MADALENA
Clarmi Régis
Desligou o rádio. Abriu as janelas. Queria ouvir a noite. Chegaram até ele, acompanhando o cheiro da vegetação do mangue, o som comprido dos grilos e o tambor do sapo-boi, repetido por seu coro foi-não- foi. Enovelado em seus pensamentos ,o ar fresco que lhe bateu no rosto devolveu-lhe o sentido de realidade. A notícia que lhe trouxera o amigo, "É ela, sim. Tenho certeza ! Amanhã vamos até lá!, precipitara-o no passado e nos sentimentos confusos que agora procurava dominar.
Seria mesmo Madalena ? Teria finalmente a possibilidade de reencontrá-la? Separados pela vida e pela inocência de seus poucos anos, perdera-a. Nos primeiros tempos, seguira seus passos. Sabia onde estava e o que fazia. Depois, mais nada ...Com o tempo , a impossibilidade de voltar a vê-la. Esquecera as pistas, ou as abandonara, para poupar-se da dor.
O amor que os unira parecia tê-los colocado numa atmosfera que a ninguém mais pertencia. Um espaço só deles, onde se sentiam protegidos do que o mundo lhes pudesse reservar. Viera então a separação, corte brusco que o deixara em suspenso por todos esses anos.
Iria de novo encontrá-la? Arrancar a angústia de seu corpo? Sabê-la perto de si...Seria isso possível novamente?
Um misto de pressa e temor amarrava-lhe os passos. Não se inquiete, vá devagar, a voz do amigo dava-lhe a certeza de estar realmente atravessando o amplo gramado sombreado por árvores nativas, onde os internos repousavam aqui e ali . As plumas das paineiras, parecendo flocos de neve, dançavam ao vento. Depois de brilhar por instantes contra o azul, iam repousar na grama. Nos muros caiados, a unidade traçava mapas desconhecidos .
Aproximou-se do local que lhe haviam indicado. Num banco de ferro, à sombra de uma galhada de flores, uma figura de mulher . "É ela, aproxime-se..."
Falou seu nome baixinho, o medo maior que tudo. Aumentou a voz, chamou de novo. Lenta, a cabeça voltou-se. O olhar passou por ele, atravessou-lhe o corpo, fixou-se no vazio. Em seguida, o pescoço se dobrou, os olhos procuraram o chão, um sorriso sem destinação congelou os lábios da mulher que não o percebera.
Em nada se assemelhava à mulher que ele conhecera um dia. Em vão buscava os traços que o haviam acompanhado nas noites de desesperança. Os cabelos, sem viço , secos e espetados , não cediam à mão que ela, numa triste sombra de vaidade ,neles passava, de quando em quando, na tentativa de ajeitá-los. O rosto, flácido, perdera os traços ;a boca, murcha e deformada, em que se prendiam os dentes gastos, assemelhava-se ao esgar de uma máscara sem vida. Os olhos, avermelhados e opacos, mantinham-se semicerrados, mesmo quando os fixava em algum ponto, servindo antes de obstáculo que de caminho para qualquer forma de comunicação. As juntas nodosas haviam-lhe transformado os dedos. Onde as mãos que ele acariciava na saudade?
Por que não somos como os répteis, que podem abandonar sobre a areia, com suas cicatrizes, a casca inútil, para iniciar a nova estação? Por que as lembranças queimavam ainda sua pele e, enroscando-se em seus pés, inutilizando seu esforço, não o deixavam caminhar?
Os contornos do rosto durante tanto tempo preservados, sem o referendo do real, desfaziam-se em nada. O vazio substituía a ansiedade. Enganara-se o tempo inteiro. Deixara que uma ilusão lhe preenchesse a vida. Madalena não existia mais. Existira algum dia?
Com o contorno do rosto, perdera sua história. Uma máscara. Apenas isto. Mais nada.
Enquanto os homens se afastavam, Madalena se enroscou em sua solidão. Entrincheirava-se na indiferença. Esvaziada do sorriso, a boca desfazia-se em pregas. Apertando os olhos, fixou-se de novo na costura, os lábios murmurando uma canção. Saindo de um arbusto próximo, um gato veio acomodar-se-lhe entre os pés mergulhados em velhos chinelos de feltro.
Embalando o próprio corpo como um berço, cantarolava baixinho Io che non vivo senza te.