Dedaleiras, hortênsias, marias-sem-vergonhas,
hibiscos, rosas, papoulas,
no jardim de Monet.
Cheiros, atrações, espécies
de bichos que voam,
regaços, fontes translúcidas,
nenúfares, ninfas das águas,
pernilongos,
borrachudos fogem dos quadros
e mordem as pernas dos visitantes.
O ENTERRO DO TOCADOR DE BANDONEON
O tocador de bandoneon morreu.
Seu relógio foi empenhado
na casa funerária
e o tango cortando o cortejo
crispava as mãos em torno
das alças douradas.
Havia trinta e duas pessoas
no enterro do tocador de bandoneon.
E na outra quadra do cemitério
apenas alguns desconhecidos.
O sol sumia em torno dos olhos sincopados.
Caro senhor mar,
caras senhoras estrelas:
aqui me ajoelho, na areia, em reverência,
o corpo preso à terra firme,
olhos e coração no firmamento.
Não rezo. Não sei rezar.
Sei pensar com muita força o que
quero
e dêem a isso o nome que quiserem.
.............
Tão cheio de certezas. Nem esperanças.
Certezas.
Sei que não posso editar um filme
não realizado. Nem quero.
Ando em resoluto ritmo de rodagem,
fazendo e revendo minha história.
............
Flashbacks irrompem em meio ao dia cinzento.
Vida estrada fora.
Tudo principia e termina na rua.
E monto a sinalização, as
convenções, reconheço os pontos de perigo, os
desvios, os tratores recompondo os desabamentos.
Contenho a marcha nos pontos cegos,
evito as surpresas dos acostamentos.
Ando por onde posso andar e não
paro até o destino final.
Postos passam. Não paro.
Sei, sem guia ou detalhados mapas, que
este é o caminho.
Estou indo a meu encontro.
Onde há um encontro, e outro.
..............
As chaves abrem portas que dão
em outras portas.
Jogo todas elas fora.
Para que as chaves se no longo corredor
não preciso escolher portas,
se basta seguir como quem não as
enxerga e não deve enxergar?
Para que quero a disciplina e o desafio
dos obstáculos programados
se eles vão de qualquer maneira
estar à minha frente?
Se serão saltados quase que imperceptivelmente,
a cada minuto de minha respiraçào?
............
Meus pulmões se enchem e se esvaziam.
Ar, sólida substância.
Vida, barbante sem fim,
impossível de se armazenar em um
novelo, uma gaveta, uma coleção de lembranças.
Como os taxis, toco para a frente.
Não sei quem é o próximo
passageiro
Não sei para onde ele vai.
E isso importa?
Estou tentanto lavar minha alma
assim como os iluminados retiram
seus intestinos à beira do Ganges
e os banham nas águas sagradas.
Estou num deserto onde tudo é horizonte
e onde, como em todos os desertos,
todos os pontos são nenhum.
Estou tentando extrair o branco de todas
as cores
e afugentar a ausência delas,
no escuro.
Estendo minhas extremidades.
Estou tentando divisar o espaço.
Estou tentando discernir que o visível
nem sempre existe.
Percebo sinais.
Os transmuto, numa infindável série
de lógicas combinações.
E percebo que a lógica de nada
serve quando algo tão forte além dela pulsa.
Estou tentanto receber os pulsares exatos
das estrelas
em suas rotas mensuráveis e previsíveis.
E tudo que elas me mandam é
a gélida e cósmica solidão do éter.
Estou tentando não recordar e não
esquecer.
Estou tentando viver a vida presente.
Um gato salta na noite de um telhado
a outro.
Por sob o salto, o escuro de muitos andares.
O gato não sabe porque pulou, nem
qual o próximo telhado.
É atávico. Tem que pular,
intuindo apenas a sobrevivência.
Seus longos bigodes farejam perigos,
finos jantares em latas de lixo,
o inimigo que, trêmulo, espreita
das frestas.
A noite se arrasta lenta e encobre rastros.
Mas não para os olhos do gato.
Ele enxerga as trilhas já pisadas
e que as serão mais e mais uma vez.
Atavismos de outros animais, obssessões
de seres pensantes, longas caminhadas debelando angústias.
O gato se retesa como um arco e se arrepia.
Pode ser o ataque. Pode ser a fuga
ao pânico.
O gato pula de novo. Pára a um
canto, se lambe, se lava, retira as impurezas dos muros, o cheiro das presas,
uma garoa que não pára de cair.
O gato se enovela. Já tem uma casa,
não se lembra mais onde ela é.
Ou não pode voltar, não
há mais espaço para seus movimentos, aproximações
de carinhos, folguedos, estrepolias.
O gato dorme e se revira.
O gato ronrona como asma na madrugada.
Degela,
despenca de cima das montanhas
levando em seu curso violento
folhas, flores, ramos,
pequenas e grandes formas de vida,
seixos, entulhos, detritos esquecidos
no caminho.
Semeia o temor e a reverência à
sua passagem.
Assista em tua velocidade os rituais que
te prestam,
veja nos olhos a solenidade.
Escorre espessa, como da planta escorre
a seiva,
como do amor flui seu sumo.
Arremete contra bloqueios, diques, muros,
seres inanimados que, sem julgamento,
não sabem nem podem te deter.
Mire lá embaixo a planície.
Ela está próxima e já
te espera,
sabe que virás em ruidosa visitação.
Vergasta a natureza
altera os cursos dos rios
sedimenta seu leito e sua margem
deposita em suas águas o que colheste
no caminho
(tudo isto, um dia, vai ser vida).
Percorre grandes cidades e suas pontes
de automóveis.
Atravessa os vilarejos onde a grama cresce
nos velhos trilhos dos trens.
É quase de novo dia.
Olha para a frente, para a enorme e plena
massa de água.
Entra nela limpa, purificada, plena,
mergulha em teu elemento.
Seja um com ele.
Repousa na imensidão do azul.
Lá estão seu centro e sua
razão.
O local para onde todos olham e meditam.
Lá deves te deitar e te deixar
abandonar.
Chegaste.
Descansa, embala teu sono no doce canto
das sereias.
Acorda com o furor das ondas estourando
nos rochedos.
Agora em ti tudo é vastidão
e permanência.
Matutino,
o preto retinto
na tuba da Euterpe.
Não havia nem Mozart,
mas a sonoridade,
mas o cisne branco que em noite de lua.
Creme de alface Brilhante
a novela Milagres da Fé
uma idéia luminosa
Consolação dois dois oito
oito.
Mosca
desafia a gravidade do momento
põe pensamento longe
cocozinho na parede.
Fígado inchaço
língua
deterioração.
Mais uma vez eu juro que nunca mais.
José Eduardo Mendonça © 2000