Três teses sobre a imbricação da ciência política no radical da questão democrática

Resumo das teses propostas

A postulação da liberdade, a disciplina da igualdade e a condição da fraternidade são condições necessárias do Contrato Social
A questão democrática - na dialética triádica de liberdade, igualdade e fraternidade - é foco de convergência da teoria política contemporânea
A questão democrática não pode ser reduzida a uma das dimensões polares que integram as tensões diádicas da vida política

FRATERNIDADE e EFICIÊNCIA expressam a racionalidade do fazer e do agir comunicativos. Enquanto a FRATERNIDADE implica na utilização dos limites da LIBERDADE, para se produzir o máximo de IGUALDADE; a EFICIÊNCIA nos impõe a necessidade de explorarmos os limites da VIABILIDADE política, na realização dos valores compreendidos pela categoria da DESEJABILIDADE. Há cálculo racional - custo e benefício - subjacente a estas duas condições da escolha, não obstante o caráter substantivo de uma e meramente formal da outra.

Os conceitos que até aqui avançamos constituem o núcleo, não apenas do processo de formação de políticas públicas, como da própria questão democrática - ínsita na dialética triádica da LIBERDADE, IGUALDADE e FRATERNIDADE - a qual é, assim, indissociável da sua formulação reflexiva e comunicativa. Foi sobre essas derivações teóricas que versaram minhas reflexões provisórias sobre o conceito essencial e a realização ético social de uma política democrática. Torna-se, possível, agora, sistematizá-las em torno de três proposições.

A postulação da liberdade, a disciplina da igualdade e a condição da fraternidade são condições necessárias do Contrato Social:

"(...) O anthropus zoom politikon dos gregos, reconhece na sociabilidade, enquanto politicidade - ou partilhamento da soberania - o elemento constitutivo da consciência histórica, que é a Humanidade. A igualdade, nesta perspectiva, é anterior, fundamento e finalidade, do Contrato Social e não uma decorrência contingenciada do mesmo. Eis porque o Contrato Social já está comprometido, na sua fundação, com a postulação de uma existência política em conformidade com a igualdade substancial. A democracia é necessária, antes mesmo de realizar-se como uma possibilidade histórica.

(...) Na ressonância do Contrato, a igualdade/identidade dos legisladores viabiliza o potencial da razão comunicativa - eis porque o mesmo, de alguma forma, é sempre consentimento expresso, seja este aferido pela efetividade do costume ou pela transparência da forma. Esta abordagem elide, dessarte, o equívoco do consentimento tácito, ou da submissão à lógica de quaisquer coerções intoleráveis - inclusive do estado de natureza hobbesiano, como condição necessária ou suficiente da construção da ordem política. Não há Contrato num vazio de comunicação, como não há Contrato sob coerção irretorquível, mesmo que se trate da opção pelo mal menor simbolizado no Leviatã. A possibilidade da escolha entre duas tiranias, não implica o consentimento, nem a liberdade, nem a democracia.

Por estas razões, o contratualismo é substancialmente democrático ou carece de sentido. É o que inspira alguns dos mais significativos avanços da filosofia política contemporânea: "But the theory of a social contract is actually neither history nor sociology; it is a way of specifying the moral principles adhered to by the liberal". [KOHLBERG, 1981:232].

De fato, o Contrato Social conforma estrategicamente a realização da igualdade na liberdade, não lhe pode, portanto, ser incompatível, como algumas vezes a análise jurídico-política o tem pretendido. E assim, como engenharia do consenso, o contratualismo confunde-se com a teoria e a prática da desocultaçäo plena do campo político e da apropriaçäo do poder social pelos titulares da soberania.

A questão democrática - na dialética triádica de liberdade, igualdade e fraternidade - é foco de convergência da teoria política contemporânea:

(...) É a isso que as teorias da democracia, embora de forma ainda incompleta e, até mesmo, contraditória em muitos dos seus axiomas, têm procurado responder. Trata-se, mesmo, de teorias no plural, e medianamente limitadas no seu alcance, que abarcam as técnicas conhecidas para assegurar o exercício do poder pela cidadania e a modelação das instituições sociais conseqüentes com esse princípio. Combinações estratégicas dos seus preceitos, matizam os regimes políticos e sistemas de governo que se propõem democráticos.

Partindo de marcos teóricos, tão diversos, como o liberalismo e o marxismo e, alicerçada pelos sucessos e insucessos de uma experiência histórica, não apenas registrada, mas também massificada no seu impacto cruzado, pelos modernos meios de comunicação, a teoria política contemporânea registra sinais de convergência e complementaridade. Entre esses, a percepção da complexidade da questão democrática, insuscetível de se esgotar no exclusivo plano das técnicas constitucionais ou da engenharia institucional mas, insuscetível, também de reduzir-se à dinâmica das determinações econômicas ou à pura coercitividade das ideologias.

Se, a analogia com a teoria do valor-trabalho é de inestimável valia para a construção de uma teoria do poder, da soberania popular e da finalidade intrínseca da atividade política; o inventário da temática liberal e de seus construtos teóricos, é fundamental para desvendar o estado atual do conhecimento, sobre as alternativas estratégicas, e as possibilidades operacionais do arsenal tecnológico das democracias.

A questão democrática não pode ser reduzida a uma das dimensões polares que integram as tensões diádicas da vida política:

E assim, por conseguinte, liberdade x igualdade, fins x meios, legitimidade x eficácia, constituem falsos dilemas, cuja exacerbação é um obstáculo epistemológico na construção do paradigma da ciência política pós-moderna.

Estes apontamentos não pretendem aprofundar uma análise sistemática da questão, que apontaria para a meta ambiciosa, da construção de uma teoria geral da política democrática. Torna-se necessário, não obstante, estabelecer alguns preliminares, que lancem luz sobre as articulações teóricas aqui propostas. Trata-se de prevenir a análise de emaranhar-se nos mesmos paradoxos e contradições, que têm levado à frustração alguns esforços de interpretação da teoria democrática e impedido o esboço de uma síntese satisfatória dos conhecimentos sobre a democracia.

Estas dificuldades são expressas com clareza no Prefácio a uma Teoria Democrática: "É estranho, talvez, que após tantos séculos de especulação política, a teoria da democracia continue a ser - se estou certo nesta minha suposição básica - sumamente insatisfatória, seja ela considerada de caráter essencialmente ético ou basicamente como tentativa de descrever o mundo real". [DAHL, 1989:9]

A guisa de uma conclusão provisória, é necessário fixar a distinção clara dos dois níveis de elaboração teórica: a política como necessidade - ou seja, como finalidade; e a política como possibilidade - ou seja, como meio [Nota 9]. A formulação da política democrática, assim, pode ser visualizada no plano ético valorativo, nos termos antes propostos, de uma defesa intransigente da soberania popular. Ao mesmo tempo, a tecnologia institucional das democracias, pode ser equacionada num outro plano de análise, como seu dimensionamento estratégico, tático e operacional. À distinção destes níveis, corresponde uma clara e, a partir de então, inequívoca separação teórica, pela natureza e abrangência das suas proposições.

Não se pode confundir e tratar no mesmo nível de análise: de um lado uma teoria radical da democracia, como a afirmativa da igualdade e da soberania popular, com a sua reificação na regra decisória da maioria hipostaziada por Jefferson; e de outro, a proposta estratégica de organização política, que integra os postulados do federalismo madisoniano. É, exatamente, esse equívoco de interpretação, que impede Robert Dahl de reconhecer substrato racional aos fundamentos lógicos da democracia americana, naufragando seu estimulante prospecto de investigação teórica no despautério de uma conclusão que abastarda o construto intelectual dos constituintes de 1787: Não quero sugerir que o Acordo de Connecticut deva ser desfeito, mas afirmo que é uma grande estupidez romancear uma barganha necessária, transformando-a em um nobre princípio de política democrática. [DAHL, 1989:117].

A contradição torna-se inevitável no bojo de uma comparação linear, lógico-formal, entre as concepções teóricas de Jefferson e Madison. Não apenas entre cada uma das suas postulações, com as exigências fundamentais da igualdade; mas, também, entre os desdobramentos práticos de sua inflexibilidade, quando absolutizadas na sua validade e na sua abrangência, com os princípios axiomáticos de uma teoria e prática da democracia. Formulações teóricas elaboradas em cada nível de análise - do campo político, propriamente dito, ao estratégico, tático ou operacional - possuem relativa autonomia e tornam-se passíveis de utilização em contextos distintos, para finalidades até mesmo opostas. É assim, que um discurso conservador e elitista pode ser útil à causa da democracia, progressista e revolucionária, se trouxer embutido na sua proposta ideológica, uma tecnologia consistente para o controle do abuso do poder político.

Nessa linha de conseqüência, uma das lições fundamentais da concepção radical da soberania, que a surpreende como apropriação de poder político, no conflito institucionalizado das classes, é a percepção de que a democracia não prescinde da contribuição dos seus próprios adversários, mas se constrói, teórica e praticamente, a partir da liberação desse confronto [Nota 10].

Ganha sentido, no enquadramento dessas proposições, a investigação - em conformidade com o modelo paradigmático da epistemologia de síntese - da dialética triádica do fazer e do agir comunicativos que, na ciência política, configura o núcleo sígnico da formação de políticas e institucionalização do poder. Na sua esteira, a (re)construção do modelo paradigmático, tornará evidente que a imbricação da teoria democrática é indissociável e permeia toda a construção da ciência política, assim visualizada como um processo de auto-reflexão comunicativa.

No curso dessa elaboração, o conceito de "enfoque" tradicionalmente utilizado na análise contemporânea, como uma alternativa à efetiva elaboração do seu paradigma epistemológico, será submetido a uma reconstrução teórica, que o referencia e delimita à designação das perspectivas de análise derivadas de cada um dos três vetores da investigação paradigmática em ciência política: os INTERESSES DA CREDIBILIDADE, da GOVERNABILIDADE e da RACIONALIDADE.

Para cada um desses focos de análise - que serão designados, respectivamente, pelos conceitos do COMPORTAMENTO POLÍTICO, da SOLUÇÃO DE PROBLEMAS, e da CULTURA POLÍTICA - torna-se então possível identificar as categorias que conformam a respectiva dialética triádica. É o conteúdo do que será abordado nas três seções subsequentes deste texto.

Nota 9 - A essa distinção correspondem os conceitos que ora trabalhamos das divisões funcional e praxiológica do saber em ciência política. Retorna ao texto

Nota 10 - Vale aqui o recurso da analogia: A agricultura ecológica deixou de insistir na necessidade de eliminar o inço dos campos de cultivo. Ao perceber-se que, em certo sentido, as lavouras se beneficiam desse consórcio, o que se torna relevante é a capacidade de manter controle sobre a infestação e trabalhar as condições técnicas e econômicas capazes de assegurar, afinal, na colheita, a separação do joio e do trigo. Retorna ao texto

      

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