II. Esquema analítico das teorias marginalistas
(Pierangelo Garegnani)

 

Nesta parte examinaremos a estrutura analítica das teorias marginalistas e, portanto, os dados sobre os quais tais teorias se baseiam para determinar a distribuição e os valores de troca.

Veremos como nestas teorias o papel essencial, na determinação da distribuição e do valor, é desempenhado pela demanda decrescente dos fatores de produção, capital e trabalho, derivada dos conceitos de produtividade marginal e de utilidade marginal.

Neste sentido, nos referiremos primeiro ao conceito de produtividade marginal (e, portanto, à hipótese de produção de um só bem mediante ele mesmo e trabalho em proporções variáveis de modo contínuo) e, em seguida, somente a noção de utilidade marginal (na hipótese de uma única técnica de produção mas muitos bens de consumo). Trabalharemos com um esquema simplificado onde assumiremos sempre a existência de um só bem de capital. Além disso, ao contrário do que se fez na exposição do esquema das teorias do excedente, supõe-se que os salários são pagos post factum.

 

A. Os métodos alternativos de produção dos bens e o princípio da produtividade marginal como fundamento das funções de demanda dos fatores de produção.

 

7. Hipótese

8. Os trabalhadores como empresários

9. A curva do produto marginal do capital-trigo

10. A taxa de lucro

11. Determinação da quantidade de capital-trigo empregada por uma cooperativa individual de trabalhadores.

12. A curva do produto marginal do capital-trigo na economia como um todo

13. Determinação da distribuição na economia como um todo

14. Os dados das teorias marginalistas

15. Simetria da determinação do lucro como produto marginal e como resíduo

16. O papel da relação inversa entre taxa de lucro e quantidade de capital

 

B. Os gostos dos consumidores e o princípio da utilidade marginal decrescente como fundamento das funções de demanda dos fatores de produção.

 

17. Objeto

18. Hipótese

19. Descrição do procedimento de determinação de uma função de demanda do capital-trigo

20. Determinação da quantidade de capital-trigo demandada a uma taxa de lucro dada

21. Variações da quantidade de capital-trigo demandada ao diminuir a taxa de lucro

22. Generalizações dos resultados obtidos

23. O papel dos gostos dos consumidores na determinação da distribuição e dos preços

24. Substitutibilidade entre métodos de produção e entre bens de consumo

 

III. Diferenças entre as estruturas analíticas das teorias do excedente e das teorias marginalistas

 

25. O elemento central da diferença entre as duas teorias

 


 

A. Os métodos alternativos de produção dos bens e o princípio da produtividade marginal como fundamento das funções de demanda dos fatores de produção.

 

7. Consideramos uma economia na qual se produz somente um bem, trigo por exemplo. Suponhamos: (a) que o trigo seja produzido com trabalho e trigo utilizado como semente; (b) que a proporção na qual trabalho e trigo são empregados seja variável de modo contínuo; (c) que a terra seja abundante e a renda da terra seja, desta maneira, zero em condições de livre concorrência; (d) que se têm ciclos produtivos anuais e os salários sejam pagos no final do ciclo produtivo; e (e) que todo o capital seja circulante. Segundo nossas hipóteses temos apenas duas classes, os trabalhadores e os capitalistas (i.é, proprietários do trigo não utilizado como semente). Suponhamos, além disso, que ambos possam ser empresários. Consideramos que os empresários sejam os trabalhadores e que façam isto organizando-se numa cooperativa.

 

8. Como primeiro passo trataremos de determinar a quantidade de capital-trigo que uma cooperativa individual de trabalhadores tomará emprestado no início do ano.

Os dados de que dispõe a cooperativa individual para decidir são a curva do produto marginal do trigo e a taxa de lucro. Examinemos separadamente estes dados.

 

9. O produto marginal do trigo é o incremento de produto (trigo neste exemplo) que se obtém aumentando de uma unidade a quantidade de capital-trigo empregada na produção, mantendo constante a quantidade de trabalho (neste caso os trabalhadores que constituem a cooperativa).

O produto marginal (para simplificar nos referiremos ao produto marginal líquido, ou seja ao incremento da produção obtida com o emprego da última unidade de capital-trigo, deduzida a unidade de capital-trigo empregada) pode, pela hipótese de proporções variáveis de modo contínuo, ser representado por uma curva como no gráfico (1). Sobre o eixo das abcissas é indicado o capital-trigo que os trabalhadores decidem tomar emprestado e sobre o eixo das ordenadas o produto marginal:

            Esta curva tem um intervalo constante até o ponto em que é empregada a quantidade A1 de capital-trigo e, em seguida, um intervalo decrescente.
            O intervalo constante da curva se explica a partir da consideração de que dados os L trabalhadores da cooperativa, existe uma quantidade de capital-trigo, digamos A1, para a qual o produto por unidade de capital-trigo empregada é máximo. Indiquemos esta quantidade máxima como R. Com menores quantidades de capital-trigo não convém empregar todos os trabalhadores da cooperativa, mas somente aquele número de trabalhadores que mantém constante a proporção L/A1. Neste caso, na hipótese de rendimentos constantes de escala, para cada unidade de trigo empregada se obtém o mesmo produto R. Com quantidades de capital inferiores a A1 o trabalho disponível é, portanto, relativamente abundante. Com a quantidade de trigo A1 será conveniente ocupar todos os trabalhadores e, a cada dose adicional de trigo, a quantidade de trabalho empregável com uma unidade de trigo é cada vez menor. Os incrementos de produto para cada dose adicional de trigo serão por isso decrescentes até se tornarem nulos quando for empregada a quantidade de trigo A2. Além desta quantidade o capital-trigo fica abundante em relação a quantidade dada de trabalho.
            É interessante notar que, supondo que a curva de produto marginal continuasse horizontal (i.é o produto marginal não se tornasse nunca decrescente), teríamos a conseqüência absurda de que poderíamos obter um produto infinito com um número de trabalhadores arbitrariamente pequeno, enquanto que aumentando indefinidamente a quantidade de capital-trigo empregada com uma qualquer quantidade dada de trabalho obteríamos, por hipótese, incrementos de produção sempre iguais para cada unidade sucessiva de capital-trigo.
            Deveria ser agora evidente que a curva decrescente do produto marginal de trigo é conseqüência da hipótese de que o trigo pode ser produzido com proporções variáveis de trabalho e capital-trigo.

10. O outro dado que está disponível para a cooperativa de trabalhadores, ou seja a taxa de lucro, resulta da hipótese de que num regime de livre concorrência a cooperativa individual não pode influir sobre ela. Já que o capital consiste de trigo a taxa de lucro, denotada por r, pode ser expressa como uma quantidade de trigo e, portanto, medida juntamente com o produto marginal sobre o eixo das ordenadas.

 

11. Explicados os dados vejamos agora qual será a quantidade de capital-trigo que a cooperativa de trabalhadores decidirá tomar emprestado.

                

 

            Dada a curva de produto marginal e r=r*, a quantidade de capital-trigo tomada em empréstimo será OK uma vez que, a esta taxa de lucro, esta é a quantidade que maximiza os salários. De fato, empregando a quantidade de capital-trigo OK o produto líquido agregado é dado, como se pode notar, pela superfície RADKO; além disso, dada a taxa de lucro r=r*, os lucros agregados são expressos pela superfície r*DKO e os salários agregados pela superfície r*DAR. Quantidades de capital tomadas em empréstimo maiores ou menores do que OK implicariam, à taxa de lucro r*, uma perda para os trabalhadores; se, à taxa de lucro r*, a quantidade de capital-trigo tomada em empréstimo fosse igual a OK’ a perda dos salários pelo emprego insuficiente, KK’, seria representada pela superfície CFD; em seguida, podemos ver que uma perda dos salários igual à superfície DGE ocorre também quando uma quantidade de capital-trigo OK’’, maior que OK, é tomada em empréstimo.

Podemos então concluir que a quantidade de capital-trigo demandada como empréstimo deve ser tal que a última unidade de produto marginal seja igual à taxa de lucro. Supondo outras taxas de lucro podemos facilmente ver que a quantidade de capital-trigo que a cooperativa de trabalhadores terá interesse em tomar emprestado aumentará ao diminuir r e vice-versa[1].

 

12. O segundo passo para se chegar a determinação da distribuição nesta teoria consiste em passar de uma cooperativa individual de trabalhadores para a economia como um todo. O problema que se coloca é o de determinar, juntamente com a quantidade de capital-trigo tomada em empréstimo pelo total de trabalhadores disponíveis na economia, a taxa de lucro que, neste caso, não pode ser considerada um dado.

A curva do produto marginal do capital-trigo na economia como um todo será uma cópia em escala daquela da cooperativa individual. Se supormos que os trabalhadores disponíveis na economia estão organizados em, digamos, um milhão de cooperativas e que o número e a quantidade dos trabalhadores sejam iguais em cada cooperativa, teremos uma curva de produto marginal do capital-trigo na economia como um todo que interceptará o eixo das ordenadas numa altura igual a da curva da cooperativa individual. O intervalo constante da curva será, porém, um milhão de vezes àquele da curva individual e no intervalo decrescente o mesmo produto marginal corresponderá a uma quantidade de trabalho um milhão de vezes maior (e, assim, o intercepto da curva com o eixo horizontal será um milhão de vezes a distância entre a origem e o intercepto da curva da cooperativa individual).

Portanto, também para a economia como um todo temos uma curva de produto marginal do capital-trigo semelhante à curva da cooperativa individual. Considerando que as taxas de lucro podem ser assinaladas sobre o eixo das ordenadas, podemos ver mediante um raciocínio semelhante ao empregado para uma cooperativa individual, que para cada hipotética taxa de lucro existe somente uma quantidade de capital-trigo que, tomada em empréstimo, maximiza os salários agregados. Tal quantidade é àquela a qual a produtividade marginal é igual a hipotética taxa de lucro. O intervalo decrescente da curva de produto marginal social mostra, portanto, qual será a quantidade de capital-trigo tomada em empréstimo na economia como um todo para cada nível possível da taxa de lucro.

Este tratamento da produção nos fornece a base para a explicação da distribuição em termos de demanda e oferta, característica da teoria marginalista.

 

13. Para chegar a tal explicação é suficiente introduzir outras duas hipóteses:

(a) que os capitalistas têm e desejam emprestar uma certa quantidade dada de trigo;

(b) que, se os capitalistas não conseguem emprestar toda a quantidade dada de trigo, a taxa de juros diminui pela concorrência entre eles; e vice-versa, se os trabalhadores não conseguem tomar emprestado todo o capital-trigo que desejam, a concorrência entre eles provoca um aumento da taxa de lucro.

Representamos as duas hipóteses no seguinte gráfico:

 

onde OK* representa a quantidade de capital-trigo que os capitalistas pretendem emprestar. Se r=r’ a quantidade de trigo que os trabalhadores tomam emprestado será igual a OK’. À esta taxa os capitalistas não conseguem emprestar a quantidade K*K’, haverá concorrência entre eles e r diminuirá até r*. Se r=r’’ os trabalhadores demandam uma quantidade de trigo igual a OK’’ maior que a quantidade de trigo disponível. Pela concorrência entre eles, r aumentará até r*.

À taxa r* a quantidade de capital-trigo que os trabalhadores demandam iguala a quantidade que os capitalistas oferecem. A taxa de r* será uma taxa de equilíbrio estável porque, quando a economia acidentalmente não se encontra no ponto de equilíbrio, as forças que descrevemos, se os dados não mudam, tendem trazê-la de volta ao equilíbrio.

Simultaneamente à taxa de lucro são determinados: (a) o nível de produção correspondente ao emprego da quantidade dada de trabalho e de capital-trigo (medido pela área abaixo de ABCK*); (b) os lucros agregados obtidos multiplicando a taxa de lucro pela quantidade dada de capital-trigo (medidos pela área Or*OK*); (c) os salários agregados obtidos como diferença entre os níveis de produção e os lucros (medidos assim pela área ABCr*); além de (d) a taxa de salário determinada dividindo os salários agregados pela quantidade dada de trabalho.

 

14. Podemos então concluir que dados:

(a) a existência de uma curva de produto marginal decrescente determinada pela hipótese de métodos alternativos de produção;

(b) a quantidade de trabalho e de capital-trigo disponível;

(c) a flexibilidade, pela hipótese de concorrência, da taxa de lucro;

a economia tenderá a gravitar em direção à taxa de lucro determinada pela interseção entre a curva de demanda de capital-trigo BCD (determinada pelo intervalo decrescente da curva de produto marginal deste fator) e a curva de oferta de K*C (vertical pelas nossas hipóteses).

Dada a quantidade de trabalho e as técnicas de produção, se variarmos a quantidade de capital-trigo disponível é fácil ver que a taxa de lucro de equilíbrio varia numa direção inversa. Portanto, a taxa de lucro é determinada, dada a quantidade de trabalho, pela quantidade de capital-trigo e as técnicas produtivas com base na ´escassez` relativa dos fatores.

 

15. Da hipótese de que os trabalhadores são considerados empresários, os salários são determinados como resíduo e os lucros como produto marginal do capital-trigo. Todavia, poderíamos considerar os capitalistas como empresários. Neste caso o problema da distribuição seria apresentado de maneira perfeitamente simétrica. Determinamos os salários com base no produto marginal do trabalho e os lucros como resíduo. A igualdade dos lucros e dos salários calculados pelos dois modos depende da hipótese de rendimentos de escala[2]. É interessante observar brevemente como, neste caso, a curva de produto marginal de trabalho está implícita na curva do produto marginal de capital-trigo.

Com efeito, seja K a quantidade dada de capital-trigo disponível para os capitalistas empresários (os quais demandam então trabalho com base na curva de produto marginal de trabalho). A quantidade de trabalho que corresponde ao máximo produto médio do trabalho (ou seja, a ordenada máxima da curva de produto marginal do trabalho) será determinada pela proporção entre trabalho e capital para a qual se tem na curva de produto marginal de capital-trigo um produto marginal igual a zero. De maneira semelhante, a quantidade de trabalho para a qual o produto marginal do trabalho fica nulo será determinada pela proporção entre trabalho e capital para a qual se tem, na curva de produto marginal de capital-trigo, o máximo de produto por unidade de trigo.

Podemos agora mostrar que quando a curva de produto marginal de capital-trigo se encontra num ponto de produto máximo por unidade de trigo empregado, a curva de produto marginal de trabalho se encontra no ponto de interseção com o eixo das abcissas (ou num ponto da abcissa à sua direita). A estas posições corresponde uma quantidade de trabalho relativamente abundante com respeito à quantidade de capital-trigo e uma taxa de salário nula correspondente à uma taxa de lucro máxima. As conclusões são simetricamente opostas quando se tem a curva de produtividade marginal de trigo no ponto de produtividade marginal igual a zero.

Da discussão acima podemos ver, portanto, como na economia como um todo obtemos simultaneamente uma curva de demanda por capital e por trabalho[3].

16. Introduzimos os seguintes elementos constitutivos das teorias marginalistas:

(a) a curva decrescente de produto marginal e, conseqüentemente, a relação inversa entre taxa de lucro e quantidade demandada de capital dada uma quantidade empregada de trabalho;

(b) a quantidade de trabalho e de capital-trigo disponível na economia;

(c) a flexibilidade das taxas de lucro e de salários.

Podemos agora perguntar qual entre estes elementos é decisivo para se chegar à conclusão, mencionada acima, de que a economia tenderá a gravitar em direção a uma taxa de lucro determinada pelo equilíbrio entre as forças de demanda e de oferta e, portanto, caracterizado pelo pleno emprego dos recursos (trabalho e capital) disponíveis.

Continuamos a manter as hipóteses (b) e (c) e abandonamos a primeira, supondo, por exemplo, que a quantidade de capital-trigo demandada como empréstimo aumenta ao aumentar a taxa de lucro. Representamos esta nova hipótese no seguinte gráfico:

 

onde OK representa a quantidade de capital-trigo disponível, R a taxa máxima de lucro e a curva AA´ a nova relação entre taxa de lucro e quantidade de capital-trigo demandada em empréstimo.

Para r=r* a quantidade de capital-trigo demandada pelos trabalhadores seria maior que a quantidade disponível e, portanto, pela hipótese (c) tenderia a aumentar até R, onde todo o produto iria para os capitalistas.

Para r=r´´, por outro lado, a quantidade de trigo demandada seria menor que a quantidade de trigo disponível, então, pela hipótese (c) r tenderia a diminuir até zero e todo o produto iria, portanto, para os trabalhadores.

Como se pode ver pelo gráfico existiria, no exemplo acima, um ponto de equilíbrio para r=r*, mas tal ponto de equilíbrio seria instável e não seria, portanto, uma posição em direção da qual a economia possa tender. Pelo contrário, teríamos razão em concluir que a economia tenderia alternativamente para o lucro zero ou para o salário zero, em evidente contraste com a experiência empírica.

Por isso abandonada a primeira proposição relativa ao produto marginal decrescente, as outras duas não nos permitiria mais concluir que a distribuição seja determinada por forças de demanda e oferta como considerado pelas teorias marginalistas. Podemos agora concluir que o elemento central que permite determinar a distribuição em termos de demanda e oferta é a possibilidade de estabelecer um relação entre taxa de lucro e quantidade de capital tal que ao diminuir a primeira a segunda aumenta. É a possibilidade de estabelecer esta relação decrescente (fundada, como vimos, no princípio do produto marginal decrescente) que nos leva a concebê-la como uma “ curva de demanda” pelo fator em questão. Atribuir a tal relação a qualidade de “curva de demanda” significa, em última análise, determinar pela interseção ou interseções com uma “curva de oferta” do próprio fator, as posições de “equilíbrio” em torno das quais se pode supor que a economia gravita; mas isto só é plausível na medida em que se possa afirmar que tais “equilíbrios” são, em geral, apenas um e que ele será estável.

 

 

B. Os gostos dos consumidores e o princípio da utilidade marginal decrescente como fundamento das funções de demanda dos fatores de produção.

 

17. Na parte anterior pudemos determinar a distribuição sem ter introduzido qualquer noção de utilidade marginal; isto foi possível graças a uma hipótese simplificadora. De fato, supusemos que fosse produzido um único bem de consumo[4].

O objetivo desta parte é demonstrar que o princípio da utilidade marginal fornece uma base adicional ou, eventualmente, alternativa para a relação decrescente entre a taxa de lucro e a quantidade de capital empregada na economia que obtivemos com base no princípio da produtividade marginal; relação sobre a qual, como vimos, (ver parágrafo 16) se apoia a determinação da distribuição em termos de demanda e oferta.

 

18. Supõe-se que sejam produzidos dois bens, trigo e tecido. Supõe-se, além disso, que cada um dos dois bens sejam produzidos com proporções dadas de trabalho e capital-trigo, isto é que exista um método, e somente um, para a produção de cada um dos bens. Esta hipótese evidentemente exclui a possibilidade de construir uma curva de produto marginal, cuja existência dependia da hipótese de que um bem fosse produzido com uma série de métodos alternativos.

Para simplificar mantemos as hipóteses adotadas no caso em que um só bem fosse produzido, ou seja: (a) que a terra seja abundante e a renda da terra seja, portanto, zero em condições de livre concorrência; (b) que se tenha um ciclo anual de de produção e os salários sejam determinados post factum; e (c) que todo o capital seja circulante.

 

19. Já que o nosso objetivo é determinar a relação entre taxa de lucro r e a quantidade de capital-trigo empregada na economia conjuntamente com a quantidade dada de trabalho L, assumiremos a taxa de lucro como a nossa variável independente e nos proporemos a determinar qual será a quantidade de capital-trigo demandada na economia às diversas taxas de lucro fixadas hipoteticamente.

O primeiro passo que devemos dar será calcular os preços relativos dos dois bens para cada taxa de lucro fixada hipoteticamente.

O segundo passo consistirá, pelo contrário, na determinação de como varia a proporção na qual os dois bens são demandados ao se variar o seu preço relativo.

Para tanto devemos iniciar considerando os gostos dos consumidores e as correspondentes funções de utilidade marginal decrescente. Do princípio da utilidade marginal decrescente e da condição de utilidade máxima resulta, com efeito, que cada consumidor demandará uma quantidade dos bens tal que a razão entre suas utilidades marginais sejam iguais a razão entre seus preços, ou seja, medindo em trigo o preço pt do tecido, Umg=Umt/pt.

É claro pois como, com base nesta igualdade, é possível, em geral, determinar uma curva de demanda decrescente de cada um dos dois bens e afirmar que ao diminuir o preço relativo de um dos bens cresce a proporção em que ele é demandado relativamente ao outro.

Conhecido deste modo como varia a proporção na qual os dois bens são demandados estamos em condições de, dada a quantidade de trabalho empregada na economia, determinar como varia a quantidade de capital-trigo para cada taxa de lucro hipoteticamente fixada.

 

20. Supõe-se que os métodos de produção, respectivamente do trigo e do tecido, são dados como se segue:

 

(9/10)L + (1/10)g → 1g

   1L     +     1g     → 1t.

 

            As equações de preços do trigo e do tecido, usando o trigo como unidade de medida (ou seja, pg=1), são agora:

 

(9/10).w+(1/10).(1+r)=1

  1.w     +      1.(1+r)  =pt

 

ou seja, os preços dos bens devem ser tais de modo a pagar os salários do trabalho empregado e os lucros do capital calculados às suas respectivas taxas uniformes w e r, além de permitir recuperar o capital empregado e inteiramente consumido (segundo a nossa hipótese) na produção dos próprios bens.

Como se viu, construir a curva de demanda do capital significa encontrar a quantidade de capital-trigo empregada na economia com um número constante de trabalhadores, às diversas possíveis taxas de lucro com as correspondentes taxas de salário.

Começamos com o caso em que w=0 e, portanto, que na economia se tenha a taxa máxima de lucro. Da equação de preço do trigo obtemos r=R=9. Com w=0 e r=R=9 podemos usar a equação de preço do tecido para determinar o seu preço em trigo que será pt=10.

Suponhamos agora que, para pt=10, os gostos (e suas remunerações de acordo com a hipótese adotada w=0 e r=9) dos consumidores são tais que os bens sejam demandados na proporção de uma unidade de tecido por 8 unidades de trigo. Portanto, se a quantidade agregada de tecido demandada é Dt, o trigo demandado será 8Dt.

Devemos, nesta altura, determinar as quantidades demandadas líquidas de tecido e de trigo, Dt e Dg, com base na igualdade entre a quantidade dada de trabalho disponível na economia e a quantidade de trabalho empregada na sua produção. Em primeiro lugar, devemos, portanto, determinar as quantidades de trabalho necessárias para produzir uma unidade de trigo e uma unidade de tecido, cada uma líquida da reintegração do capital-trigo consumido. Isto é, trata-se de determinar os métodos de produção ‘integrados’ de trigo e de tecido, que são os seguintes[5]:

 

1+ (1/9)g →  1g (líquidos)

2L + (10/9)g →  1t (líquidos)

 

Podemos agora escrever as equações que definem a igualdade entre a quantidade disponível de trabalho e a quantidade necessária para produzir as quantidades líquidas Dg e Dt.

Supondo que a quantidade de trabalho disponível seja 10 trabalhadores temos

 

10 = 1 Dg + 2Dt

 

mas já que supomos que para cada unidade demandada de tecido seriam demandadas 8 unidades de capital-trigo, podemos escrever

10 = 1(8Dt) + 2Dt

da qual resulta Dt=1 e Dg=8.

Agora estamos em condições de determinar a quantidade de capital-trigo demandado na economia a uma taxa de lucro r=9. Na indústria integrada do tecido é empregada a quantidade (10/9)Dt=10/9 de capital-trigo; na indústria integrada de trigo é empregada a quantidade (1/9)Dg=8/9. Portanto, agregadamente, o capital-trigo demandado é igual a 10/9 + 8/9 = 2.

 

21. Consideramos um outro nível de taxa de lucro, por exemplo r=8. Da equação do preço do trigo obtemos w=1/9. Da equação do preço do tecido resulta pt=82/9. Com a redução da taxa de lucro o preço do tecido em relação ao do trigo diminui, como poderíamos esperar pelo fato de que na produção do tecido a quantidade de capital-trigo empregado em relação a de trabalho é maior do que a proporção empregada na produção do trigo[6].

Como dissemos (par. 19), a análise do equilíbrio dos consumidores leva a conclusão de que, salvo para casos excepcionais (e.g. o caso dos bens considerados ‘inferiores’), a diminuição do preço relativo do tecido levará a um aumento do seu consumo relativo.

Podemos então supor, por exemplo, que o tecido seja demandado na razão de 1 para 3 e não mais de 1 para 8. A condição do emprego dos 10 trabalhadores disponíveis implica então (como se pode facilmente calcular com base na equação de igualdade entre trabalho disponível e demandado mencionada no par. 20), que as quantidades demandadas são Dt=2 e Dg=6.

Para produzir tais quantidades serão necessárias: (1/9).6 + (10/9).2=26/9 unidades de capital-trigo; a demanda de capital-trigo aumenta em relação às duas unidades do caso em que r=9.

Esta conclusão era facilmente dedutível; a maior quantidade de tecido produzida foi obtida deslocando alguns trabalhadores (cujo número agregado é dado) da produção de trigo para a produção de tecido, onde cada um deles deverá ser assistido por uma quantidade maior de capital-trigo.

 

22. Supondo taxas de lucro cada vez menores teremos, pelos motivos que acabamos de ver, uma quantidade demandada de capital-trigo sempre maior. Pela maior intensidade de capital do método que produz tecido teremos, de fato, um preço do tecido decrescente em relação ao do trigo. Pelos já citados resultados da análise do equilíbrio dos consumidores teremos, em geral, uma mudança na proporção na qual os dois bens são demandados em favor do tecido e, portanto, um deslocamento de trabalhadores (cujo número total é dado) do setor produtor de trigo para o setor produtor de tecidos. Uma vez que a intensidade de capital na indústria de tecidos é maior que na indústria do trigo, uma variação na proporção na qual os dois bens são consumidos em favor dos tecidos implicará um aumento absoluto da quantidade de capital-trigo demandada e um aumento na proporção em que o capital e o trabalho são empregados na economia como um todo.

Podemos então concluir observando que também supondo que exista um só método para a produção de cada bem e que não se tenham, assim, curvas de produto marginal, a análise de equilíbrio do consumidor, fundada no princípio da utilidade marginal decrescente, permite estabelecer uma relação entre taxa de lucro e quantidade de capital tal que, em geral, ao diminuir uma a outra aumenta, o que, como se viu (cf. par. 16), permite explicar a distribuição em termos de demanda e oferta com base em tal relação.

 

23. Podemos observar, com base no nosso exemplo simples, como os gostos dos consumidores e o princípio da utilidade marginal decrescente não tiveram nenhum papel direto na determinação dos preços relativos; as condições técnicas de produção e a taxa de lucro eram, de fato, suficientes para determiná-los. Contrariamente, podemos observar como tais gostos determinam os preços dos bens somente na medida em que participam da determinação da distribuição do produto social entre salários e lucros. De fato, vimos que os gostos dos consumidores e o princípio da utilidade marginal decrescente permitem, em primeiro lugar, determinar, dadas a quantidade de trabalho disponível na economia e o método de produção de cada um dos bens, uma curva de demanda por capital e, portanto, determinar, dada a quantidade de capital disponível na economia, a taxa de lucro. Determinada a taxa de lucro também os preços relativos estarão determinados.

 

24. Examinamos aqui o caso em que o princípio da utilidade marginal decrescente constitui, em relação ao princípio da produtividade marginal decrescente, uma base alternativa para a construção de uma curva de demanda por capital. Todavia, afirmamos que o princípio da utilidade marginal constitui uma base adicional ou, eventualmente, alternativa.

Para ver como ele pode cumprir este papel, a hipótese de métodos de produção e o conseqüente princípio da produtividade marginal decrescente, é suficiente eliminar a hipótese de que os dois bens sejam produzidos com um só método de produção e substitui-la supondo que eles possam ser produzidos com uma pluralidade de métodos. Neste caso, ao diminuir a taxa de lucro, teremos para cada um dos dois bens a adoção de métodos que requerem uma maior proporção entre capital-trigo e trabalho. À este primeiro efeito que aumentaria a proporção entre capital-trigo e trabalho na economia ainda que a distribuição do trabalho entre as duas produções permanecesse a mesma, juntar-se-á, em seguida, a substitutibilidade entre os bens demandados pelo consumidor segundo o princípio da utilidade marginal como no caso em que acabamos de examinar. O resultado final será que, somando-se os dois efeitos (substitutibilidade entre métodos e substitutibilidade entre bens) a curva de demanda por capital que teremos na economia será mais elástica do que àquela que se tinha no caso em que tivéssemos somente a substitutibilidade entre bens.

 

II. Diferenças entre as estruturas analíticas das teorias do excedente e das teorias marginalistas

 

25. Descrevemos até aqui a estrutura analítica das teorias do excedente e, em seguida, das teorias marginalistas. Agora faremos uma comparação destas duas estruturas da qual derivamos diferentes implicações sobre a representação do sistema econômico.

Para a determinação dos lucros e dos preços relativos (cf. par.5) as teorias do excedente assumem como dadas as seguintes elementos:

(a) as condições técnicas de produção

(b) a taxa de salário real

(c) o produto social

enquanto que as teorias marginalistas assumem como dadas:

(a’) as condições técnicas de produção

(b’) os gostos dos consumidores

(c’) a disponibilidade de fatores de produção.

As diferenças que podem ser percebidas mais diretamente são que o produto social e a taxa de salário real aparecem entre os dados das teorias do excedente, ao passo que não aparecem entre àqueles das teorias marginalistas. Por outro lado, nestas últimas teorias encontramos dois novos dados que não aparecem entre àqueles das teorias do excedente, ou seja os gostos dos consumidores e a disponibilidade dos fatores. Como indicamos acima (par. 14 e 22), tais dados fornecem para as teorias marginalistas o fundamento das funções de demanda e oferta (relativas) de capital e trabalho e, assim, da determinação da distribuição do produto entre salários e lucros. Salários, lucros e produto social são determinados de modo simultaneamente. Podemos então dizer que os gostos dos consumidores e as disponibilidades dos fatores cumprem o papel de determinar a taxa de salário real que era, pelo contrário, um dado nas teorias do excedente. O fato de que a taxa de salário é determinada em termos de demanda e oferta implica, por outro lado, que o produto social não pode ser relacionado entre os dados, aparecendo então entre as grandezas a serem determinadas. De fato, é claro que a cada ponto da curva de demanda-produtividade marginal do capital-trigo do parágrafo 12 corresponde um produto social diferente e que isto é verdade também para cada ponto da curva de demanda do parágrafo 22.

A principal diferença analítica que encontramos ao passar de uma teoria a outra é então abandonar a taxa real de salário como um dado, determinado, desta maneira, separadamente dos lucros.


 

[1] Devemos ressaltar que para r=R a quantidade de trigo tomada em empréstimo fica indeterminada. Mas, além disso, sendo então os salários iguais a zero, nenhum trabalhador teria interesse em produzir e devemos supor que o processo produtivo só poderá começar quando ‘r’ for menor que ‘R’, isto é quando a curva de produto marginal começa a decrescer. O intervalo relevante da curva de produto marginal para a determinação da quantidade de trigo que os trabalhadores tomariam emprestado será, assim, o intervalo decrescente da curva.

[2] Sobre este aspecto veja as notas sobre a teoria do valor e da distribuição de Wicksell (das lições do professor Garegnani)

[3] Estes argumentos permitem entender a diferença entre os lucros como resíduo nas teorias marginalistas e nas do excedente. Nas teorias marginalistas a determinação do lucro como resíduo é simétrica a sua determinação como produto marginal, é somente uma questão do ponto de vista adotado e é igualmente aplicável ao trabalho. Nas teorias do excedente, considerando que o salário e o produto são determinados antes e independentemente dos lucros, o lucro não pode ser determinado senão como resíduo.

[4] Além disso, supusemos que a quantidade de capital-trigo fosse dada independentemente da taxa de lucro, adotando a hipótese de que o consumo direto desta quantidade não fornece utilidade.

[5] Iniciamos construindo a indústria ‘integrada’ de trigo. Do método direto de produção de trigo temos

(9/10)L + (1/10)g  1g  (9/10)g (líquidas)

para ter uma unidade líquida de trigo bastará multiplicar os coeficientes do método direto de produção por 10/9, de tal modo se obtém

1L + (1/9)g  (10/9)g  1g (líquida)

onde 1L e (1/9)g são coeficientes da indústria integrada. A indústria ‘integrada’ do tecido, como se pode facilmente ver, é a seguinte

2L + (10/9)g  1t + (10/9)g  1g (líquida)

de fato, do método direto de produção sabemos que é empregada uma unidade de capital-trigo, para recuperá-la devemos, portanto, produzir uma unidade líquida de trigo da qual é determinada, imediatamente, o método de produção.

[6] A taxa de salário e o preço do tecido podem ser determinados também com base no método de produção da indústria integrada. O valor da unidade líquida de trigo é composto dos salários do trabalho empregado (na indústria que a produz) e dos lucros, determinados multiplicando a taxa de lucro pelo capital-trigo empregado para produzi-la. Para r=8 teremos 1=1w + 8.(1/9) e w=1/9. Usando o mesmo procedimento pode ser determinado o preço do tecido.

 

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