Silencio de tí enche essa casa,
e ainda ouço sons da tua ausência:
por tí, reclama a lampada queimada,
o pneu do carro murcha,
a torneira entorta a água
e a cozinha chora, alagada.
Calam-se os serrotes, os martelos,
esperando o toque certo
dado pelas tuas mãos.
Na sala, Bob Dylan,
não toca tamborim,
nem Enya pinta o céu
nas músicas dos teus CD's,
mas ecoam longamente
em meus murmurios.
E é tanta a monotonia
e tão crescente,
que junto a minha voz
num protesto aflito,
e na ausencia por tuas viagens,
deixo nestes versos o meu grito.
(Inspirado no poema de Anibal Beça - Romances das Manhãs de Domingo)
Minhas manhãs vinham ternas,
com cheiro de rapadura,
vento manso na janela,
sombras de sol encantando
os meus olhos de menina.
Olhos que viam o tempo
buscando por brincadeiras:
a macaca, o canga-pé,
escorregar na ladeira,
os segredos do menino...
Segredos que eram mais doces
naquelas manhãs cheirosas,
ao bambolê que girava
em meu corpo hábil, franzino,
debaixo do abacateiro.
Ah, cúmplice abacateiro...
que tanto ouviu o menino,
aguçando meus ouvidos,
com palavras perfumadas,
se indecente e inocente...
E inocentes brincávamos
de casal apaixonado;
mas quando uma mãe chamava,
cheios de culpa esperávamos
barulhos do fim do mundo.
Eu penso em ti
enquanto faço este pão.
Os ingredientes na tigela,
os pensamentos na minha mente,
misturando-se em quantidades perfeitas,
com ternos movimentos...
A massa, aderindo às minhas mãos,
sendo parte de mim, é como te sentir,
sem querer estar livre.
Assim concentro meus pensamentos
neste trabalho romântico,
que agora deita dormente,
num ritual de espera.
O pão vai ao forno,
e o cheiro de canela invade a casa,
e fica ao longo dos dias como meus pensamentos,
mas vem como tua presença,
em meus caminhos, fazendo-me companhia,
convidando-me
para te respirar profundamente.
Esse teu corpo tão másculo
tem a canção do desejo
que para ouvir bem de perto,
vem ser o meu realejo.
Entrega nas minhas mãos
a partitura moderna
para notas sensuais,
quando roço tuas pernas...
Para essa musica quente,
faço meu teu instrumento,
de percursão ou de sopro,
dependendo do momento...
Minha boca então repete
seu canto mais amoroso
em tons urgentes, regendo
a canção para o seu gozo.
E no teu doce compasso,
vai inventar seu soprano,
ao querer da tua boca
um cantico mais profano...
Sob o sol da manhã,
uma sombra me segue,
com seu longo cabelo solto ao vento.
Eu posso ver seus brincos, unhas longas,
roupa justa, sapatos e bolsa,
até mesmo meu batom de morangos.
Para me seguir,
ela se estica na rua de pedras,
e voa através do lago,
sobe nas árvores descuidadamente,
como se tudo no mundo
fosse uma relva macia.
Nós chegamos juntas ao meu destino,
mas ela, que me acompanhou
como um anjo disfarçado
sempre mudo,
de repente desaparece
atrás da cerca de papoulas.
VONTADES
Abrigo em mim tantas vontades;
vontades educadas que freiam
à luz do sinal vermelho,
e não correm pela pista que leva
aos excessos da boa mesa.
Vontades gordas de amar,
de dar abraços com extras medidas,
que me cairão perfeitos
sem que eu nem me preocupe
em aparar os excessos.
Tenho vontades loucas
de ultrapassar as barreiras
da qualquer nobre educação,
e no rosto de quem não a tem,
e que me trata com desdem,
deixar minhas mãos estalarem
quebrando tijolos de arrogancia.
Para remendar o mundo,
tenho longas linhas de vontades
que em pontilhadas microscópicas
se transformam em fantasmas
e dançam soltos sem arremates.
Tenho vontades aos montes
pelo corredor da mente,
que vão na mira das luzes,
mas numa árdua triagem,
libero somente as perfeitas,
que se realizam como modelos.
Essa janela um dia teve cortinas
voando em brancas rendas, como lembro...
Nelas, o sol batia e entregava
as sombras novas do velho novembro.
Lá fora as silhuetas das papoulas
bordavam nos tecidos um jardim
e fios relembravam primaveras
mostrando um cinza alegre de cetim...
Havia um rosto que ali sonhava,
cujos olhos enchiam-se de paisagem
seguindo os passos do amor querido,
com se ele fosse em longa viagem.
Neste novembro, tudo é diferente.
As flores já não lembram
primaveras,
e o sol já não brilha nas
cortinas,
e nem tão pouco aquele rosto espera...
Sou costureira de momentos.
Minha fita métrica
mede lembranças recortadas
de um passado,
tecido de antigos vendávais.
Moldo todas à minha moda,
com paciência,
ajustando-as com o esquecimento.
Experimento as opçoes,
levando alfinetadas.
Crio em meu atelier,
modelos mais precisos,
e visto o manequim de minha alma.
Rasgo os trapos de lembranças,
desnudando-o,
com esperanças
de que minha criação,
lhe caia mais que perfeita.
Tens essa força das águas
de transparencia só tua.
És meu remanso e maré,
mesmo em noite sem lua.
Tens encanto das nascentes,
surpresas de oceanos,
matizes de igarapés,
onde mergulham meus anos.
Quando as tristezas formam
pedras de meus temores
vem tua força das águas
estilhaça-las em flores.
És chuva doce que traz
gotas de melancolia
ou vem molhar meu vestido
em noite de ventania.
Tenho essa sede de tí,
e mesmo se tuas águas
tem limos de uma saudade,
lavam também minhas mágoas...
Os raios do sol de agosto,
formam um grande pincel
que brilha as ruas barrentas--
pra ele, nem tiro o chapéu.
Mas segue o sol tão artista
com sua cor original,
pintando filas de casas
parece até que é Natal.
As flores pelos caminhos,
se cor de vinho, rosadas
mostram nuanças mais claras...
disfarçam as desbotadas.
Em pinceladas douradas
vai esse sol-aquarela
tingir os corpos pelados
de chocolate ou canela.
Ah, sol de agosto que gosto,
quer pintar dentro de casa
e como chuva de sol,
por brechas se mete e vasa...
Solenes,
abrem-se as cortinas da mente,
e no salão branco,
as letras,
entram pela direita,
arrumam-se nas filas das palavras,
vestidas
em togas de tinta negra,
sempre alinhadas.
Tomam seus lugares,
serenas,
apressadas,
definitivas.
Do mundo inteiro,
nem sempre conhecidas,
criam, discursam
para olhos e ouvidos,
na linguagem das mãos.
As cortinas da mente se fecham,
mas em suas cadeiras vitalícias,
sempre acadêmicas,
as letras permanecem.
Rosa Clement © 2000
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