Federico González |
APONTAMENTOS SOBRE HERMETISMO E CIÊNCIA (II) |
Tentaremos
ilustrar este paradoxo: a de que a Tradição Hermética está na
Origem da Ciência, considerada esta última como aplicação à realidade
concreta dos princípios herméticos e das doutrinas alquímicas
e teúrgicas e, ao mesmo tempo, como a visão literal e racionalista
apoderou-se pouco a pouco do homem ocidental, que transferiu conhecimentos
da ordem vertical à parcialidade horizontal e assim ficou indefinidamente à deriva,
a ponto de ameaçar sua sorte. Mas ao mesmo tempo isto produziu,
por sua vez, outro paradoxo: que a progressão brinda agora inumeráveis
portas de acesso para todos aqueles chamados ao conhecimento, o que é também
uma extraordinária riqueza quando se ordena e se consegue sintetizar.
Do Um ao múltiplo e, deste, o retorno à Unidade: um duplo
movimento simultâneo, que se expressa mediante séries de parcialidades
que tomam formas sucessivas e dissímeis, como as que estamos descrevendo.
No final do século XV se produzem acontecimentos muito importantes que são precedidos e seguidos por toda espécie de desenvolvimentos, nem sempre fáceis de perceber num primeiro momento, mas que têm sua origem neles. Iniciou-se para o Ocidente a era da experimentação, e também a dos descobrimentos e inventos. Efetivamente, em 1492 se descobriu a América, acontecimento que mudaria a face do mundo, em mais de um sentido, naquele momento e nos séculos posteriores. O que foi produto de uma mescla de fatores que, por um lado estavam fundados em novos descobrimentos que apontavam a um conhecimento distinto da realidade, ou melhor a uma descrição diferente da mesma, e que obviamente se ligaram com uma concepção diferente da geografia, diversa à corrente naquela época, que se ampliava imensamente no espaço e se insinuava já como uma cosmologia pluridimensional que abandonava a geometria plana e a visão anterior, muito mais antropocéntrica que geocêntrica, como se costuma dizer. Certamente que para o Corpus Hermeticum o sol tem um papel fundamental em sua cosmogonia, acompanhado pelos astros regentes como no Timeu ou qualquer cosmologia tradicional. Dos primeiros cientistas, quem deixou a visão aristotélica e a de Tomás de Aquino, e que a partir do Séc. XV começaram a percorrer outros caminhos, ainda muitos deles seguindo a Ptolomeu, é que se nutrem os conhecimentos que darão lugar à chamada "revolução científica",18 cujos protagonistas principais, não sempre convenientemente destacados, Copérnico, Galileu, Brahe, Newton, Boyle, Kepler,19 etc., considerados hoje os pais da "ciência moderna", derivam suas cosmogonias, ou grande parte delas, além do hermetismo, de fundamentos antigos da filosofia clássica –especialmente do Platão e dos autores árabes–, e de idéias esotéricas e concepções impregnadas de misticismo ainda relacionadas com interpretações bíblicas, o que o público médio hoje parece ignorar.
Para traçar este esboço das relações do Hermetismo com a Ciência, serviu-nos de pedra de toque, como dissemos a princípio, o catálogo de duas grandes bibliotecas diretamente relacionadas com o tema e que portanto se constituem em documentos históricos. Trata-se como já mencionamos da Biblioteca Colombina e a Bibliotheca Chemica, sendo esta muito posterior e pertencendo grande parte de suas entradas ao que se chamou o Renascimento na Inglaterra, sendo seu conteúdo decididamente hermético-alquímico, mas diretamente colecionada como uma biblioteca química-farmacéutica por um dos primeiros industriais e mineralistas, James Young of Kelly –transladada à Universidade de Glasgow quando da morte deste– e catalogada e comentada por John Ferguson. A primeira destas bibliotecas representa o mundo aristotélico e teológico medieval, a segunda a visão científico-mágica do Renascimento, em particular a da Alquimia-química, Hermetismo, Farmácia, Medicina e Mineralogia. Em todo caso nenhuma das duas tem nada que ver com a "religião científica" atual, instaurada dentro de uma corrente que se impôs definitivamente, e ainda segue sendo oficial face às concepções das últimas investigações da ciência, inclusive da Física Quântica. A Biblioteca Colombina, depositada na Catedral de Sevilha, foi formada por Colombo; Hernando Colombo, filho do descobridor –com o qual participou de sua quarta viagem a Índias–, quem além de uma relação muito estreita com seu pai, que o levou a escrever a História do almirante Cristóvão Colombo, (documento fundamental que começa com seus descobrimentos e deixa na obscuridade tanto as origens do navegante como a idéia e concreção de suas viagens), teve uma vida bastante destacada na corte da Espanha desempenhando diferentes postos e funções (por exemplo: propôs a Carlos V a fundação de uma Academia de Matemática), como no resto da Europa. Prova disso é sua extensa biblioteca que aqui mencionamos, adquirida nas cidades mais importantes de seu tempo, segundo suas próprias notas manuscritas inseridas nos livros. Desgraçadamente não se trata da biblioteca do próprio almirante que, como seu filho, é homem de estudo e gabinete,24 embora se conservam quatro obras que tinha em Córdoba conforme afirma Jacques Heers em sua obra Cristóvão Colombo: Estas quatro obras, que atualmente se conservam na biblioteca colombina de Sevilha, são:
Na já citada obra de Hernando Colombo sobre seu pai pode ser lido25:
De fato o catálogo da biblioteca de Hernando Colombo, de modo geral, dá-nos a idéia de uma coleção medieval, com muita influência teológica e eclesiástica, inclusive com muito numerosos livros de piedade e opúsculos devotos, em que não faltam os autores e filósofos da antigüidade grego-romana, os esoteristas e teósofos, à par de que as obras de cultura geral, e os tratados de matemática, medicina, cosmografia e geografia disponíveis nessa época, já que terá que ter muito em conta para qualquer valoração, que as obras impressas eram muito escassas naquela época, e em muitos casos as edições dos primeiros incunábulos quase não superavam em número à de certos manuscritos. Infelizmente o ingresso de novas obras se acabou com a morte de Hernando Colombo e, até essa época, as idéias renascentistas relacionadas com Hermes, com o neoplatonismo, Pitágoras, etc., propagadas pela tão mencionada escola de Florença e seu representante máximo Marsílio Ficino e seguidas por diferentes autores e investigadores de diferentes partes da Itália e do resto da Europa, logo começavam a acender nas almas mais qualificadas, em parte pela lentidão da informação a que nos acabamos de referir e certamente pela mesma natureza do processo intelectual que supõe uma mudança de perspectiva tão importante como o que significou o nascimento da Ciência Moderna. De fato, terá que se esperar até que aparecessem os manifestos sobre O avanço do saber emitidos por Francis Bacon (The Advancement of learning, 1605) para que se "oficializasse" o "método" científico, embora isto só foi o desenvolvimento de uma série de idéias e ângulos de visão entre as quais o Descobrimento da América influiu de modo direto, e sobretudo de maneira subliminar, tal qual um suposto da civilização do Ocidente e de sua posterior irradiação no mundo inteiro. É curioso que fora um Bacon, Roger, quem tivesse promovido o conhecimento científico na Idade Média, e que outra individualidade do mesmo sobrenome, Francis –ao qual se lhe atribuiu entre outras coisas a obra shakespeariana–, e autor da utopia sobre a Nova Atlântida, fosse o caudilho da Ciência no Renascimento inglês, ou seja, a passagem cultural que vai da Biblioteca Colombina à classificada por Ferguson.29 O espaço de tempo que as separa indica duas maneiras de encarar um mesmo fato, o Conhecimento, mediante formas diferentes de aprendizagem que, inclusive, levarão com o correr dos anos a resultados diametralmente opostos às inquietações que os geraram e que se solidificaram –permita-nos repeti-lo uma vez mais– na alienante historia de um progresso indefinido, e no racionalismo, que tomam não à Ciência como um meio de Conhecimento, mas sim como realidade à qual terá que se ater estritamente, tal como uma nova forma dogmática religiosa. E que imaginam a salvação do gênero humano por meio deste "progresso", hoje crédulo à técnica e à eletrônica, idéia completamente vigente em nossa sociedade, embora rechaçada também cada vez mais parcialmente –ou em sua integridade– por seres humanos desenganados ou exaustos, muitos deles lúcidos embora superados amplamente pela ignorância e o engano das massas. Isto ocorre de forma semelhante com as teorias da evolução segundo as quais homens e mulheres surgimos a partir de espécies inferiores. Já mencionamos que estes são tão somente uns apontamentos, entretanto pensamos que podem servir para dar-se conta da importância e do alcance deste tema. A questão das origens mágico-teúrgicas, quer dizer sagradas ou inspiradas, da ciência e, portanto, o processo da formação da ciência moderna por degradação cíclica de um pensamento hermético, é possível de observar para qualquer um que estude sem preconceitos seu devir.30 Definitivamente, este tema concerne à história oculta da coisas e à presença contínua de Hermes para nossa civilização. E se a História das Idéias é a memória dos homens e portanto necessariamente uma visão do cosmo, conhecer as origens cíclicas é uma forma de reencontrar a si mesmo num mundo que também é outro, de remontar a corrente para a simultaneidade de alguns conceitos que estão na essência da Cosmogonia, e que constituem uma abertura à Metafísica. |
NOTAS | |
18 | É necessário esclarecer que as matemáticas modernas, quer dizer as aplicadas –que formam parte de nosso condicionamento cultural–, não constituíram um tema fundamental da revolução científica, senão que os números foram considerados como princípios vivos no Cosmo e nunca como sistemas estruturais e abstratos tal qual os de Descartes e outros cientistas continentais em relação com a Inglaterra. |
19 | "É minha intenção, leitor, demonstrar neste pequeno livro que o Criador Optimo Máximo, ao criar este mundo móvel e na disposição dos céus se ateve aos cinco corpos regulares que foram famosos dos dias do Pitágoras e Platão até os nossos e também que em função de sua natureza ajustou seu número, suas proporções e a razão de seus movimentos." (Joannes Kepler, El secreto del universo. Alianza Ed., Madrid 1992). apesar da disputa que manteve com Fludd, onde lhe acusava de utilizar métodos não puramente matemáticos, como ele o fazia, mas sim herméticos, Kepler, admirador de Nicolas de Cusa, seguiu toda sua vida um tipo de pensamento místico-filosófico baseado em Platão e Pitágoras e na Harmonia das esferas, o que está claro em seu Harmoniae Mundi que nada teria que ver com o mantido pela ciência no futuro, pois posteriormente todo rastro de espiritualidade teve que desaparecer em seus caminhos e se tomou Kepler, tal como Newton e ao próprio Bruno conforme vimos, como a um cientista agnóstico, só interessado pelo conteúdo empírico de sua teoria sobre as órbitas elípticas dos planetas, separada de todo conteúdo relacionado com a sacralidade da criação. |
20 | G. Reale e D. Antiseri: Historia del pensamiento filosófico y científico, II: Del humanismo a Kant. Herder, Barcelona 1995. p. 174-175. |
21 | Ver J. Vernet, Lo que Europa debe al Islam de España. El Acantilado, Barcelona 1999. |
22 | Não é demais dizer que nesse país Gemisto Pleton conheceu ao astrônomo Toscanelli quem, por sua vez, teve contato com Colombo. Por outra parte o mesmo G. Pleton foi o que deu a conhecer a obra do Estrabão ao ocidente. |
23 | Na obra de A. Kircher, Edipo Egípcio (II, 2), os egípcios são considerados os inventores da mecânica, derivada de sua gnose, já que disso se tratava nos parágrafos contidos no Asclépio, referentes às estátuas animadas –que para outros com bom critério eram imagens dos Apóstolos criados por Cristo, ou as possibilidades de reviver aos mortos ou homens ordinários, e dotá-los de verdadeira vida, o que poderia ser feito por um mago ou hermetista–, e de fato de toda ciência, já que os gregos tinham herdado deles todos seus conhecimentos. Entretanto, mais adiante nesta mesma obra condena a ciência –diabólica– dos egípcios como se previsse os alcances que tomaria com o tempo, opinião avalizada talvez por sua própria experiência de cientista, ao qual se lhe atribui entre outros inventos, a criação da lanterna mágica, precedente da fotografia e o cinematógrafo. |
24 | "Consultei e me esforcei por ver toda classe de livros, de cosmografia, de história, de crônicas, de filosofia e outras artes" escreve o descobridor da América. Aqui e acolá se percebem estas leituras em seus diários de bordo. |
25 | Vida del Almirante Cristóbal Colón, escrita por su hijo Hernando. Cap. VI. F.C.E. México 1984. |
26 | A Sêneca deveriam ser adicionados os textos do Timeu (24c) e do Crítias de Platão e os de Plutarco em De facie quae in orbe lunae apparet, todos eles vinculados com a Atlântida. |
27 | Monte Avila. Caracas 1992. |
28 | Ver Apêndice para uma seleção de títulos. Há um livro de duas páginas atribuído a Hermes nela. Encontra-se numa coleção de escritos médicos, sob o nome de Hippocrates, Nº catálogo 6623. Também um comentário sobre o Corpus Hermeticum e O Pastor de Hermas. |
29 | Francis Bacon (1561-1626) foi chamado o pai do empirismo e a maior parte dos historiadores da Ciência não duvidam em considerá-lo como um "pai" da investigação científica. Entretanto o estudo de suas obras mostra a um autor preocupado verdadeiramente pelas idéias herméticas e pela Ciência Sagrada. Escreveu muito, e de sua obra, espigando aqui e ali, extraímos estes fragmentos sobre a experimentação, que poderiam ser seguidos por outros tantos: "A demonstração, a melhor, em muito, é a experiência, contanto que se mantenha fixa no próprio experimento. Pois caso se transfira a outras coisas que pareçam semelhantes, se essa transposição não se fizer com a devida ordem, é uma operação enganosa." "Assim deve resultar que os homens fazem experiência com pressa e como por brincadeira, variando um pouco os experimentos já conhecidos, e se não se obtém resultado, ficando aborrecidos e abandonando a empresa. E caso se apliquem aos experimentos com mais seriedade e com mais perseverança e laboriosidade, entretanto, centram sua esperança em fazer um só experimento determinado, como Gilberto no ímã e os químicos no ouro. Isto o fazem os homens com um modo de proceder tão imperito como pobre em resultados. Ninguém chega a penetrar com êxito na natureza de uma coisa, senão que deverá se estender a investigação a fenômenos mais universais…" Novo órgão, 2.ª parte, LXX, livro I. Ver também Les secrets de Sir Francis Bacon, Gonzague de Marliave. Dervy Livres, Paris 1991. |
30 | Inclusive no século XIX foram tomados como cientistas certos elementos que influíram muito em seu tempo, que vão do mesmerismo, até o encantamento de animais, passando pela telepatia, etc. Estes "saberes" devem se adicionar aos da medicina popular, baseada em ervas e elementos naturais, dietas, etc. aos quais nunca foi alheia uma ação "mágico-teúrgica", radiestesia, mancias, talismãs e conjuros, etc., a qual manteve à população camponesa e a suas colheitas –que alimentam às cidades– durante séculos. Um resquício daqueles conhecimentos inscritos na cultura agrícola está refletido nos famosos Almanaques, –que como Boyle e outros cientistas de seu tempo queriam, são o fruto da experiência natural mais direta–, consultados por todo mundo, verdadeiras enciclopédias e compêndios da cultura popular Européia, que incluíam Astronomia, medidas, números, ditos populares e festas e mercados em relação com os interesses de sua vida cotidiana, tudo isso sintetizado no ciclo anual. |