Parlamento, Revista de Política, Porto Alegre, 31 de março de 1986
Apesar das propaladas vantagens do livre comércio e da estabilização dos mercados financeiros, na prática, pouco tem-se contribuído para que este entendimento se tome realidade. Muito ao contrário, as políticas de ajustamento à crise da dívida externa dos países em desenvolvimento tém provocado profundos desequilíbrios nos fluxos de mercadorias.
Por outro lado, estratégias defensivas, já acionadas pelos grandes parceitos comerciais, ameaçam a estabilidade financeira internacional. Um enfoque alternativo das relações entre o comércio e as finanças mundiais torna-se, assim, uma condição para o enfrentamento e reversão desta dinamica de crise.
Este texto resume as principais propostas de um anteprojeto de resolução para o Senado americano, que estabelece como política dos Estados Unidos a iniciativa de um Programa de Desenvolvimento Internacional, para a realização de interesses mútuos do Norte e do Sul, em resposta ao desafio da dívida.
Este Programa solicita aos países devedores, tão somente, que procurem equilibrar os seus fluxos comerciais e oferece como incentivo para isto condições particularmente favoráveis para a renegociação de sua dívida. De um lado, trata-se de antecipar concessões que, num processo casuístico de negociação seriam, de qualquer forma, impostas em condições muito mais desfavoráveis. Parte-se do suposto que, de alguma forma, os países devedores concordam em ampliar reciprocidades comerciais - mesmo porque o desenvolvimento lhes impõe a retomada das importaçoes.
De outro lado, trabalha-se o reconhecimento que eles provavelmente desejariam manter o controle sobre o que vai ser efetivamente importado. Neste sentido, a maneira como estes países administram a sua economia para fazer face às metas deste Programa deixa de ser, então, especificamente relevante. Sobre essa base mínima de entendimento, essa proposta pretende coibir a emergência de pressões ilegítimas nas negociações da dívida e assegurar o interesse mútuo de todos os parceiros comerciais.
O "PLANO BAKER" E A CRISE DA DÍVIDA
Em reunião conjunta do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, em Seul, em outubro de 1985, o Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, James A. Baker III, apresentou uma proposta para o encaminhamento da questão da dívida do Terceiro Mundo, sustentando a continuação do financiamento internacional para os 15 maiores devedores. O Plano Baker redefine a atitude de distanciamento do governo americano em relaçao ao problema da dívida, num momento em que, afinal, o déficit no balanço comercial dos Estados Unidos começa a refletir um efeito indesejável da ausência de liquidez internacional.
O Plano Baker reafirma a estratégia de revisão caso a caso para as negociações da dívida, cunhada pelo FMI. Através dessa iniciativa, o Secretário doTesouro norte-americano assume um papel de mediador das demandas de capital dos paises devedores, junto ao Sistema Financeiro Internacional. Em conseqúência, o FMI perde a exclusividade dessa intermediação, o que tem sido muitas vezes saudado como um ganho político para os países devedores. É neste contexto que se viabiliza o processo recente, de renegociação da dívida brasileira à revelia do FMI. Não é por acidente que agora as peregrinações de negociadores da dívida do Terceiro Mundo em Washington passam muitas vezes ao largo do Fundo, para bater diretamente nas portas do Departamento do Tesouro e do Departamento de Comércio dos Estados Unidos. Mas isso não significa necessariamente que as políticas do FMI tenham perdido sua força. Por outro lado, para os países do Terceiro Mundo, trocar as ante-salas do FMI pelo Gabinete do Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, apesar de algumas vantagens imediatas, poderá resultar num custo adicional.
O Plano Baker tem sido amplamente criticado no que respeita à exigibilidade dos recursos que prevê para o atendimento das demandas financeiras dos grandes devedores. As suas condições políticas, no entanto, não guardam proporção com o seu modesto dimensionamento contábil. Elas combinam uma reafirmação de políticas de ajusta mento ao estilo do FMI, com uma ambiciosa tentativa de imposição do projeto conservador em que se baseia a administração Reagan, como modelo para o desenvolvimento mundial. As suas metas explícitas implicam na defesa do "livre de mercado", liberalização de condicionamentos ao investimento estrangeiro, desmantelamento das instituições de bem-estar social e redução da intervenção do Estado na economia - um bem concertado assalto aos fundamentos econômicos e, por conseguinte, políticos da construção do Estado nacional. Caberia, neste sentido, discutir a substância destas prescrições - o que não será possível nos limites deste texto - mas, desde logo impõe-se observar que a mesa de negociações da dívida, certamente, não é o local, e nem a oportunidade adequada, para se pro mover esse debate.
UM "TETO PROGRESSIVO" PARA O SERVIÇO DA DIVIDA
A Cláusula Primeira deste Programa propõe um teto para o pagamento da dívida pública externa dos países em desenvolvimento, fixado em 20% das suas exportações. Esta solução foi defendida em Washington, em maio de 85, pelo Governador Leonel Brizola, implementada pelo governo do Peru em fins de julho de 85 e adotada pela Nigéria já em 1986.
Diferentemente destas fórmulas, no entanto, este Programa condiciona a vigência do teto proposto ao resultado equilibrado do balanço de mercadorias de cada país (um superávit máximo de 20% sobre o montante de suas exportações). Além desta margem, os limites de pagamento seriam progressivamente deslocados, segundo as fórmulas da Tabela 1.
RESULTADOS DE UM EXERCICIO DE SIMULAÇÃO
Usando dados de 1983 divulgados pelo Banco Mundial, foram simulados os resultados da adoção dos tetos progressivos para um total de 77 países em desenvolvimento. Apenas oito países responderiam aos benefícios deste Programa, mediante a diminuição potencial de seus superávits comerciais. Ou seja, aumentando as suas importações. Estes países seriam o Uruguai, Burma, Bolivia, Chile, Equador, Argentina, Brasil e México. Assumindo que todos se esforçariam em minimizar seus pagamentos da dívida (autolimitando-se a um superávit de 20% no balanço de mercadorias), US$9.203 milhões em serviço da dívida seriam reescalonados, mas estes países teriam aumentado as suas importações em US$ 14.762 milhões, anualmente.
Seis outros países, com torte desempenho comercial, não seriam atingidos por incentivos para equilibrar seu balanço de mercadorias porque os seus pagamentos da dívida teriam sido inferiores ao teto mínimo de 20% sobre as exportações. (Se estes países fossem estimulados a limitar seus superávites na mesma proporção dos demais, isto resultaria num incremento de importações da ordem de US$ 6.442 milhões).
Trinta países com fraco desempenho comercial teriam obtido um alívio imediato em seu serviço de pagamentos, beneficiando-se do teto mínimo de 20% sobre o volume de suas exportações, sem incorrer em reciprocidades comerciais.
Finalmente, 33 países não se beneficiariam de sua participação neste Programa porque seus pagamentos do serviço da dívida seriam também inferiores ao teto mínimo proposto.
Para a grande maioria destes últimos 63 países, a solução do teto progressivo não teria impacto sobre suas relações comerciais. Um argumento parasua inclusâo no âmbito de uma alternativa para a crise da dívida, no entanto, emerge desta análise. O agravamento de dificuldades com os seus balanços depagamentos, ameaça solapar um mercado global de US$ 271.609 milhões. Assumindo que estes 63 países fossem levados ao enfrentamento da crise através do corte de suas importações, como aconteceu com os grandes devedores, ao atingir um ponto de equilíbrio do seu balanço de mercadorias, eles teriam contraído US$ 65.460 milhões em seu volume de importações. Ao atingir o nível dos 20% de superávit comercial, ao qual este Programa pretende reduzir os grandes devedores, a contração de suas importações atingiria a casa dos US$ 106.689 milhões anuais. Mesmo que estas figuras globais representem um cenário improvável, a sua realização parcial é suficientemente inquietante para justificar um deslocamento das atenções dos centros industriais, tradicionalmente focalizadas sobre os maiores devedores. O Terceiro Mundo emerge desta análise como um mercado global a ser necessariamente considerado no equacionamento da crise econômica mundial.
SUBSIDIAR AS IMPORTAÇÕES DO TERCEIRO MUNDO
Atendendo à necessidade de ampliação do impacto deste Programa, sua Cláusula Segunda estabelece um desconto progressivo e opcional sobre umapercentagem direta do serviço da divida. O desconto mínimo de 20% dos pa-gamentos devidos se aplicaria a todos os países que satisfizessem a condição básica da Cláusula Primeira (um superávit máximo de 20% para o balanço demercadorias). Essa percentagem seria progressivamente aumentada, na proporção inversa do volume relativo dos déficits comerciais de cada país, de acordo com a escala da Tabela 2.
Os benefícios da Cláusula Primeira atingiriam apenas 44 países no âmbito deste estudo, resultando no reescalonamento de um mínimo de US$ 10.950 milhões até um máximo de US$ 20.057 milhoes, em pagamentos de serviço da dívida pública externa (esse último montante, condicionado a um incremento das importações do Terceiro Mundo da ordem de US$ 14.762 milhões). Sob o impacto da Cláusula Segunda, todos os países em desenvolvimento seriam potencialmente beneficiados por este Programa. O seu custo, no entanto, cresceria modestamente para suportar as despesas de co-financiamento sobre um mínimo de US$ 19.627 milhões até um máximo de US$ 24.580 milhões em pagamentos reescalonados (esse último montante, condicionado a um aumento de importações do Terceiro Mundo da ordem de US$ 21.205 milhões). Tendo em vista a contribuição desta proposta para a estabilização dos fluxos comerciais, assim como o apelo político de uma solução global para a crise da dívida, os ganhos potenciais desta solução parecem compensar sobejamente o seu custo relativo.
REESCALONAMENTO: UMA PROPOSTA DISTRIBUTIVA
Todos os pagamentos liberados com base nos limites das Cláusulas Primeira e Segunda seriam automaticamente reescalonados em conta à parte do montante global da dívida dos países em questão. Este Programa pagaria a totalidade dos juros sobre estes créditos durante os 5 anos de sua plena vigência. Seria, também, responsável pelo complemento de uma taxa de juros fixa em 3% a.a., até se alcançarem os valores de mercado, durante os restantes dez anos de maturidade dos financiamentos. Como resultado, os países devedores teriam uma moratória parcial de 5 anos e pagariam o principal dessa dívida sem juros acumulados em dez anos, a uma taxa fixa de 3% a.a.. Os bancos credores receberiam juros integrais ininterruptos durante o período de reescalonamento.
Sob a administração e o aval deste Programa, seriam eliminadas as comissões de administração sobre reescalonamentos de financiamentos e caducaria a ficção extorsiva dos "spreads", tradicionalmente cobrados dos países sub-desenvolvidos a título de taxas de risco, acima das taxas internacionais de juros. Para os credores, seria preferível a obtençao de garantias públicas multilateraís sobre estes pagamentos, do que a cobrança de substitutivos ineficazes, fazendo às vezes de um seguro efetivo, porém demasiadamente custoso, sobre seus empréstimos internacionais. Os países devedores, por sua vez, depositariam em conta deste Programa o correspondente a 10% dos pagamentos reescalonados. Esse fundo reembolsável poderia ser mobilizado em condições previamente estipuladas, para atender eventuais dificuldades de pagamentos sobre a divida reescalonada dos países-membros. Mais importante ainda, é que representaria um penhor do compromisso coletivo dos devedores em relação ao pleno reembolso das instituições credoras. Não é necessário enfatizar o que isto significaria como contribuição para a legitimidade e estabilização do sistema financeiro interna-cional.
Importantes tensões nas negociações da dívida têm estado associadas à participação dos bancos locais e regionais, que participam com aproximadamente 20% do montante dos empréstimos internacionais. Além das dificuldades administrativas óbvias, quando se necessita um consenso de algumas centenas de instituições financeiras, estes pequenos e médios credores não têm a mesma flexibilidade para reescalonar os refluxos de seus investimentos, que dispõem os grandes bancos dos centros financeiros. A sua influência, no entanto, implantados que estão nos redutos políticos dos distritos eleitorais, é inversamente proporcional à sua participação no financiamento do Terceiro Mundo. E o que é mais relevante, deles depende em grande parte a sustentação política de uma solução capaz de mobilizar apoio e recursos do contribuinte norte-americano para uma solução dos problemas do sistema financeiro. A opinião pública nos Estados Unidos reage, ainda, à síndrome da depressão econômica na primeira metade deste século, que teve como agentes executores de falências e hipotecas os grandes bancos dos centros financeiros. É compreensível, assim, a sua aversão em bancar o saneamento financeiro destas corporações bancárias. Essa mesma opinião pública, no entanto, muito provavelmente apoiaria um Programa para a estabilização da estrutura capilar do sistema financeiro, responsável pela captação de sua poupança e mesmo de sua participação acionária. E por esta razão que este Programa joga todo o poder de barganha de sua capacidade de negociação coletiva no objetivo explícito de proteger os bancos locais e regionais. Como condiçao para receber as garantias do seu aval, previu se, então, que os maiores credores devam resgatar os créditos dos pequenos bancos, proporcionais à dívida reescalonada.
Uma estimativa preliminar revelou que uma taxa de 1% sobre as importa-ções de todos os países industrializados, efetiva por apenas cinco anos, sena suficiente para sustentar os 15 anos de custos financeiros deste Programa. Por isso mesmo, essa proposta resultaria redistributiva de renda para os países em desenvolvimento. Não obstante, na medida em que são aumentados os custos dos bens importados, esta proposta responde também demandas de proteção das indústrias nos países desenvolvidos, o que aumenta a sua viabilidade política. Compensa-se, assim, a proteção tarifária com propósitos redistributivos
IMPACTO E DESAFIO INSTITUCIONAIS
O principal suporte para a viabilidade política deste Programa é a sua pe-culiar mecânica de reciprocidades comerciais. Todos os percentuais relativos ao desempenho do balanço comercial, que determinam o acesso aos seus benefícios, estão circunscritos aos fluxos comerciais entre os países-membros. Dessa forma. os países industrializados participantes deste Programa se beneficiariam exclusivamente do aumento das importações do Terceiro Mundo junto aos produtores dos países do Norte, estimulado pelos incentivos financeiros. Previu se, também, que a contribuição tarifária de cada país industrializado para o financiamento do Programa seria compensada no final de cada exercício para ajustar-se proporcionalmente ao incremento efetivo das suas exportações para os países-membros. A proposta cuida, porém, de não privilegiar relações comerciais entre os países membros num sentido Norte-Sul, de tal forma que os estímulos ao desenvolvimento incorporados por este Programa também contemplem os fluxos comerciais Sul-Sul.
No que se refere à participação dos países industrializados, esta dinamica satisfaz o mais básico axioma da teoria da ação coletiva: ela é suficientemente lucrativa para ter os seus custos assumidos e, portanto, a sua viabilidade econô-mica suportada por apenas um único ator - no caso, os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, ela se constitui numa proposta aberta a todos que desejarem participar de seu particular benefício pagando o custo proporcionalmente correspondente. A cooperação e a coparticipação da maioria dos países industrializados constitui-se, portanto, numa expectativa provável, suportada pela coerção positiva das perdas relativas que decorreriam de sua não-participação. O desenho deste Programa, que revela uma forma peculiar de constituição de um bloco comercial, é temperado pela condição de elegibilidade universal que o inspira. Dessa forma, se buscou impedir que esta nova dinâmica de reciprocidade viesse a ser estampada pelo rótulo da discriminação comercial.
Assim concebido, este Programa tem uma dimensão maior do que os limites da sua própria viabilidade como uma proposta de política a ser adotada pelo Senado e governo dos Estados Unidos. Aqui reside o desafio maior e, talvez, a picardia de sua concepção. Nada impediria que, prevalecendo a estratégia vigente na condução da política dos Estados Unidos para a crise da dívida, outros parceiros comerciais assumissem e viabilizassem esta proposta para o seu próprio e exclusivo benefício.
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*Nota: O autor é Professor de Ciencia Política da UFRGS. Como Legislative Fellow do National Democratic Institute for Foreign Affairs, trabalha atualmente no Senado dos Estados Unidos, assessorando o Senador John Kerry, democrata do Estado de Massachussets, que apresentará nos próximos dias este projeto divulgado com exclusividade por Parlamento.