Esperança


A esperança é úmida e escorre
A esperança fuma e toma porre
A esperança abusa e não socorre
A esperança é escura e não me acorre
A esperança luta e depois corre


A esperança é luz que tudo encobre
A esperança espuma em tacho cobre
A esperança empluma o vulto nobre
A esperança entulha a casa pobre
A esperança ajunta e compra um lote


A esperança afunda o próprio bote
A esperança canta a própria ode
A esperança dança em passo doble
A esperança berra e se sacode
A esperança late mas não morde
 


A esperança ensina e não descobre
A esperança fia e dá calote
A esperança assina o próprio mote
A esperança é sina de quem sofre
A esperança é ínfima consorte
A esperança é íntima da morte



 
 

Sensatez


Para Sofia  


Se eu fosse sóbria e séria, se sensata,
Do amor tomava um trago a cada dia,
Com calma, em paz, em cálida alegria,
Se eu fosse sóbria, sim,
Isso eu faria.
 

Seu fosse sóbria e séria, se sensata,
Dos cultos a verdade aceitaria,
Um bom pastor, não Deus pra ser meu guia,
Se eu fosse sábia, sim,
Eu buscaria.
 

Seu fosse sóbria e séria, se sensata,
Casada e gorda, comportada e fria,
Um mundo bom, o amor de uma família,
Se eu fosse séria, sim,
Eu já teria.
 

Mas a paixão não quer a sobriedade,
Nem seriedade sabe o coração,
E quem busca o calor da divindade
Não se consola com religião.
 

E não sou sóbria e séria e nem sensata,
Eu meço a hipocrisia dos contentes
E ao justo criador nada mais peço
Que a luz do Sol pra me afiar os dentes.





 

Seios


Sofia, eu no teu rosto busco espelho,
Enquanto beijo os nós dos teus artelhos,
Enquanto tocas com teus pés meus seios.

E o corpo sabe: sou-te assemelhada,
E leva o pé à tua coxa amada,
Sou presa seduzida por teus cheiros.

E o corpo sabe o quanto é aquecido
Meu pé que sobe dentro do vestido,
Sorrindo do macio dos teus pentelhos.
 

E o corpo sabe: sou-te parecida,
Toco a mim mesma ao te tocar, amiga,
Se pouso, enfim, os dedos nos teus seios.
 

E o corpo sabe bem que sou-te gêmea
Me fazes louca, lúcida ou boêmia,
No gesto em que se unem nossos seios.
 

Sofia, no meu rosto tens espelho,
De quanto bem me faz amar teus seios


 

Fumaça III

Você, tabaco, amante compreensivo,
Completa o tempo, se ele se demora,
Conserva o gosto, se ele vem, lascivo,
Consola o corpo, se ele vai-se embora.
 
Te satisfaz deixar-me insatisfeita
A desejar-te, tola, em toda hora,
Na carne que te traga e que suspeita
Que ao possuir-te a vida joga fora
 
Prazer sublime, sórdida maleita,
Sutil perigo, pão que me devora,
Amor fatal de quem já não me privo.
 
Não te desfaço, sou por ti desfeita,
Hostil amigo desse ser cativo,
Amável matador de quem te adora.

 


 

Cura


O coco quando é bem verde,
A água quando está pura,
A vida quando é traçada,
Sobre o passo da aventura,
É gosto que se adquire,
É paladar que se apura,
Como rir da própria sorte
Ou dormir em cama dura

 

O café quando é amargo,
A lágrima sem mistura
A paixão quando é trilhada
Na navalha da loucura,
É gosto que se adquire,
É paladar que se apura,
É doce que dói nos dentes,
Como o mel e a rapadura.

 

O beijo quando é salgado,
O amor quando é tortura.
Desejo que queima os nervos,
Excitação que satura,
É gosto que se adquire
É paladar que se apura
É prazer que se cultiva
É a alma que se cura.
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