4. AS CONGREGAÇÕES MISSIONÁRIAS
Os missionários de Angola receberam das mais diversas procedências, para seu sustento e para sustentação das obras de apostolado, terras, dinheiro e escravos. Quanto a estes, o superior-geral Francisco de Borja, depois canonizado, declarava em 1569 não ser conveniente que a Companhia os conservasse, recomendando que se desfizesse dos que possuía. Esta determinação foi confirmada em diversas ocasiões e mais concretamente em 1576 e ainda em 1584. Isso prova que as resoluções dos chefes mais destacados daquela famosa congregação continuavam a ser consideradas válidas e por isso mesmo defendidas. Mas indica-nos também que nem sempre as determinações dos superiores eram postas em prática pelos subordinados, mesmo no caso dos jesuítas, que muitos costumam considerar indivíduos sem vontade própria e manobrados pelos seus dirigentes como autómatos sem personalidade. Afinal, os filhos de Santo Inácio foram deixando que o tempo cobrisse com o véu do esquecimento algumas determinações, quando lhes não agradava ou não convinha pôr em prática, atendendo ao meio e ao tempo em que viviam
Não sabemos como deveria ser feita a desamortização recomendada pelo geral da Companhia de Jesus. Tudo nos leva a crer que deveria ser por venda, uma vez que os escravos tinham valor monetário. Os jesuítas aceitavam este princípio, que naquele tempo era corrente e poucos punham em dúvida. Um dos mais célebres, três quartos de século mais tarde, o P. António Vieira, defendia intransigentemente a liberdade dos índios do Brasil, embora aceitasse a escravidão dos indígenas africanos, como situação forçosa e transitória. Angola foi desde longe o centro abastecedor do mercado brasileiro de escravos. Neste particular, podemos lembrar que a determinação dos superiores, se não defendesse concretamente a libertação dos cativos, não seria mais humanitária do que a execução defeituosa que os responsáveis pela residência de Luanda lhe deram, pois havia o perigo quase certo de caírem em mãos brutais, menos caridosas do que as suas.
Não podemos deixar passar o ensejo sem referir que, mesmo os missionários e as obras de assistência e do culto católico, viviam em dependência do comércio esclavagista, pois recaiam sobre cada um dos que fossem embarcados numerosos e pesados impostos, com diversos objectivos e fins de interesse colectivo. E havia ainda os casos em que uma das suas principais fontes de rendimento consistia na preferência dada a determinados organismos ou instituições no embarque dos seus escravos.
Devido à invulgar subida do custo de vida, em Angola, no final do século XVI e princípios do século XVII, os missionários viviam aqui em grandes apertos, chegando mesmo a enfrentar enormes dificuldades. Como consequência de certas medidas governamentais, deixaram de receber o tributo dos sobas, seus protegidos junto das autoridades portuguesas. Devemos recordar o que se disse ao falar das questões que surgiram no tempo do governador D. Francisco de Almeida, para melhor compreensão deste ponto. O erário régio atravessava também uma crise de vulto e o pagamento das pensões fazia-se com grande atraso, quando se fazia! Algumas vezes chegaram a ser pagas com uma dilação de dez anos!
Emendou um pouco este estado de coisas e este erro o governador-geral João Furtado de Mendonça, por disposições tomadas em 25 de Abril de 1596. Mas o mal era mais profundo do que poderá pensar-se e continuou a manifestar-se nos anos seguintes, sobretudo pela desactualização das pensões, a que devemos continuar a juntar o crónico atraso dos pagamentos.
Manuel Cerveira Pereira, em carta de 14 de Maio de 1609, defendeu abertamente a causa dos missionários, junto do rei, e apontava para a sua deprimente e insustentável situação três hipóteses possíveis, ou seja, uma de três soluções extremas: abandono das missões e regresso dos missionários à Europa; prática do comércio, procurando nele os meios necessários para sobreviverem; aumento substancial das pensões e seu pagamento pontual.
Não será preciso salientar que Manuel Cerveira Pereira repudiava os dois primeiros pontos e entendia, com razão, que só o último convinha ao serviço de Deus e do rei. A diligência feita deu resultado, embora com atraso considerável, pois o aumento das pensões missionárias só foi concedido por alvará régio de 15 de Janeiro de 1615, confirmado dois anos depois, ou seja em 19 de Janeiro de 1617. A antiga pensão de quarenta e dois mil e quinhentos reais por ano, a cada missionário, foi elevada para oitenta mil reis, quase o dobro.
Em 4 de Janeiro de 1592, era assinada em Lisboa a carta-patente que nomeava o P. Pedro Rodrigues visitador da Companhia de Jesus para Angola. Já atrás nos referimos ao facto. Partiu do Tejo no dia 10 de Fevereiro desse ano, mas só no ano seguinte, em 11 de Março de 1593, chegou a Luanda, por ter feito viagem com demorada paragem nos portos e casas religiosas do Brasil. Poderia ser que tivesse de vistoriar os estabelecimentos brasílicos. O relatório da sua visitação à residência missionária luandense tem a data de 15 de Abril de 1594. Partiu de Luanda, novamente pelo Brasil, como de costume e por necessário em face das condições da navegação, em 11 de Julho deste ano.
O P. Pedro Rodrigues aconselhava que se fundasse um colégio na capital de Angola, para preparação de futuros sacerdotes da Companhia e para o ensino dos jovens que quisessem instruir-se nas matérias ali professadas e educar-se sob a orientação dos padres jesuítas. Por concessão do governador-geral D. Jerónimo de Almeida, foi permitido aos superiores da Companhia de Jesus escolher o local da futura construção, o que se realizou no dia 22 de Abril de 1594. Porém nós sabemos que desde o tempo de Paulo Dias os jesuítas dispunham de um bom lote de terreno num dos melhores locais de Luanda, denominado "a Feira", que o fundador desta cidade lhes reservou e que os missionários conseguiram alargar por compras e doações recebidas. Talvez a concessão de facilidades, por parte de D. Jerónimo de Almeida, fosse uma forma de acalmar ânimos exaltados e uma tentativa séria para o estabelecimento de clima de paz, em Luanda, que há muito tempo não existia.
A construção do edifício do convento, da escola e da igreja, contudo, só começou em 1607; mas as aulas funcionaram já em 1605, para o ensino das primeiras letras, sendo seu mestre o P. Pedro de Sousa. Alguns autores defendem que um dos seus primeiros mestres, se não o primeiro de todos, foi o I. António de Sequeira. Trata-se, certamente, da primeira escola de Luanda e uma das primeiras de toda a África negra. Afluíram ali estudantes desta cidade, da região do Congo e mesmo de outras terras de Angola, já evangelizadas. A actual toponímia de Luanda conserva ainda a memória deste estabelecimento, dando o nome de "Travessa do Colégio" à rua onde esteve localizado. A belíssima igreja anexa ficou concluída em 1636, mas o edifício do colégio dos jesuítas só foi terminado muito tempo depois, em Dezembro de 1659.
Em 21 de Abril de 1606, os religiosos franciscanos, que algum tempo antes, em 1604, tinham fixado a sua residência na capital de Angola, entraram na posse do convento de S. José e das terras anexas, que lhes foram doadas pelo governador Manuel Cerveira Pereira. Este local tinha antes sido destinado aos religiosos carmelitas, que o não aproveitaram. Ficava localizado onde no século XIX se construiu o Hospital D. Maria Pia.
Um documento do ano de 1618, subscrito pelo português Baltasar Rebelo, informa-nos que este cidadão aconselhava que se preferissem os jesuítas e os franciscanos aos demais religiosos, na missionação de Angola. Apesar de lhes apontar algumas limitações e alguns defeitos, sobretudo aos jesuítas, entre os quais destacava o pouco interesse pelas actividades missionárias do sertão, não deixava de louvar honestamente as qualidades que neles reconhecia. Pouco depois, aparecem-nos novas queixas contra os padres da Companhia de Jesus, acusando-os de se dedicarem ao comércio, inclusivamente de explorarem quintas e terem casas de aluguer, das quais recebiam bom rendimento. Continuavam a acusá-los de se terem tornado tíbios e comodistas, em relação aos trabalhos apostólicos entre o gentio do interior.
Outro elemento do quadro administrativo e comercial português, Garcia Mendes de Castelo Branco, fazia por esta altura uma enérgica defesa dos jesuítas, louvava-lhes as qualidades e lembrava a vantagem de utilizar cada vez mais os seus serviços. Em 1620, sugeria que não fossem enviados para Angola outros missionários, a não ser os inacianos; no ano seguinte, 1621, propunha ainda que fossem nomeados defensores dos sobas, a fim de se evitarem as afrontas e agravos que se lhes faziam muito frequentemente.
Devemos recordar que este assunto havia já dado lugar a questões graves, e não seria de boa política voltar a dar pretexto para novas divergências, enfraquecendo o poder central e a autoridade régia, que se desejava fortalecer a todo o custo. Era isto, efectivamente, o que a corte de Madrid se propunha fomentar. Todavia, poderá admitir-se que o costume antigo persistisse e mantivesse continuidade, embora moderando-o tanto quanto possível e quando possível.
Escrevendo para Lisboa, através da Mesa da Consciência, o bispo do Congo defendia a fundação de um seminário em São Salvador e, se isso pudesse ser, outro também em Luanda, para a preparação de candidatos ao sacerdócio. Sugeria ainda que se ordenasse aos jesuítas que retomassem a evangelização do interior. A inércia de que os acusavam deverá entender-se deste modo, dedicavam-se sobretudo às actividades apostólicas nos centros populacionais de maior importância e mais frequentados por europeus. Quanto aos seminários, podemos ser levados a pensar que, para a sua fundação e sustentação, se deveria contar com a herança de Gaspar Álvares. Com efeito, por esta altura, a ideia foi ventilada mais frequentemente do que seria lógico esperar, se não houvesse um motivo importante a agitá-la.
O rico mercador do Congo atrás mencionado, Gaspar Álvares, convertido pelo zelo dos jesuítas, deixou em testamento um importante legado para as obras missionárias, culturais e de assistência, que estes religiosos sustentavam, e para outras que projectavam. O seminário estava no pensamento de todos e, por isso, grande parte do valor da herança foi destinada à sua fundação e sustentação. Sabemos que o Concílio de Trento defendera que se fundassem em todas as dioceses. Ora o bispado de Angola e Congo pretendia passar já por terra estruturalmente católica, o que não correspondia à verdade. Gaspar Álvares já anteriormente tinha feito uma valiosa doação ao colégio, no ano de 1619, com o fim de se abrirem ali umas aulas de Latim e de Teologia Moral. As suas riquezas eram destinadas também à sustentação de outras obras pias. Foi por esta altura que a acção jesuíta no Congo tomou novo incremento.
No ano de 1627, a carta régia de 3 de Junho criava o seminário do Congo, onde deveriam estudar doze moços nativos que desejassem seguir a vida eclesiástica. Apesar do apoio material de que dispunha, esta iniciativa não teve seguimento. Deveria passar-se ainda muito tempo até que pudesse concretizar-se o estabelecimento de um seminário em terras angolanas. Contudo, esta tentativa não era já a primeira, pois sabemos que em 1618 foi dada autorização para se fundar um colégio, que talvez nunca chegasse a entrar em funcionamento.
Apesar de a documentação ser pouco clara ou não ter ainda sido interpretada sob este aspecto, podemos concluir que as demais congregações religiosas estabelecidas no território de Angola e sobretudo na cidade de Luanda franciscanos portugueses, capuchinhos italianos, carmelitas descalços mantiveram escolas e houve clero gentílico desde muito cedo, o que não era possível sem estabelecimentos de preparação literária mais adiantada.
O P. Serafim Leite testemunha esta dedução quando afirma, na sua obra Suma Histórica da Companhia de Jesus no Brasil:
"Quatro anos depois de os padres do Brasil fundarem a Missão do Paraguai, arribou à Baia, em 1592, o P. Pedro Rodrigues, que ia de Lisboa como visitador de Angola. Não tardou a prosseguir viagem para a África, mas, concluída a sua visitação canónica, em vez de tornar a Portugal foi nomeado Provincial do Brasil. Assim se estabeleceu uma relação de boa vizinhança entre os dois Estados portugueses do Atlântico-Sul, e logo em 1604 pediu a Província de Portugal à Província do Brasil que houvesse por bem enviar um visitador a Angola. O Provincial do Brasil, que era então o P. Fernão Cardim, anuiu ao pedido e mandou por visitador o P. António de Matos, que levou como companheiro o P. Mateus Tavares. Destes contactos entre o Brasil e Angola germinou a ideia de que, vindo para o Brasil tantos escravos africanos, as vocações dos angolanos, em vez de se dirigirem para Portugal, seria mais útil encaminharem-se logo para o noviciado da Baia, onde prestariam melhores serviços na catequese dos negros. Com efeito, um bom número de filhos de Angola se fizeram jesuítas no Brasil e, sob este aspecto, Angola deu mais ao Brasil do que dele recebeu. Mais ainda, depois de ter sido capelão da armada restauradora de Angola, contra os holandeses, o P. Mateus Dias, da Província do Brasil, foi morrer a Massangano, como visitador de Angola restaurada".
Mais adiante, na mesma obra, afirma ainda o P. Serafim Leite:
"Além das obras de linguística americana, produziu-se no Brasil uma de linguística africana, quando os filhos da África principiaram a ser muito numerosos no Brasil. O "apóstolo dos negros", P. Pedro Dias, escreveu e imprimiu em Lisboa, em 1697, a Arte da Língua de Angola, para uso dos padres da Companhia, no Brasil, que se consagravam ao trato e conversão dos pretos. Há ainda referência, em 1708, a um catecismo na língua dos "ardas", feito pelo P. Manuel de Lima, angolano, missionário do Brasil, manuscrito de que se não conhece outra notícia. O estudo das línguas indígenas foi sempre tido em alta consideração pelos padres do Brasil, que insistem, com repetidas normas, na sua aprendizagem, como instrumento necessário da evangelização; e Vieira, além da brasílica, estimulou também o estudo da de Angola e das particulares da Amazónia".
A designação "arda" deverá aparecer na transcrição feita por confusão com "ardra", povo que viveu na zona hoje abrangida pelo Daomé, e que outrora alimentou intenso tráfico esclavagista. Segundo alguns autores, a palavra "arda" deveria antes referir-se a um povo indígena de uma região que actualmente faz parte do Equador, o que se explica pela semelhança que entre os dois termos se nota. Seriam os "ardas" naturais do antigo reino de Ardia, pertencendo ao povo "gege". Gilberto Freire transcreve uma passagem de Nina Rodrigues, que por sua vez traslada outros autores, em que se afirma que os escravos brasileiros eram, em regra, minas, ardas, angolas e crioulos; os minas tão bravos que aonde não podiam chegar com o braço chegavam com o nome, os ardas tão fogosos que tudo quereriam cortar de um só golpe, os angolas tão robustos que nenhum trabalho os cansava, e os crioulos tão malévolos que não deviam nem temiam. Os ardas eram péssimos trabalhadores agrários, afirma aquele escritor brasileiro, porém bonitos de corpo, principalmente as mulheres, e daí serem preferidos para os serviços domésticos, pelo que é fácil imaginar que também para os concubinatos. Temos de reconhecer que a caricatura está demasiado angulosa, é exageradamente linear.
Diremos também, para não deixarmos passar tal referência, que o mesmo autor, P. Serafim Leite, e na mesma obra, afirma que na lista dos provinciais e visitadores da província do Brasil se encontra o nome do P. Miguel Cardoso, que exerceu o cargo desde 1719 até 1721; havia nascido cerca de 1659. Dele traçou esta notícia:
"Exerceu com os naturais de Angola, de que também era filho, notável apostolado. Pelo seu trato lhano e afável, gozava da estima de todos, incluindo prelados e homens da governação. Faleceu no exercício do cargo".
Estas transcrições deixam-nos entrever que a circunstância de haver sacerdotes angolanos, particularmente jesuítas, não era meramente episódica mas normal, antevendo-se até certa abundância. Alguns deles salientaram-se pelos trabalhos realizados, pelo apostolado desenvolvido. Houve-os que ocuparam cargos destacados, em regra apenas preenchidos pelos elementos mais categorizados e de maior valor religioso, intelectual e humano. Ora devemos ter presente que os jesuítas têm fama de saberem escolher cada homem para cada lugar. E não poderemos admitir que se colhessem frutos sem se empregarem os meios de os alcançar, sem que se tenha feito o arroteamento do terreno e cuidada sementeira...
Chegou o momento de Portugal sacudir o jugo de Castela, aclamando um rei natural, desligando-se da coroa espanhola, repudiando a autoridade de D. Filipe IV e do seu ministro, o conde-duque de Olivares. O facto teve influência em todos os aspectos da vida nacional, e não podia deixar de ter repercussão na África.
A notícia da aclamação do Duque de Bragança como Rei de Portugal foi recebida na cidade de Luanda com ruidosas manifestações de alegria. Mas o rei de Espanha não estava disposto a perder os seus antigos domínios; consequentemente, encontramos as duas autoridades a guerrearem-se, a interferir uma com a outra nos assuntos da missionação. Além disso, a Santa Sé só cerca de trinta anos mais tarde aceitou o facto consumado da restauração da independência de Portugal.
Não seria difícil encontrar missionários, sobretudo italianos, que fizessem o jogo das soberanias, e algumas vezes com certa lógica e bastante motivação. Durante algum tempo, poderiam encontrar-se aqui três potências europeias a arrogarem-se direitos de soberania sobre o território de Angola Portugal, Espanha e Holanda. Recordemos que, pouco depois de D. João IV subir ao trono, os holandeses ocuparam São Tomé, Luanda e Benguela.
Devido ao estado de guerra que se vivia em Portugal, por a Espanha não desistir facilmente das suas pretensões de reabsorver a monarquia lusitana, os missionários que embarcassem em navios espanhóis não seriam aceites nas terras ultramarinas em que a autoridade do rei de Portugal era respeitada. Salvaguardava-se assim, na medida do possível, a soberania nacional. As próprias congregações religiosas entendiam isso e foram-se adaptando a estas exigências, aliás bem compreensíveis. Todavia, a Espanha tinha maior interesse no domínio do território nacional europeu português do que na defesa das terras ultramarinas, africanas ou brasileiras, pois não há notícia de ter tentado a sério a recuperação das cidades ocupadas pelos seus figadais inimigos, os flamengos.
Em 21 de Agosto de 1648, Salvador Correia de Sá e Benevides estabelecia com os holandeses as condições da capitulação efectivada alguns dias antes, ao reocupar a fortaleza de Luanda, assinando a respectiva convenção; pelos flamengos, foi subscrita por Aerdenburg Andres Lens. Mas o rei do Congo continuava a manifestar-se favorável ao rei da Espanha. Em 19 de Setembro, recomendava aos seus povos os novos missionários capuchinhos italianos; e em 3 de Outubro seguinte, a própria Congregação da Propagação da Fé enviava uma recompensa que resolvera oferecer-lhe como prémio da sua dedicação à causa missionária.
No dia 4 de Abril do ano de 1649, Salvador Correia viu-se obrigado a informar o monarca português acerca do procedimento do rei do Congo. E em 28 de Junho um missionário jesuíta, o P. António do Couto, dava conta dos negócios do Zaire, informando que o rei desta região se mostrava conivente com os espanhóis e até com os holandeses. Foi ainda durante esse ano que um missionário capuchinho espanhol, o P. Boaventura de Alessano, enviou pormenorizadas informações sobre o estado religioso e social do Congo, em relato dirigido à Sagrada Congregação da Propagação da Fé, a 4 de Agosto, no qual apontava os abusos, os erros e os ritos gentílicos mais opostos à doutrina católica e mais prejudiciais à evangelização.
Os missionários franciscanos haviam sido obrigados a abandonar o convento de S. José, em Luanda, durante a ocupação da cidade pelos flamengos. Depois da restauração de Angola, pela reconquista da capital, pediram ao rei, através dos superiores da ordem em Lisboa, a restituição da antiga residência e dos outros seus haveres. Salvador Correia apoiou esta pretensão; e o rei D. João IV mandou que os religiosos ocupassem o convento e tomassem posse de todos os bens que antes tinham. O governador-geral confirmou a sentença régia, por despacho de 28 de Fevereiro de 1651, e o respectivo auto foi assinado exactamente um mês depois, em 28 de Março daquele ano.
A Câmara Municipal de Luanda, fazendo-se eco do conceito geral, pediu ao rei, em carta de 20 de Dezembro de 1649, a que noutro lugar nos referimos, que autorizasse os capuchinhos italianos a terem residência nesta cidade. Confirmava o apreço em que eram tidos estes missionários, cujas virtudes ostensivamente reconhecia. Salvador Correia de Sá confirmava o alto conceito que deles faziam os edis; tomou em boa conta a decisão real e mostrou-se capaz de prestigiar e defender os beneméritos missionários. Quando vieram para Luanda, expressamente convidados para aqui se estabelecerem, foram recebidos com indiferença; faltou-lhes até o indispensável para uma vida modesta, pois não dispunham de acomodação adequada. Foi-lhes permitido ocupar acanhadas dependências da Misericórdia, onde não dispunham de comodidades de qualquer espécie; isso estava em desacordo com o seu estado, as suas qualidades, e até mesmo com a consideração que os seus serviços haviam conquistado. Tomando conhecimento da situação, o governador pôs à sua disposição uma casa modesta e pobre, pequena mas decente; assim mostrou à população e ao clero de Luanda o apreço que lhes dedicava. Com o exemplo da sua vida, das suas virtudes e do seu zelo missionário, os capuchinhos italianos puderam granjear definitivamente o respeito, a simpatia e a estima de todo o povo luandense.
A reconquista de Luanda pelos portugueses veio criar dificuldades à política seguida pela Santa Sé, em relação ao Congo e ao problema missionário. Normalmente, Roma acatava e satisfazia, na medida do possível, as pretensões da Espanha, tendo em conta a influência e os direitos soberanos do Rei Católico e a acção que também desenvolveu nas terras de além-mar, pela expansão da Fé entre os naturais dos seus vastos domínios. Isso fez com que fosse retardada a partida de uma missão de capuchinhos que, ao receber-se aquela notícia, se aprontava para embarcar para o Congo.
Dentro da Ordem, surgiam agora dúvidas, desconfianças e descontentamento, sabendo-se que os barbadinhos eram bem vistos pelos portugueses e talvez fosse esse o motivo por que os não deixavam partir. Os italianos aceitavam de bom grado a evolução dos acontecimentos, pois não estavam presos por sentimentalismos particulares à mudança ou conservação das soberanias. E agora a situação mostrava-se abertamente favorável aos lusitanos. Estavam decididos a aceitar as determinações das nossas autoridades, enquanto os espanhóis poderiam estar presos à fidelidade ao seu monarca.
Apesar de tudo isso, em 13 de Fevereiro de 1651, partiram de Cádis dois contingentes missionários, que eram dirigidos pelo P. Angelo de Valência e pelo P. João Francisco, e seguiram nos navios "Nossa Senhora do Pópulo" e "Santo António de Pádua". Chegaram ao porto de Pinda no dia 29 de Junho do mesmo ano. Uma semana depois da sua partida, em 19 de Fevereiro, chegava às mãos dos superiores dos capuchinhos, na Espanha, uma determinação da Sagrada Congregação da Propagação da Fé que suspendia a ordem de partida dos missionários, que nesse momento já vogavam no alto mar. O que se seguiu leva a pensar se não haveria embarque antecipado.
Ao chegar a Angola, o P. João Francisco (a que se junta frequentemente o apelido Romano, devido a ser natural da cidade de Roma, dando-lhe também o P. Graciano Maria de Leguzzano o apelido de Cittaducale) viu-se privado de todos os poderes que julgava vir a exercer e ficou sujeito à autoridade do prefeito de Luanda. Deveria regressar a Roma, a fim de se justificar. Os seus companheiros ficavam igualmente sob as ordens do prefeito missionário. Este ainda tentou contemporizar e enviou o P. João Francisco à missão de Massangano, que nessa altura estava a ser organizada, e ali se demorou até Maio de 1654. Mas teve mesmo de regressar à Europa e de se justificar em Roma, em relação ao sucedido e ao seu procedimento. As suas explicações foram aceites, pois se confirmou que não tivera atitude de rebeldia, o que o prefeito de Luanda tinha já reconhecido também e por isso tentou resolver a situação aqui e por sua iniciativa. Voltou de novo aos trabalhos missionários, mas para as terras de Benin, não passando por Lisboa para evitar ter de dar explicações aos governantes portugueses. Regressando a Roma, dedicou-se ao serviço dos doentes atacados pela peste, contraindo a doença e vindo a falecer em 31 de Julho de 1656.
Uma provisão do rei D. João IV, de 20 de Setembro de 1651, determinava que poderiam trabalhar no Congo os missionários capuchinhos italianos ou de outras nações da Europa, mas que não seriam admitidos os naturais de Castela ou de qualquer território sujeito à autoridade do monarca espanhol. Também determinava que o transporte não poderia ser feito em navio da Espanha ou que navegasse ao serviço deste país. Não podemos deixar sem reparo que, atendendo à distância e à morosidade das comunicações, esta disposição não deveria ainda ser conhecida no Congo quando em 14 de Outubro de 1651 o P. António do Couto relatava a situação missionária, a que adiante nos vamos referir, pois não houvera tempo de um navio, mesmo dos mais velozes e com ventos favoráveis, ter percorrido a distância que separa Lisboa das costas de África, do Congo e Angola. Tudo nos leva a deduzir, portanto, que os males eram conhecidos e os remédios a aplicar não poderiam ser outros.
O cabido de São Salvador queixava-se ao Papa, pela voz dos seus oráculos, da interferência dos religiosos nos negócios eclesiásticos, em carta datada no dia 13 de Outubro do mesmo ano. O superior dos capuchinhos, na falta do bispo e tendo em conta que era o encarregado de uma Prefeitura Apostólica, estava autorizado a exercer algumas funções que, normalmente, são atribuídas aos prelados. As queixas do cabido foram atendidas em parte, talvez para evitar motivos de conflito e descontentamento. Os capuchinhos viram as suas antigas atribuições um tanto diminuídas, segundo um comunicado da Sagrada Congregação da Propagação da Fé, com data de 6 de Maio de 1653. O ardor apostólico dos barbadinhos sofria este desapontamento, enquanto o orgulho e o desleixo dos seus contraventores era quase premiado! Mas a virtude e a humildade dos filhos de S. Francisco não lhes permitia revoltarem-se contra esta injustiça, nem contra as resoluções superiores. Continuaram, pois, a exercer o seu ministério com a maior dedicação e com um zelo que ninguém mais suplantou.
A Santa Sé, como já dissemos, enfrentou sérias dificuldades diplomáticas em relação a Portugal e à Espanha, em parte como consequência de uma política pouco feliz, mesmo pouco justa. Mas a causa missionária sobrepunha-se a todas as políticas e, efectivamente, havia essa preocupação constante. A Espanha, vendo as coisas por alto, tinha vantagem sobre a posição portuguesa; mas depois que expulsaram os invasores flamengos de Luanda, Benguela e São Tomé, os portugueses podiam apresentar razões que Madrid nunca poderia dar, pois mostravam-se decididamente dispostos a conservar estas terras e a sujeitá-las ao seu domínio político, defendendo os seus direitos contra quem quer que fosse. Isso explica e em parte justifica a atitude da Santa Sé, ao princípio abertamente favorável à Espanha, mas depois mais inclinada a respeitar as exigências de Lisboa, embora não tivessem sido restabelecidas as representações diplomáticas de Portugal em Roma e do Vaticano junto do rei português.
As bases da convenção celebrada com o rei do Congo determinavam que este não consentiria mais no seu reino pessoa alguma branca, sem o consentimento das autoridades portuguesas, devendo ter-se em consideração se tinham ou não passado pelo porto de Luanda. Determinavam ainda que não seriam recebidos nos seus portos navios de guerra ou de comércio, de qualquer nação, considerando-se esta disposição com rigor máximo em relação aos espanhóis e holandeses, que ou tinham ocupado parte destes territórios ou pensavam restabelecer neles uma autoridade que outrora haviam exercido.
A situação do Congo e de Angola, em relação ao que se passava na Europa, tardou bastante a normalizar-se. Como sempre sucede, havia alguns que teimavam em sustentar uma posição inconsistente, procuravam manter uma fidelidade que se não justificava nem compreendia. Assim, em 14 de Outubro de 1651, o missionário jesuíta, P. António do Couto, dava conta ao monarca lusitano da situação que se vivia em São Salvador, e salientava que alguns missionários, sobretudo os italianos e os espanhóis, tinham entendimento com a corte de Madrid, a cujo rei prestavam obediência. Pedia que mandasse missionários portugueses para o Congo e para Angola, de qualquer congregação, mas portugueses. Não se atrevia, dizia ele, a pedir que se preferissem os jesuítas, para que se não visse na insistência uma obsessão congregacionista, uma vez que ele pertencia à Companhia de Jesus. Rogava também, com insistente interesse, que fossem enviados para Angola governadores desprendidos, que tivessem diante dos olhos, em primeiro lugar, o serviço de Deus e do rei, pois procedendo assim obteriam ainda enormes vantagens materiais. A concluir, afirmava que não adiantava mais por lho não consentir o seu estado eclesiástico, assim como a caridade que devia aos restantes membros do clero e autoridades administrativas. Elogiava abertamente os cónegos P. Simão de Medeiros e P. Miguel de Castro, pela "rectidão do seu procedimento e honestidade da sua vida". Estes foram os últimos capitulares da primitiva catedral de São Salvador.
Nas suas referências, o P. António do Couto mostra-se bastante exagerado, tanto em louvar como em criticar, e até um pouco intriguista. Não é possível aceitar sem reserva que ele usasse verdadeira caridade cristã ao referir-se aos seus irmãos no sacerdócio e autoridades constituídas; e pode pôr-se a hipótese de que não teria grande escrúpulo em adiantar mais, se visse nisso alguma vantagem. Aproveitando a ocasião histórica que então se vivia, o facto de a Espanha pretender continuar a exercer a sua autoridade teórica sobre Angola, a não aceitação da restauração nacional portuguesa por parte da Santa Sé, o pormenor de muitos missionários capuchinhos serem ou espanhóis (súbditos de D. Filipe IV) ou italianos (súbditos do Papa), de ter havido um caso ou outro em que as determinações do monarca português não foram devidamente acatadas, talvez mais por incúria ou desleixo do que por má vontade, a aceitação que Salvador Correia dava aos barbadinhos, aproveitando tudo isso defendia a ideia da sua expulsão do território, insinuava que o governador não era tão dedicado funcionário como devia, lembrava que alguns religiosos transportavam armas na sua bagagem, salientava que a maior parte deles falava, escrevia e ensinava em língua espanhola (o que neste particular correspondia à verdade). Estas informações tiveram ainda certo crédito, mas em breve o comportamento a todos os títulos exemplar dos capuchinhos triunfava de todas as maquinações.
A posição portuguesa começava de novo a consolidar-se, tanto nas margens do Zaire como nas do Cuanza. No dia 3 de Agosto de 1652, o sacerdote mestiço, P. Manuel Reboredo, ordenado em Luanda em 1637, era admitido na ordem dos capuchinhos, ficando a ser conhecido por Frei Francisco de São Salvador. Foi o primeiro frade preto que a congregação admitiu em Angola. Distinguiu-se pelas suas virtudes, embora nem sempre o seu comportamento fosse compreendido. Veio a morrer na batalha de Ambuíla, no dia 29 de Outubro de 1665. O facto levantou certas dificuldades aos seus confrades, pois ele tinha acompanhado as tropas do rei africano sem para tanto ter autorização. Tinha em vista apenas prestar assistência religiosa aos componentes da coluna militar. Ao seu lado exerceram o ministério outros dois missionários, cujo nome se ignora. A tormenta passou, pois os capuchinhos tinham já dado provas de grande dedicação e indesmentíveis garantias de fidelidade.
Nesse mesmo ano de 1655, em 20 de Abril, o governador-geral Luís Martins de Sousa Chichorro atestava os bons serviços prestados pelos sacerdotes capuchinhos italianos, reconhecendo ao mesmo tempo que eram estimados e respeitados pelo gentio. Tinha confiança de que da sua actuação viriam a colher-se os melhores frutos.
Os missionários da época mostraram-se generosos e dedicados. Enfrentavam as dificuldades de um clima pouco propício, de um ambiente pouco favorável, de costumes pouco regulares para a sua mentalidade e para hábitos civilizados, de normas de conduta social pouco agradáveis. Temos de aceitar e generalizar este condicionalismo para todas as ordens e congregações religiosas que trabalharam nas terras de Angola e Congo, sem qualquer excepção jesuítas, franciscanos portugueses, capuchinhos italianos, dominicanos, lóios, carmelitas descalços, etc. As excepções, quando as há de verdade, são de natureza individual e de carácter particular, não podendo incriminar qualquer das congregações com as culpas isoladas dos seus membros. Se quisermos apresentar um conjunto mais ou menos merecedor de crítica, em globo, teremos de nos reportar ao clero secular, cujos membros eram na quase totalidade mestiços e com preparação intelectual e moral muito deficiente, sem o apoio de ambiente carregado de espírito cristão que sempre ajuda muito aqueles que pretendem elevar-se a maior perfeição espiritual. Este condicionalismo, todavia, deverá ser localizado mais adiante, mais tarde, e não propriamente no período histórico que neste momento nos ocupa.
Também podemos, aqui, fazer referências particularmente elogiosas aos capuchinhos, como temos vindo a registar ao longo destas páginas, pois podem ser considerados grandes entre os maiores, de uma grandeza que irradiava sobretudo da sua humildade, resignação e desprendimento, da fiel imitação do seu santo patrono, S. Francisco de Assis, que se fez espelho do próprio Cristo, cujos estigmas recebeu na sua carne. Precisavam de ter dotes de persistência invulgar, de prudência profunda, de sensibilidade atenta, e felizmente tiveram-nos. Foram caluniados e afrontados, mas por fim as suas virtudes obtiveram público reconhecimento. O rei do Congo, Garcia II, por exemplo, recebia-os amavelmente em Janeiro de 1652 e dava-lhes completa consagração, tratava-os com deferência e respeito. Luanda havia reconhecido ainda antes as suas qualidades e o seu zelo.
Os jesuítas foram também atingidos pela calúnia e pelos mal-entendidos. Comportaram-se, contudo, de maneira diferente, defendendo com energia "a honra de Cristo e da Sua Igreja", como eles diziam. Não pode afirmar-se deles que abandonassem a luta, que oferecessem a outra face a quem os esbofeteasse! A sua combatividade fez com que os seus adversários endurecessem também, que persistissem na apreciação menos lisonjeira que deles faziam e que se foi conservando pelos tempos fora.
Os franciscanos foram, talvez, mais hábeis e mais prudentes do que os jesuítas!
No tempo de João Fernandes Vieira, fixaram-se em Angola os carmelitas descalços. A rainha D. Luísa de Gusmão pediu missionários ao provincial da Ordem de Nossa Senhora do Monte Carmelo, Frei Sebastião da Conceição. Estes religiosos deveriam estabelecer-se em Luanda. Embarcaram no dia 30 de Maio de 1659, em Lisboa; chegaram a Angola no dia 28 de Setembro seguinte. Alguns sacerdotes da congregação viajavam noutro navio que chegou mais cedo, fazendo a viagem em menos quarenta e cinco dias. Várias razões podem explicar casos como este.
Estiveram durante algum tempo em casas alugadas na cidade, mas por fim alojaram-se no seu convento, que ficava então nos arrabaldes, junto ao célebre musseque das Ingombotas, hoje um dos bairros mais centrais de Luanda. Fizeram a inauguração nos dias que antecederam o Natal daquele ano de 1659. Em 3 de Julho do ano seguinte, 1660, o governador-geral fez-lhes a doação de um bom lote de terreno contíguo ao convento. Nessa altura tinham iniciado já as obras de construção, por certo tendo em conta a promessa da doação futura. João Fernandes Vieira conservava-se ainda no exercício do cargo, que só entregou ao seu sucessor, André Vidal de Negreiros, em 10 de Maio de 1661.
Em Agosto deste ano estava para sair do porto de Lisboa um barco em que deviam seguir, para Angola, alguns missionários capuchinhos. O presidente do Conselho Ultramarino, D. João da Costa, conde de Soure, mandou suster o embarque dos religiosos até se esclarecerem certas dúvidas. Embora ainda dentro do período crítico das lutas com a Espanha, e de negociações com o Papa, o problema da soberania portuguesa em Angola e no Congo não era já pomo de discórdia, pois havia-se entrado numa plataforma de entendimento e aceitava-se a autoridade do rei de Portugal naquelas terras ultramarinas.
O assunto continuou a ser tratado no âmbito interno e a nível internacional, até que chegou às mãos da rainha D. Luísa de Gusmão, para despacho final. Esta, em 3 de Setembro seguinte, concedeu autorização para que embarcassem; mas a coisa não ficou definitivamente resolvida, apesar de eles seguirem o seu destino, a caminho da África. E em 3 de Abril de 1662, a rainha-mãe e regente do reino concordava com a sugestão de se não permitir o embarque de mais missionários estrangeiros, que pretendessem seguir para Angola. Estava já começando uma asfixia civilizadora que se prolongou por quase três séculos de História, como iremos verificando ao longo deste trabalho.
Talvez venha daqui o começo do enfraquecimento das actividades missionárias neste território. A política continuava a sujeitar aos seus interesses e às suas exigências o trabalho civilizador e a evangelização. Embora alguns o esquecessem, haveria quem fizesse religião à sombra da política mas havia ainda mais quem quisesse fazer política à sombra da religião, porém à margem das suas exigências e dos seus interesses.
Com referência a esta época histórica, colhemos um apontamento curioso e interessante, que nos ajudará a compreender melhor as condições locais e o ambiente social e económico de Luanda. Reconhecendo-se que havia na cidade muitas viúvas ainda novas e muitas moças solteiras, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa deixou de enviar para Angola, no ano de 1664, e não sabemos se também nos seguintes, as suas recolhidas que vinham casar com os colonos aqui estabelecidos. Devemos estar recordados que a tradição começara há setenta anos.
Mostrando ter conhecimento pormenorizado das condições em que era feito o trabalho missionário, o Papa Alexandre VII indicava, em 1660, os principais erros que deviam combater-se, e que eram o abuso da necromancia e dos encantamentos, os furtos e rapinas praticados entre as populações, a opressão e os vexames que os ricos e poderosos exerciam sobre os pobres e os humildes. Nesse mesmo ano de 1660, a Sagrada Congregação da Propagação da Fé recomendava que fosse fundado um seminário em Angola, onde se estudasse a Língua Latina e outras ciências necessárias ao estado clerical e indispensáveis para a recepção de ordens sacras. Estava-se, efectivamente, num tempo em que a fundação e funcionamento dos seminários era ideia basilar da actividade católica, em todo o mundo, emanada do Concílio de Trento. Todavia, nem todas as dioceses tradicionalmente cristãs haviam estabelecido os seus. Em Angola pensava-se nisso desde longa data, como temos visto, mas sobretudo desde 1623. Não foi possível criá-lo ainda desta vez. Na realidade só veio a estabelecer-se, e ainda muito periclitante, duzentos anos depois.
A propósito da menção da Sagrada Congregação da Propagação da Fé (Propaganda Fide, como oficialmente era designada), varias vezes citada, queremos esclarecer que, para simplificar, usámos a designação mesmo quando este dicastério da administração da Igreja não tinha ainda tal nome, o que só aconteceu a partir de 1622.
A provisão régia de 20 de Dezembro de 1667 concedia aos missionários capuchinhos estrangeiros, sob determinadas condições, que salvaguardavam a soberania portuguesa, a autorização já anteriormente concedida de exercerem a sua actividade no Congo. Outra provisão real, passada exactamente um mês depois daquela, portanto em 20 de Janeiro de 1668, concedia aos mesmos religiosos a capela de Santo António, na cidade de Luanda, para aí estabelecerem a sua residência e hospício. O documento determinava que, se estivesse sob o domínio real, lhes fosse imediatamente entregue, sem outras formalidades; mas se fosse de domínio diferente, que mesmo assim tomassem posse dela e de todos os seus anexos, indemnizando-se o seu detentor com liberalidade. Segundo todos ou quase todos os estudiosos da História de Angola, localizava-se onde actualmente estão o jardim e largo públicos, em frente do antigo Governo-Geral, hoje palácio presidencial.
D. Francisco de Távora governou Angola desde 1669 a 1676. Completava-se então um século sobre a data da chegada de Paulo Dias e fundação da cidade. No seu tempo, os trabalhos da missionação sofreram um esmorecimento acentuado e uma paralisação sensível, devido sobretudo a morrerem bastantes missionários e não serem substituídos. As igrejas de Luanda chegaram a um estado de abandono digno de reparo. Algumas delas estiveram muito próximo da ruína. Isso é um exemplo e uma prova da decadência a que se havia chegado. Causa certa estranheza tal facto , visto que as diversas ordens religiosas a trabalhar aqui tinham responsabilidade na sua conservação, assim como as autoridades civis e eclesiásticas. O governador-geral dedicou-se a restaurá-las, de forma que pudessem exercer as funções para que foram construídas, com dignidade, segurança física e esplendor litúrgico. Ficaram-se-lhe devendo obras nos templos de Nossa Senhora do Rosário, S. João Baptista, Misericórdia e Nossa Senhora da Conceição. Vem a propósito recordar que, durante o ano de 1679, nos meses que vão de Junho a Setembro, foram abertas ao culto as igrejas de S. João Baptista, Misericórdia, Nossa Senhora dos Remédios e Corpo Santo.
A igreja do Corpo Santo não era dedicada à Santíssima Eucaristia ou Corpo de Deus, como poderíamos ser levados a pensar; homenageava uma figura um tanto fantasiosa da hagiologia portuguesa, São Telmo (S. Pedro Gonçalves), patrono dos navegantes, citado por Garrett no Frei Luís de Sousa e que mantém presença na linguagem científica, os fogos-de-santelmo.
Falando da missionação angolana, não podemos esquecer uma figura lendária deste território, a rainha Jinga. Tinha sido baptizada em Luanda, no tempo do governador João Correia de Sousa, no ano de 1622. Recebeu no baptismo o nome cristão de Ana de Sousa. Algum tempo depois revoltou-se contra a autoridade portuguesa, influindo no caso a circunstância de Luanda ter sido ocupada pelos holandeses, que a subornaram com dádivas e receberam dela precioso auxílio. Na sua mentalidade, a conversão e baptismo era uma forma de submissão ao domínio português. Expulsos os flamengos, voltou a reatar a amizade com os portugueses, depois de ter travado contra as suas tropas alguns combates muito sanguinolentos. Já no segundo período da sua amizade com Portugal, escreveu ao governador de Luanda, em 13 de Dezembro de 1655, procurando consolidar a paz com Luís Martins de Sousa Chichorro; no ano seguinte chegou a firmar-se um acordo, cujas negociações findaram em Outubro de 1656. Para fazer o resgate de uma sua irmã, Bárbara de Araújo, que os portugueses retinham em Luanda desde 1629 (que parece ser demasiado tempo), a rainha Jinga entregou aos portugueses cento e trinta escravos, a fim de ela poder voltar para as suas terras. No dia 8 de Dezembro desse ano de 1656, o governador-geral de Angola escrevia ao rei de Portugal a dar conta do acordo de paz feito com a famigerada rainha.
No mês de Março de 1657, e mais concretamente no dia 21, um dos missionários capuchinhos de Angola, o P. Serafim de Cortona, director de consciência de Bárbara de Araújo, irmã da rainha Jinga, com quem depois entrou em contacto e que evangelizou as suas terras, fundando a missão de Matamba, contava numa carta, com grande contentamento e satisfação espiritual, as grandes maravilhas que Deus tinha obrado através daquela rainha, para edificação dos Seus servos e aumento da Sua glória. O destinatário era Luís Martins de Sousa Chichorro, tão intimamente ligado à recuperação da amizade desta extraordinária mulher. Não era, porém, a primeira carta que chegava às suas mãos; já anteriormente, em 12 de Janeiro desse ano, a própria rainha Jinga lhe escrevera, confessando-se sua filha espiritual e pedindo-lhe a remessa de alguns objectos de que tinha necessidade, talvez destinados ao culto divino.
Uma carta para o reino, dirigida à rainha-regente D. Luísa
de Gusmão, pois D. João IV havia falecido em 6 de Novembro
de 1655, falava da reconciliação da rainha Jinga e elogiava
o trabalho missionário. Estava-se então em 10 de Abril de
1657. A própria rainha Jinga também escreveu ao Papa, na
qualidade de soberana católica que era ou simplesmente se reputava
como tal, em Setembro de 1657 e em Agosto de 1662; naturalmente, estas
cartas deveriam ter sido redigidas pelos missionários, visto que
tratavam dos problemas da evangelização. Aproximava-se, contudo,
o fim da sua agitada e desconcertante existência, pois faleceu no
dia 17 de Dezembro de 1663.
|
||
|
||
|
|
|
|
|