OFÍCIO
DE SER
Poesia orgânica
e meditabunda
Poesia de fel
Poesia de mel
Poesia que é vaso
de flores murchas
Poesia que é cesta
de frutos verdes
Poesia que é profunda
como mar aberto
Poesia que é quente
como ferro em brasa
Poesia que é fria
como iglus na neve
Poesia que é morna
como lenha adormecida
Poesia que é tudo
sempre
mesmo que seja
sempre Poesia
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TANTÁLICA
(Do Ciclo "Ânima")
Vivo a buscar
minha complexidade de espirais
a volubilidade do espanto
de meus encantos pessoais
Vivo a encontrar
meus túneis de fogo
e anéis de sangue
minha esgrima constante
exercício anímico
Vivo a buscar
a solidez das catedrais
gritando dentro de mim como anjos
soluçando o passado remoto
preso em raízes de concreto
Vivo a encontrar
os anéis que me enlaçam
à vida vulgar
tirando de mim toda luz e toda graça
a couraça e a bolsa
feitas de ossos e carne
Vivo a buscar
meus sonhos tantálicos e
dementes
a escória que mordi por entre
os dentes
o sangue que escoou
e que não sairá jamais
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CONTINUAR
A SER
(Do Ciclo "Ânima")
Continuar a ser é o meu desafio
mais do que tentar ser
ou de já ter tentado
O sofrimento se dá na colheita
e não no peso dos grossos
fardos
A alma do mundo é só
e alimenta
a todos com os próprios pecados
Mas a carne da vida é fraca
e não agüenta o vício
de segurar o mesmo fardo!
O vício de ser é que
atormenta
pois não ser é fraqueza
e é falta
É vácuo que não
sustenta
A conquista do ser é um arremate
da linha que não se costura
só se emenda
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GEOGRAFIA
DO TEU CORPO
(Do Ciclo "Erótica")
Gosto de teu cheiro doce
agreste salgado de sal
ameixa de mar e uva
aroma fino pro meu paladar
Gosto de tua cor morena
suave natural
moreno de cor mole brejeira
demônio angelical
Gosto do teu gosto acre
selvagem pantanal
pata de animal na terra
terra molhada água e cal
Gosto do teu olhar sereno
doce manso remanso
de águas turvas turbulentas
faróis no vendaval
Gosto de tuas unhas
mansas festeiras
vorazes trepadeiras
em meu jardim
Gosto de teus cabelos
cachos de uva tapete
algas marinhas
pros meus dedos festivos
Gosto de tua fogueira
tua lua clara
sombra negra
nadadeira no meu mar
teu gemido em meu ouvido
tua língua-cobra em meu pescoço
indicando a rota o caminho
do teu sangue no meu sangue
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EMARANHADOS
(Do Ciclo "Erótica")
Te sinto roendo minhas roupas
com fome de fé e de beijo
com fome de amor
de labirintos
paraísos perdidos de sonho
e de acalanto
carícias de ouvidos
nunca divididos
dedos emaranhados
em puro absinto
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CORPO PRESENTE
(Do Ciclo "Filosóficas")
meu corpo passado
meu corpo presente
meu corpo futuro
estão aqui e não estão
tenho três porções
divididas
entre a memória e a razão
tenho três elos divididos
todos eles na minha mão
não têm luz
não têm cor
não têm som
sou eu que os ilumino
na escuridão
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LINHA DIVISÓRIA
me sinto meio
linha divisória
um ponto entre a vida
e a história
o céu
e o papel
meu futuro
é um filme
de cenas congeladas
que já aconteceu
meu passado
é um crime
que meu corpo
cometeu
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HOMEM-MOEDA
Estamos todos
pendurados na mesma corda
procurando o que ninguém viu
e ninguém sabe
procurando ouro vil
dente de sabre
orelha de abano
pés de couro
sapato de luxo
brinco de ouro
Olho que olha por trás
da fechadura cega
da não-natureza
olho que vê e que nega
que o que mais gosta
é o que ele aposta
para não ver jamais
Homem-moeda
que luta e não sabe
que o que ele mais come
é o que mais o devora
que o que ele mais entorta
é o que mais o dobra
que o que ele mais acende
é o que mais o apaga
Quer ele queira ou não
ele cria sua própria fogueira
e sabe a sua hora da paixão
da subida aos céus
e da escuridão
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MEU CORPO
Meu corpo me faz e eu o quero.
Me fascina, deleita.
Pretensa pretensão de ser aquilo
que nunca poderia ser.
Me deita na luz do teu hospício,
pois a loucura é Deus e ilumina!
Luz sem fardas e sem gaiolas,
luz multicor...
Me põe no teu peito e me grita,
me fala através de mim!
Eu sou como árvore que se agita,
e a tempestade não sai de mim.
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É
PRECISO QUE A MULHER SE ENCANTE
é preciso que a mulher vá
à palavra
pois a palavra por si não irá
até ela
é preciso que a mulher vá
sem mágoa
até que a palavra a liberte dela
pois nada mais mortificante
que uma alma que sabe a nada
é preciso que a mulher se encante
e manche a palavra com seu batom
é preciso que a mulher não
se espante
em ser sozinha seu próprio tom
sua veia é forte e seu pranto exala
a colheita de seu viver profundo
é preciso que a mulher não
se acabe
sem dizer as coisas de seu mundo
pois exercer a voz é viver a vida
e estancá-la é encarar a
morte
é preciso que a mulher sem queixume
cante a sua dor sem trava
é preciso que a mulher vá
e não se cale
negando o seu melhor perfume