"(. . . ) Assim fiquei só com Fradique --- que me convidou a subir aos seus quartos, e esperar Vidigal, bebendo uma «soda e limão».
   
Pela escada, o poeta das «Lapidárias» aludiu ao tórrido calor de Agosto. E eu que nesse instante, defronte do espelho no patamar, revistava, com um olhar furtivo, a linha da minha sobrecasaca e a frescura da minha rosa --- deixei estouvadamente escapar esta coisa hedionda:
    --- Sim, está de escachar!
    E ainda o torpe som não morrera, já uma aflição me lacerava, por esta chulice de esquina de tabacaria, assim atabalhoadamente lançada como um pingo de sebo sobre o supremo artista das «Lapidárias», o homem que conversara com Hugo à beira-mar! . . . Entrei no quarto atordoado, com bagas de suor na face. E debalde rebuscava desesperadamente uma outra frase sobre o calor, bem trabalhada, toda cintilante e nova! Nada! Só me acudiam sordidezes paralelas, em calão teimoso: --- «é de rachar»! «está de ananases»! «derrete os untos»! ... atravessei ali uma dessas angústias atrozes, grotescas, que, aos vinte anos, quando se começa a vida e a literatura, vincam a alma e jamais esquecem. (. . . )".


   

Eça de Queiroz, "A Correspondência de Fradique Mendes"

 

 

«Gasparzinho, o Às da Sorte, foi parar ao Polo Norte!». Tanto quanto me lembro foi assim, numa manhã de 25 de Dezembro, em cima dum sapato deixado sobre um fogão de lenha, que o Pai Natal me entregou o 1º livro da minha vida, acompanhado duma caixa de lápis de côr Viarco e dum 'aguça', nesses já distantes anos da década de 50, tempos da Guerra da Coreia e da gente pequena que, pela magia da infância, era incapaz de ver que o negócio tinha sido consumado aos balcões do "Bazar dos Três Vinténs" da Rua de Cedofeita!
    Primeiro livro, primeiro amor. Aquilo era uma vaga história para colorir, que metia ursos das neves árcticas, 'igloos', pinguins e peixes que saíam de buracos no gelo, esquimós com casacos de peles fofas e felpudas, que hoje seriam 'politicamente incorrectos' e desencadeariam a fúria de organizações ecologistas. Mas que sabia eu disso, então, num Portugal pacato, rural, mesmo numa cidade como o Porto, onde as luzes municipais eram acesas 'à mão' por um pobre diabo que, ao cair das tardes, chave em punho, ia ligando interruptores que vagamente emitiam uma claridade mortiça, sob um 'abat-jour' de esmalte, não escondendo a ferrugem e incúria da passagem de imemoriais solstícios e equinócios.
    Que pena não ter já esse livro, embora confesse que a maior animação foi aguçar até à exaustão os lápis Viarco, actividade de nível metafísico incomensuravelmente superior ao tédio de pintar os peixes, os pinguins e o mais que para lá existia.
    Desde então, a verdade é que os meus dias estão sempre próximos de livros!
    Livro de 'Leituras', da 3ª ou 4ª Classe, com desenhos pálidos e moralistas, fábulas, "O Corvo e a Raposa", "O Milagre das Rosas", "O Alfageme de Santarém", "Egas Moniz com corda ao pescoço", mais mulher e filhos que pareciam saídos dum orfanato dirigido por um descendente do Scrugges de Dickens, a Pátria do 'Minho a Timor', os Missionários comidos por antropófagos ateus, livros de 'História' com dinastias inteiras a decorar, reis e cognomes, D. Sancho, o Gordo, D. Manuel, o Venturoso, D. João II, o Príncipe Perfeito, a Ínclita Geração! Ou ainda os malditos 'Livros de Exercícios' de Matemática, o 'Palma Fernandes', capas cor-de-rosa, soluções no fim, sempre obstinadamente diferentes da conclusão a que chegávamos após safar, raspar, multiplicar, prova dos nove, coisas sinistras, tanques com torneiras que debitavam 50 litros/hora e tinham de se reduzir a hectolitros.
    Montões de coisas úteis, tanto elas contribuiram para a minha felicidade que até me vêm as lágrimas aos olhos! Como, por exemplo, orientar 'modelos de cristais', espécie de cruzetas de madeira, nomes terríveis, sistema monoclínico, triclínico, ortorrômbico. 
   Que me interessa a mim o sistema ortorrômbico? ! E a sexualidade das plantas, a única sexualidade dos Liceus do tempo modorrento de Américo Tomás e Salazar, os estames e as corolas, os cotilédones dos feijões e das favas, as infrutescências e inflorescências, as raízes aprumadas ou fasciculadas? !
    Então, 'livros bons' eram as colecções do "Condor Popular", onde pontificavam os músculos de Luís Euripo, o pugilista português, o "Cavaleiro Andante" com o Príncipe Valente e mais o sua espada purificadora, o Flash Gordon e o Doutor Zarkov, ou as peripécias do 'Marca Amarela' e de Mortimore na Atlântida, nas vésperas da submersão nas águas onde, quiçá, espreitava no Nautilus o olhar alucinado do Capitão Nemo das "Vinte Mil Léguas Submarinas". . .
    Ah! E os «livros só-de-ler», sem figuras! A gente a sonhar, a inventar ventos, climas, amantes implacáveis, venenos, feras esfomeadas, o som e a fúria dos tufões das Caraíbas, o enorme facalhão de Sandokan, o Tigre da Malásia, os execráveis Governadores corruptos ao serviço das Espanhas e das Inglaterras, os amores eternos e fatais.
    Como quem não quer a coisa, 'ia-os' juntando, primeiro numa pilha, depois numa estante, sem saber que, como um 'zombie', estava a construir uma Biblioteca. Quem me dera regressar a essas horas apontadas ao prazer de começar certos livros, sentir o mundo apagar-se. Vir a correr da Escola, meter-me no quarto que ficava do tamanho do Universo inteiro, até à chegada, aos gritos, da Mãe e Tia:
    --- Apaga a luz, que é tarde! Amanhã é que vão ser elas!
        O destino fez-me professor. De Filosofia. Tenho quase 50 anos e os livros cercam-me por toda a parte, falam-me, quase os sinto murmurar:
    --- A mim não me vais ler! Cabrão! Traidor! Para que me compraste!
    --- Se não me querias, por que não me deixaste em paz?
    Tantas memórias, tantos livros me passam pela vida. 'Livros de Sumários', marcando o ritmo pendular do ano lectivo. 'Livros de cheques', as malditas contas, o supermercado, as rendas, os médicos, os picheleiros, electricistas que sempre dizem:
    --- Isto está 'p'rá qui' um sarilho!
    --- É que é mesmo um bico-de-obra!
    Eu, crucificado no purgatório das obras, resmungo:
    --- Está visto! Vais-me tirar a pele, e depois, não satisfeito, talvez esperes rapar o tutano de um ou outro osso mais à mão!
    Tantos livros, tantos. Livros de Cavalaria que levaram a loucura de Quixote a correr a secura de Espanha, livros que acenderam fogueiras, como os de Giordano Bruno, livros que enlouquecem multidões, as Bíblias, os Corões, os 'livros-vermelhos' dos Guardas do Camarada Mao, da 'Grande Revolução Cultural' e do 'Grande Salto em Frente'! Livros queimados em hecatombes de estupidez, arrogância iluminada nas noites germânicas dos anos 30, livros que levam a sentença de morte como os "Versículos Satânicos", livros escritos nas masmorras da Bastilha, como os de Sade. Livros que escorriam pelas mãos brancas de tédio de Madame Bovary, livros intermináveis como as "Memórias de um Átomo", do tão querido João da Ega dos "Maias", livros com névoa, como no castelo do "Deserto dos Tártaros" de Dino Buzatti, livros terríveis como aqueles que pretendem explicar como se programa um video-gravador com 4 semanas de antecedência.
    E as colecções de livros? Os livros comprados 'a metro' para efeitos decorativos? E ter de arrumar os livros? E limpar o pó aos livros? E saber onde está um dado livro? E emprestar livros? E encapar livros? E, em segredo e com vergonha, vender livros? !
    E saber, como no "Fahreneit 451" do Bradbury que é possível um mundo horroroso, onde todos os livros desapareceram? E as descobertas dentro de livros, uma carta perdida, um bilhete de eléctrico de 8 tostões que ficou para ali, a servir de marca? E encontrar uma dedicatória num livro em 2ª mão, dum amor que foi o maior do mundo, com nomes que não nos dizem nada, hoje velhos, mortos?
        E o que pesam os livros, quando se tem de fazer mudanças? E as promessas de que se vão oferecer os livros que jamais abriremos outra vez, para arranjar espaço para meter mais livros?
    E encontrar 'algo' que é mais próximo de nós que a vizinha do lado e que tanto pode ser o Ulisses da 'Odisseia", o 'Zadig' de Voltaire, o Salviati de Galileu, a perfeição das horas brancas na Évora da "Aparição", a bondade filantropa de Gog de G. Papini, as flores argelinas das colinas de Tipasa que vão dar ao Mediterrâneo, nas "Noces" de Camus, o bulício da Alexandria de Lawrence Durrell, o amor louco da "Espuma dos Dias" de Boris Vian, os aromas da Arrábida de Sebastião da Gama, as nortadas, anémonas e lubrinas de Luísa DaCosta, a indizível inquietação duma adolescente que encontrou "Um certo Sorriso" da Françoise Sagan, ou a imensa paz do "Sidharta" de Herman Hesse.
    Tantos livros, tantas vidas! Tudo isto uma Biblioteca guarda para nós, para os vindouros. Biblioteca de Alexandria três vezes queimada, por acidente no tempo de Cleópatra, por estupidez no tempo de Hipatia, a bibliotecária-astrónoma, delapidada pela populaça em fúria contra o saber 'pagão' e finalmente derrubada pelo vendaval rubro dos estandartes do Islão.
    Biblioteca mítica de Jorge Luis Borges, biblioteca que escondia o texto perdido da "Poética" de Aristóteles, elogio da comédia e do riso, no "Nome da Rosa" de Umberto Eco, biblioteca onde se desvenda, finalmente, o criminoso nos romances de Agatha Christie!
    Estranha é a nossa vida que, tudo passado, se reduz a duas páginas num Livro, a 'Folhas Tantas', frente ou verso, perdidas nas prateleiras duma Conservatória de Registo Civil, até que mais ninguém se lembre de nós, nem na data do nascimento, nem na data da morte, como tão perfeitamente, também num livro, o profetizou o grande Álvaro de Campos.


Outubro/1996




 

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