresenta apenas um candidato em cada distrito. O tempo de mídia será dividido entre poucos candidatos. Os debates poderão reunir todos os pretendentes à representação nos distritos. |
Viabiliza o controle dos eleitos pelo eleitor | não | sim | parcial (50% da representação) | sim | Torna possível pensar uma forma combinada de recall e impeachment, como instrumento de atribuição de responsabilidade política |
Limita o conflito intra-partidário à fase pré-eleitoral | não | sim | sim | sim | Cada partido apresenta apenas um candidato em cada distrito. |
Diminui os custos da campanha eleitoral e potencializa o contato direto do candidato com as suas bases eleitorais | não | sim | parcial (50% da representação) | sim | A limitação da área implica em redução de custos e potencializa uma maior atuação do terceiro setor no processo eleitoral |
Assegura a manutenção de um número fixo de cadeiras no parlamento | sim | sim | não | sim | Eventuais exceções ao critério da proporcionalidade são absorvidas pelos partidos relevantes e não implicam na proliferação de vagas parlamentares |
Defeitos a serem corrigidos no desempenho dos sistemas eleitorais | Sistema proporcio- nal - mode- lo atual | Voto distrital puro | Sistema misto alemão | Proposta alternativa: proporcio- nal-distrital | Detalhamento da proposta alternativa |
Promove a distinção entre dois tipos de representantes - fazendo conviver no parlamento dois princípios de legitimação do mandato - f(eventualmente contraditórios) estimulando, de um lado, o personalismo dos candidatos distritais, e, de outro, o burocratismo dos eleitos na lista partidária | não | não | sim | não | Todos os candidatos eleitos serão distritais, sendo que 50% será eleito pelo princípio majoritário e os outros na sobra das vagas proporcionais de cada partido, mas também em razão da votação que obtiverem no pleito majoritário |
Reforça a tendência oligárquica dos partidos nacionais, cujas direções vão passar a compor as listas proporcionais fechadas | não | não | sim | não | As candidaturas serão negociadas numa interação necessária do partido estadual com as suas bases distritais |
Facilita o pára-quedismo eleitoral dos candidatos infiéis às suas próprias bases eleitorais e sem tradição de vida partidária | sim | não | não | não | A dinâmica da eleição distrital penaliza candidaturas oportunistas. Quem não for conhecido e tiver liderança sólida na base distrital poderá até ser candidato para ajudar o partido na contagem proporcional mas tem mínimas chances eleitorais |
Atrelamento dos partidos aos candidatos puxadores de votos, que por isso mesmo exercem um grande poder de dominação e chantagem sobre a organização partidária | sim | não | não | não | Havendo um limite físico para a votação dos parlamentares (restrito a uma proporção do eleitorado distrital) abre-se um espaço para a valorização da atuação do parlamentar no exercício do mandato e na vida orgânica do partido como fontes de prestigiamento e promoção política |
A aplicação do sistema de representação proporcional distritalizada, como vai aqui proposto, não resolve de per si o problema da desigualdade entre os Estados na composição da Câmara dos deputados e, por aí, também, não assegura a efetividade do princípio "um homem, um voto" no âmbito da federação. Mas permite assegurar plenamente a representação dos partidos em nível nacional e a garantia do princípio "um homem, um voto" no âmbito das circunscrições estaduais. O que é um enorme avanço no aprofundamento do radical democrático da nossa ordem política.
Quadro VIII - Distribuição da representação entre os partidos
CÂMARA DOS DEPUTADOS - ELEIÇÃO DE 1998 | |||||||
A) NA ATUAL ETAPA DE TRANSIÇÃO PARA A PLENA APLICAÇÃO DA LEI 9.096/95 | |||||||
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PSDB | 11.684.900 |
17,54% |
99 |
19,30% |
90 |
17,54% |
-9 |
PFL | 11.526.193 |
17,30% |
106 |
20,66% |
89 |
17,35% |
-17 |
PMDB | 10.105.609 |
15,17% |
81 |
15,79% |
78 |
15,20% |
-3 |
PT | 8.786.499 |
13,19% |
58 |
11,31% |
68 |
13,26% |
10 |
PPB | 7.558.601 |
11,35% |
61 |
11,89% |
58 |
11,31% |
-3 |
PDT | 3.776.541 |
5,67% |
25 |
4,87% |
29 |
5,65% |
4 |
PTB | 3.768.260 |
5,66% |
31 |
6,04% |
29 |
5,65% |
-2 |
PSB | 2.273.751 |
3,41% |
19 |
3,70% |
18 |
3,51% |
-1 |
PL | 1.643.881 |
2,47% |
12 |
2,34% |
13 |
2,53% |
1 |
PPS | 872.348 |
1,31% |
3 |
0,58% |
7 |
1,36% |
4 |
PCdoB | 869.270 |
1,30% |
7 |
1,36% |
7 |
1,36% |
0 |
PRONA | 592.632 |
0,89% |
1 |
0,19% |
5 |
0,97% |
4 |
PSD | 503.713 |
0,76% |
3 |
0,58% |
4 |
0,78% |
1 |
PSC | 446.256 |
0,67% |
2 |
0,39% |
3 |
0,58% |
1 |
PMN | 360.298 |
0,54% |
2 |
0,39% |
3 |
0,58% |
1 |
PV | 292.691 |
0,44% |
1 |
0,19% |
2 |
0,39% |
1 |
PRP | 255.509 |
0,38% |
0 |
0,00% |
2 |
0,39% |
2 |
PTdoB | 216.640 |
0,33% |
0 |
0,00% |
2 |
0,39% |
2 |
PST | 193.562 |
0,29% |
1 |
0,19% |
2 |
0,39% |
1 |
PSTU | 187.675 |
0,28% |
0 |
0,00% |
1 |
0,19% |
1 |
PSL | 177.037 |
0,27% |
1 |
0,19% |
1 |
0,19% |
0 |
PSN | 136.829 |
0,21% |
0 |
0,00% |
1 |
0,19% |
1 |
PTN | 64.712 |
0,10% |
0 |
0,00% |
1 |
0,19% |
1 |
PAN | 62.653 |
0,09% |
0 |
0,00% |
0 |
0,00% |
0 |
PSDC | 62.057 |
0,09% |
0 |
0,00% |
0 |
0,00% |
0 |
PRN | 54.641 |
0,08% |
0 |
0,00% |
0 |
0,00% |
0 |
PRTB | 53.778 |
0,08% |
0 |
0,00% |
0 |
0,00% |
0 |
PCB | 49.620 |
0,07% |
0 |
0,00% |
0 |
0,00% |
0 |
PGT | 27.825 |
0,04% |
0 |
0,00% |
0 |
0,00% |
0 |
PCO | 8.067 |
0,01% |
0 |
0,00% |
0 |
0,00% |
0 |
TOTAL | 66.612.048 |
100,00% |
513 |
100,00% |
513 |
100,00% |
|
B) A PARTIR DO ANO 2.002 COM A PLENA APLICAÇÃO DA LEI 9.096/95 | |||||||
|
|
||||||
|
|
|
|
|
|
|
|
PSDB | 11.684.900 |
17,54% |
125 |
24,37% |
121 |
23,59% |
-4 |
PFL | 11.526.193 |
17,30% |
134 |
26,12% |
119 |
23,20% |
-15 |
PMDB | 10.105.609 |
15,17% |
103 |
20,08% |
104 |
20,27% |
+1 |
PT | 8.786.499 |
13,19% |
74 |
14,42% |
91 |
17,74% |
+17 |
PPB | 7.558.601 |
11,35% |
77 |
15,01% |
78 |
15,20% |
+1 |
TOTAL | 49.661.802 |
74,55% |
513 |
100,00% |
513 |
100,00% |
Os dados no Quadro VIII permitem visualizar o impacto de nossa proposta na correlação de forças dos partidos políticos nacionais e, de passagem, chamam atenção para o processo drástico de constrição do quadro partidário, em vias de ocorrer pela vigência plena da lei 9.096/95 nas eleições do ano 2.002. O que se percebe com clareza é que a desigualdade da representação entre os Estados, no sistema eleitoral vigente, constitui-se na correia de transmissão de uma desigualdade de representação ideológica que se polariza no privilegiamento do PFL (secundariamente do PSDB) e na sub-representação do PT. E mais, ainda, que essa polaridade se agudiza pelo efeito de exclusão de representação parlamentar dos partidos que não satisfizerem a cláusula de desempenho mínimo de 5% dos votos nacionais e 2% de votos em 9 Estados nas próximas eleições.
Na defesa de nossa proposta, cabe ressaltar, que a única fórmula capaz de assegurar, imediatamente, a representação plenamente proporcional dos partidos políticos, sem promover os efeitos sísmicos da redução drástica das representações dos Estados mínimos, é adoção de um sistema eleitoral capaz de compatibilizar a eleição proporcional dos partidos com a extração distrital dos eleitos. Considerando-se que a implantação do voto distrital é uma proposta consolidada, no projeto da Comissão senatorial, pelo apoio dos partidos da coligação do governo, é justo esperar-se que os maiores beneficiados com a sua implantação, na modalidade aqui esboçada - os partidos de oposição, em especial o PT (secundariamente o PDT) - examinem com descortino a possibilidade de se ajustar, no debate legislativo, uma fórmula de consenso nacional para a REFORMA do sistema eleitoral vigente.
7. Observações complementares: o financiamento público dos partidos e o disciplinamento das pesquisas eleitorais.
O Projeto da Comissão Especial do Senado, ao abordar o tema das campanhas eleitorais, adotou posição prudencial e correta, ao descartar a possibilidade de financiamento exclusivo das campanhas eleitorais mediante a utilização de recursos públicos.
Ademais da questão elementar das carências do Erário para essa finalidade, duas observações são relevantes nesse particular:
não são os partidos políticos, na sua estrutura organizativa, infensos aos vícios paternalistas e patrimonialistas do velho regime no Brasil - o fluxo de recursos públicos para o financiamento partidário, por isso mesmo, exige uma prévia análise e regulação da sua utilização, sob pena de se reproduzir em escala preocupante, no interior do sistema partidário as mazelas do próprio Estado que se pretende reformar, entre as quais a sua característica extrativista e preguiçosa na produção da própria sustentabilidade; | |
talvez não seja em campanha política que se devam aplicar prioritariamente os recursos do Fundo partidário e da sua eventual ampliação; já levantei em outros estudos a questão da necessidade de financiamento público dos cargos diretivos principais dos partidos políticos; preferiria que tivéssemos meia dúzia de deputados a menos, e que com esses mesmos recursos, sem qualquer aumento de despesa para o Erário, a Presidência e a Secretaria-Geral dos partidos políticos fossem remuneradas em igualdade de condições ao braço parlamentar da respectiva instância de organização; com isso, os principais promotores da fidelidade partidária deixariam de precisar mendigar cargos de confiança no Executivo ou no Legislativo, subordinando-se financeiramente às lideranças que lhes incumbe orientar e controlar. |
Uma observação adicional diz respeito à captação de recursos pelos partidos junto a empresas privadas. Penso que essa liberdade de opção e de influência no processo eleitoral deve ser preservada - eventualmente regulada mediante o estabelecimento de tetos e estendida às demais organizações da sociedade civil, como sindicatos e entidades do terceiro setor, para que haja paridade de condições entre as diferentes instâncias de auto-organização da cidadania.
O que me parece, entretanto, absolutamente anti-ético é a condição atual que permite que uma empresa (ou qualquer outra organização) financie dois ou mais partidos, ao mesmo tempo e na mesma eleição. Financia-se um partido para promover seu projeto político e isso é conseqüente com o prospecto da liberdade de ação e da responsabilidade política nas democracias. Mas financiam-se vários partidos, politicamente contendores e opositores ferrenhos, para assegurar-se as benesses do favor estatal, ou pagar um seguro de risco político. Em ambos os casos, a ética do comportamento público se subordina à corrupção dos interesses ou se submete às práticas intimidatórias do poder de Estado. Que se assegure à empresa privada, aos sindicatos e às demais entidades da sociedade civil, a possibilidade de influir no processo eleitoral, como uma prerrogativa intrínseca da cidadania ativa que as constitui; mas que o façam como uma opção cidadã, clara, aberta, responsável, definida e exclusiva.
Finalmente, uma consideração sobre a proibição de divulgação de pesquisas eleitorais. Trata-se de um tema complexo, que não permite aprofundamento nos limites deste texto. Genericamente discordo da proibição de divulgação em qualquer tempo das pesquisas eleitorais: não resolve o problema da manipulação eleitoral e atenta contra a liberdade de investigação e de manifestação da opinião.
Tenho convicção que o efeito mais danoso da eventual manipulação de pesquisas sobre o processo eleitoral não se dá ao termo da campanha (onde podem influenciar os eleitores do voto útil), mas nos primórdios e no desenrolar da campanha, quando podem resultar no bloqueio da própria pretensão a uma candidatura e no enxugamento do fluxo de contribuições e do ímpeto de campanha de toda uma militância partidária. Proibir a divulgação no final do processo e deixar aberta a porta da manipulação eleitoral ao longo de todo o seu curso é uma opção pelo mal maior - senão mesmo um contrasenso, porque é só no fim do processo eleitoral, na proximidade do escrutínio que os Institutos de Pesquisa têm a sua credibilidade confrontada pelo resultado das urnas. A impossibilidade de divulgar pesquisas às vésperas da eleição tolhe à cidadania esse controle indireto sobre as suas práticas, representado pela imediata confrontação dos resultados eleitorais.
O que se precisa construir, além de uma ética de investigação, é a possibilidade de submeter-se os processos de pesquisa eleitoral a uma regulamentação própria, que estabeleça, por exemplo, margens mínimas de erro aos processos amostrais e a fiscalização efetiva dos partidos políticos interessados. Isso é possível, mas ultrapassa a ingenuidade dos requisitos impostos pela mera divulgação de metodologias e das informações técnicas do processo de pesquisa, a priori ou a posteriori da sua realização, como o tem pretendido inocuamente a legislação vigente.
É oportuno lembrar que o próprio processo de votação - como qualquer outra técnica de aferição da opinião - também é suscetível de manipulação e foi objeto de uso inescrupuloso. Sua neutralidade precisou ser assegurada por uma extensa regulação, que resultou inclusive na institucionalização da Justiça Eleitoral, cuja neutralidade profissional, nem por isso prescinde da fiscalização ativa do pleito pelos partidos políticos. O que acontece com os Institutos de Pesquisa hoje, sejam universitários ou empresariais, é que invocam uma neutralidade científica, que se constitui numa abstração da realidade, e atuam no pressuposto de uma verdade científica, que pretende torná-los infenso ao controle direto da cidadania, quando nem à Justiça Eleitoral o exercício sério e conseqüente da liberdade e da igualdade na competição democrática assegurou tal privilégio. Trata-se de um ranço tecnocrata e cientificista, que medrou no período autoritário e que precisamos, urgentemente, passar a limpo.
Seria útil que se provocasse um grande debate na academia de ciência política sobre os métodos que permitiriam sanear o processo de pesquisa eleitoral das tentações da subserviência e da manipulação política, que têm campeado nesta seara.
Notas:
1. Referência a: Emenda Constitucional 17/85, Constituição de 1967, Constituição de 1969, Emendas constitucionais 8/77 (Pacote de abril) e 22/82, Constituição de 1988. (Retorna ao texto) 2. BRITTO, Luís Navarro de: "A Representação Proporcional", in Revista Brasileira de Ciência Política, nº 19, julho de 1965, UMG, Belo Horizonte. (Retorna ao texto) 3. BAQUERO, Marcello: A Crise dos Partidos Políticos na Virada do Século: Reflexões Teórico-Práticas sobre a América Latina. Editora da UFRGS, 1999 (no prelo). (Retorna ao texto) 4. A possibilidade de candidaturas de fora do sistema partidário, cumpre a finalidade de quebrar o eventual ciclo vicioso do oligopólio partidário, abrindo espaço para a sua própria crítica e para a participação de segmentos emergentes, reprimida pela lei de ferro da oligarquia. Circunscrevendo as candidaturas independentes ao campo das atividades parlamentares, evita-se o extremo indesejável de uma ação executiva, inconsistente com o quadro hegemônico do sistema partidário.Remeto o leitor à discussão deste tema em AYDOS, Eduardo Dutra: Democracia Plebiscitária - Utopia e Simulacro da Reforma Política no Brasil, Porto Alegre/Canoas: Ed. da Universidade-UFRGS/Centro Educacional La Salle de Ensino Superior, 1995, pags. 119/120 (disponível para download no site do FÓRUM-RS Século XXI: http://www.direito.ufrgs.br/forum21rs). (Retorna ao texto) 5. Essa perspectiva de análise remete a um aspecto que deverá sr aprofundado no debate da REFORMA ELEITORAL: a questão do maior ou menor favorecimento à corrupção política na esteira de um ou outro modelos de representação. Nesse sentido, é conveniente reproduzir-se uma advertência que escrevi já há vinte anos, ao comparar sistemas de voto distrital e representação proporcional: A consideração da questão da corrupção política em ambos os sistemas eleitorais deve, no entanto, alertar-nos para algumas formas mistas, ou variantes do voto distrital que, aplicadas à situação concreta do Brasil, poderiam resultar, não numa combinação de vantagens, mas numa combinação de desvantagens de ambos os sistemas. (...) Elegendo-se a metade da representação política por via da representação proporcional, a via para a utilização corruptiva dos recursos públicos permanece aberta. Ao mesmo tempo, abre-se com a implantação dos distritos eleitorais, o campo para as práticas da pequena corrupção." AYDOS, Eduardo Dutra: "O voto distrital e o aperfeiçoamento da democracia representativa no Brasil". Porto Alegre, mimeo, 1979. (Retorna ao texto) 6. Citado em LAMOUNIER, Bolivar: "A representação proporcional no Brasil: mapeamento de um debate". In Revista de Cultura Política nº 7, São Paulo, Cedec/Cortez Ed. (Retorna ao texto) 7. Precisamente e nas eleições presidenciais: 2,21% em 1894; 2,70% em l998; 3,44% em 1902; 1,44% em 1906; 3,1% em 1910; 2,40% em 1914; 1,48% em 1918; 1,50% em 1919; 2,92% em 1922; 2,27% em 1926; e 5,65% em 1930. (Retorna ao texto) 8. Situação em 1996 - com base em dados demográficos do IBGE. (Retorna ao texto) 9. AYDOS, Eduardo Dutra: Democracia Plebiscitária - Utopia e Simulacro da Reforma Política no Brasil, Porto Alegre/Canoas: Ed. da Universidade-UFRGS/Centro Educacional La Salle de Ensino Superior, 1995, pags. 120/122 (disponível para download no site do FÓRUM-RS Século XXI: http://www.direito.ufrgs.br/forum21rs). (Retorna ao texto) 10. A fórmula da base de cálculo seria: população x percentual de comparecimento sobre o total de eleitores. (Retorna ao texto) 11. Regras adicionais deverão prever os casos em que será necessário amenizar-se as exigências de domicílio eleitoral, assegurando-se aos diretórios estaduais a possibilidade de indicação de candidatos "de fora" e, eventualmente, a possibilidade de virem a competir nas eleições legislativas, em distritos onde não estiverem estruturados organicamente.(Retorna ao texto)