SIMBOLISMO E ARTE
Federico González

Almanaque, Alemanha s. XIV
III
O SER DO TEMPO
Simbolismo dos calendários
 
 
 

Da mesma forma que a Eternidade está em Deus, o cosmo está na Eternidade, o tempo está no cosmo, o devir está no tempo. E enquanto que a Eternidade permanece imóvel rodeando a Deus, o cosmo está em movimento na Eternidade, o tempo se realiza no cosmo e o devir transcorre no tempo.

Hermes Trismegisto. Poimandres XI, 2

 
Hoje em dia, os calendários são meros instrumentos de um tempo plano e linear, cujos elementos, chamados dias, sucedem-se ininterrupmente, de modo indefinido ao longo de um ano (que segue processionalmente outro e é continuado por um terceiro, etc.), divididos em conjuntos designados com o nome de semanas e meses e arrumados de maneira supostamente convencional em festas e jornadas trabalhistas. O calendário passou a ser um artigo de uso comum para comerciantes, empregados de escritório, trabalhadores, estudantes, amas de casa, etc., de eminente uso prático para computar compromissos, férias e feriados. Na realidade, se considerarmos o uso que deles se faz, podemos entender que não tem relação com o tempo em si, como elemento constitutivo da realidade psicofísica, mas sim com a sombra computável de seu transcorrer, melhor, de sua fuga em um espaço indeterminável, concebido como mecânico e simplesmente utilitário.

De fato, quem "inventou" o calendário originalmente o fez com outros critérios, onde a equação espaço-tempo é indissolúvel e forma tudo que existe, ordenando-o de modo harmônico, com correspondências evidentes entre suas partes tal como o cosmo em ação, ao qual o calendário simboliza: concepção totalizadora e chave salvífica, verdadeiro instrumento de Conhecimento.

Como se observa, ambas as formas de ver se opõem até o ponto de estarem invertidas, mas não por este motivo se alteram os calendários em si, ou se vêem afetados por isso, mas se trata apenas de um empobrecimento e de uma certa degeneração da visão dos homens atuais, aliada com a degradação óbvia de nossa cultura e entorno e, portanto, de nós mesmos, identificados com o social. Esta queda afeta a todo o coletivo universal e é o selo –ou estigma– contemporâneo: desta forma, uma concepção chã e profana da vida e do tempo faz dos calendários meros utensílios práticos, como as agendas e os almanaques, sem se suspeitar hoje nem de onde provêm, nem o que representam. Se o público médio soubesse que, entre outros muitos significados, eles são teúrgicos, ter-lhes-ia um certo respeito, ou ao menos um temor, talvez supersticioso, porém mais adequado à natureza intrínseca dos mesmos do que a desodorizada e asséptica indiferença atual.

Por tal motivo, é pouca a importância que se dá ao calendário (calendas = primeiro dia de cada mês) na atualidade e, tal como acontece com os números, é utilizado como uma simples ferramenta hipotética, sem sequer buscar averiguar sua origem histórica e, menos ainda, seus conteúdos enquanto expressão sintética de um pensamento que deu lugar, por seu intermédio –como imagem da cosmogonia em movimento, ao desenvolvimento das grandes civilizações e ao ordenamento cultural geral.

Adicionamos que hoje perdeu também seu caráter religioso, ao menos no Ocidente, o que é claro no Cristianismo, enquanto se pensa que a organização das festas, que ainda hoje persiste, é ritual e está em íntima relação com a vida do Jesus Arquetípico, ou seja, com a imagem do Cristo como salvador e regenerador do tempo e paradigma do processo cosmogônico, quer dizer iniciático, cujo sentido integra em sua própria unidade e cuja manifestação é o ciclo calendárico como instrumento rítmico e ritual, carregado de inumeráveis energias permanentemente atualizadas, relacionadas com a história sagrada: nascimento, vida, morte e ressurreição do ano ou do ciclo, imagem de um processo que tem como protagonista vivo o tempo, que permanentemente o limita e portanto configura. Desta forma os calendários, ao fixarem e expressarem o processo cosmogônico, sacralizam o tempo e o regeneram, ou o recriam, da mesma forma que são sua expressão ordenada no fluir do devir e, por isso, estruturam um espaço no caos do amorfo.

Porém, ao investigar alguns dos temas referentes à simbólica dos calendários, ou seja, seu significado real e concreto, devemos deixar de lado toda idéia de cronometria tal como hoje é concebida, quer dizer, a de um registro linear onde vão se inscrevendo frações, ou espaços sucessivos, que devem sua continuidade à soma das partes independentes de um indefinido, que se toma como a base de uma hipótese, ou de uma superestrutura tão rígida como imaginária, no seio da qual o tempo progride historiograficamente, por um lado, e pelo outro é medido por relógios inexoráveis que obstinadamente armazenam porções inúteis de informação.

Pelo contrário, as sociedades que criaram os calendários, e das quais herdamos o nosso, compreendiam o tempo como recorrente e, sobretudo, como constituindo parte essencial da própria Criação Universal (macrocosmo), ou seja, como integrando o ser do homem (microcosmo), e portanto como algo que não está fora e pode ser objetivamente enunciado ou medido, não como uma categoria do ser, mas sim o Ser mesmo, em toda a potência universal contida na própria idéia do Tempo como símbolo móvel do Eterno e do Imóvel; do qual tem em conta o milagre original da Memória e as correspondências que guardam os seres, as coisas e os acontecimentos em geral, que os fazem distintos e significativos e, por isso, também interdependentes e não excludentes.

Para uma visão tradicional, o Tempo é o sopro vital, o Grande Coesor do criado 20, e é absolutamente natural que sua expressão gráfica seja a de uma circunferência que, ao limitar um espaço, configura um círculo 21, uma primeira figura plana, tanto de um espaço original, como do ciclo em que é vivido, ou revivificado, pela ação espontânea do tempo, gerador permanente do movimento e das leis que o regem e em total correspondência, como não seria diferente, com suas próprias origens, com sua razão de ser; com o Ser do Tempo como fundamento de todo o criado.

Isto apenas bastaria para ligar imediatamente estas concepções com a idéia do sagrado e da divindade, evidente neste pensamento a respeito das origens e da estrutura cósmica, e por certo são numerosos os deuses fundamentais de todos os panteões ligados ao tempo, a seu transcorrer, a sua velocidade e à memória e esquecimento, ao hálito vital, ánima mundi, ritmo, ciclo, etc.

É lógico pensar, portanto, que se o tempo é extremamente sagrado para uma sociedade tradicional, o calendário também o é, miniatura e imagem do cosmo, fixação do devir, revelação de um saber atemporal que toma o movimento como projeção espacial do tempo ao conjugá-lo em um contínuo. Por isso consideramos muito adequado o estudo dos calendários tais como instrumentos sagrados, reveladores ou mediadores do Conhecimento que eles mesmos levam em sua estrutura, ou seja, como epifanias permanentemente disponíveis para transformar o mutável em imutável, o visível em invisível, o caos em ordem, a projeção indefinida em verdadeira ontologia, ou seja: no Ser do Tempo como hálito vital do Ser do Cosmo.

Em outro lugar, e nos referindo aos calendários mesoamericanos 22, dissemos, enunciando conceitos análogos aos aqui vertidos:

O tempo sempre é atual; não é algo gerado nos começos e que subsiste como um componente abstrato da realidade psicofísica, mas sim expressa essa mesma realidade agora, pois ele é uma de suas condições, quer dizer, um elemento sempre presente, sem o qual a vida não seria possível. Sua qualidade é, então, parte constitutiva do cosmo e sua forma de manifestar-se –que pode ser medida quantitativamente no espaço– a maneira em que este se expressa e, portanto, uma chave para a compreensão de sua essência, um módulo válido para o conjunto da criação. Nesta perspectiva, têm particular importância as revoluções dos astros e das estrelas no firmamento que, por estáveis com relação à rapidez do movimento da Terra, têm de servir como guias e pontos de referência para se estabelecerem as pautas gerais do conjunto –a harmonia que Pitágoras chamava "música das esferas"–, que se obtém pela interação de todos os movimentos individuais, incluído o da Terra, coincidentemente com o que nela se produz, começando pelo homem.

Efetivamente, tanto o movimento (aparente) do Sol no dia, ou melhor, a forma binária em que o dia se expressa –manhã-noite ou luz-escuridão–, é a primeira partição que o plano cósmico aceita, quer dizer, o nascimento e morte do Sol, origem perpétua de vida, e sua posterior ressurreição do seio da noite, anunciada pelo despertar de um novo amanhecer.

Para o homem tradicional este é um claro sinal visível do modo binário que se encontra presente em tudo o que lhe circunda e leva internamente. Por um lado o crescimento do Sol até seu apogeu; em seguida, a inevitável decadência e a extinção; não resulta difícil equiparar por analogia este fato com a vida do homem e de tudo que existe, e concluir que se trata de um par de opostos que se conjugam para que, da mesma forma, a regeneração e a vida se propaguem de maneira permanente, dando continuidade à criação, o que configura um plano divino que se cumpre inexoravelmente e no qual o ser humano participa.

Por outra parte, quando o Sol morre e começa seu percurso pela metade do círculo do inframundo, aparecem inumeráveis signos, luzes e estrelas, que também, encabeçados pela Lua (esposa ou irmã do Sol)23, fixam pautas nítidas, ritmos e proporções ao conjunto universal.

A Lua e seus ciclos em particular foram, obviamente, dos primeiros parâmetros vigentes utilizados para estabelecer relações de todo tipo, e manifestar a cosmogonia resultante da interação dos diversos corpos celestes –a Terra inclusive– e fixá-la no calendário, que não é mais que a projeção da revelação cósmica e do Ser do Tempo, como dissemos. Muitas culturas conservaram em sua estrutura as fases da Lua como ponto referencial de primeira magnitude. Em outros casos, os calendários ainda vigentes conservam um ponto de vista soli-lunar alternado, como no cristianismo e seus ciclos rituais. Necessariamente todas a culturas tomaram a luminária noturna e seus ciclos como uma das medidas fundamentais da cosmogonia e seus ritmos, e estas pautas altamente significativas se associam com inumeráveis termos conhecidos ou experimentados, tanto no nível físico como no psicológico 24.

Se o movimento da Terra ao redor do Sol no dia produz o primeiro ciclo unitário e recorrente, as fases da Lua configuram as semanas e os meses, ou seja, espaços mais demorados de tempo e, portanto, ciclos mais amplos, embora devam ser considerados conjuntamente estes planetas, já que a Lua é um satélite da Terra.

Ao dia e ao mês deve ser adicionado o ciclo do ano, ou seja, a viagem zodiacal do Sol, que inclui ambos. Estas são as medidas que os calendários registram, às quais se deve acrescentar, por um lado, uma medida fundamental para todas as grandes civilizações, o Grande Ano de 26.000 anos (25.920) ou 13.000 (sua metade) em números "redondos" 25, correspondente a precessão equinocial (deve-se assinalar que este movimento é retrógrado) e de modo secundário outras relacionadas com planetas e estrelas (a estrela Polar, as Plêiades e as "fixas" em geral, assim como os movimentos de Vênus e outros astros, ex.: os eclipses e nodos lunares).

Isso faz com que os calendários expressem precisamente os ciclos e ritmos cósmicos e, portanto, o conhecimento das ciências que os veiculam, que têm naqueles sua expressão mais genuína.

Temos, portanto, três grandes marcos, ou maneiras de ver o conjunto da criação, marcados em primeiro lugar por um movimento correspondente à Terra (rotação), o qual inclui à Lua e suas fases como medida ou metro preciso da reiteração deste movimento; em segundo termo o movimento de translação, que é o que tendo ao Sol como eixo visível realiza a Terra em um ano percorrendo as estações zodiacais e que tem ao astro rei tanto como principal protagonista como quanto medida do conjunto cósmico, movimento identificado como um dia do Sol; e finalmente o movimento de pião que produz a Terra ao girar sobre seu próprio eixo, e que é visualizado como um "ano" do Sol (ou sua metade), idêntico ao Grande Ano das civilizações arcaicas que fizeram sabido uso dos calendários; este último movimento, que como já dissemos é polar e visível enquanto determina um grau na circunferência a cada 72 anos (25.920 = 360 x 72), é observável e simbólico para os povos atentos ao valor sagrado e determinante da cosmogonia, sobretudo tendo em conta aquilo que as sociedades tradicionais consideravam como revelado e fundamental 26.

São três, portanto, as medições básicas às quais se referem os calendários e que desejamos reiterar aqui, posto que não são arbitrárias, mas se correspondem perfeitamente com a ordem natural da criação universal, pois têm como referência: 1) à Terra e sua rotação (ao movimento aparente do Sol nela) como manifestação do dia (primeira unidade temporal) a qual deverão ser adicionadas as fases de seu satélite, a Lua, computando os meses e eventualmente sua partição em semanas, embora considerada em conjunto com a Terra; 2) ao Sol em seu percurso anual (movimento que gera uma unidade de medida mais completa, o ano) e 3) a precessão dos equinócios (ou sua metade), uma imensa revolução retrógrada da Terra sobre seu eixo –estudada na cultura ocidental por Hiparco de Nicéia– conhecida pela totalidade dos povos que deixaram calendário e que constitui a "medida" maior, ou a mais ampla "proporção" que tenha um sentido inteligível para o ser humano.

Como se poderá perceber, estas medições são efetuadas de um plano geocêntrico, ou melhor, de uma perspectiva antropocêntrica27, assunto que é muito importante destacar, assim como o fato de que os pontos de vista considerados são cada vez mais amplos e universais à medida que se remonta e se amplia a escala que, por outra parte, coincide –não arbitrariamente– com uma "desaceleração" ou "alentecimento" do Tempo, que então não só é considerado como uma sucessão de anedotas mais ou menos consumíveis, mas também, em outra dimensão mais acorde com seu sentido real e majestade verdadeira, que pudesse ser enunciada, de modo paradoxal, como uma atemporalidade do temporal; o que inclui uma valoração, um sentido, que forma posteriormente uma ordem, ou seja, uma série de estruturas complementares e articuladas que desembocam na Cosmogonia (ou, também, se preferir, na cosmovisão) própria de cada cultura, segundo os atributos que diferentes homens destaquem dos diversos seres ou fenômenos celestes, embora idêntica em suas formas essenciais, já que é o mesmo o modelo ao qual elas se referem, apesar das diferentes perspectivas em que é focalizado 28.

Na cosmogonia de Ptolomeu, reflexo da concepção platônica e da tradicional em geral, emanada da Alexandria gnóstica, que regeu de uma ou outra maneira o destino do Ocidente até o Renascimento e determinou os distintos calendários que hoje ainda utilizamos, projeta-se no plano a imagem de um esquema vertical e espacial que destaca a presença de dez mundos, ou "esferas" sobrepostas umas às outras em relação a um eixo ideal. Esse eixo tem por centro o Sol; como ponto mais elevado ao Primum mobile (equiparado ao Pólo norte) e à Terra como seu extremo inferior (Pólo sul). Nele se sobrepõem as órbitas dos planetas tradicionais: Lua, Mercúrio e Vênus como interiores ao Sol, e Marte, Júpiter e Saturno como exteriores a ele 29.

Andrea Cellarius, Harmonia Macrocosmica
Amsterdam 1678

 

Outras "esferas" são ocupadas pelas estrelas fixas, ou pelo zodíaco e pelo celestial, embora haja pequenas diferenças de detalhe em versões análogas. No diagrama da Árvore da Vida da Cabala acontece o mesmo e, como em ambos os casos –e em outros, o tempo e o espaço são considerados um todo; acontece que os calendários registram no tempo e atualizam, na seqüência, o esquema espacial cósmico ao qual apenas fazem fixar em seu permanente movimento rítmico e cíclico.

Isto resulta claramente refletido na arquitetura sagrada, onde os edifícios estão situados, por um lado, seguindo as direções do espaço e, por outro, projetando o transcurso temporal, quer dizer, a forma dos céus e seus movimentos harmônicos 30.

De fato, a observação e estudo das pautas do transcorrer de astros e estrelas estabelecem diferentes proporções, que se transformam em números dentro de uma escala em relação com figuras geométricas e módulos que contêm igualmente um conteúdo musical, enquanto que a sinfonia do céu ou da lira de Apolo é audível ou perceptível por meio da intuição, estabelecendo também uma relação tempo-música, tendo em vista que, se aqueles movimentos que testemunham os calendários fixam a projeção espacial do tempo, analogamente a música é a projeção espacial do verbo.

Certamente, estes modelos são paradigmáticos e, portanto, sempre atuais; e essa atualidade está expressa pelo calendário nos ciclos aos quais ele faz referência e que enumeramos anteriormente, quer dizer: ao ciclo diário, ao da Lua, ao do Sol anual e ao da precessão equinocial (ou outros ciclos como o "século", as revoluções "excêntricas" de Vênus, os nodos lunares, etc.), levando em conta, como dissemos, outros movimentos que inclusive são considerados em vinculação com os anteriores. E é possível assinalar que a Cabala também estabelece seu esquema simbólico da Árvore Sefirótica articulado axialmente: ao redor de um eixo polar ou coluna, que compreende, em ordem ascendente a Terra, a Lua, o Sol, e ao primeiro motor, na sumidade, identificado com a unidade, chamado Kether (Coroa) 31.

Na realidade, esta correspondência entre culturas diferentes, idéias análogas e relações espaço-temporais não nos deve surpreender. Inclusive existe unanimidade nelas em relação à identificação de macro e microcosmo, e tanto é o homem um Universo reduzido, como o cosmo o Homem Universal:

Como é encima é embaixo

reza o texto da Tábua de Esmeralda, e a tradição hindu situa seus centros de energia no homem (microcosmo) ao longo da coluna vertebral (chakras)32, como igualmente o fazem os hopis dos Estados Unidos. Permita-nos citar aqui o Tratado do Fogo e do Sal de Blaise de Vigenère:

Pois assim como Deus fez o Sol, a Lua e as estrelas, para sinalizar no grande mundo, não só o dia, a noite e as estações, mas também as mudanças dos tempos, e muitos sinais que devem aparecer na Terra, assim tem feito sinalizar no homem, o pequeno mundo, certos traços e linhas que fazem o papel de estrelas e astros, pelos quais se pode chegar ao conhecimento de muito grandes segredos, nada vulgares, nem conhecidos de todos.

O Tempo é o Verbo feito carne, sopro do Espírito criando a Alma do Mundo. O Tempo deve ser tomado como expressão psico-física, viva, da realidade, cujas leis e venturas os calendários registram, pois estes expressam precisamente os ciclos e ritmos cósmicos e, portanto, o Conhecimento tem neles sua expressão genuína.

Igualmente, o calendário é a primeira notação, o fundamento da escritura; é na verdade, como dissemos, o sopro do verbo encarnado; e esta descrição arquetípica da cosmogonia é também o primeiro rudimento que dará lugar a determinados registros (genealogias, feitos simbólicos e mágicos) que serão posteriormente os anais do ser humano: sua idéia da História, sua imersão em um tempo seqüencial. O calendário é também a articulação de um sistema, um jogo de correspondências e analogias, uma estrutura classificatória e uma fonte de revelação que deste modo regra a vida dos seres humanos. Em conclusão, o Ser do Tempo é em si seu desenvolvimento espacial, seu movimento vital e, com Ele, a geração de tudo o que produz em seu devir; é na realidade o "sendo" do verbo ser, quer dizer: as pautas reiterativas da cadência de um discurso cíclico e a possibilidade de apreender sua essência por seu intermédio, utilizando como suportes determinadas conjunturas de seu percurso (os dias "festivos") com o fim de transcendê-lo, ou melhor, de vivenciar outros níveis de conhecimento mais imanifestados do Ser Universal, fundamentalmente no plano do mundo sensível e, desde já, tudo dentro da ordem cosmogônica, à qual configura.

As festas, ou seja, os espaços significativos onde o tempo ordinário pode ser abolido, são pontos simbólicos de conjuntura dentro de um tempo monótono e insignificante e assinalam, na continuação do ano, o que é o Tempo em Si ao valorizá-lo e reintegrá-lo a um espaço originário; dito de outro modo, o Tempo não seria nada, seu Ser, sem as festas, ou espaços, especialmente assinalados por sua projeção ou hálito, o movimento, para compreendê-lo ou invocá-lo. Nestas "estações" que o movimento faz, o tempo se reintegra, e é reintegrado de uma vez só pelo rito humano a sua Origem Arquetípica. Não há, pois, maior oportunidade de síntese que vivenciar o Tempo como se fora Espaço; um só e absoluto espaço vazio; pois se o movimento que os calendários testemunham é a projeção espacial do tempo, a absorção deste no atemporal é semelhante a "finalizar o discurso sem ter movido a língua" como reza o texto zen-budista.

Duas foram sempre, para todos os povos, estas estações fundamentais onde o Sol aparenta deter-se em seu percurso anual, e elas marcam dois pontos extremos em uma circunferência; referimo-nos aos solstícios, palavra em cuja etimologia está implícita esta "estação", este "deter-se", este invariável e periódico sinal que divide o ano em duas partes; e posteriormente em quatro, com os equinócios como pontos intermédios, estabilizando-o, emoldurando-o e estruturando todas as festas sucessivas.

A volta da Terra sobre si mesma, a da Lua ao redor da Terra, a da Terra em torno do Sol (anual e zodiacal) e a da precessão equinocial (o ano do Sol) proporcionam-nos as unidades fundamentais antropocêntricas com as quais podemos apreender o universo e o fluir indefinido da existência; dias, meses, anos e grandes anos nos determinam o enquadramento onde é possível a vida humana, quer dizer, sua organização e fixação no espaço amorfo. A tudo isso se adicionam as revoluções das estrelas, das constelações e suas conjunções, e os percursos às vezes excêntricos dos planetas, especialmente de Vênus, Marte e Mercúrio. É bom que se diga que todos estes planetas são deuses e que eles "santificam", fazem sagrado, o transcorrer do tempo, o que é óbvio no significado dos nomes dos dias da semana, que se repetem indefinidamente sob os mesmos patrocínios permanentes, os quais assinalam também os dias de mercado, imprescindíveis para a comunicação e para a vida social, e em períodos mais extensos os meses e determinadas datas reiterativas para as atividades agrícolas (também sagradas) de semeadura e colheita, indispensáveis para a vida dos povos.

Por outra parte, é no discurso do Tempo onde se produz a revelação, e é por meio deste e sua sucessão e pausas, que o caracterizam, que se compreende a simultaneidade de um só gesto criativo, cujas ondas se expandem em um espaço indefinido, criando mundos e gerando permanentemente novas possibilidades.

Por isso, a origem é sempre entendida e vivenciada como o que está "detrás", constituindo o passado; esse passado não é cronológico, mas sim meta-histórico, não é na verdade linear, mas sim vertical –essencialmente mítico– e, portanto, pertencente a "outro" tempo e "outro" espaço, ligados intimamente com as "reminiscências", ou seja, com a Memória como Coração do Tempo, e introdutora a um mundo ou plano diferente do Ser Universal.

Por isso o calendário revela o rito cósmico e os ciclos respectivos (a manifestação da eternidade e a simultaneidade no movimento temporário).

Também por esse motivo a astronomia deveria ser um auxiliar poderoso da iniciação para aquele que penetrou na mecânica celeste; igualmente, o calendário, Arte e Ciência da Memória Cósmica, Ciência dos Ciclos e dos Ritmos. Da mesma forma a Astronomia Judiciária, ou Astrologia, que vincula o Universo com o Microcosmo.

Tudo isso caracterizado por três níveis que se reconhecem também no ser humano e que estão relacionados com o caminho iniciático; o primeiro corresponde ao estado psico-físico profano no que tem de mais grosseiro; os outros dois representam a iniciação solar e a polar respectivamente e são cada vez mais sutis e "informais", mais atemporais e "alentecidos" 33. Por outro lado, como já observamos, a iniciação se produz no Tempo, ou melhor, trata-se de um trabalho com o Tempo, se isto pode ser dito.

Para muitas disciplinas iniciáticas, o conhecimento da lei cósmica e de seus distintos níveis de realidade, ou seja, a cosmogonia, é o passo prévio ao reconhecimento do ser no mundo, a relação do ser individual com o Ser Universal; este é o motivo do Conhecimento do Ser em si mesmo, ou seja, a ontologia como integração de tudo o que a lei ordena e como suporte da metafísica (quer dizer, para aquilo que está além da lei cósmica), que se intui em qualquer nível dos já mencionados; assim, o que se observa é como acontece a Manifestação, evidenciada no modelo da Árvore da Vida, sendo que do mesmo modo descendem as Musas, emissárias e, ao mesmo tempo, filhas do som da lira de Apolo.

Só desejamos reiterar, para terminar, que na rota iniciática de ascensão pela Árvore da Vida, quanto mais elevado o planeta, mais lento; exemplos: Saturno e a ancianidade como expressão de sabedoria (inclusive biológica), enquanto Mercúrio é rápido, preparado e impulsivo. Quanto mais lento o movimento mais atemporal e vice-versa: quanto mais rápido, mais veloz e sujeito à relatividade do instante. De fato, qualquer ascensão (o subir de uma torre) é lenta e dificultosa; pelo contrário, a descida (jogar-se dessa torre) é rápida e, progressivamente, cada vez mais veloz ao ponto de acabar na destruição, ou seja: na morte, conclusão cíclica de qualquer organismo vivo.


NOTAS
20 Nesse sentido o Tempo é a imagem do Amor Divino permanentemente atualizado para assegurar a Vida Universal.
21 Em algumas tradições esta expressão é quadrada. Ambas as figuras, entretanto, são análogas e se correspondem.
22 El Simbolismo Precolombino. Cosmovisión de las Culturas Arcaicas. Cap. "Los Calendarios Mesoamericanos". Kier, Buenos Aires, 2003.
23 Também irmão em certas cosmogonias.
24 "Certamente, a vista, segundo meu entendimento, é causa de nosso proveito mais importante, porque nenhum dos discursos atuais sobre o universo nunca teria sido feito se não víssemos os corpos celestes, nem o sol, nem o céu. Na realidade, a visão do dia, da noite, dos meses, dos períodos anuais, dos equinócios e dos giros astrais não só dão lugar ao número, mas também estes nos deram também a noção do tempo e da investigação da natureza do universo, por isso nós procuramos a filosofia. Ao gênero humano nunca chegou nem chegará um dom divino melhor que este. Por tal afirmo que este é o maior bem dos olhos. E do restante que provêem, de menor valor, aquilo que alguém não amante da sabedoria lamentaria em vão se tivesse perdido a vista, o que poderíamos elogiar? Por nossa parte, digamos que a visão foi produzida com a seguinte finalidade: deus descobriu o olhar e nos fez um presente com ele para que a observação das revoluções da inteligência no céu nos permitisse as aplicar às de nosso entendimento, que lhe são afins, como podem sê-lo das convulsionadas às imperturbáveis, e ordenássemos nossas revoluções errantes por meio da aprendizagem profunda daquelas, da participação da correção natural de sua aritmética e da imitação das revoluções completamente estáveis do deus." Platão. Timeu 47.
25 Referimo-nos ao período de 13.000 anos, ano platônico, ou magno, onde o sol, a lua, e os cinco planetas restantes voltam para sua exata posição inicial.
26 A cada ano, no dia dos solstícios (ou dos equinócios), o sol aparece atrasado com relação ao ano anterior.
27 Identifica-se a terra com o corpo humano.
28 Os calendários são o fiel reflexo da cosmogonia dos povos que os desenharam, e suas pautas, os módulos que engendraram suas civilizações; isto é também válido para todas aquelas culturas –as dos povos nômades, por exemplo– que não levam conta dos ciclos e ritmos mais amplos e estáveis (inclusive por impossibilidade física), mas sim daqueles necessários a sua economia vital.
29 Os planetas "interiores" ao sol e suas influências (Lua, Mercúrio, Vênus), e os "exteriores" (Marte e Júpiter, Saturno) também estão determinados de modo hierárquico; igualmente, cada um deles tem dois aspectos, um "ascendente" e outro "descendente"; exemplo: o Mercúrio vulgar e o dos filósofos, a Vênus Pandemos e a Vênus Urânia, etc.
30 Isto é claro nas pirâmides pré-colombianas em geral, dentro das quais destacaremos a chamada "de Kukulkán", em Chichén Itzá, que é uma imagem de sua cosmogonia –nove estádios coroados pelo Templo orientados por volta das quatro direções do espaço e uma cripta interior– e de seu calendário, já que simultaneamente registra em sua arquitetura, por um efeito ótico (um jogo de luzes e sombras), a descida da serpente emplumada por uma de suas faces, exatamente no equinócio da primavera, ao amanhecer. Sobre algumas destas verificações, ver o trabalho muito interessante de certos arqueoastrónomos; Anthony Aveni, por exemplo: Observadores del cielo en el México Antiguo. F. C. E. México 1991.
31 Eixo terrestre e eixo celeste são aqui homologáveis; ambos são imagens dos pólos arquetípicos e na Árvore da Vida cabalístico, Malkhuth, a sephirah correspondente à Terra, é o pólo sul do modelo cosmogônico.
32 Ver Federico González: La Rueda, una imagen simbólica del cosmos. Cap. V: "Dos modelos herméticos, Cábala y Tarot".
33 As lunares, ou sub-lunares, não são propriamente iniciações, embora abonem, ou melhor, possam abonar o caminho do Conhecimento.

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