NOTAS SOBRE A TEORIA DA DISTRIBUIÇÃO E DO VALOR

Pierangelo Garegnani

 

Parte introdutória

I. Esquema analítico das teorias do excedente

II. Esquema analítico das teorias marginalistas

III. Diferenças entre as duas estruturas

 

[O texto que segue foi utilizado pelo Prof. P. Garegnani no ano acadêmico de 1976-77, recolhidas pelos doutores A. Campos e T. Cavaliere e traduzidas pelos professores do Grupo de Economia Política do IE-UFRJ]

 

Premissa:

 

O objetivo desta parte introdutória do curso é indicar algumas características básicas que diferenciam os dois tipos de teoria do valor e da distribuição, caracterizadas respectivamente pela noção de excedente social e pelas noções gêmeas de utilidade e produtividade marginais. A questão será tratada apresentando-se, em primeiro lugar, um esquema simplificado de cada um dos dois tipos de teoria, com o objetivo de ressaltar a estrutura das respectivas análises. Efetuaremos, então, um confronto de tais estruturas analíticas de modo a colocar em evidência as suas diferenças. Discutiremos, enfim, algumas implicações que estas estruturas e suas diferenças produzem com respeito à explicação do sistema econômico capitalista.

 

I. Esquema analítico das teorias do excedente

 

1. Conceito de excedente

2. Esquema analítico

3. Taxa de salário real

4. Produto social

5. Valor e distribuição nesta teoria

6. Relação entre o problema do valor e distribuição e as outras partes da teoria

 

            1. Como veremos melhor no decorrer do curso, o problema central em torno do qual estas teorias da distribuição giram é a determinação do excedente social, onde a expressão excedente social é entendida como aquela quantidade de bens dos quais uma sociedade pode dispor sem comprometer a reprodução, a cada período, do processo produtivo social numa mesma escala.

Para simplificar, suponhamos: a) que a duração do ciclo produtivo seja de 1 ano (o produto, portanto, fica pronto no fim do ano); b) que os meios de produção empregados sejam totalmente consumidos: supõe-se, assim, que todo o capital seja circulante; e c) que os meios de produção sejam reproduzidos anualmente.

A determinação do excedente social se baseia em três grandezas.

A primeira é o produto social. Graças a hipótese c) podemos fazer referência a um produto social líquido que, bem como a reintegração líquida dos meios de produção, apresentar-se-á como um agregado físico de mercadorias que denotaremos por P.

A segunda grandeza é constituída da parte do produto social que deve ser destinada aos trabalhadores produtivos para prover sua como subsistência. Usando uma expressão de Ricardo, podemos chamar esta segunda grandeza de consumo necessário. Para simplificar, suponhamos também que o agregado de mercadorias que constitui o consumo necessário seja também reproduzido. Nós o denotaremos por N.

A terceira é o próprio excedente social que denotaremos por S e que é obtido como a diferença entre as outras duas grandezas.

Podemos então escrever a seguinte equação:

 

                                                P - N = S          (1)

 

nesta equação N e P aparecem como grandezas conhecidas antes da determinação do excedente social. Portanto, S aparece como a diferença entre estas duas e é, assim, a única grandeza a ser determinada. As hipóteses simplificadoras que fizemos aqui - acerca da reintegração do consumo necessário - nos habilita a calcular S facilmente como uma diferença entre agregados físicos de mercadorias.

 

            2. Passamos agora a analisar este simples esquema analítico e, em particular, veremos quais são os elementos que se supõem dados para que N e P possam, por sua vez, ser consideradas como dadas no que se refere à determinação do excedente.

Tais elementos podem ser reduzidos aos três seguintes:

1) as condições técnicas de produção;

2) o produto social como agregado físico de mercadorias;

3) a taxa de salário real.

Dados estes elementos são também conhecidos: a) o número de trabalhadores empregados em função de 1) e de 2); e b) o consumo necessário que obtemos a partir de 3) e do número de trabalhadores empregados.

Podemos então concluir dizendo que, uma vez que os elementos 1), 2) e 3) sejam supostos dados, é possível[1] se obter o produto social e o consumo necessário como grandezas conhecidas antes da determinação do excedente.

 

3. Colocamos em evidência os dados sobre os quais este esquema analítico se fundamenta e pudemos ver porque as parcelas do produto social diferentes dos salários são determinadas como excedente, isto é, como resíduo. Trata-se agora de ver por quais razões substanciais o salário real e o produto social são tratados como grandezas conhecidas antes da determinação do excedente.

Iniciemos com a taxa de salário real. No que se refere à Quesnay e aos fisiocratas eles sustentavam que a quantidade de produto retida pela “classe produtiva” (os agricultores) fosse determinada por um nível habitual de subsistência. O mesmo era verdade para Ricardo, com a observação de que este nível habitual (tradicional) de subsistência, justamente porque habitual, não tem um caráter simplesmente biológico, mas histórico-social. De fato, Ricardo afirmava que a subsistência é diferente de país para país e, no mesmo país, é diferente nos vários períodos históricos.

Mais complexa é a posição de Smith ou de Marx. Também para Smith o salário real era determinado a partir de um nível tradicional de subsistência, mas para explicar isto ele introduziu um outro elemento referente ao poder relativo de barganha dos trabalhadores e dos capitalistas. Portanto, encontramos em Smith uma explicação sobre a tendência da taxa de salário real para um nível habitual de subsistência, mediante a análise dos fatores que atribuem aos capitalistas um poder de barganha maior em relação aos trabalhadores.

Em Marx a tendência dos salários gravitarem para o nível de subsistência (onde a subsistência tem um caráter histórico) é analisada com a introdução da noção de exército industrial de reserva. Trata-se do exército de desempregados visto como um elemento essencial do sistema capitalista que impede o salário de crescer até o ponto em que colocaria em perigo o lucro e, portanto, o sistema capitalista.

O que interessa evidenciar aqui é como os teóricos do excedente sustentaram que o salário real fosse determinado por fatores de caráter histórico-social. A análise destes fatores encontrava, então, o seu lugar natural em uma parte da teoria econômica separada da determinação do excedente. Isto implica, em termos lógicos, que o salário real era considerado um dado quando se determinavam as outras parcelas do produto. O salário real ser considerado um dado significa, essencialmente, que ele é determinado separadamente das parcelas do produto que constituem o excedente.

 

4. Analogamente ao que fizemos para a taxa de salário, examinaremos, brevemente, as idéias que os teóricos do excedente tinham sobre os fatores que determinam o produto social, do qual podemos distinguir dois aspectos: a sua composição física e o seu tamanho (ou seja, a sua magnitude, dada a composição física).

No que se refere ao tamanho eles sustentavam que dependia: a) do nível alcançado pela acumulação de capital (expresso, em geral, pelo número de trabalhadores produtivos empregados), bem como b) das condições técnicas de produção das quais dependia a magnitude do produto que pode ser obtida por cada trabalhador.

A composição física do produto social, por outro lado, está relacionada com os níveis de acumulação (vejam-se os esquemas de reprodução simples e ampliada de Marx) e com a composição do consumo necessário (dependente, como se viu, de condições históricas e sociais). O estudo das variações da quantidade produzida das mercadorias particulares era efetuado, em seguida, caso a caso quando isto fosse relevante.

O que interessa enfatizar é como a natureza e a multiplicidade dos fatores dos quais se considerava depender o produto social fazem com que a análise de sua determinação seja efetuada em uma parte da teoria econômica separada daquela que determina a parcela do produto excluídos os salários. E isto implica, em termos lógicos, que o produto social seja um dado ou uma variável independente na teoria da determinação de tal parcela.

 

5. Neste ponto estamos em condições de ver como a teoria do excedente apresenta um núcleo central distinto do resto da teoria graças as hipóteses de um produto social e de um salário real dados. Este núcleo compreende, em primeiro lugar, a determinação da parcela do produto social excluídos os salários. Todavia, ele compreende também, como parte desta primeira determinação, a determinação dos valores de troca das mercadorias. Para entender o vínculo entre estas duas determinações é oportuno nos referirmos brevemente à teoria dos lucros de Ricardo.

Ricardo retoma e utiliza a teoria do excedente como uma teoria da taxa de lucro e consegue, graças à teoria da renda da terra utilizada por seu contemporâneo Malthus, isolar a renda da terra do resto do produto social e se referir então a um produto social líquido de tal renda.

A equação (1) pode, então, ser escrita da seguinte maneira:

    

                                        P (líquido da renda) - N = Lucros       (1a).

 

Nesta equação o excedente é constituído somente dos lucros. Mas o que, sobretudo, interessa a Ricardo é a determinação da taxa de lucro. É no âmbito da determinação da taxa de lucro que se coloca um problema particular de “mensuração” das grandezas envolvidas e com isto o problema do valor.

Um modo fácil de ver a questão é o seguinte. Para Ricardo, a taxa de lucro era dada pela relação entre o valor do excedente (os lucros na equação (1a)) e o valor do consumo necessário (identificado com o total do capital social). No que diz respeito ao excedente, se supormos, como fizemos até agora, que os meios de produção e o consumo necessário são reintegrados é fácil colocá-lo em termos físicos, isto é como ‘produto excedente’. Mas o produto excedente e o consumo necessário são, em geral, constituídos de mercadorias diferentes ou presentes em proporções distintas. São, portanto, dois agregados heterogêneos cuja relação não permitirá obter a taxa de lucro. Para determiná-la é necessário exprimir as duas grandezas em termos de valor e passar ao estudo dos fatores que determinam as relações de troca entre as mercadorias.

Do que dissemos resulta, portanto, que o ‘núcleo’ da teoria do excedente do qual falamos acima é constituído pela teoria do valor, além da teoria da distribuição entendida no sentido restrito da determinação dos rendimentos diferentes dos salários.

 

6. Como vimos, de fora da teoria da distribuição e do valor assim concebida ficam, além da determinação do salário real, a determinação do produto social, já que estas duas grandezas são supostas como dadas independentemente uma da outra e do excedente.

Poderia parecer que este tratamento do salário real, do produto social e do excedente exclui a existência de interrelações entre as primeiras duas grandezas ou, também, efeitos, por assim dizer, de repercussão de mudanças do excedente sobre o produto social ou sobre o salário real.

Na realidade tais tipos de relações eram livremente admitidas pelos teóricos do excedente, mas a análise destas relações, que eram realizadas depois da análise da determinação do salário real e do produto social, era examinada numa fase posterior e, portanto, em uma parte da teoria econômica separada da teoria da distribuição e do valor.

Desse modo, a possibilidade de relações do tipo tratado acima não era negada, mas apenas abstraída no momento em que se efetuava a análise da distribuição e do valor. A razão disto era que a análise das relações lógicas dentro do núcleo da teoria era vista como uma base necessária para se poder abordar, num estágio posterior, as múltiplas e complexas relações existentes entre as três grandezas e, mais geralmente, a determinação do produto social e do salário real.

Por trás da escolha formal dos dados podemos agora encontrar escolhas importantes da abordagem teórica em questão. A análise da distribuição e do valor conduzida assumindo o produto social e o salário real como dados teria, entre outras coisas, fornecido a base para se poder examinar as circunstâncias que determinam os próprios dados.


[1] Os elementos 1, 2 e 3 permitem conhecer o produto social e o consumo necessário como agregados físicos de mercadorias. No decorrer do desenvolvimento da teoria será discutido o problema de mensuração destas grandezas e, em conexão com isto, o problema do valor. Colocar-se-á então o problema de se aqueles elementos considerados dados serão capazes de determinar o valor de P e de N de modo independente de S.

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