MARTINS DOS SANTOS
A MÚSICA EM PORTUGAL
PRIMEIRA PARTE
BRAGA — 1999
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Os estudos musicais, em Portugal, só nos meados do século XVIII começaram a interessar os nossos estudiosos. Anteriormente a esta época pouco ou nada se tinha feito. Os trabalhos que se ligam à livraria musical de D. João IV podem considerar-se excepção e caso isolado.
Alguns deles foram simples dicionaristas e não praticantes da ciência e da arte dos sons, nenhum foi mestre consumado nesta particularidade; os seus trabalhos podem ser considerados como actividade de curiosos sem preparação específica da matéria tratada; isso, porém, não invalida a sua obra nem diminui o mérito das tarefas realizadas, quando muito tornará os seus horizontes mais restritos e a sua visão menos ampla.
Só mais tarde os músicos autênticos, quer amadores quer profissionais, passaram a dedicar o seu interesse à coordenação de elementos relacionados com a sua actuação prática.
Os primeiros nomes nossos conhecidos, e reconhecidos pela totalidade dos estudiosos, foram os a seguir designados:
—Diogo Barbosa Machado reuniu alguns dados elucidativos na "Biblioteca Lusitana", colectânea ainda imperfeita, imprecisa e incompleta, mas que mesmo assim reúne bom número de informações interessantes;
—José Mazza, estudioso de origem espanhola mas radicado no nosso País, tomou a iniciativa de elaborar o nosso primeiro "Dicionário de Músicos Portugueses", em que juntou notas biográficas e bibliográficas bastante curiosas, e teve o mérito de conservar a memória de figuras mal conhecidas;
—Joaquim de Vasconcelos, muito tempo depois, elaborou a sua conhecida e volumosa obra em dois tomos, a que deu o expressivo título de "Músicos Portugueses", não como artista mas como diletante, como investigador meticuloso dos valores da nossa cultura, em geral;
—Joaquim José Marques fez nome no período histórico que se estende pelos meados do século XIX, tendo efectuado tarefas de valor mas cuja divulgação foi deficiente e por isso a sua obra teve limitada influência e os trabalhos realizados são pouco conhecidos;
—Platon Lvovitch de Vaxel, estudioso oriental, russo de nascimento, mais ou menos pela mesma altura [tendo procurado em Portugal e na Madeira a saúde perdida, e residindo entre nós coisa de dez anos], embora muito novo e doente, organizou com dados fornecidos por Joaquim José Marques e Joaquim de Vasconcelos o primeiro trabalho sistematizado sobre a musicologia lusitana e, ficámos-lhe devendo a publicação do primeiro texto de fundo sobre a história da música portuguesa numa obra de divulgação publicada em língua alemã.
Entre estes últimos e os primeiros citados interpõe-se o intervalo de quase um século, pois uns estão localizados no final do terceiro quartel do século XVIII enquanto os outros se fixam na terceira quarta parte do século XIX, como facilmente se pode deduzir. E foi já no século XX que surgiram outros nomes destacados dos estudos musicológicos nacionais:
—Miguel Angelo Lambertini foi o nosso primeiro autor a ordenar criteriosamente os apontamentos histórico-musicais que ia coleccionando, com o objectivo bem claro de sistematizar o melhor possível os conhecimentos e os que vieram depois dele apenas deram continuidade à sua tarefa, ampliaram e desenvolveram mais os seus trabalhos;
—Francisco Marques de Sousa Viterbo coligiu uma série de apontamentos, que no seu conjunto pode ser considerada como um esboço de visão panorâmica do ambiente musical português, a que deu o sugestivo título de "Arte Musical";
—Ernesto Vieira foi outro grande nome de musicólogo, em Portugal, imortalizando-se com a publicação da sua célebre obra intitulada "Dicionário Biográfico de Músicos Portugueses" que apesar das suas limitações marca contornos salientes e continua sendo imprescindível obra de consulta;
—Mário Sampaio Ribeiro, e o mui conhecido investigador —Manuel Joaquim, o célebre pesquisador ibero-britânico —Macário Santiago Kastner e o tão justamente célebre —P. José Augusto Alegria merecem especial referência entre os grandes musicólogos nacionais do século XX, pois foram verdadeiros prospectores de valiosas gemas, guardadas nos nossos arquivos ou incrustadas no nosso folclore, sendo todos eles luzeiros de grande brilho, faróis de invulgar intensidade luminosa, orientadores competentes, guias seguros e experimentados, com renome mundialmente aceite;
—João de Freitas Branco foi um estudioso que se distinguiu, como alguns outros, pelas pesquisas realizadas e trabalhos empreendidos, uma vez que a sua "História da Música Portuguesa" é valiosa obra de conjunto, apesar de nos dar uma visão algo desequilibrada dos períodos históricos considerados, uns mais pormenorizados do que outros;
—Maria Antonieta de Lima Cruz elaborou também uma obra de assunto equivalente, com igual título, "História da Música Portuguesa", cujo nome se expandiu devido à intensa actividade radialista que desenvolveu na Emissora Nacional de Radiodifusão, onde exerceu funções relevantes, como produtora e apresentadora de algumas séries de raro interesse.
D. Afonso V dedicou especial atenção à actividade musical. A famosa missão enviada a Londres, em que se integraram Tristão da Silva e Álvaro Afonso, tinha a incumbência de passar por Borgonha, notável centro cultural de então, onde reinavam seus próximos parentes, com a finalidade de recolher elementos musicais de interesse e que deveriam aplicar-se no ambiente lisboeta. Este monarca gostava de ouvir música, vocal ou instrumental, o que lhe proporcionava enorme satisfação, o distraía nas suas preocupações, o acalmava e muito relaxava o seu agitado espírito.
Segundo Damião de Góis, o rei D. Manuel I, grande apreciador de música, já mantinha características de "música ambiental", pois enquanto comia ou descansava, até mesmo enquanto trabalhava, um pequeno grupo de instrumentistas tangia os seus instrumentos em volume de som algo reduzido. Tinha frequentes sessões musicais, para que convidava muitos cortesãos, e sustentava este serviço com carácter permanente, como actividade normal e mesmo quotidiana.
Os estudos musicológicos, em Portugal, apresentam grandes lacunas. Tem sido feita uma prospecção muito superficial, mesmo deficiente, em todos os períodos da nossa produção musical. Até o século XX é mal conhecido, por falta de estudos de síntese. Pior é a situação relativamente ao século XIX, em que se registou produção volumosa mas ainda não explorada, ordenada e classificada, e grande parte sem gravações discográficas ou então desde há muito esgotadas.
Temos compositores de certo valor que nos são inteiramente desconhecidos e cuja obra nunca foi arrolada. Muitos trabalhos perderam-se e muitos outros correm o risco de perda ou extravio, continuando a apodrecer no mofo de arquivos mal acondicionados.
Na prática, dá-se a mesma coisa com a volumosa produção operística e com o reportório de música sacra, tanto do século XX como sobretudo do século XIX, e até da fase final do barroco, ainda no século XVIII — podendo estender este sudário à polifonia renascentista e aos cantos maneiristas.
Concluiremos daqui que nenhuma das nossas épocas musicais tenha sido exaustivamente estudada, havendo largo trabalho de pesquisa, de ordenação e classificação a realizar com certa urgência.
Até ao final da nossa segunda dinastia, em 1580, a prática musical portuguesa não tinha atingido ainda nível artístico que a engrandecesse e prestigiasse como actividade profissional. Contamos no conjunto de figuras do panorama artístico nacional nomes de destaque, mas ainda dentro das características que definem o grupo designado por Primitivos.Não pode negar-se que alguns desses elementos dominavam perfeitamente o seu ofício, o que é afirmado por autoridades de competência indubitável. Todavia, não manifestaram inspiração que possa considerar-se criativa, conservando-se dentro dos limites da vulgaridade, da composição imitativa. A produção não era abundante, antes deverá ter sido muito limitada; carecemos de modelos elucidativos, que possam servir de testemunho.
Não são poucos os nomes de compositores de quem se desconhece inteiramente a obra realizada. E nem sequer há esperança de que venham a encontrar-se peças que possam ilustrar o período considerado, enriquecendo o espólio artístico nacional. Tudo nos leva a crer que a situação se perpetue. A produção era pequena e o interesse da preservação e conservação dos trabalhos era quase nulo.
Quase sempre as condições de momento são descuradas pelos contemporâneos, quando não inteiramente desprezadas. Nesse tempo a imprensa ainda não havia conquistado espaço; e a impressão de obras musicais tornava-se, como hoje, ainda mais difícil e mais cara do que a das obras literárias. E quase sempre os autores lutavam com dificuldades económicas que os impediam de dar à estampa os trabalhos que iam produzindo.
O período que abrange o domínio filipino e o tempo de guerra que se lhe seguiu (D. João IV, D. Afonso VI e D. Pedro II) corresponde ao que vulgarmente designamos por época maneirista e primeira fase do barroco. Em Portugal, a produção musical concentrou-se na elaboração de música religiosa, música sacra, quase sempre sobre texto latino. Os nossos compositores estavam algo atrasados em relação ao que passava no resto da Europa.
As condições políticas, religiosas e sociais não permitiam, por razões diversas, actualização eficiente. O facto de Portugal e a Espanha terem monarca comum, a realidade de a Inquisição exercer forte influência limitativa e determinante, a carência de meios materiais que outras prioridades requeriam, a própria tradição escolástica — tudo contribuiu para o resultado que veio a obter-se...
Todavia, o valor técnico-artístico das obras produzidas era alto, atingindo um nível de perfeição bem saliente. As condições sociais não permitiam acompanhar os passos dos produtores estrangeiros, que dispunham de meios que entre nós não podiam ser concretizados. Houve já autores que sublinharam ter sido o relativamente curto período da dominação filipina verdadeira idade de ouro da nossa vida musical. O progresso não depende só das condições políticas, depende do conjunto de todas elas — culturais, religiosas, económicas e sociais.
Por vezes, a submissão a um condicionalismo político ou social, mesmo com a aparência de sujeição a uma personagem, pode não chegar a ser servilismo. O nosso grande compositor Frei Manuel Cardoso fez cantar uma missa, em Madrid, na qual se salientava o estribilho individualista e absolutista Filipe Quarto, tendo depois da restauração da independência aproveitado outra festividade para que se cantasse repetidas vezes um estribilho idêntico, João Quarto.
O compositor não tinha mudado, apenas aceitara com toda a naturalidade duas situações nacionais diferentes, pois antes de ele ser rei já era amigo devotado do então Duque de Bragança, a quem dedicou um dos volumes das suas missas. O grande compositor, residiu em Lisboa, no convento do Carmo; viveu sempre amplo espírito de pobreza, não dispondo de recursos para editar as suas obras, tendo sido patrocinado pelos dois monarcas; a congregação carmelita não quis ou não pôde sustentar o encargo da impressão tipográfica; isso fará compreender a sua atitude, comparável à de outros compositores do tempo.
A fixação da corte em Madrid não teve como consequência inevitável a suspensão das actividades da capela real, embora tenha diminuído o seu esplendor e a importância das suas funções, pois sabemos que durante o domínio filipino continuou a ter o seu mestre de capela, os seus cantores e instrumentistas. Contudo, ao tempo, a capela ducal de Vila Viçosa, apoiada no famoso Colégio dos Santos Reis (também conhecido por Colégio dos Reis Magos), desenvolveu papel de maior relevância do que a própria capela real.
O interesse de D. João IV e dos seus antecessores pela constituição da sua livraria musical parece ter sido apenas um gosto coleccionista e um esforço com a finalidade de criar prestígio, pela dedicação a um objectivo incomum. Reunia, na prática, a quase totalidade das obras musicais que naqueles anos de renovação estética foram impressas em toda a Europa.
O seu acervo mais volumoso e o mais valioso era o dos manuscritos de música religiosa — do qual se fazia cuidadosa escolha das melhores peças para serem executadas nas inumeráveis e imponentes cerimónias litúrgicas promovidas e realizadas para celebrar as principais festividades do calendário litúrgico do grande solar.
Ao longo do século XVII e no decorrer de todo o século XVIII, a música mais aprimorada era a dos grandes núcleos congregacionistas, que dispunham de elementos com melhor preparação para a executar, e também de auditório mais exigente, mais culto. Nas catedrais praticava-se música de qualidade menos alta, embora ainda de bom nível artístico, pois não dispunham de executantes tão treinados e nem os ouvintes, gente do povo, apreciavam os primores musicais que lhes fossem proporcionados.
Também entre nós se cultivou o vilancico religioso, embora com menor interesse do que na Espanha. Todavia, seguiu evolução idêntica, começando por ser uma peça curta, de sabor popularizante, que se foi alongando e enriquecendo com o tempo, evoluindo para a cantata ou género semelhante, utilizando frequentemente imagens literárias carregadas de misticismo ao lado de figuras burlescas e de sentido duvidoso. Os exageros cometidos tiveram como lógica consequência que fossem repudiados e por fim proibida a sua execução.
Sendo tão diferentes, numa coisa se assemelham os vilancicos com a ópera: — normalmente, a música era de qualidade, mas o texto, fosse quem fosse o seu autor, carecia de qualidade e de elevação; também a ópera se impôs pelo valor da sua música, quase sempre escrita para textos fantasiosos e de pequeno valor como obra literária.
Em Portugal, as obras editadas que tem a finalidade de fazer divulgação de dados, na sua grande maioria dedicam mais espaço à música do período anterior à estruturação da ciência dos sons. Torna-se-nos hoje mais fácil encontrar estudos que tratem do período anterior a 1600 do que do seguinte. A época melhor conhecida talvez seja a do Renascimento e do Maneirismo, que em boa parte se sobrepõem. O período barroco propriamente dito, o período romântico e a produção de características nacionalistas do fim do século XIX e do começo do século XX têm sido bastante descurados pelos estudiosos, o material disponível é mais volumoso, tornar-se-ia indispensável apreciar nomes, demoraria mais tempo a fazer o estudo, exigiria maior trabalho de pesquisa e de confronto de obras, e os riscos de levantar polémica seriam mais prováveis.
Portugal é, no campo da Música, uma jóia escondida. Esta opinião é defendida pelo musicólogo brasileiro Frei Pedro Sinzig; este cita o conhecido estudioso Macário Santiago Kastner ao afirmar que a música portuguesa dos séculos XVI e XVII constitui uma das mais brilhantes escolas polifónicas, podendo rivalizar com a escola romana de Palestrina, com a escola castelhana de Vitória, ou com a escola flamenga de Lassus, ou pelo menos podendo ombrear com elas. No entanto, os portugueses esquecem isso ou até ignoram que seja assim.
As referências à música que se fazia nestas terras antes da fundação do reino de Portugal são bastante escassas. Podem encontrar-se algumas em textos literários, que não nos dão mais que indicações vagas e imprecisas. As poucas imagens colhidas em figuras gravadas em vasos ou em cerâmica de construção mais falam das terras em que foram fabricados do que das regiões onde se encontraram, pois são peças comerciais de importação. Quanto à influência romana, podemos pensar que tenha exercido papel influente, pois sabemos que construíram na Península Ibérica uns vinte teatros e um deles em Lisboa. Se considerarmos as numerosas manifestações musicais e não só o teatro, o inventário da acção romana será mais amplo. A influência romana liga-se à do Cristianismo.
O investigador Robert Stevenson afirma que um dos nomes mais antigos da música religiosa, e mesmo em todo o mundo, é o de um tal André, príncipe dos cantores, que deveria ter vivido em Mértola.
A fundação da nacionalidade portuguesa, em 1143, e a sua consolidação e alargamento territorial ao longo de cem anos, veio conferir novas características à música, que se foi enriquecendo e valorizando com elementos heterogéneos, mas em que predominariam os de origem gaulesa.
A influência da Gália, em Portugal, manifestou-se a partir da própria dinastia real, proveniente de Borgonha, pela presença de numerosos trovadores provençais, possivelmente pela actividade de alguns troveiros, pela fixação de colonos francos, participantes nas cruzadas à Terra Santa ou à Península Ibérica, as cruzadas do Oriente e do Ocidente, pela acção de importantes ordens ou congregações religiosas, de origem gaulesa e dirigidas por gauleses (sobretudo os beneditinos de Cluny e de Cister), e pela existência de bispos naturais da França nalgumas das mais importantes dioceses portuguesas.
Olhando panoramicamente, podemos dizer que o período anterior à data da organização do Condado Portucalense pode ser designado, sob o aspecto musical por período hispânico, também conhecido por período visigótico, dando-se-lhe algumas vezes a expressiva denominação de período moçárabe.
O curto espaço de tempo que, grosso modo, corresponde aos governos do conde D. Henrique, de sua viúva D. Teresa e do filho de ambos, o nosso futuro rei D. Afonso Henriques [mas antes da proclamação da independência], sentiu a poderosa influência dos religiosos da abadia de Cluny, é o vulgarmente designado período cluniacense; poderemos compreender melhor o que se passou se atendermos a que S.Hugo [+1109], o Grande Prior, deveria ser parente muito próximo do nosso conde D. Henrique [+1112], pois pertencia como ele à família dos duques de Borgonha e deveriam ter ambos idade aproximada; devido a estar relacionado por laços de parentesco com bom número de governantes, S.Hugo de Borgonha exerceu profunda e decisiva influência política em praticamente quase toda a Europa, e se manifestou claramente no território portucalense. Depois de D. Afonso Henriques ser alçado como rei, e talvez para poder fazer política mais independente, a influência cluniacense foi sendo substituída pela cisterciense, do ramo beneditino reformado sob a inspiração de S.Bernardo de Claraval, entrando-se então no chamado período cisterciense.
Será interessante frisar que dois dos nossos mais importantes centros musicais, Santa Cruz de Coimbra e São Vicente de Fora em Lisboa, estavam dependentes da influência de Cister, mesmo pertencendo a distinta família religiosa, os Cónegos Regrantes, As grandes organizações religiosas tinham comunicação entre si, influenciavam-se mutuamente.
A "História da Música Portuguesa", de Manuel Carlos de Brito e Luísa Cymbron, esclarece-nos que o famoso Antifonário de León deverá ter sido copiado de um documento cujo original estaria em Beja, a antiga Pax Julia. Esta opinião é defendida por diversos musicólogos e de grande competência..
São muito raros, em Portugal, os documentos musicais referentes aos primeiros duzentos e cinquenta anos da nossa história, isto é, ao período abrangido pela primeira dinastia. Isso não prova que não tenham existido. Será mais lógico aceitar a hipótese de se terem perdido no decorrer dos séculos. Apesar de tudo, há a certeza formal de que a música ocupou entre nós o lugar que ao lado das demais artes lhe correspondia, não sendo admissível que, neste pormenor, se tivesse criado uma bolha de isolamento, não acompanhando os demais ramos da actividade artística no seu desenvolvimento. No estudo da História prestar-se-á atenção aos documentos, mas também deve ter-se em consideração o raciocínio baseado em testemunhos ou em factos. Mesmo que não reconstituam o ambiente social, dão-nos imagem aproximada dele.
Devemos atender a que, segundo os estudiosos, o período moçárabe não nos deixou documentos esclarecedores do tipo de música então em uso; o período cluniacense deu-nos rara documentação, sendo mais numerosa a que corresponde ao período cisterciense, o mais recente e o mais dilatado.
Quase todos os nossos musicólogos de prestígio aceitam que a música da Península Ibérica foi fortemente influenciada pelos estilos orientais — hebreus e gregos, egípcios e fenícios, celtas e romanos, visigóticos e árabes. Ao longo dos séculos foi-se processando um caldeamento tão apertado que se torna difícil, quase impossível, definir a origem.
Os conventos e mosteiros das regiões norte e centro de Portugal sustentaram redutos insubmissos, altamente conservadores, mantendo o tipo próprio da música perante as investidas espontâneas ou programadas de forças alheias. Isso tanto ocorria no cerimonial litúrgico como nos eventos profanos. A música fazia parte de todas as manifestações, quer louvando o Senhor Deus quer homenageando destacadas personagens históricas e sociais daqueles tempos.
Atendendo à sua antiguidade, a escola capitular de Braga passa por ser a mais notável de Portugal. Ali bem perto, a Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, guarda o foro de ter sido a nossa primeira capela musical a dispor de regulamento próprio. A música exerceu preponderante influência em todos os conventos e mosteiros, embora nalguns mais do que em outros. Sabemos, por exemplo, que era cultivada com muito interesse no convento de Arouca, apesar de ser constituído por elementos do sexo feminino.
O norte de Portugal viu surgir diversas residências monacais, tanto masculinas como femininas. A música parece interessar mais às primeiras, apesar de que as segundas também lhe devotaram atenção muito destacada. Na parte sul do território manifestou-se a actuação das ordens militares, que dedicavam à música menos interesse do que as conventuais.
Não deixemos de ter em conta que os cistercienses eram mais austeros do que os cluniacenses. E deve atender-se também a que a notação escrita era ainda pouco exacta e até pouco frequente; o ensino musical era quase sempre feito por treino prático, fazia-se música de ouvido, e isso contribuiu para que hoje não disponhamos de vasta documentação escrita.
Alguns autores referem que, no território de Portugal, se usou desde cedo a pauta musical de quatro linhas (tetragrama) e de cinco linhas (pentagrama), com a característica de na linha encarnada designativa da nota fá utilizarem o desenho de um losango para indicarem a variação de meio-tom.
Essa variante é conhecida por sistema português, também denominada por vezes notação portuguesa, prova suficiente do interesse que a música merecia.
Aceita-se que um dos mais raros e valiosos documentos musicais daquele período seja um hino a Santa Luzia. Referem-se-lhe, entre outros, Luís de Freitas Branco e Aarão Soeiro Moreira de Lacerda. Foi publicado pela primeira vez em 1916, por aquele estudioso. Está escrito em notação neumática primitiva, sem linhas, em tipo lombardo, também chamado meridional. O segundo dos pesquisadores mencionados refere-se a um cerimonial mais ou menos do mesmo período, que é um códice precioso, contendo muitos cantos sacros, notados com pontos ou com neumas, cuja altura era regulada por uma linha vermelha, correspondente à nota fá; reporta-se ainda a dois fragmentos de missas notados em neumas, encontrados entre o acervo da Biblioteca Nacional de Lisboa.
A música, tal como as demais artes, reagiu perante o movimento reformador promovido pelos membros das congregações religiosas de origem gaulesa, procurando preservar o estilo moçárabe; mas não se conseguiram evitar as alterações que a sua forte influência foi difundindo e impondo... Não podemos esquecer o papel exercido pelo seu poderio económico assim como pela sua importante influência política.
As autoridades eclesiásticas esforçavam-se para que o canto litúrgico se aprimorasse o mais possível, que se libertasse dos defeitos que o tempo fora introduzindo. E o tipo de música litúrgica que as congregações oriundas da Gália estavam adoptando era considerado de melhor qualidade, de maior valor litúrgico, isto é, mais adequado às funções do culto.
Na época em que se manifestou o canto profano vulgarmente designado por provençal, o acompanhamento era feito quase sempre pelo alaúde ou pela cítara, os instrumentos mais em voga naquele tempo. Na parte norte da Península Ibérica, fez-se sentir a influência dos cantares vulgarizados pelos cruzados que se radicaram nestas paragens, e que evoluíram para as serranilhas.
Todavia, outros instrumentos se usavam, podendo classificar os seus utentes mais destacados, os segréis, em três grupos distintos, de acordo com o tipo de aparelhos utilizado: — jograis de pénula, instrumentos de corda, jograis de boca, instrumentos de sopro, e jograis de atambores, instrumentos de percussão. Como é natural, havia executantes que manuseavam mais de uma destas modalidades de aparelhos produtores de sons musicais.
O trovador utilizava, em regra, a "língua d'oc", portanto era oriundo do sul da França; aproveitava de preferência temas amorosos e o estilo rítmico. O troveiro usava preferentemente a "língua d'oil", por conseguinte era oriundo do norte da França; cultivava os temas bélicos e o estilo narrativo.
Em Portugal, os trovadores exerceram influência maior, mais profunda e mais acentuada do que os troveiros.
O jogral, o menestrel e o segrel eram figuras próximas, semelhantes entre si. O jogral era intérprete de poemas alheios, acompanhando o canto com execução instrumental, e tinha actuação algo truanesca. O menestrel era poeta e músico ao serviço de um trovador, um nobre ou um rei, e de origem plebeia. O segrel era na realidade um menestrel que compunha a troco de recompensa em valores materiais, em bens de consumo ou valores fiduciários. Hoje torna-se difícil determinar com exactidão as diferenças que entre eles havia; o condicionalismo actual difere muito do de então.
Podemos assentar em que os trovadores e troveiros constituíam como que um escol, ao passo que os restantes elementos eram considerados de categoria inferior e até de comportamento e actuação por vezes duvidosos. Em certos períodos históricos, deu-se-lhes conotação que os aproximava dos bobos, dos bufões, dos truões e dos palhaços; normalmente, o seu comportamento moral e a sua honestidade eram vistos sob sérias reservas.
As cantigas trovadorescas, nomeadamente aquela que D. Sancho I, rei de Portugal, dedicou à sua Ribeirinha, eram sem dúvida musicadas. Não se sabe ao certo se então estava generalizado o sistema declamatório, é mais comum a ideia de que boa parte das composições se destinassem a ser cantadas.
Esquematizando as estruturas sociais daquele período, podemos afirmar que os cantores sacros eram quase sempre clérigos e representavam a respectiva classe; os trovadores e troveiros, quando existiam, eram os representantes qualificados da nobreza; os segréis ou jograis, assim como os menestréis, marcavam a presença e a existência do povo. A música do tempo era fortemente influenciada pelos cantos litúrgicos; algumas vezes até a letra era em latim.
Não podemos esquecer que quase sempre as poesias dos trovadores eram musicadas. Compor a música para os versos tinha a designação de ensoar, ou seja, fixar e aplicar o som. Ora, se a denominação existia, não podia deixar de existir também o facto a que se reportava.
Durante o período provençal ou trovadoresco, os jograis exerceram notável influência. Eles tinham a função de apresentar as canções elaboradas pelos trovadores; para isso eram contratados ou recrutados, auferindo vantagens materiais, de acordo com a estrutura económica e social em vigor naquelas remotas idades. Podem ser considerados como que os substitutos e prolongamento dos trovadores e troveiros, os quais compunham e cantavam por prazer ou por vaidade, muitas vezes em louvor das suas damas.
Devemos ter presente que o rei D. Afonso III, antes de começar a governar, viveu durante bastantes anos em Bolonha, onde casou, e se fazia acompanhar de um séquito de nobres e serviçais muito numeroso. Quando regressou a Portugal, trouxe consigo o gosto europeu, a influência trovadoresca. Tornou-se saliente o papel estimulante dos retornados de Bolonha e dos que, sendo naturais da França, os acompanharam a Portugal.
Segundo Manuel Carlos de Brito e Luísa Cymbron, "o mais antigo trovador galaico-português é João Soares de Paiva, nascido cerca de 1140, e o último é D. Pedro, Conde de Barcelos (c. 1285-1354), filho do rei D. Dinis; o apogeu da cantiga trovadoresca em Portugal deu-se na corte do Bolonhês, D. Afonso III (1248-1279), o qual havia estado em França, tendo sido igualmente trovadores os reis D. Sancho I (1154-1211) e D. Dinis (1262-1325), que nos legou o maior número de cantigas, para algumas das quais terá ele próprio feito a música".
Devemos atender a que alguns dos principais cancioneiros que nos interessa considerar são também deste tempo. Vivia-se a última fase do período de formação das línguas novi-latinas, o conhecido "romanço". Foi nesta época histórica que D. Dinis ordenou que se abandonasse o emprego do latim nos documentos notariais e decretou o uso da língua vernácula, por ser a que o povo entendia.
A arte musical viveu também uma fase de grande interesse e era cultivada pelos elementos mais destacados da sociedade. O canto saiu dos templos e tomou conta das festas da nobreza e dos divertimentos populares. Celebravam-se com música adequada episódios fúnebres e acontecimentos jubilosos.
O prolongado contacto entre culturas diferentes também contribuiu para a divulgação e aperfeiçoamento da arte musical, adoptando novos modelos de instrumentos e aperfeiçoando os tradicionais.
Até as expedições bélicas, como as então recentes cruzadas do Oriente e do Ocidente, exerceram grande influência, pois não deixava de ser uma forma de contacto, embora doloroso e violento. Não deixemos de atender a que certas manifestações musicais nos são apresentadas, com bastante frequência, como música do tempo das cruzadas ou mais singelamente como música medieval, quase sempre anunciada pela vulgarizada expressão "medieval carols".
A música religiosa, base e fundamento de todos os cantares daquele período histórico, inspirava-se por sua vez numa espécie de cantochão bárbaro, constituído por cantos do próprio povo. Tinha como raiz principal o canto gregoriano, já profundamente adulterado pelo estilo moçárabe. Tinha também certa semelhança com a música das representações figurativas, os autos e os mistérios. Se até certa altura foi bem aceite pelas autoridades eclesiásticas, depois passou a ser combatida e reprimida, tendo em conta os abusos que se foram introduzindo. A deturpação é um fenómeno natural, com o tempo todos os esquemas estabelecidos vão sendo desvirtuados.
As autoridades eclesiásticas tiveram necessidade, em diversos momentos históricos, de combater defeitos que se foram enraizando. Podemos pensar que tiveram de corrigir os exageros do contraponto, no século XV, foram levadas a abolir as extravagâncias dos vilancicos, aí pelos meados do século XVIII, não puderam deixar de condenar o exibicionismo operístico, no decorrer do passado centénio, ao longo de quase todo o século XIX. E o século XX conheceu novas alterações, a maior parte delas ainda mais profundas do que as do passado.
No período trovadoresco, música e poesia completavam-se, estavam indissoluvelmente unidas; não se pode conceber a declamação sem música.
Tudo indica que a quase totalidade das trovas fosse cantada. O próprio termo "cantiga" ainda hoje pode empregar-se tanto para a letra como para a música, a entoação.
Os desenhos que ilustram os cancioneiros representam com frequência os instrumentos musicais e nalgumas dessas compilações até dão a imagem dos cantores. Muitas vezes existe espaço reservado para a notação musical, que não chegou a ser feita. O estudo dos exemplares conhecidos da música profana e as referências dos textos levam a concluir que seriam cantados.
Os estudiosos deste tema referem frequentemente a Canção do Figueiral, conhecida através de uma versão impressa, não a partir do manuscrito original mas de uma transcrição feita no decorrer do século XV. Dá-se-lhe também a denominação de Canção do Figueiral Figueiredo. Quase sempre a referência serve de elo para a menção de diversos códices conhecidos ou de outros documentos mais raramente apontados e, consequentemente, menos famosos.
Os principais cancioneiros que nos interessa considerar foram organizados ao longo do dilatado período de trezentos anos, ou até mais, de meados do século XIII até meados do século XVI. Incluímos aqui a sua enumeração, sem ter em conta a ordem cronológica nem a sua importância documental. São os seguintes:
— O Cancioneiro da Biblioteca do Palácio da Ajuda, o antigo Cancioneiro do Colégio dos Nobres;
— O Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa, também designado por Cancioneiro Brancuti-Colocci, nomes da localidade e do proprietário anteriores;
— O Cancioneiro da Vaticana, que tem este nome por se conservar na Biblioteca Pontifícia do Estado do Vaticano;
— O Cancioneiro de Belém, que foi localizado na respectiva biblioteca, em Lisboa;
— O Cancioneiro da Biblioteca Públia Hortênsia, onde se encontra, na cidade de Elvas;
— O Cancioneiro de Upsala, da universidade desta cidade, na Suécia;
— O Cancioneiro de Martin Codax, trovador galego do século XIII, só encontrado na segunda década do século XX;
— O Cancioneiro do Palácio, conservado num dos arquivos de Espanha, e que muitas vezes é designado por Cancioneiro de Barbieri ;
— O Cancioneiro dos Louvores a Santa Maria, do rei D. Afonso X, o Sábio, conservado algures na Espanha, e é o Livro das Cantigas de Santa Maria;
— O Cancioneiro da Biblioteca Colombiana, conservado em Sevilha, sem canções escritas em língua portuguesa mas que foram conhecidas em Portugal, semelhante aos de Barbieri e Públia Hortênsia;
— O Cancioneiro Geral, compilado por Garcia de Resende, que se conserva em Lisboa e junta composições de períodos vários.
Estes são os cancioneiros de maior interesse e, certamente, os de maior importância para o nosso caso. No entanto, devemos admitir que haja mais, conhecidos ou ignorados, escondidos no acervo dos arquivos, das bibliotecas ou mesmo em livrarias particulares. Limitando-nos somente a Portugal, é geralmente aceite a ideia de haver documentos valiosos em quase todas as principais cidades, se não do período medieval pelo menos de épocas mais tardias. Não surpreende ninguém a referência às cidades de Braga, Porto, Coimbra, Viseu, Évora, Vila Viçosa, etc. Possuímos valores mais ou menos conhecidos e provavelmente até outros a serem descobertos, estudados e analisados.
O rei Afonso X, o Sábio, que governou Castela e Leão durante mais de trinta anos, a partir dos meados do século XIII, instituiu na Universidade de Salamanca, em data incerta, a primeira cátedra de Música, em toda a Europa, segundo afirmam competentes musicólogos.
Devemos ter presente que Salamanca fica bem perto da fronteira portuguesa e a sua universidade foi sempre frequentada por estudantes de Portugal. Aceitemos, no entanto, que a região portuguesa fronteira a Salamanca é pobre de manifestações folclóricas, em reportório musical.
Não podemos olvidar que, no tempo do rei D. Afonso X, a língua galaico-portuguesa tinha grande projecção em toda a Península Ibérica, era o idioma poético por excelência. Concluiremos que a influência se dava de Portugal para o exterior, sendo menor a que se registava em sentido inverso. Todavia, é difícil admitir que apenas nos aspectos linguísticos e poéticos houvesse tão forte influência e que se não registasse sob o aspecto musical, de tão estreita afinidade. A deficiente divulgação de um facto ou mesmo o desconhecimento dele não é prova insuperável de que ele não tenha existido; a história não regista todas as manifestações desenvolvidas ao longo dos séculos, nós não temos conhecimento de tudo o que aconteceu...
Sabemos que o rei D. Dinis organizou a capela do paço, em data indeterminada, que se admite poder ter sido em 1299, no Paço de Alcáçovas, que hoje nós denominaríamos "palácio do alcácer" ou "palácio do castelo". Tratava-se, provavelmente da estruturação do serviço de música para actuar nas cerimónias religiosas a realizar perante a corte; anteriormente deveria já existir, mas de carácter informal. A Rainha Santa Isabel, sua esposa, não dispensaria tal serviço, atendendo ao seu carácter religioso e espírito devoto. Nas cortes reais europeias a música sacra era muito apreciada. E já antes outras figuras se tinham destacado pela sua religiosidade, nomeadamente a mãe de D. Dinis, D. Beatriz, filha natural do rei D. Afonso X, o Sábio, cujas qualidades o rei D. Afonso III reconheceu, ao redigir as suas disposições testamentárias, encarregando-a de lhes dar cumprimento, por ser a pessoa em quem depositava maior confiança.
Recuando ainda mais, podemos falar nas três filhas do nosso rei D. Sancho I — D. Teresa, D. Sancha e D. Mafalda — beatificadas pela Igreja e cuja memória, no novo calendário litúrgico, foi fixada em 20 de Junho. Isso nos leva aos primeiros tempos da monarquia portuguesa. A partir desta altura, organizou-se melhor um serviço que vinha de longe, registando-se a existência de capelas musicais em todos os estabelecimentos religiosos de certa importância, as catedrais, os mosteiros, os conventos e as colegiadas, muito numerosos em todo o território do reino, mas sobretudo ao norte do rio Mondego, na metade mais boreal do nosso espaço geográfico.
A primeira universidade portuguesa foi criada em Lisboa, no ano de 1290, sendo transferida para Coimbra em 1307. Dois anos depois, em 1309, era incluída no cômputo escolar a cadeira de Música. Há estudiosos que afirmam ter sido feita a transferência em 1308 e a criação da cátedra de Música ter data incerta, entre 1309 e 1323.
Naquele tempo, o estudo musical fazia parte da estrutura normal dos cursos universitários ou superiores, ao lado da Aritmética, da Geometria e da Astrologia, constituindo o Quadrivium. Ao seu lado havia o Trivium, que abrangia a Gramática, a Retórica e a Dialéctica. Podemos dizer que o Quadrivium constituía a parte técnica dos estudos, enquanto o Trivium fornecia a base literária. O Trivium correspondia a Letras e o Quadrivium a Ciências.
No tempo de D. Dinis e de sua esposa, a Rainha Santa, a capela real contava pequeno e indeterminado número de cantores. O rei D. Afonso IV aumentou o seu contingente que passou a ser de dez a partir de 1353. D. João I alargou o seu quadro, em 1402, que ficou com catorze capelães cantores e sete moços de capela, portanto vinte e um elementos actuantes.
O cronista Fernão Lopes refere-se aos hábitos um tanto excêntricos do rei D. Pedro I de Portugal, dizendo que apreciava muito juntar-se ao povoléu, cantando e dançando.
Há escritores que afirmam ser a folia o tipo de dança e música mais em uso naqueles tempos. Não se conhece notação que permita avaliar com exactidão, ou pelo menos com grande aproximação melódica, o ensoar utilizado, assim como se desconhecem os versos cantados; consequentemente, ignoramos tudo quanto se relacione com os passos da dança então praticada. Quanto aos instrumentos musicais empregados, fala-se de estridentes trombetas, designadas longas, certamente em referência à sua forma e tamanho. Acredita-se que então se dava preferência aos instrumentos que produzissem maior volume de som, os mais ruidosos, atendendo à tradição militar.
Podemos recordar aqui o conhecido apreço dos antigos romanos pelos instrumentos musicais de som mais estridente, provavelmente influenciados pelos hábitos guerreiros, pela violência e rudez dos combates! A música pode retratar a vida!
O rei D. Pedro I popularizava-se habitualmente, tomando parte nos folguedos plebeus, sobretudo os nocturnos, passando longo tempo nestes divertimentos, descurando o repouso que deveria usufruir do sono reparador, ou tratando assim as suas crises de insónia, talvez de origem epiléptica, segundo deduzem alguns autores versados em medicina, como Júlio Dantas. O servilismo de muitos dos seus vassalos e cortesãos não hesitava em lisonjear esta predisposição do monarca, proporcionando-lhe frequentes ocasiões de ele se misturar com o povo da mais baixa condição; quando sabiam que ele ia sair dos paços, promoviam folguedos que lhe agradassem e nos quais tomava parte entusiasta. De tudo isto se conclui que, no tempo de D. Pedro, a música era praticada pelo elemento popular com aspecto habitual, mesmo rotineiro, levando-nos a pensar que o facto tinha longa tradição, não era manifestação momentânea ou ocasional.
Curioso é notar que, nas obras de divulgação, se faz referência frequente à manifestação musical que abrilhantou o cortejo nupcial do rei D. João I e de D. Filipa de Lencastre, no decorrer do nono decénio do século XIV, em 1387, não sendo apontadas outras solenidades semelhantes anteriores a esta, ou seja, as festas de casamento de outros monarcas, de seus filhos ou sobrinhos. À frente do sumptuoso cortejo iam os músicos, tocando os seus instrumentos:— trombetas, flautas, buzinas, trombones de varas, atabaques. Atrás dos noivos iam as damas; as donzelas cantavam um emocionante hino nupcial. Recorde-se que o cavalo em que montava a noiva, D. Filipa, era levado à rédea pelo conhecido arcebispo de Braga, D. Lourenço Vicente, que se dizia estar devidamente paramentado, talvez com trajes de uso, talvez com vestes litúrgicas... A cerimónia efectuou-se na cidade do Porto.
Sabemos que D. João I tinha clara propensão para os problemas culturais e fez algures referência à actividade e mérito de alguns compositores da escola franco-borgonhesa da época, e concretamente a Guillaume de Machaut, mostrando apreciar pouco o seu estilo musical. Há quem afirme que ele até lhe aportuguesou o nome, designando-o por Guilherme Machado.
Esta posição do ilustre monarca não pode ser considerada presunçosa. São numerosos os estudiosos que acreditam nos conhecimentos musicais do Mestre de Avis; sabe-se que os seus filhos eram bons apreciadores e até bons executantes, mantendo um corpo de cantores e instrumentistas ao seu serviço, nomeadamente D. Duarte, D. Pedro e D. Fernando.
Quando em 1415 os portugueses iniciaram a epopeia da expansão com a tomada de Ceuta, a vitória nacional foi comemorada com a cerimónia da elevação dos infantes à dignidade de cavaleiros, durante a qual se cantou um solene Te Deum, em estilo polifónico. O exército tinha cantores treinados...
Alguns anos depois, no casamento de D. Duarte com D. Leonor de Aragão, efectuou-se um sarau artístico durante o qual a noiva cantou algumas coplas, acompanhando-se ela mesmo ao clavicórdio. Supõe-se que a futura rainha tivesse sólida formação musical e isso estava bem dentro do que ao tempo se esperaria de uma educação esmerada, própria de uma princesa e de uma corte notável.
O rei D. Duarte era dotado de invulgar cultura. Sabemos que, quanto à música, defendia interessadamente e com conhecimento seguro que as vozes dos cantores se harmonizassem perfeitamente, que se fundissem bem entre si, e isso tanto nos cantos da capela como dos salões da corte; exigia ainda que, ao cantar, os executantes pronunciassem claramente o texto cantado.
Ora nós sabemos que isso era também uma exigência dos participantes no futuro Concílio de Trento, prova de que o nosso rei não só estava actualizado como até um tanto adiantado em relação ao seu tempo. No ano de 1415, poucas semanas depois que os portugueses ocuparam a cidade de Ceuta, no norte de África, os franceses foram derrotados pelos ingleses na batalha de Azincourt. Tal facto, na opinião de Jacques Stehman, motivou a deslocação da influência musical europeia de Paris para Borgonha. Fixou-se aqui o centro de irradiação da cultura polifónica ao longo dos séculos XV e XVI; na História da Música, esse período é vulgarmente designado por escola franco-flamenga, que muitos preferem chamar escola borgonhesa, na qual se incluem muitos e famosos compositores.
Recordemos que, em 1429, a princesa de Portugal, D. Isabel, filha do rei D. João I e de D. Filipa de Lencastre, consorciava-se com Filipe, o Bom, da casa de Borgonha. Deste casamento nasceu o conhecido e desventurado Carlos-o-Temerário. Sabemos que a jovem duquesa mantinha na sua comitiva alguns músicos portugueses e flamengos ao seu serviço, na capela e nos salões, nas festas religiosas e profanas.
Os laços que prendiam Portugal à Flandres e à Borgonha, isto é, a Dijon, sua sede política, não podiam deixar de traduzir manifestações musicais, visto que todos os elementos da "ínclita geração" tinham acentuado pendor para as coisas do espírito, não lhes sendo estranha a arte e a ciência dos sons. Todavia, temos de aceitar não haver testemunhos documentais evidentes, que os estudiosos possam apreciar. Anote-se que Carlos, o Temerário, foi contemporâneo de Guillaume Dufay.
Nos seus escritos, o rei D. João I e os seus filhos D. Duarte e D. Pedro parece terem dedicado alguma atenção aos problemas musicais, que eram naquele tempo, como sabemos, manifestações culturais e até sociais de grande interesse, um ramo do saber bastante em voga. Personalidades que pretendessem e, até certo ponto, tivessem a obrigação de estar actualizadas, as personagens dos primeiros escalões da sociedade, não podiam deixar de conhecer os fundamentos da música. Imaginemos uma individualidade de destaque que na actualidade não tivesse noção do que é, como funciona e para que pode servir a informática! No entanto, não podemos dizer que fossem virtuosos de alto nível nem musicólogos, compositores ou intérpretes de valor. Entender de música era uma exigência da sua posição social.
Tristão da Silva, (Séc. XV) que também nos aparece sob a forma de Tristán, é uma das primeiras individualidades que se destacam no âmbito nacional. Há quem o considere português, nascido em local e data ignorados; mas também há quem lhe atribua nacionalidade espanhola, dizendo ter nascido em Tarragona, no reino de Aragão. Fez a recolha de bom número de canções de amor, a serviço do nosso rei D. Afonso V, mostrando preferência pelas que seguiam os cânones do novo estilo, a Ars Nova, o gosto franco-flamengo.
Aceita-se também que Tristão da Silva tenha feito parte do grupo enviado em missão à cidade de Londres, para aí observar e estudar a organização da capela real inglesa, com vista à adaptação, entre nós, de estrutura idêntica. Realmente, há autores que afirmam ter D. Afonso V aumentado o brilhantismo da capela real, alguns anos depois reformada e modificada por seu filho, o rei D. João II.
Á Alvaro Afonso (Séc. XV) poderia ser o chefe da representação lusitana enviada a Londres ou, pelo menos, o seu imediato e seu substituto. Embora sejam mais frequentes as referências a Tristão da Silva, alguns estudiosos apresentam-nos Á Alvaro Afonso como o encarregado principal de coligir dados e informações, relativos à capela real britânica. Poderemos aceitar que este seja o compositor quase sempre apenas designado por Alvaro, a quem se atribuem algumas peças de música sacra ou afim, e expressamente uma em que pretendeu exaltar o feito histórico da conquista de Arzila. O cômputo histórico dá foros de probabilidade à dedução mencionada.
Apesar de a alta nobreza e a grande burguesia nacional não terem dedicado à música um interesse singular, sabemos que houve excepções, talvez casos isolados. O condestável D. Nuno Alvares Pereira, por exemplo, tinha ao seu serviço eficiente núcleo de músicos, instrumentistas e cantores, que actuavam nas funções religiosas e tinham boa formação técnica e treino rigoroso. Mesmo assim, não poderá considerar-se caso único, sem exemplo! A emulação entre os grandes é qualidade a ter em consideração!
Poderemos recordar o interesse que a Casa de Bragança dedicou à arte musical, ao longo de sucessivas gerações, e que o rei D. Manuel antes de ser chamado a ocupar o trono era um destacado membro de nobreza nacional. Alguns estudiosos aceitam dois acontecimentos funestos, a batalha de Alfarrobeira, em 1449, e a batalha de Alcácer Quibir, em 1578, como marcos para delimitarem o período de divulgação de dois instrumentos tradicionais, a guitarra e a viola.
Quanto ao primeiro, não sabemos o motivo da escolha, a razão que possa ter; em relação ao segundo, são frequentes as referências ao elevado número de instrumentos, guitarras e violas, que os soldados combatentes levariam na sua bagagem. Tendo isso em conta, concluiremos haver entre nós longa tradição de tanger a guitarra e a viola, que seriam instrumentos populares e de uso corrente.
Pode admitir-se que a informação tenha muito de lendário, sendo mais uma atribuição fantasiosa a adornar a malograda expedição à estepa de Marrocos, que tão profunda influência teve na vida nacional.
Se o combate de Alfarrobeira foi sempre mal explicado, a batalha de Alcácer Quibir deu tema e motivo para relatos imaginosos e está na base de conhecidas lendas, como o sebastianismo, a partir do desaparecimento e morte de D. Sebastião, rei de Portugal.
O casamento do príncipe D. Afonso, filho de D. João II e de D. Leonor de Lencastre, com a princesa espanhola D. Isabel de Castela e Aragão, foi abrilhantado com música, tendo sido convocados muitos executantes de etnia mourisca para actuarem nas festas nupciais. Além disso, foram contratados artistas experimentados que propositadamente vieram da Flandres, da Inglaterra e da Alemanha. A música era ornamento imprescindível!
A reforma da estrutura da capela real efectuada por D. João II tem a data de 1494, portanto já no final do seu reinado. Tomou como modelo a organização da capela real de Londres, que ao tempo gozava de grande prestígio. Tendo em conta o período decorrido entre a missão de Tristão da Silva e Alvaro Afonso, no reinado de seu pai D. Afonso V, e a data mencionada, somos levados a aceitar que se tratasse de duas iniciativas diferentes, não estando os dois factos ligados entre si como causa e efeito.
Desconhecemos os pormenores que possam prender-se com a reestruturação dos serviços musicais da capela real, tanto de D. João II como dos monarcas seus antecessores, que ao mesmo assunto dedicaram atenção e interesse.
Devemos ter presente que a música, sendo um tema da época, era cultivada entre nós com menos apreço do que no estrangeiro, manifestando-se no nosso País com o tradicional atraso.
O período áureo da História de Portugal corresponde, praticamente, aos reinados de D. Manuel I e D. João III. Todavia, esse período ainda não foi distinguido por grandes nomes da música, que só nos aparecem no decorrer do hoje já longínquo e remoto século XVII.
Nesta altura, apenas começam a surgir uns tantos nomes que poderemos designar por Primitivos, isto é, as primícias da música culta portuguesa.
Antes de mencionarmos os mais famosos, queremos salientar que no tempo desses monarcas o fausto da corte soube já aproveitar o brilho que a música lhe emprestava. Sabe-se que eram frequentes as festas e os saraus, durante os quais se cantava, tocava e dançava. Foi neste ambiente que Luís de Camões pôde mostrar os seus dotes de lírico inspirado e repentista de valor, parafraseando os motes que lhe davam.
Foi também neste ambiente que o nosso grande teatrólogo Gil Vicente manifestou as suas inegáveis qualidades, lançando as bases do teatro nacional português. Ao longo das páginas que ele escreveu, há menção clara a algumas composições, sacras e profanas, fazendo parte integrante do entrecho de bom número delas. Menciona ainda nomes ao tempo famosos, como João de Badajoz, na "Farsa de Inês Pereira", e que era o primeiro pressuposto noivo da protagonista. E na mesma peça é nomeado outro músico, Villa Castim. O primeiro aparece como artista de merecimento, enquanto o segundo se destaca sobretudo como indivíduo erudito e de largos conhecimentos literários.
Entre os grandes nomes da música, no século XVI, podemos apontar:
—Afonso Lobo (Séc. XVI) que foi mestre de capela em Lisboa e em Toledo, e de quem escasseiam dados biográficos, é um dos primeiros músicos portugueses a notabilizar-se;
—António Carreira (Séc. XVI) é o primeiro de três indivíduos de igual nome, compositor e organista, do qual se conservam algumas composições na Biblioteca da Universidade de Coimbra, dedicando-se também ao ensino, como mestre da capela real;
—Cosme Delgado (Séc. XVI) foi um artista de quem se ignoram dados biográficos, sendo ponto assente que viveu no século XVI, nascendo provavelmente na sua primeira metade, pois se diz ter tido como discípulo o conhecido compositor Manuel Mendes, aqui referido, e ter sido o fundador da escola musical de Évora; o seu espólio de compositor ficou no convento do Espinheiro, próximo da capital do Alentejo; é considerado o fundador da escola musical de Évora, onde exerceu funções directivas, e foi o autor de missas e motetos, de responsórios e antífonas, além de uma obra teorizante;
—Damião de Góis (Séc. XVI) de quem se conhecem apenas algumas peças de música sacra e um trabalho teórico, e em cujos escritos há notícia do interesse que o rei D. Manuel I dedicava à música;
—Heliodoro de Paiva, (+1552) sabemos ter sido compositor, cantor e instrumentista no mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, dotado de cultura linguística excepcional;
—Luís de Milán (+1561) passa por ser provavelmente de origem espanhola ou mesmo italiana, se atendermos ao nome; foi um conhecido executante de música instrumental e autor de um trabalho didáctico dedicado a D. João III, que o fez editar;
—Manuel Mendes (1544-1605) trabalhou igualmente na catedral eborense; foi um dos mais prestigiosos nomes da "Escola de Évora", onde foi mestre de capela, depois de o ter sido em Portalegre; escreveu muita e valiosa música sacra, mas perdeu-se a quase totalidade dela;
—Pedro de Cristo (1545-1618), monge do Mosteiro de Santa Cruz, é também um autor muito celebrado, tanto pela música sacra como pela música profana produzida, e um dos mestres da renascença nacional, o expoente máximo da música coimbrã, por vezes designado "Palestrina português";
—Pedro Escobar (1465-1535), provavelmente o músico compositor também conhecido por Pedro do Porto, trabalhou em Lisboa, Sevilha, Valença e Évora, onde morreu, é mencionado por Gil Vicente ao longo da sua obra, prova da sua fama e por conseguinte da sua competência;
—Vicente Lusitano (Séc. XVI) notabilizou-se por vigorosa polémica travada na Itália com Nicola Vicentino, durante a qual mostrou ter largos conhecimentos e ser invulgarmente aguerrido.
O estudo e prática da música, em Portugal, e em períodos que não são exactamente coincidentes e simultâneos, radicou-se em cerca de uma dezena de centros de irradiação e difusão, localizados nas nossas cidades mais importantes.
Foram notáveis centros propulsores da arte e da ciência dos sons as cidades de Lisboa (na catedral, na capela real, em São Vicente de Fora), Coimbra (sobretudo na sé e no mosteiro de Santa Cruz), Porto, Braga (cidade arquiepiscopal e primaz), assim como nas catedrais de Viseu, Évora, Elvas, Olivença (então portuguesa), e além disso também em Vila Viçosa, no Colégio dos Reis Magos, sob o patrocínio dos duques de Bragança. Muitos outros conventos, mosteiros e colegiadas do reino tomaram sobre si o encargo de produzir e divulgar a boa música.
No período mais brilhante da nossa História (e que corresponde, como atrás dissemos, aos reinados do Venturoso e do Piedoso, embora sob o aspecto da eficiência administrativa possa englobar também o do Príncipe Perfeito), as facilidades materiais disponíveis e a abundância de meios fiduciários em giro nunca conseguiram garantir uma situação económica estável e consistente. Talvez por isso, não nos foi possível acompanhar outros povos nas realizações que tinham em vista a propagação e a pujança da arte musical.
Nos reinados de D. Sebastião e D. Henrique, nos sessenta anos da dominação filipina e nos trinta anos da Guerra da Restauração não se reuniram condições que permitissem a organização de companhias de ópera, conjuntos orquestrais ou a abertura de casas de espectáculos, voltadas para o teatro cantado. E era isso o que então se estava fazendo no estrangeiro!
Deve-se em boa parte a este condicionalismo que a música instrumental não tivesse no País o apreço e vulgarização merecidos. Podemos ainda acrescentar que a música profana não foi cultivada entre nós com empenho criador, limitando-se a nossa produção quase exclusivamente à música de igreja ou que se lhe assemelhasse, como os vilancicos e as cançonetas ou chansonetas. Embora de origem culta, tratava-se de música de sabor indubitavelmente popular.
Na música instrumental, tivemos alguns bons organistas, compositores e executantes, e também bons organeiros, fabricantes de órgãos. Devemos atender a que o órgão é um instrumento essencialmente eclesial e a sua música apropriada para acompanhar as cerimónias litúrgicas. Podemos mencionar também a música executada com a guitarra e a viola, que teve óptimos praticantes. A música de órgão dos compositores nacionais é conhecida através de algumas poucas peças que puderam ser preservadas; a música de guitarra e viola não deixou exemplos suficientes para dela termos uma imagem adequada.
As peças de música executadas ao órgão eram sobretudo os tentos, as diferenças, os tropos ou as glosas. Na música executada com a guitarra, adoptou-se uma técnica que se manteve no decorrer dos séculos, e que se traduziu nas conhecidas variações, ainda hoje praticadas.
Fazendo o conveniente desconto, diremos que as variações pouco mais são do que as diferenças ou tropos, a modificação e o alargamento de composições, canções ou músicas instrumentais então em voga, adaptadas às características e possibilidades daqueles instrumentos. Poderemos admitir que se aproximavam um tanto dos arranjos, caprichos ou fantasias.
Tem-se exaltado bastante o mérito musical do rei D. João IV como autor de música religiosa no estilo palestriniano, no seu tempo o mais cultivado em Portugal. A análise das obras que sem hesitação podem ser-lhe atribuídas, em número muito reduzido, levará a concluir que era dotado de qualidades nada desprezíveis, pois são peças de boa factura, merecedoras da atenção dos estudiosos, nacionais e estrangeiros. Conhecemos conjuntos vocais de muito prestígio que não desdenharam a sua inclusão no respectivo reportório e chegaram mesmo a fazer a sua gravação sonora. Isso não chega para elevar o nosso monarca a compositor de primeiro plano.
Devemos ainda pensar que deveria ter escrito mais composições do que as conhecidas, tendo-se perdido boa parte da sua produção. Pensando assim, não podemos deixar de recordar o tristemente famoso terramoto de Lisboa, que destruiu a sua biblioteca musical e o seu acervo de partituras.
Num outro ponto deve salientar-se o valor do rei de Portugal, D. João IV, o de musicólogo e coleccionador. Está devidamente averiguado e é geralmente aceite que a colecção de livros de música, de partituras e outras peças de interesse musicológico constituintes da sua biblioteca era de altíssimo valor e atingia um número respeitável.
Antes de prosseguirmos, queremos salientar que, se o saber e a modernidade do rei podem ser contestados, a sua dedicação e interesse pelas coisas e pessoas presas à música nunca foram objecto de dúvida. Este facto reveste-se de notável importância e pode atenuar a circunstância de os dois escritos da especialidade por ele produzidos não serem de reconhecido valor e carecerem de interesse como fontes de estudo.
A elaboração e publicação do catálogo da sua livraria concede ao monarca a categoria de musicólogo de merecimento, resgatando em boa parte o conceito menos favorável que a análise dos dois opúsculos por ele redigidos poderia justificar.
Esses trabalhos foram publicados em Roma, em Veneza e em Lisboa. Tiveram tradução para a língua italiana. Originalmente tinham sido redigidos em castelhano. Os seus títulos são os seguintes: — "Defensa de la musica moderna" e "Respuestas a las dudas que se pusieram a la misaPanis quem ego dabo de Palestrina".
São conhecidos hoje dois exemplares do catálogo da livraria do rei D. João IV, um deles conservado em Lisboa e outro em Paris. Não se costuma indicar nem o local nem a data da sua impressão.
A famosa livraria não foi começada pelo monarca, herdou-a já dos seus ascendentes, afirmando-se que deverá ter sido começada por seu bisavô. Era este D. Teodósio, pessoa muito dedicada aos problemas culturais, que pelos seus agentes e correspondentes coleccionava livros e documentos de todo o mundo então conhecido, reunindo esses papéis em volumes sabiamente organizados a que deu a epígrafe de "Livros de muitas coisas".
A colecção passou para seu filho D. João (avô do rei) e deste para o seu sucessor D. Teodósio (pai do monarca), como bens e valores vinculados ao morgadio dos duques de Bragança, prova insofismável do apreço em que eram tidos entre os maiores valores artísticos da família, de ascendência real portuguesa, de longa data interessada pela música.
O duque D. Teodósio, pai do Restaurador, foi o fundador da célebre Escola dos Reis Magos, também conhecida por Escola dos Santos Reis, cujo objectivo principal era promover a ciência musical, a arte dos sons. Alguns dos nomes mais destacados do nosso panorama artístico ali fizeram os seus estudos.
Na primeira metade do século XVII, ao lado do rei D. João IV, surgem os nomes de alguns destacados músicos, evidenciando-se muito mais do que ele, pois manifestaram ter valor que em muito se sobrepunha ao do soberano, dentre os quais salientamos os seguintes:
—Agostinho da Cruz (Frei (1590-1633) foi um exímio organista e também um teórico de boa formação técnica, segundo as exigências da época.
—Diogo de Alvarado (+1643) distinguiu-se igualmente como organista; sendo natural dos Países Bascos, viveu e faleceu em Portugal.
—Duarte Lobo (+1646) notabilizou-se também ao serviço da sé arquiepiscopal alentejana; todos eles são vulgarmente considerados grandes luzeiros da galeria musical lusa, altamente apreciados por nacionais e estrangeiros, contemporâneos ou posteriores.
—Estêvão de Brito (+1641) foi professor de música em Badajoz e em Málaga, sabendo-se ter composto a música de numerosos vilancicos para o Natal e para e festa do Corpo de Deus, além das peças sacras.
—Estêvão Lopes Morago (Séc. XVII) foi um compositor de reconhecido merecimento, tendo publicado dois volumes de música de alta representatividade, o "Livro do Comum" e o "Vesperal" ; exerceu a sua principal actividade na catedral de Viseu, tendo falecido nos arredores desta cidade, no convento de Orgéns.
—Filipe de Magalhães (+1652) é outro nome de destaque, com obra muito valiosa, sendo considerado um dos mais notáveis compositores do seu tempo, sendo conhecidas algumas suas composições de excepcional envergadura.
— João Lourenço Rebelo (1610-1661)foi personagem de muito prestígio da chamada "Escola de Vila Viçosa", que o Restaurador tinha em muita consideração, pois foi bom teórico, bom compositor e excelente executante [aparece por vezes sob o nome de João Soares Rebelo e até José Lourenço Rebelo, certamente por lapso ou gralha tipográfica].
—Manuel Cardoso (1566-1650) é outra figura de destaque excepcional; exerceu as suas funções na cidade de Madrid e em outras localidades. O seu valor era altamente considerado na corte comum de Espanha e Portugal.
—Manuel Leitão de Avilez (Séc. XVII) ocupou o lugar de mestre de capela na catedral de Granada; isso testemunha quanto era considerada a formação recebida nos nossos meios académicos, que conquistaram reputação de competentes.
—Manuel Rebelo (Séc. XVII) foi mestre de capela na catedral de Évora, de quem se ignoram outros dados biográficos; temos no entanto conhecimentos bastantes para o considerar um música de valor, ao lado de outros igualmente abalizados.
—Manuel Rodrigues Coelho (1555-1635), mestre insigne e compositor de muito merecimento, conhecido como um dos maiores expoentes desta ciência, que nos deixou a obra "Flores de Música" é mencionado por diversos autores estrangeiros, recordando aqui Norbert Dufourcq, na sua Breve Historia da Musica, edição mexicana;
—Marcos Soares Pereira (+1655) irmão de João Lourenço Rebelo foi também um dos nossos nomes mais famosos.
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Podemos apontar agora outra série de nomes de músicos portugueses também prestigiosos, de um período pouco posterior:
—António Carreira (Séc. XVII) o terceiro famoso artista musical deste nome, e cuja vida e obra anda envolvida com a dos outros seus onomásticos;
—Francisco Correia de Araújo (Séc. XVII), o conhecido organista luso-espanhol [Correa de Araúxo], que nós dizemos ser português e os nossos vizinhos espanhóis afirmam ter a sua nacionalidade;
—Francisco de Santiago (Frei) (Séc. XVII) famoso mestre de capela e compositor, cujos dados biográficos são, infelizmente, pouco conhecidos e muito enigmáticos;
—Pedro Thalésio (+1629) talvez de nacionalidade espanhola, mestre de capela na sé da Guarda, lente de Música na Universidade de Coimbra, e autor da notável obra, Arte de Canto Chão.
Devemos reconhecer que, estando a escola de Vila Viçosa a viver um período de grande prestígio, a que já nos referimos, os nomes mais brilhantes aparecem-nos à sombra benéfica da catedral de Évora, um dos melhores centros da cultura musical do século em curso, talvez o maior e o melhor de toda a nossa História.
Podemos dizer que a escola de Vila Viçosa exercia preponderante acção, pois saíram dela alguns dos nossos melhores músicos, compositores, cantores ou tangedores. Apenas a escola de Évora poderia rivalizar com ela.
A música produzida continuava sendo do género sacro, estilo palestriniano, ao lado de alguns casos notáveis em que a música de órgão conseguiu interesse bem saliente e notório. Deve atender-se a que os músicos portugueses tinham boa aceitação nas catedrais espanholas, não se fechando também as nossas fronteiras aos que vinham do exterior, geralmente da Espanha.
Alguns dos artistas referidos viveram no segundo cinquenténio do século XVII, pelo menos em parte da sua existência. Neste período específico, o número de músicos de merecimento, de naturalidade portuguesa, não é muito elevado, não sendo claros os motivos de tal ocorrência. No entanto, podemos registar quatro nomes de astros de primeira grandeza, de prestígio por todos reconhecido, e que são os seguintes:
—António Marques Lésbio (1639-1709) manifestou acentuada precocidade, pois aos catorze anos já produzia obras de bom nível; possuindo sólidos conhecimentos linguísticos, ele mesmo escrevia o texto literário sobre o qual compunha a correspondente harmonia; pertence à escola musical de Évora, onde poderão conservar-se algumas composições suas, acreditando-se ter produzido obras bastante mais copiosas, vastas e extensas do que as presentemente conhecidas;
—Diogo Dias Melgaz (1638-1700) é outro nome que dá brilho à escola de Évora e à sua catedral; ali estudou, trabalhou e morreu; sabemos que escreveu numerosas peças de música sacra, própria para ser usada nas cerimónias litúrgicas, hoje quase inteiramente desconhecidas, por não terem sido publicadas. Aceita-se que algumas tenham escapado aos estragos do tempo e vencido a incúria dos homens.
—Francisco Martins (+1682) deixou também o seu nome ligado à catedral de Évora, embora tenha trabalhado durante muito tempo na cidade de Elvas, onde deverá ter falecido; foi um dos bons mestres deste período; a sua música conhecida é de muito merecimento e permite considerá-lo compositor de boa inspiração e elevada técnica.
—João Alvares Frovo (1602-1682) está ligado à cidade de Lisboa e à sua catedral; aqui nasceu, viveu e morreu; foi estudioso de muito valor, teórico competente, bom compositor e bom executante; conquistou a simpatia do rei D. João IV e retribuiu-lhe com igual sentimento.
Estes compositores dedicaram o seu interesse quase exclusivamente à música sacra do estilo de Palestrina. A escola portuguesa mostrava-se atrasada em relação à Europa, mas produziram-se obras de alto nível, de grande perfeição.
A contagem do tempo por séculos não tem concordância plena no campo da literatura ou das artes, verificando-se por vezes desvios muito acentuados. No panorama musical português verifica-se isso de forma bem clara e evidente.
Podemos aceitar, sem forçar muito a realidade dos factos, que o século XVIII português abrange os reinados de D. João V, de D. José e de D. Maria I. Generalizou-se o gosto pela música italiana teatral; começa entre nós a produção de óperas; continua a elaborar-se música religiosa barroca, exibicionista.
O período de decadência nacional registado no tempo de D. João III e de seu neto D. Sebastião, o descalabro que se seguiu ao desastre de Alcácer Quibir, o domínio filipino e o tempo de guerra, que se estendeu pelos três reinados de D. João IV, D. Afonso VI e D. Pedro II tiveram repercussão profunda na cultura musical portuguesa. A influência da Contra-Reforma contribuiu para que a música profana, vocal ou instrumental, fosse relegada para plano inferior, dando-se preponderância à música religiosa e esta dos moldes palestrinianos. No entanto, devemos atender a que este género foi cultivado por muitos e bons compositores e executantes, mantendo um nível de perfeição destacado. O atraso histórico não pode confundir-se com o técnico, pois são valores bem diferentes. Dois nomes isolados merecem que se lhes faça particular menção, pelo que foram, pelo que fizeram e pelo que representam:
—Francisco Inácio Solano (Séc. XVIII) destacado cantor e organista, foi um dos nossos teorizantes mais conhecidos, conseguindo conquistar reputação muito sólida, que bem poderemos considerar imorredoura.
—João Rodrigues Esteves (Séc. XVIII) foi também um teórico competente, sem deixar de ser perito noutros aspectos da arte musical, conquistando pelos seus méritos e pelos seus trabalhos o direito ao reconhecimento da sua grandeza.
A falta de recursos financeiros impediu a constituição de conjuntos operísticos e de orquestras, assim como a construção de edifícios programados para servirem de teatro, nos moldes do que se fazia na Europa e sobretudo na Itália. Devido à falta de instalações próprias, no tempo do nosso rei D. João V, mesmo tendo em boa conta a música italiana, ainda não foi possível vulgarizar os espectáculos de ópera, limitando-se os principais eventos artísticos e as mais importantes realizações musicais à apresentação de oratórias e concertos, que dispensassem cenários embaraçosos, maquinaria intrincada, complexa e de difícil manuseio.
Dispondo de recursos abundantes, provenientes da extracção de ouro e diamantes, no Brasil, o monarca Magnânimo teve a louvável iniciativa de mandar para a Itália bom número de jovens que mostravam possuir qualidades apreciáveis, a fim de se aperfeiçoarem em contacto com os melhores mestres do tempo, tornando-se seus discípulos e ouvindo-lhes as lições. Isso teve como consequência que possamos contar com mestres naturais do reino competentes, convenientemente treinados, alguns deles de mérito muito notável. Os maiores compositores e executantes portugueses do período barroco fizeram estudos no estrangeiro, quase sempre na Itália, a expensas do erário régio.
Os autores de óperas não puseram inteiramente de parte a elaboração de música sacra, que continuava a ser devidamente apreciada, mas sendo escrita sob a influência da música de cena.
No reinado de D. José e D. Maria I, a ópera italiana conseguiu conquistar definitivamente o ambiente musical português. Muitos dos nossos compositores se dedicaram nesse tempo, assim como na décadas subsequentes, à elaboração de criações operísticas, de nível artístico diferente, algumas vezes sob temas nacionais mas quase sempre com indumentária estrangeira, tendo sido produzido apreciável número de obras. No entanto, nenhum deles conseguiu conquistar notoriedade, nenhum dos seus trabalhos atingiu craveira que lhe permitisse vencer o desgaste do tempo, ficando sepultados no esquecimento, sem poderem guindar-se a ponto alto do conceito universal; nenhum dos nossos compositores e nenhuma das suas óperas se firmou para a História.
Há dois músicos italianos [Scarlatti e Perez] que muito se distinguiram em Portugal, onde viveram e exerceram grande influência. Ao lado deles podemos colocar um nome nacional, [Seixas], grande entre os mais prestigiosos.
—José Domingos Scarlatti (1685-1757) foi contratado para exercer as funções do magistério, embora se tenha distinguido sob outros aspectos, sendo um dos grandes compositores mundiais, e escreveu música instrumental e música sacra, notabilizando-se como cravista excepcional.
—David Perez (1711-1782) distinguiu-se sobretudo pelo papel exercido como professor, havendo sido mestre de música dos príncipes reais, tendo produzido música de teatro e música religiosa, hoje mal conhecidas.
—José António Carlos de Seixas (1704-1742) o maior cravista nacional, conviveu na juventude com Scarlatti, que apreciava muito a sua competência, a sua perícia de intérprete e executante; foi também compositor de mérito e organista excepcional.
Todos os nomes deste período, que devem ser destacados, pertencem à escola barroca. O merecimento de que deram provas eleva-os a posições honrosas, pois manifestaram qualidades apreciáveis, alguns podem ser considerados autores de bom nível. A respectiva produção pode ser classificada como música religiosa, operística ou instrumental, a qual começa agora a ser devidamente conhecida e apreciada.
—António Teixeira (1707-1753) nasceu em Lisboa; foi o primeiro pensionista que o rei D. João V mandou para a Itália, a fim de se aperfeiçoar junto dos grandes mestres que ali residiam; contava então apenas dez anos de idade, prova de que manifestou muito precocemente as suas grandes qualidades; adquiriu apurada técnica e conquistou dilatada fama; elaborou muita música sacra, de que se destaca um Te Deum a vinte vozes e outro a nove vozes com acompanhamento de orquestra; escreveu ainda cantatas e óperas, podendo nós salientar entre todas elas a sua "Guerra do Alecrim e da Manjerona", sobre texto literário de António José da Silva, conhecido por O Judeu.
—Francisco António de Almeida (Séc. XVIII) foi provavelmente o mais notável compositor português da primeira metade do século XVIII; fez boa parte dos seus estudos em Roma, como pensionista do nosso rei D. João V, o Magnânimo; conseguiu harmonizar a complexidade do estilo romano, a leveza do gosto italianizante e os requintes do critério barroco; produziu muita música sacra; o salmo Miserere é uma preciosa peça do tesouro musical português; foi organista e mestre de capela em Lisboa; o seu nome é um dos mais prestigiosos daquele tempo; escreveu a partitura de diversas óperas, sendo a mais conhecida a que recebeu o título de La Spinalba (que em português poderá significar Espinheiro Alvar).
—João Pedro de Almeida Mota (Séc. XVIII) tornou-se conhecido devido a ter sido encontrada a partitura da sua "Paixão de Jesus Cristo", no arquivo de Vila Viçosa; foi executada com muito agrado do público ouvinte, dos críticos e dos coleccionadores de discos; produziu também alguns trabalhos de teoria musical adequados às exigências e necessidades do seu tempo.
—João de Sousa Carvalho (1745-1798) era natural de Estremoz e estudou em Vila Viçosa; foi pensionista régio em Nápoles; regressando a Portugal, dedicou-se ao ensino; substituiu o célebre David Perez, um estrangeiro a trabalhar entre nós, como mestre de música dos príncipes, ocupando ele o cargo junto da família real; tem a fama de ser o nosso melhor e mais expressivo compositor do período barroco; como quase todos os seus contemporâneos, escreveu muita música sacra, sendo famoso o seu grande Te Deum, considerado a obra mais marcante do barroco nacional; produziu música de teatro de elevado nível e primorosa música de tecla; é talvez o músico nacional mais prestigioso do seu tempo, o melhor do período barroco português.
Os grandes nomes do período são, entre outros, António Leal Moreira, António da Silva Leite, António Teixeira, Francisco António de Almeida, João Cordeiro da Silva, João José Baldi (também só em música sacra), João Rodrigues Esteves, João de Sousa Carvalho e José Maurício (este somente em música sacra).
O penúltimo dos acima nomeados passa por ser um dos músicos mais destacados do ambiente musical lisboeta, um dos maiores nomes do período barroco português, embora outros tenham tido maior divulgação.
—António Leal Moreira (1758-1819) era aparentado com Marcos Portugal, devido a ter casado com uma irmã deste; foram condiscípulos, durante os estudos musicais que ambos fizeram em Lisboa; António Leal Moreira exerceu as funções de organista e mestre de capela, na sé patriarcal e na capela real; ao inaugurar-se o Teatro de São Carlos, foi nomeado seu director, o primeiro a ocupar este lugar e a desempenhar tais funções; apesar de seguir o gosto italianizante, cultivou também o estilo e os temas nacionais, não se deixando desenraizar completamente; escreveu diversas óperas e muita música sacra; era da autoria de António Leal Moreira a missa executada nas festas da aclamação da rainha D. Maria I.
—António da Silva Leite (1759-1833) foi mestre de capela na sé catedral do Porto, e em outros agrupamentos músico-litúrgicos que no seu tempo floresciam na Cidade Invicta; escreveu muitas e variadas peças de música religiosa, empregada durante longos anos nas cerimónias da igreja em quase todo o País; produziu inumeráveis obras de música profana, de várias modalidades; dedicou grande atenção à guitarra, de que se fez um teórico de muito valor, tendo escrito o primeiro compêndio do género publicado em Portugal.
—José Maurício (1752-1815) exerceu a sua actividade como mestre de música na Guarda e em Coimbra, que se julga ser a sua cidade natal. Desempenhou as funções de lente da cadeira musical, na Universidade coimbrã; sabemos que esteve durante algum tempo em Salamanca, na Espanha, sem se ter a certeza se ali trabalhou ou se apenas foi um estudante das suas escolas; talvez a primeira hipótese seja a mais correcta, pois há indícios de então ser homem feito e de se ter demorado ali pouco tempo; cultivou quase exclusivamente a música sacra, de influência italiana e gosto teatral, à semelhança de outros que, coetaneamente, lhe ficam próximos.
O compositor português José Maurício é por vezes chamado "padre" sem o ser, embora a sua vida se tenha passado muito aos pés do altar. Muitas vezes é confundido com o brasileiro José Maurício Nunes Garcia, este sim ordenado sacerdote. A produção dos dois aproxima-se muito, quanto a títulos, dando-se a circunstância de a produção do brasileiro ser bem conhecida e a do lusitano totalmente ignorada.
No Brasil, surgiu uma musicóloga que se interessou a sério pela obra do seu compatriota, conseguindo fazê-la reviver; pode fixar-se o seu nome, como bom exemplo: — Cleofe Person de Matos.
Infelizmente, em Portugal ninguém apareceu que tomasse a peito a investigação da produção de José Maurício, que os nossos arquivos devem guardar.
Podemos dizer ainda que viveram igual número de anos e as datas do nascimento e morte de ambos aproximam-se bastante. A terceira invasão francesa levou José Maurício a deslocar-se para Lisboa, fugindo de Coimbra, conservando-se ali até as tropas napoleónicas abandonarem Portugal. Regressou à sua cidade e à sua casa, mas veio a morrer pouco depois, na Figueira da Foz, durante a estação estival.
—Francisco de Paula e Azevedo (Séc. XIX) foi o sucessor de José Maurício no lugar e como que o continuador da sua obra; o seu nome é normalmente precedido do honorífico "Dom", pelo que se põe a hipótese de que fosse membro da Congregação dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, do convento de Santa Cruz de Coimbra, habitualmente tratados dessa forma.
—João José Baldi (1770-1816) nasceu e morreu em Lisboa, onde estudou e também trabalhou; ocupou o lugar de mestre de capela nas catedrais da Guarda e de Faro, transitando desta para a capital, onde actuou na capela real, na sé patriarcal e no seminário; a sua música religiosa acusa demasiado afeiçoamento ao gosto italiano, chegando a exageros pouco aceitáveis; escreveu também música para o teatro; a sua obra, que na época teve grande divulgação, pelo menos em Portugal e no Brasil, está hoje quase completamente esquecida, apenas poucos agrupamentos vocais incluem alguns números no seu reportório.
—Jerónimo Francisco de Lima (1741-1822) foi bolseiro do rei D. José, em Nápoles, e contemporâneo de João de Sousa Carvalho e de seu próprio irmão, Brás Francisco de Lima; regressando a Portugal, desenvolveu intensa actividade sob diversos aspectos e escreveu música de ópera e música religiosa; foi também professor de alguns dos príncipes reais.
Salientámos já o valor de dois bons artistas deste período — João Cordeiro da Silva, compositor de alto merecimento, — João Rodrigues Esteves, autor de um trabalho teórico. Realmente, podem ombrear sem desdouro com os seus pares. Conhece-se boa parte da sua obra, que até teve gravações recentes por famosos conjuntos estrangeiros. Pouco conhecemos da vida dos dois compositores, são quase inteiramente ignorados os seus dados biográficos, pouco sabemos deles, não dispomos de notícias pessoais relativas à sua vida, de como e onde viveram. De outras figuras coevas sempre se consegue saber alguma coisa.
Recentemente, dois nomes de compositores portugueses da época, atrás referidos, foram projectados com certo relevo, mercê dos trabalhos de pesquisa realizados nos arquivos documentais, Jerónimo Francisco de Lima e João Pedro de Almeida Mota.
O período barroco deu-nos outros nomes e outras figuras, que merecem destaque, como já tiveram outrora enquanto viveram, e com o tempo vieram a perder.
—Marcos António da Fonseca Portugal (1762-1830) estudou em Lisboa e aperfeiçoou-se na Itália; pode afirmar-se ser o músico português internacionalmente mais conhecido; foi o que no tempo conseguiu maior renome, embora sob as perspectivas actuais não tenha sido o nosso maior compositor; escreveu elevado número de óperas, representadas com sucesso mas que hoje estão inteiramente esquecidas; foram apresentadas nos melhores palcos de toda a Europa; foi o mais fecundo compositor de música de ópera, entre os lusitanos; os seus trabalhos foram conhecidos em quase todo o mundo, começando por impor-se na Itália, sendo apresentados em todas as grandes casas de espectáculos, chegando a ser encenados em Moscovo, o que não deixa de nos surpreender, pois hoje são completamente ignorados; emigrou para o Brasil, atraído pelo brilho da corte portuguesa, ali trabalhou e terminou os seus dias; poderá dizer-se que o olvido da sua obra se antecipou ao seu falecimento, registara-se ainda antes de ele baixar à cova.
—Frei José de Santa Rita Marques e Silva (1780-1837) Frei José Marques foi o continuador de Marcos Portugal (mas não na produção operística); o seu mérito, contudo, era bastante inferior ao dele; mostrou ter qualidades, mas as condições sociais exerceram papel deprimente sobre a sua personalidade; o ideal político favoreceu-o por um lado e prejudicou-o por outro; era partidário de D. Miguel e protegido de João José Baldi, seu mestre, que lhe conseguiu lugar na capela real do Rio de Janeiro; era também protegido do Conde de Redondo, para quem ficou o seu espólio literário; os liberais levantaram dificuldades à sua acção; escreveu música religiosa e profana, ao gosto italianizante, já um tanto ultrapassado no seu tempo.
A saída da corte para o Rio de Janeiro, a vitória liberal e a consequente extinção das ordens e congregações religiosas também comprometeram muito a cultura musical portuguesa. A Patriarcal, com o seu famoso seminário, a capela real e os conventos de frades eram os mais preciosos viveiros dos virtuosos da música, apesar das muitas limitações que apresentavam. Com a supressão dessas instituições ou a simples redução da sua influência, o panorama nacional empobreceu larga e notoriamente. Quando chegou o momento de organizar o Conservatório Nacional de Música, foi necessário lançar mão de elementos antigos, com formação técnica pouco actualizada, pois não havia quem melhor pudesse servir.
A verdadeira reforma do ensino só pôde começar mais de uma dúzia de anos mais tarde, quando começou a dispor-se de pessoal novo e de formação mais moderna, recrutado entre os antigos alunos do Conservatório Nacional.
Os seus primeiros directores, sobretudo João Domingos Bontempo, Francisco Migoni e o Conde de Farrobo, encontraram diante de si, na tentativa de modernizar e actualizar o ensino, a inércia governamental e a carência de valores, o que impedia a realização de projectos audaciosos, sendo forçoso limitar os planos ao limite das disponibilidades, que não eram satisfatórias, antes muito reduzidas.
—João Domingos Bontempo (1771-1842) é outro nome grande, talvez tão grande como o de Marcos Portugal, se não até maior do que o dele; é um astro saliente do panorama nacional e obreiro de um projecto que se desenvolveu nos anos futuros — a remodelação e modernização dos estudos musicais, a partir da fundação do Conservatório Nacional de Música, de Lisboa, de que foi o primeiro director; entre as suas numerosas obras, uma delas merece destaque especial, o Requiem "à memória de Camões"; o seu valor tem sido reconhecido pelos musicólogos mais competentes e o seu prestígio tem crescido muito nas últimas décadas; assou longas temporadas de exílio na França e na Inglaterra, por razões políticas e também com o objectivo de aperfeiçoamento artístico; o seu valor era muito apreciado naqueles países, onde teve amigos e protectores; em Portugal, tomou sobre os seus ombros a tarefa de reformar o sistema do ensino da música, obtendo razoáveis resultado; se mais não fez, foi porque não encontrou colaboradores actualizados, tendo de servir-se de mestres formados nas antigas escolas; procurou combater a influência da música italiana, valorizando os temas nacionais.
—Francisco Xavier Migoni (1811-1861) (alguns preferem a forma Migone, também aceitável) é o último nome do grupo que estamos recordando; poderá dizer-se que ocupa o último lugar, tanto sob o aspecto cronológico como no merecimento; no seu tempo teve certa fama, mas hoje está quase esquecido; dele se diz que a sua obra teve na época em que foi apresentada mais fama do que o seu mérito lhe permitiria conquistar; sucessor e continuador da obra de João Domingos Bontempo como director do Conservatório, tinha por seu lado sido aluno de Frei José Marques; ao contrário deste, procurava cultivar música que fugisse à nefasta influência italianizante, na peugada do seu antecessor na direcção daquele estabelecimento escolar; das suas composições, salienta-se a Grande Missa Festiva, dedicada ao imperador do Brasil, D. Pedro I, conhecido entre nós por D. Pedro IV, rei de Portugal e dos Algarves, também apreciador de boa música e até compositor de certo mérito, de quem se conhecem alguns trabalhos de música sacra.
Entrada no século
Na mudança de século, o ambiente musical português apresentava-se adornado por alguns nomes prestigiosos. Sem a pretensão de fazer uma apreciação panorâmica isenta de defeitos, prendemo-nos neste momento a quatro virtuosos de destaque, os portuenses Miguel Ângelo Pereira e Bernardo Moreira de Sá e os lisboetas Augusto de Oliveira Machado e Alexandre Rey Colaço, tendo este último nascido em Tânger.
—Miguel Angelo Pereira 1843-1901) residiu durante alguns anos no Brasil, onde estudou; prestou particular interesse à música sacra e à música de teatro, segundo os hábitos do tempo; tinha temperamento muito difícil e isso prejudicou-o enormemente; morreu pobre e atacado de debilidade mental; mesmo assim, bastante lhe ficou devendo a cultura musical!
—Bernardo Vieira Moreira de Sá 1853-1924) possuía dotes mais salientes, qualidades mais destacadas; foi crítico de arte, de muito bom nível; reagiu energicamente contra o gosto italianizante, então comum e vulgar entre nós, o que é prova de modernidade, pelo menos em relação à sua época; o seu interesse artístico prendia-se muito à música de concerto, prestando atenção muito especial à música de câmara.
—Augusto de Oliveira Machado (1845-1924) aperfeiçoou-se em Paris, onde conviveu com figuras salientes do meio musical; cultivou a modalidade de música ligeira e debruçou-se também sobre a opereta e a ópera; como curiosidade, informamos que este autor escreveu a partitura para o texto de Júlio Dantas da comédia de costumes intitulada "Rosas de todo o ano"; também se interessou pelo aperfeiçoamento dos métodos de ensino, podendo afirmar-se que, em grande parte, se ficou devendo à sua actuação o que de bom apresentou a reforma do Conservatório Nacional de Música, em 1901.
—Alexandre Rey Colaço (1854-1928) é uma personagem bastante excêntrica, quanto ao desenrolar da sua vida; nasceu em Tânger, no norte da África, estudou e começou a fazer carreira na Espanha e na França; dedicou a sua melhor atenção à música de concerto e granjeou fama de muito bom professor, tendo como discípulos alguns dos mais destacados músicos portugueses da primeira metade do século XX; pôde aproveitar a protecção de um mecenas excepcional para o nosso meio, o conde de Daupiás, o malogrado filantropo lisboeta Pedro Eugénio Daupiás.
Família Vieira
—Ernesto Vieira (1848-1915), grande instrumentista, virtuoso do piano, do oboé e da flauta, competente professor e eminente musicólogo é um nome destacado do panorama musical lusitano; não foi compositor de mérito nem executante primoroso, mas produziu trabalhos de investigação que o imortalizaram, pois vieram preencher um vácuo da nossa cultura; duas obras por ele elaboradas adquiriram merecido renome, o "Dicionário Biográfico dos Músicos Portugueses" e o "Dicionário de Música"; a musicografia para cegos despertou também o interesse de Ernesto Vieira, tendo feito curiosos estudos baseados no sistema preconizado por um estudioso da especialidade, conhecido pelo nome de Mascaró.
—António Pedro Vieira (Séc. XIX) e seu filho, embora de apelido idêntico, parece não terem qualquer relação de parentesco com Ernesto Vieira; foram os dois bons pianistas; o pai promoveu o reconhecimento das qualidades do filho, ensinando-o e preparando o seu primeiro concerto, em plena adolescência.
—José António Vieira (1852-1894) suplantou em qualidades o seu progenitor e distinguiu-se pelo interesse dedicado à vulgarização dos conhecimentos musicais; foi um dos responsáveis pela fundação da Sociedade de Concertos de Lisboa, da Sociedade de Concertos Populares e da Sociedade de Quartetos; apreciava a música romântica e interessou-se pela sua divulgação no meio em que ele actuava e exercia influência; tinha em alta consideração a obra pianística de Schumann e de Chopin, sendo um apaixonado admirador destes compositores.
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Nomes a recordar
—Francisco Eduardo da Costa (1819-1855) nasceu em Lamego e morreu no Porto; tinha apenas dez anos de idade quando os comerciantes portuenses se quotizaram para lhe comprar um piano, sinal de que o seu valor era notório e a sua família de condição modesta, pois carecia de poder aquisitivo para suportar o custo do instrumento; sem ter feito estudos profundos, conseguiu conhecimentos que lhe permitiram ser mestre de orquestra nos melhores teatros do Porto.
—Joaquim Casimiro (1808-1862) é considerado um dos grandes talentos da música, em Portugal, no século XIX; produziu obra muito extensa, umas vezes a roçar a banalidade e outras vezes atingindo alto nível; os comentaristas referem-se-lhe elogiosamente, no entanto, as informações perdem força porque a sua produção é quase inteiramente desconhecida — mas não podem ser destruídas ou anuladas.
—Gustavo Romanoff Salvini (1825-1858) foi um musicólogo nascido na Polónia mas que se fixou e trabalhou em Portugal; era companheiro artístico da condessa de Edla, D. Elisa Hensler, a morganática segunda esposa do nosso rei D. Fernando Saxe-Coburgo-Gotha; a sua obra não deve ser esquecida, pois apesar do envelhecimento que o tempo trouxe não deixa de apresentar curiosidades de muito interesse, que perpetuam o seu valor como musicólogo, estudioso e competente.
—Francisco António Norberto dos Santos Pinto (1815-1860) viveu nos meados do século XIX, pois faleceu em 1860; compôs muita música destinada a representações teatrais de vários géneros, com texto de diversos autores; como se tratava de música incidental, caiu em esquecimento, pelo que se torna difícil aquilatar com exactidão o seu valor; o número de títulos musicados eleva-se a algumas dezenas, sinal de que, pelo menos naquele tempo, a sua arte era reconhecida e muito apreciada.
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Três aristocratas
Já dissemos que a música mereceu o interesse da família real portuguesa desde os primórdios da nacionalidade, tendo sido um dos nossos reis, D. João IV, razoável compositor e dedicado coleccionador de documentos musicais,
No século XIX, houve em Portugal dois titulares da nobreza que se distinguiram pelo devotamento dispensado às artes, nomeadamente a música. Foram eles o Conde de Farrobo e o Visconde de Arneiro.
—Joaquim Pedro Quintela, Conde de Farrobo (1801-1869), fez construir dois teatros em palácios seus, um em Lisboa e outro em Vila Franca de Xira; tinha vastos conhecimentos musicais e chegou até a ocupar cargos de grande responsabilidade no panorama artístico, como por exemplo o de empresário do teatro real da ópera, em Lisboa; o seu teatro da capital do reino foi inaugurado com uma peça de Mercadante, com o título "Il Castello dei Spiriti"; o seu grande interesse pelas artes contribuiu de maneira acentuada para o seu empobrecimento; chegamos a pensar se não seria neste teatro que se fez a estreia do "Frei Luís de Sousa", de Almeida Garrett, pois todas as edições do drama falam do teatro da Quinta do Pinheiro sem dizerem quem era o dono nem a sua localização pormenorizada.
—José Augusto Ferreira da Veiga, Visconde de Arneiro (1838-1903) foi também empresário do teatro de ópera e compositor bastante fecundo, embora de mérito um tanto limitado; a sua produção operística tornou-se conhecida, sem que pudesse conquistar grande êxito; escreveu também algumas peças de música religiosa; exercendo a advocacia, dedicando-se à política e desempenhando funções diplomáticas, pôde enfrentar sem ruína económica o dispêndio que a atracção artística lhe acarretou.
Antes, tinha já aparecido em Portugal um aristocrata italiano que se distinguiu pelo interesse dedicado à actividade musical, tendo deixado nome ilustre e demonstrado qualidades, —Emanuel Joaquim César Rincón, Barão de Astorga (1680-1757), que foi compositor de bastante mérito, tendo produzido cantatas e música religiosa; veio para Portugal atraído pelo brilho artístico que a nossa corte mantinha e irradiava pelo mundo culto do tempo.
Grandes intérpretes vocais
—Luísa Rosa Aguiar Todi (1753-1833), notável cantora portuguesa que viveu nos fins do século XVIII e princípios do século XIX, foi a personagem que mais se destacou no âmbito internacional; conquistou fama que faz dela uma executante de excepção, a nossa figura máxima de interpretação do teatro musicado; foi ouvida e aplaudida em quase toda a Europa; as doenças, a idade e as guerras napoleónicas tornaram-lhe amargos os últimos anos de vida, esquecida do fausto e da glória.
—António Maria Celestino (1824-1871), que actuou em vários países da Europa e nos do cone sul da América, distinguiu-se nos meados desta centúria pelos seus dotes artísticos, como barítono de mérito invulgar; veio a morrer no Brasil, vítima de uma agressão pessoal; quase contemporânea de António Celestino foi a cantadeira Maria Severa, figura lendária da vida boémia lisboeta, que serviu a Júlio Dantas para sobre ela elaborar o conhecido romance e a peça teatral de títulos iguais ao seu nome.
—António de Andrade(1854-1942) foi grande figura do teatro lírico, tão notável e tão qualificado como o seu famoso irmão.
—Francisco de Andrade(1859-1921) foram tanto um como o outro cantores de muito merecimento; notabilizaram-se no final do século XIX e princípio do século XX; atingiram craveira excepcional como intérpretes de música de ópera, tendo actuado nos melhores palcos da Europa.
—Tomás Alcaide (1901-1967) é um nome de artista que honra uma importante associação cultural de Estremoz, sua cidade natal; foi notável tenor que conquistou calorosos aplausos em diversos países e nos mais exigentes teatros da Europa.
—Maria Vitória (+1915), mais ou menos coetânea dos irmãos Andrade, foi figura menos exaltada do que a de Maria Severa mas de valor igual ou até superior ao da outra famosa e desventurada fadista; o seu nome mantém-se no pórtico de uma casa de espectáculos de Lisboa, o Teatro Maria Vitória.
Família Croner
—António José Croner (1826-1888) notabilizou-se pela sua competência como instrumentista; dedicou-se quase exclusivamente à flauta, e a sua obra foi devidamente reconhecida.
—Rafael José Croner (1828-1884), seu irmão, foi igualmente bom instrumentista que se aperfeiçoou no oboé, no saxofone e na clarineta.
—José Croner (Séc. XIX), o pai de ambos, foi também instrumentista de valor; por motivos que desconhecemos, foi preso, julgado em tribunal e condenado à morte, no tempo de D. Miguel, mas a pena foi-lhe comutada em prisão perpétua, ignorando também se, com a mudança política que se lhe seguiu, a pena foi inteiramente cumprida ou se veio a ser descriminado.
Música em vários tons
—Francisco Marques de Sousa Viterbo (1845-1910) foi um competente musicólogo do final do século XIX e começos do século XX, dedicou particular interesse aos períodos correspondentes à Renascença e ao Maneirismo.
—Manuel Pereira Peixoto de Almeida (1856-1922) foi igualmente competente musicólogo do mesmo tempo histórico, tendo fixado a sua atenção à época em que imperou a música operística e o gosto italianizante.
—Francisco de Freitas Gazul (1842-1925) alongou a sua vida pela segunda metade do século de oitocentos e o primeiro quartel do século de novecentos; dedicou-se também à elaboração de música teatral, tendo escrito a partitura para que o drama de Almeida Garrett, "Frei Luís de Sousa", pudesse ser representado como ópera; a quase totalidade da sua produção é distribuída pelos géneros de revista e de opereta; escreveu ainda bastantes peças para serem executadas nas igrejas, durante as cerimónias religiosas, sobretudo as paralitúrgicas, de devoção.
—Angelo Frondoni (1812-1891), nascido na Itália, fez carreira em Portugal, actuando no Teatro de São Carlos, contratado pelo Conde de Farrobo; no entanto, os seus maiores êxitos foram conquistados no teatro ligeiro, em operetas e em revistas; pertence-lhe a autoria do Hino da Maria da Fonte, música patriótica que teve larga divulgação e que chegou a ser aceite, pela generalidade da população portuguesa, nos últimos tempos da Monarquia, quase como hino nacional; Angelo Frondoni era muito culto; foi poeta e crítico de arte; não apreciava a música de Wagner, particularidade comum naquele tempo, em que a obra do grande compositor era tema de acirradas polémicas.
—Alfredo Keil (1850-1907) interessou-se muito pelo teatro musicado, tendo escrito a partitura de várias peças, de que destacaremos as óperas "Susana", "DonaBranca", "Irene" e "Serrana", esta a melhor de todas; tinha o objectivo de criar uma tradição nacional em que o texto cantado fosse escrito em língua portuguesa; escreveu música do hino nacional, "A Portuguesa", vigorosa manifestação de protesto por motivo do ultimato de 1890 e Henrique Lopes de Mendonça encarregou-se de elaborar o poema; foi também importante coleccionador de instrumentos musicais antigos, reunindo um acervo respeitável que constituiu o fundo do que veio a ser o Museu do Conservatório Nacional de Lisboa; foi arqueólogo muito competente e interessou-se por outros ramos da Etnografia, móveis, trajos, moedas, objectos de adorno e decoração, etc.
No período de transição do século XIX para o século XX, o Brasil exerceu grande atracção sobre os artistas e literatos portugueses, nomeadamente os que se dedicaram a cultivar a arte dos sons. E pode até dizer-se que Portugal exerceu certa fascinação sobre os músicos europeus, pois foram muitos os que, vindo de fora, se fixaram entre nós.
Família Ribas
Recordamos agora aqui o nome de dois irmãos, membros de numerosa família originária da Galiza, que as contingências históricas, a invasão da Península Ibérica pelas tropas napoleónicas, arrastaram para o nosso País, tendo-se fixado no Porto, após sucessivas deslocações:
—José Maria Ribas (+1861), foi instrumentista e compositor, a que unia as qualidades e o mérito de fabricante de aperfeiçoadas flautas;
—João António Ribas (1799-1870), como seu irmão bom executante e prestigiado professor, é autor de trabalhos literários e musicais de muito merecimento.
Os filhos de João António Ribas, todos eles bons músicos, deslocaram-se mais tarde para o Brasil e aí desenvolveram grande actividade artística, que se projectou noutros países do cone sul-americano, por meio de frutíferas e prolongadas digressões. Recordamos assim a prestigiosa acção desenvolvida pelos quatro irmãos:
—João Vítor Ribas (1810-1856), — Eduardo Medina Ribas (Séc. XIX), —Nicolau Ribas (+1990) e Hipólito Ribas (1825-1881).
Os dois primeiros faleceram na cidade do Rio de Janeiro. Todos eles foram aplaudidos nas principais cidades brasileiras, argentinas e ainda em outras urbes sul-americanas.
—Francisco de Sá Noronha (1820-1881) já antes deles se tinha deixado prender pela sedução do ambiente artístico carioca.
Depois destes, temos outras figuras inesquecíveis que merecem salientar-se pelo trabalho realizado e competência que souberam e puderam conquistar:
—Frederico Nascimento (1852-1924) foi um artista português que, como outros seus contemporâneos, escolheu o Brasil para ali exibir os seus dotes, tendo fixado residência no país;
—Artur Napoleão (1843-1925) exerceu profunda influência no ambiente musical fluminense, sobretudo com a casa editora de obras musicais que ali fundou e manteve por largo espaço de tempo, muito considerada pela benéfica acção desenvolvida;
—Raimundo de Macedo (1880-1931) dedicou-se à regência de orquestra, à composição e ao piano; foi professor muito distinto, no Porto e em Braga; excursionou por toda a América e morreu no Brasil, na cidade de Rio de Janeiro, no decorrer do ano de 1931.
Família Cossoul
Mas a arte apresenta características de universalidade; se temos portugueses (e muitos) a actuar no estrangeiro, também não faltam os de outras origens a eleger Portugal para campo de trabalho e palco de profícua actividade:
—João Luís de Oliveira Cossoul (Séc. XIX) com sua esposa Maria Genoveva Virgínia Tomassu Cossoul (1800-1879) vieram para Portugal integrados numa companhia artística, de que se desligaram para fundarem uma notável escola de música, o Pensionat Français; exerceram grande influência entre nós; alguns dos seus alunos chegaram a atingir nível e técnica excepcionais.
—Guilherme António Cossoul (1828-1880) tal como sua irmã —Sofia Leonor Cossoul Gardé (1820-1862), filhos do casal, contam-se, naturalmente entre os seus numerosos discípulos; se a mãe era primorosa calígrafa, além de exímia harpista a filha distinguiu-se como pianista e como harpista.
Família Arroio
Também a família Arroio, de origem estrangeira, lançou profundas raízes em Portugal. Empurrados pelas bem conhecidas convulsões políticas e sociais do seu tempo, fixaram-se aqui os dois irmãos:
—João Emílio Arroio (Séc. XIX) que foi instrumentista mui valioso;
—José Francisco Arroio (1818-1886) é o autor de diversas peças musicais de merecimento.
Os filhos deste último dedicaram-se também à música, sendo os seus nomes bastante conhecidos:
—José Diogo, António José, e seu irmão João Marcelino.
—João Marcelino Arroio (1861-1930) foi de todos eles o que mais se distinguiu, tendo sido prestigioso professor de Direito e autor de livros muito apreciados; sobraçou as pastas da Marinha e Ultramar, da Instrução Pública e dos Negócios Estrangeiros; pertence ao número dos fundadores do Orfeão Académico de Coimbra; compôs a música para as óperas "Amor de Perdição", "Leonor Teles", e a cantata "Inês de Castro", assim como a marcha "Camões", e isso além do que produziu como poeta e autor dramático.
E ainda outros...
—Filipe Duarte (1855-1928) foi grande violinista, chefe de orquestra e compositor; interessou-se pela fundação da Academia dos Amadores de Música e fez parte da Sociedade de Concertos de Ocarinas; compôs muita música destinada ao teatro, e inclusive partituras de ópera.
—David de Sousa (1880-1918) distinguiu-se sobretudo como violoncelista, mas foi também compositor e regente de orquestra; interessou-se muito pela actividade da Orquestra Sinfónica Portuguesa; morreu em 1918, vitimado pela febre pneumónica, que nesse ano assolou Portugal.
—Pedro Blanc (1877-1946) é um músico natural da Espanha, mas que exerceu a sua actividade em Portugal; foi chefe de orquestra e professor, além de exímio violinista.
—José Bernardino Blanc de Portugal (n. 1914) era meteorologista de profissão e de grande competência no seu ramo; dedicou-se também ao jornalismo como crítico musical de rara objectividade, com discernimento apuradíssimo.
Em música, o século XVIII português abrange o tempo de D. João V, D. José e D. Maria I. O século XIX ocupa a primeira terça parte do século XX, na contagem cronológica exacta. O dado que nos pode servir de baliza será o início da vulgarização, cada vez mais generalizada dos sistemas sonoros electrónicos: — rádio, televisão, cinema, discos, fitas e vídeo sob vários aspectos.
As condições gerais alteraram-se muito e surgiram circunstâncias que modificaram as antigas formas de apreciação. Se já antes podíamos admitir que houvesse valores dificilmente reconhecidos ou geralmente olvidados, agora o conceito de valor ficou em boa parte dependente da divulgação obtida ou imposta através dos meios de comunicação. Ninguém nega que haja valores insondáveis e indivíduos competentíssimos completamente ignorados pelo público, enquanto outros, de mediano mérito, têm aceitação maciça, gozam de uma popularidade duvidosa e conseguem ser identificados como grandes luzeiros por enormes multidões.
O trabalho silencioso, quase sempre o mais frutífero, é ignorado, ao passo que o exibicionismo ganha celebridade. Isso tem reflexos sérios sobre o conceito global e distorce a escala de valores, em benefício de alguns e prejuízo de outros, como é evidente. As referências às personalidades dos últimos tempos estão em boa parte sob a influência atrás referida, não sendo fácil fugir-lhe. Além disso, em face do seu número, bastante elevado, mais difícil se torna a selecção e maiores são as probabilidades de errar e de ser injusto. E bem desejaríamos evitar os erros e eliminar as injustiças.
Figuras internacionais
Dentro do condicionalismo que lhe é peculiar, Portugal também tem nomes que se projectaram fora das nossas fronteiras, conquistando louros nos mais exigentes meios artísticos. Entre eles, e quase a título de exemplo, podemos recordar os seguintes:
—José Viana da Mota (1868-1948) é talvez o astro mais brilhante da música portuguesa dos fins do século passado e início do século actual, o século XX. Foi pianista de renome internacional e também inspirado compositor. Residiu longos anos no estrangeiro. Era detentor de uma técnica executiva muito pessoal. Um dos grandes prémios mundiais, destinado a galardoar o valor e a dedicação dos jovens pianistas, ostenta o seu nome prestigioso.
—Guilhermina Suggia (1885-1950), contemporânea de Viana da Mota, foi violoncelista mundialmente considerada, uma das grandes estrelas do seu tempo; casou com Pablo Casals, mas separaram-se passados alguns anos; os seus nomes revestem-se de um prestígio invulgar; deram à música todo o seu entusiasmo e exerceram enorme influência; um dos nossos mais apreciados prémios artísticos é conhecido pelo nome desta grande artista.
—Lourenço Varela Cid (n. 1898) é outro famoso pianista português do século XX, um dos nossos mais conhecidos artistas, de renome mundial; dedicou grande interesse à divulgação da boa música, tanto a antiga como a moderna; foi bom executante, bom mestre e um erudito respeitado.
—Sérgio Varela Cid (n. 1925), seu filho, é também um músico de excepção; herdou de seu pai a técnica pianística e de sua mãe, —Dora Soares Varela Cid (Séc. XX), tomou o gosto pelo violino; a estremada perícia de Sérgio tem sido galardoada com variados e valiosos prémios, que honram tão distinta e renomada família.
—José Carlos Sequeira Costa (n. 1928), célebre pianista de renome internacional, é praticamente da mesma idade de Sérgio Varela Cid, pois a diferença das respectivas datas de nascimento é de apenas meia dúzia de anos; actuou já em quase todo o mundo, ao lado dos melhores regentes e acompanhando as melhores orquestras; como curiosidade, informamos que Sequeira Costa é português nascido em Angola, enquanto Viana da Mota foi português natural de São Tomé e Príncipe.
—Maria de Lurdes Martins (n. 1926), cujo nome se tem projectado com muito brilho, tem idade pouco superior à dos artistas atrás referidos e é também pianista e compositora; muito tem engrandecido o nosso panorama musical, sendo imitada por alguns, admirada por muitos, respeitada por todos.
—Maria João Alexandre Pires (n. 1944) é hoje a mais prestigiosa pianista portuguesa, conhecida e apreciada em toda a Europa e até fora deste continente.
—Nela Bassola Maíssa (n. 1914) distinguiu-se como organista e cravista excepcional, detentora de técnica executiva muito pessoal.
—Cremilde Rosado Fernandes (Séc. XX) criou um nome artístico de quem ou do qual poderá dizer-se quase a mesma coisa, e cuja discografia é numerosa e altamente apreciada; destaca-se no panorama artístico nacional contemporâneo como pianista, cravista e organista de alto nível; estudou em Lisboa e em Wurzburg, centros onde tem exercido também o magistério; especializou-se na execução de música renascentista e barroca.
—Raquel de Bastos (1903-1984) distinguiu-se como soprano ligeiro muito notável; além dos espectáculos que realizou em muitas cidades de Portugal, desenvolveu intensa actividade artística no Brasil; em dado momento da sua vida, decidiu dedicar-se preferencialmente à canção sinfónica ligeira; os seus dotes vocais são ainda acrescidos com os méritos de boa poetisa.
—Oscar da Silva Carrége Araújo (1870-1958), compositor e pianista, merece também referência destacada entre os artistas que se notabilizaram na primeira metade do século XX.
—Fernando Correia de Oliveira (n. 1921), teórico muito conhecido e pedagogo de craveira invulgar, merece ser recordado nesta galeria; inventou um mecanismo que projecta num painel luminoso as notas que forem tocadas; a sua produção conta numerosos títulos; idealizou a harmonia simétrica, utilizando notas que se distanciam por igual nos dois sentidos; a sua estrutura não é inteiramente nova, pois já os antigos tinham experimentado algo semelhante.
Família Sá e Costa
Não podemos nem devemos esquecer uma família de conceituados pianistas que muito tem prestigiado a arte e enobrecido o nome português:
—Luís Costa (1879-1960) assim como sua inesquecível esposa,
—Leonilda Moreira de Sá e Costa (1892-1964), filha de outro célebre virtuoso musical, grande violinista e destacado pianista, [Bernardo Vieira Moreira de Sá, com referência personalizada noutro lugar destas páginas], com as famosas filhas do casal,
— Helena Moreira de Sá e Costa (n. 1913) e a notável irmã
—Maria Madalena Moreira de Sá e Costa Gomes de Araújo (n. 1915), constituintes de um notável duo de artistas de quem Portugal bem pode orgulhar-se.
Musicólogos conhecidos
—Miguel Angelo Lambertini 1852-1920), sem ser, realmente, um rato de biblioteca, foi estudioso competente e divulgador consciencioso, a quem se ficaram devendo trabalhos de muito interesse e pesquisas de alto nível; passa por ter sido um grande coleccionador de instrumentos musicais, tendo o seu acervo sido integrado no inventário do museu anexo ao Conservatório Nacional, assim como o de Alfredo Keil, atrás mencionado.
—(1849-1936), marido da célebre filóloga Carolina Michaelis de Vasconcelos, não foi propriamente um músico, no entanto, pode ser considerado um musicólogo de mérito, em face dos estudos que realizou, acerca de temas relacionados com a arte dos sons.
—Aarão Soeiro Moreira de Lacerda (1890-1947), que só tratou de música por ser um abalizado especialista em História de Arte, merece que dele se diga praticamente a mesma coisa, foi musicólogo porque foi historiógrafo.
—Francisco Inácio Silveira de Lacerda (1869-1934) foi compositor, regente de orquestra e conferencista de muito valor e sólidos conhecimentos; não deve deixar-se sem referência o nome deste notável açoriano; segundo João de Freitas Branco, foi o primeiro português que, no domínio da direcção de orquestras, alcançou excepcional prestígio no estrangeiro; contribuiu muito para o progresso da cultura musical portuguesa, exercendo crítica erudita — séria, emulativa, construtiva.
—Hermínio do Nascimento (n. 1890) distinguiu-se como professor, autor de música para o teatro e estudioso dos temas etnográficos, tendo incidido o seu especial interesse sobre a região nordeste de Angola, a Lunda, com o patrocínio da Companhia dos Diamantes de Angola — Diamang.
O canto gregoriano foi considerado, durante séculos, como música taxativamente destinada ao uso litúrgico, no culto católico. Este condicionalismo manteve-se até ao sétimo decénio do século XX, até às reformas introduzidas pelo Concílio Vaticano ll. Houve musicólogos, como o austro-brasileiro Oto Maria Carpeaux, que o consideravam uma presença perpétua, adstrito a essa finalidade. Com a alteração do calendário litúrgico, perdeu quase inteiramente as antigas características para passar a ser tratado como música erudita. Hoje, as gravações do "cantochão" obtêm uma aceitação invulgar, em quase todo o mundo. A sua beleza e o seu alto poder expressivo angariaram-lhe numerosos apreciadores e convictos admiradores. Em regra, a classe clerical era a especializada na execução e apreciação do recto tono, nome por que também é conhecido; todavia, no caso português houve pelo menos duas senhoras que se especializaram em tal modalidade:
—Júlia de Almendra (n. 1904) com outra melográfica famosa, —Elvira Manuela de Freitas (n. 1927) são as duas conhecidas musicólogas que se especializaram na direcção e execução do canto gregoriano; no entanto, exerceram outras funções e executaram outras tarefas, dentro da especialização musical, em que igualmente se distinguiram pela dedicação e competência demonstradas.
—Tomás Vaz Borba (1867-1950), distinto sacerdote católico açoriano, com o seu famoso discípulo e prestigioso colaborador, —Fernando Lopes Graça (1906-1996), são nomes de musicólogos que ficaram unidos devido à iniciativa da publicação do seu "Dicionário de Música", dando prosseguimento a uma iniciativa que já antes deles tinha prendido a atenção de Ernesto Vieira, neste trabalho e noutro lugar referido.
Foram, os dois, mestres pedagogos de renome. Um compêndio de música de Tomás Borba fez tradição nas escolas portuguesas. Quanto à composição, Lopes Graça sobrepõe-se ao seu antigo mestre e depois parceiro associado, transformando-se numa das mais notáveis figuras do panorama musical lusitano, dos últimos tempos.
—Macário Santiago Kastner (n. 1908), nascido em Londres, prendeu-se à música ibérica antiga, tendo realizado frutuosas pesquisas nos arquivos e bibliotecas de Portugal e da Espanha; é geralmente considerado um dos mais notáveis especialistas do sector, cujo saber e competência são reconhecidos, admirados e respeitados em todo o mundo.
—Manuel Joaquim (n. 1894) tornou-se também figura de relevo na actividade investigadora dos valores conservados nos nossos arquivos; podemos dizer que ele pode ombrear com as mais notáveis individualidades do ramo, com os maiores peritos da especialidade, pois conseguiu resultados verdadeiramente surpreendentes e descobriu riquezas documentais que nem sequer eram imaginadas.
—António Vitorino Goulart de Medeiros e Almeida (n. 1940) desenvolveu a sua actividade nos principais centros culturais europeus e tornou-se um prestimoso divulgador de conhecimentos. A ele se ficou devendo a adaptação do "Dicionário de Música" de Arthur Jacobs ao ambiente artístico português, assim como muitos outros trabalhos de grande valor.
—Gonçalo Sampaio (1865-1937) distinguiu-se pela sua dedicação aos estudos musicais, no género folclórico, à semelhança de outros nomes já referidos; desenvolveu ainda outras actividades de carácter bem diferente, visto que profissionalmente era um botânico de renome; é um dos nossos maiores folcloristas, sendo patrono de algumas importantes agremiações musicais.
—Mário de Sampaio Ribeiro (1898-1966) foi arqueólogo e historiador, mas a música mereceu-lhe tão grande interesse que por meio dela se notabilizou; a sua obra de musicólogo é de uma vastidão e profundidade verdadeiramente excepcionais.
—Frederico Guedes de Freitas 1902-1980) consolidou o seu prestígio como um dos maiores nomes da música em Portugal; foi compositor, regente de orquestra, musicólogo, folclorista, instrumentista e professor; foi ele quem introduziu a politonalidade no nosso País; cultivou ainda o canto gregoriano, também chamado "cantochão"; usava linguagem musical de características muito eclécticas.
A propósito do seu interesse pelo canto gregoriano, perguntamos a nós mesmos se Frederico Guedes de Freitas não será da família de Elvira de Freitas!
—Luís Maria da Costa de Freitas Branco (1890-1955) foi também notável professor, compositor e musicólogo; interessou-se muito pela elevação do nível técnico dos artistas e seu aprimoramento cultural; tinha em alta consideração as possibilidades intelectuais dos executantes e dos ouvintes.
—João de Freitas Branco (1922-1989) distinguiu-se como musicólogo e crítico; referimos já nestas notas o seu livro História da Música Portuguesa; dedicou-se também à actividade de ensaísta e de conferencista; era filho de Luís de Freitas Branco e sobrinho de Pedro de Freitas Branco.
—Pedro de Freitas Branco (1896-1963), atrás mencionado nestas anotações, fez casamento com uma artista de raro mérito, —Maria Antonieta l'Evêque de Freitas Branco (n. 1903), que era uma distinta pianista; Pedro de Freitas Branco notabilizou-se sobretudo como compositor e mais ainda como regente de orquestra, conquistando renome deveras invulgar.
—Maria Antonieta de Lima Cruz (1901-1957) salientou-se como pianista, como compositora e como musicóloga experiente; fez nome como produtora radiofónica; é autora de trabalhos muito valiosos, de que salientamos a bastante conhecida "História da Música Portuguesa".
—Maria de Melo Furtado Caldeira Giraldes Bourbon (1864-1944), filha dos Marqueses da Graciosa, foi escritora de muito merecimento, compositora inspirada e musicóloga insigne; o ambiente social em que nasceu, se criou e viveu, ofereceu-lhe condições favoráveis à manifestação dos seus dotes artísticos e valorização das suas qualidades.
—Estefânia Cabreira (Séc. XX), filha dos Viscondes de Faro, era também de família aristocrática; chamava-se ela, de nome completo de solteira, Estefânia Loureiro de Vasconcelos Leão Cabreira; matrimoniou-se com o poeta Oliveira Cabral; dedicou-se à produção de programas educativos radiofónicos, dedicados às crianças portuguesas, muitas vezes com música sua e texto de seu marido; foi destacada promotora do canto orfeónico escolar, modalidade pedagógica então muito em voga e que merecia aos responsáveis o maior interesse; perante a música educativa e o papel paternalista do Estado, Estefânia Cabreira está para Portugal como Heitor Vila Lobos para o Brasil.
—António Eduardo da Costa Ferreira (1875-1966) trabalhou no ensino, sendo considerado mestre competente mas muito exigente, sem deixar de ser bondoso e compreensivo; compôs música popular e interessou-se igualmente pela produção de música erudita.
—Cláudio Carneiro (1895-1963) é um nome de professor e de compositor a ser recordado; o seu estilo apresenta características de austeridade, sobriedade e requinte, a que soube e quis juntar certa feição arcaizante.
—Filipe de Sousa (n. 1927) merece ser destacado como compositor e também como investigador histórico, elevando-se assim ao conceito de bom musicólogo.
—José Augusto Alegria (n. 1918), sacerdote católico, é hoje um dos mais conhecidos, cultos e destacados musicólogos lusos; elaborou uma obra notável que o nobilita, quer pelo número de trabalhos quer pelo seu valor crítico; a Academia Portuguesa de História conta-o entre os seus membros; é mundialmente reconhecido como investigador, sendo hoje o mais abalizado estudioso das escolas musicais de Évora e Vila Viçosa.
* * * * *
—Rui Coelho (1892-1986) é um dos maiores músicos portugueses dos últimos tempos; notabilizou-se como autor de música ligeira, música sinfónica e música de teatro; é um dos compositores portugueses da actualidade que os escritores estrangeiros mais frequentemente mencionam, quando querem referir-se à música ou aos músicos portugueses; destacaremos aqui que é da sua autoria a partitura da ópera "Rosas de todo o ano", escrita sobre texto de Júlio Dantas; já vimos atrás que o mesmo texto havia sido musicado por Augusto de Oliveira Machado.
—José Domingos Brandão (n. 1904) tornou-se conhecido como compositor, mas também como violoncelista e violeiro, isto é, fabricante de instrumentos de arco; introduziu nalguns exemplares por ele construídos profundas alterações técnicas, tendo em vista o seu aperfeiçoamento.
—José Croner de Vasconcelos (Séc. XX) é um nome distinto de tradicional família de músicos, já atrás mencionada; sua mãe foi pianista, seu pai foi violinista e seu avô materno era clarinetista; salientou-se como compositor, pianista e professor; musicou textos dos nossos melhores autores literários; cultivou normas adequadas a um estilo modernizante, sem pôr de parte os valores do passado, sabendo harmonizar entre si o que de melhor temos hoje com o melhor conhecemos de ontem.
—Alvaro León Cassuto (n. 1938) tem-se distinguido muito, quer como compositor quer como chefe de orquestra; sem descurar a sua actividade em Portugal, actua frequentemente no estrangeiro, tanto na qualidade de estudioso como no papel de exímio praticante da arte da regência; o seu nome é um dos mais brilhantes do actual panorama musical português.
—Gerhard Doderer (Séc. XX) é um conhecido organista da actualidade, com larga gama de realizações e actividades. Nasceu na Alemanha, na Francónia, mas radicou-se em Portugal onde reside há muito; desempenha as funções de professor de diversas ciências musicais na Universidade Nova de Lisboa; as suas publicações, os recitais de órgão assim como as conferências que profere incidem sempre ou quase sempre sobre a música ibérica dos séculos XVI, XVII e XVIII; também fez diversas gravações em órgãos históricos portugueses.
—Natércia Couto (n. 1924) destacou-se como compositora e como maestrina; regeu algumas das melhores orquestras, de diversos países do mundo; entre nós, é uma das poucas figuras femininas a exercer esta actividade; a sua obra está impregnada da subtileza e graciosidade, próprias do seu sexo.
—Manuel Ferreira de Faria (1916-1983) foi um sacerdote católico que deixou longo e vasto reportório de música sacra moderna, de elevado nível artístico; soube harmonizar entre si aquilo que o nosso tempo exige e o que o passado nos oferece; foi professor, compositor e musicólogo de craveira excepcional.
—Abel Ferreira Alves (Séc XX), também sacerdote católico, dedicou à música entusiasmo e competência; a sua obra é vasta, e toda ela se prende com os valores cristãos; além de muita música destinada ao uso litúrgico e paralitúrgico, escreveu peças adequadas a outras circunstâncias — familiares, sociais, patrióticas e etnográficas.
—Ivo Cruz (1901-1985) nasceu no Brasil, no Ceará, e morreu em Lisboa; desempenhou as suas funções em Portugal, aqui viveu e produziu a sua notável obra musical; o seu nome é um dos mais prestigiados entre os nossos cultores da ciência dos sons, brilha entre os maiores e os melhores; a sua obra é grande, tanto em qualidade como em extensão.
—José Manuel Joly Braga Santos (1924-1988) não pode ser esquecido entre os luzeiros da vida musical lusitana; embora tenha exercido outras funções, foi como compositor que ganhou o direito a ser invocado a par das nossas figuras de maior brilho; algumas das suas produções operísticas obtiveram destacado êxito, sendo o nosso músico contemporâneo que mais se lhes dedicou.
—Armando José Fernandes (n. 1906) foi um pianista, professor e compositor que pode ombrear com os mais notáveis músicos da actualidade, e cuja obra se apresenta cheia de interesse e de modernidade.
—Constança Capdeville (Séc. XX), compositora falecida prematuramente, deixou memória perdurável e obra que, não sendo extensa, era muito promissora, de um modernismo equilibrado e sensato.
—Jorge Peixinho (Séc. XX), recentemente falecido, é outra figura que conseguiu elevar-se pelos seus méritos, aliás muito destacados; ocupa lugar de relevo entre os compositores da vanguarda.
—Joaquim Simões da Hora (+1997) conta-se entre os grandes nomes da música portuguesa neste final de período, pois foi o maior organista luso do século, como se exprimiram alguns comentaristas da sua obra por ocasião do seu passamento, no decorrer do primeiro semestre de 1996; exerceu papel de grande importância na revitalização da música de tecla, particularmente do órgão, sua especialidade; devemos-lhe interpretações notáveis, de grande perfeição técnica, muitas delas com gravações sonoras; a realização destes projectos contou sempre com a sua dedicação entusiástica; podemos hoje apreciar a audição dos nossos mais célebres instrumentos, os órgãos antigos das nossas catedrais, colegiadas e outros; Simões da Hora deixou-nos um espólio cultural muito respeitável.
Poderíamos falar também da enorme falange dos cançonetistas que mais se notabilizaram e também do grande número de compositores de música ligeira popular. Os que são conhecidos têm os seus admiradores fiéis; os menos conhecidos pouco ou nada lucrariam com isso.
Em História, há necessidade de estabelecer divisões e etapas. Muitas vezes, esses períodos pouco mais são do que divisões mal alinhadas e mal averiguadas. Consideremos que, em arquitectura, o estilo gótico se sobrepôs ao estilo românico pelo largo espaço de dois séculos, pelo menos; e os estilos barroco e rococó também se sobrepuseram em cerca de duzentos anos. Na música verificamos fenómeno idêntico, ao longo dos tempos.
Comecemos por fixar que a música é uma arte muito antiga, que se perde na sombra dos séculos. No entanto, é uma ciência nova, historicamente falando, que nos aparece nos últimos decénios da Idade Média. Como arte, vem do fundo das civilizações mais antigas, a egípcia, a grega ou a hebraica. Como ciência, conta meio milénio, considerando-se Palestrina o seu marco inicial.
Recapitulando um pouco o que fomos aprendendo, diremos que em Portugal [assim como em todo o mundo, comparativamente], a música que se fez até ao final do século XVI era incipiente, simples, um tanto ou quanto primitiva, tanto a vocal como a instrumental.
Abrange um período histórico muito vasto, de bastantes séculos, e géneros bem distintos, os diversos tipos de música de igreja, os cantares dos trovadores e afins, a música dos folguedos populares (como a do tempo do nosso rei D. Pedro l), a riqueza e complexidade do contraponto inicial, o acompanhamento instrumental, o brilhantismo das festas reais (como a dos casamentos de D. João I, D. Duarte, e do Príncipe D. Afonso), e ainda os saraus das cortes (de D. Manuel I e D. João III).
Pensando no caso português, aceitamos que há um longo período de música primitiva, de início indefinido mas que se prolonga até ao final do século XVI ou princípios do século XVII. Podemos considerar como baliza a data do falecimento de Manuel Mendes (1605) ou D. Pedro de Cristo (1618).
Este primeiro período abrangeria a música medieval, a música dos trovadores e a época em que se cultivou a arte do contraponto inicial. Reconhecemos que foi nesta altura que se organizou a verdadeira cultura musical, como autêntica ciência.
O segundo período da música em Portugal estende-se pelos reinados de D. Filipe II (III de Espanha), D. Filipe III (IV de Espanha), do monarca Restaurador, o musicólogo D. João lV, e dos seus dois filhos D. Afonso VI e D. Pedro II. Produziu-se boa música religiosa, de estilo palestriniano, e bastante música instrumental, sobretudo de órgão. Tivemos grandes compositores e instrumentistas, uns bastante conhecidos e outros quase no anonimato. Este segundo período atinge o começo do século XVIII, podendo fixar-nos no início do reinado de D. João V (1706). Cultivou-se a música religiosa renascentista e a música profana vulgarmente designada por maneirista, isto é, do derradeiro tempo da Renascença.
Houve (na primeira parte do período) intercâmbio intenso com a Espanha, onde residia o rei comum, onde funcionavam os serviços da corte e onde habitava bom número de fidalgos portugueses. Através de Madrid, os nossos músicos podiam contactar mais facilmente com a Flandres e a Itália, os melhores centros de divulgação melodista da Europa daquele tempo.
O terceiro período de música portuguesa abrange o tempo de D. João V, D. José e D. Maria I. Entrou no País o estilo italiano, que se enraizou fortemente. Cultivou-se o género operístico e adoptou-se o gosto italianizante, que se radicou tão fundo que se prolongou pela período seguinte e durante muitos anos... Contribuiu para isso a vinda para Lisboa de numerosos cantores, alguns deles castrati, e bastantes músicos professores, chefes de coro e compositores. Começou por se adoptar e generalizar o género oratória, mais fácil e mais barato do que o teatro por música, e a seguir estabeleceu-se entre nós o gosto operístico. Muitos dos nossos compositores tentaram o género, produzindo grande número de obras mas nenhuma que conseguisse notoriedade mundial; e apenas um dos nossos autores, Marcos Portugal, conseguiu fama apreciável, mas que não subsistiu depois da sua morte. O terceiro período pode ir de 1706 até 1816, abrangendo, como já salientámos, os reinados de D. João V, D. José e D. Maria I.
O gosto italiano e operístico manifestou-se de forma tão saliente que foi considerado como que a causa de a nossa individualidade musical se não ter manifestado como devia, na sua pureza e genuinidade.
Não deve esquecer-se que se construíram boas casas de espectáculos, talvez as melhores do País, o Teatro de São Carlos, em Lisboa, o Teatro de São João, no Porto, e ainda outras nas principais cidades, tanto do reino como das ilhas e do Brasil.
Recordemos que o teatro de Lisboa pretendia homenagear a rainha, D. Cartola Joaquina, e o do Porto o próprio rei, D. João VI; assim se explica e compreende que, segundo o costume de então, se lhes desse o nome daqueles santos, que afinal não correspondiam ao calendário litúrgico mas ao calendário político; o uso vinha de trás e ainda se prolongou, com exemplos diversos, pelas décadas seguintes.
O quarto período vai do começo do reinado de D. Maria da Glória, D. Maria II, até ao fim da primeira terça parte do século XX. Combateu-se a influência italiana, dando prioridade aos temas musicais portugueses e cultivando paralelamente música de gosto alemão e francês.
Continuou-se a tradição de escrever música de teatro — ópera, opereta e revista. Prestou-se atenção à música instrumental e organizaram-se serviços de concertos abertos ao público, assim como instituições de divulgação. Generalizou-se a prática e o gosto de ouvir música ligeira, a canção, e difundiu-se o fado lisboeta. Começou a prestar-se atenção à riqueza folclórica, à música popular.
Construíram-se também alguns bons edifícios teatrais, merecendo destaque o chamado Teatro Nacional de Lisboa (D. Maria ll), e até outros, anexos aos palácios de alguns fidalgos. E prestou-se atenção à preparação dos artistas, sobretudo pela instituição do Conservatório Nacional de Música de Lisboa.
Este quarto período pode levar-nos ao final da terceira década do século prestes a extinguir-se, o século XX, até cerca do ano de1930, altura em que o rádio e o cinema começaram a desempenhar a sua profunda influência. Esse tempo, de pouco mais de um século, viu organizar em moldes novos o ensino musical, assistiu à luta contra o gosto italiano dominante. Fizeram-se experiências modernizantes e cultivou-se a música de raízes nacionais.
O quinto e último período é este em que nos encontramos, e que nós apreciamos ou desprezamos, que tem muito de bom e muito de menos bom, e não deixará de marcar os trilhos do futuro, projectando-se nele as suas muitas qualidades e vantagens e as suas muitas deficiências e os seus erros.
Entre as muitas realizações que se poderiam focar, duas delas merecem referência particular — a criação de escolas de música em diversas cidades do interior e a instituição, em Lisboa, de um dos grandes organismos mundiais de difusão da cultura musical, a Fundação Calouste Gulbenkian. Não devemos esquecer a sua apreciada orquestra e o seu primoroso coro, a edição de livros de música e a prensagem de discos.
O quinto e último período, que ainda não conta um século, ficou marcado pela influência profunda exercida através do uso de volumosa parafernália electrónica — cinema, rádio, televisão, conjuntos sonoros de gravação e reprodução, fitas, vídeos, discos de vários tipos, etc.
A música teve uma divulgação que nem sequer podia ser imaginada. Os apreciadores dos diversos géneros têm a possibilidade de os ouvir em qualquer tempo e lugar, em qualquer dia e hora, sós, no isolamento do seu quarto de dormir, ou acompanhados, nas ruidosas discotecas e nos duvidosos cabarés dançantes.
A música, que antes era esporádica e mesmo episódica, passou a ser valor constante e a manter permanente presença, em inumerável gama de veículos e de canais. No entanto, a cultura musical e os conhecimentos técnicos não acompanharam esse desenvolvimento e essa expansão, criando-se um fosso entre os muitos que gostam de ouvir música e o reduzido número daqueles que a conhecem na prática, os que a produzem ou a executam. E os novos recursos trouxeram ainda outra anomalia, a divulgação de música apressada, improvisada, sem exigências artísticas, música de consumo, descartável! E os eficientes métodos de propaganda acabaram por fazer o resto, impondo géneros e intérpretes. Só assim se explicam as coqueluches internacionais.
A prática da boa música quase se circunscreve às cidades de Lisboa e Porto, sobretudo à capital; quanto às demais, manifesta-se com alguma regularidade; nas pequenas cidades e vilas nada se faz.
São cada vez menos os que se lhe dedicam como derivativo intelectual, que a colocam em paralelo com a leitura de um livro, com a cultura de flores, com o cuidado a prestar a um cãozinho ou até com a inércia com que assiste a um programa de televisão.
Fazemos votos para que as qualidades suplantem os erros, para que às suas deficiências se sobreponham as vantagens que oferece, que o apreço pela divina arte dos sons cresça e se desenvolva. Assim vai acontecer, pois não podemos deixar de acreditar que as condições gerais oferecem melhoria e aperfeiçoamento. Não deixamos de acreditar num mundo futuro cada vez melhor e mais harmonioso.
ESQUEMA CRONOLÓGICO
1º Período | Primitivo | Antes de 1600 | Durou muitos séculos |
2º Período | Maneirista | De 1600 a 1700 | Um século |
3º Período | Barroco | De 1700 a 1830 | Cento e trinta anos |
4º Período | Nacionalista | De 1830 a 1930 | Um século |
5º Período | Actual | Depois de 1930 | Menos de um século |
A MÚSICA EM
PORTUGAL
SEGUNDA PARTE
A observação superficial e um tanto apressada do panorama musical histórico e universal pode levar-nos a pensar que nos seus primórdios como ciência organizada, ou seja no final da Idade Média e no período do Renascimento, os músicos apareciam nas classes sociais mais elevadas, havendo exemplo de nobres e até membros das famílias reais, inclusive monarcas, que se dedicaram com destacado interesse a estudar a arte dos sons.
Os compositores mais evidentes surgem-nos sem que possamos detectar a sua origem ou a sua genealogia, mas podemos aceitar sem grande reserva que todos ou quase todos eles fossem gente bem nascida. A apreciação da vida que faziam leva-nos a concluir que, pelo menos, dispunham de volumosos recursos económicos.
O sinal mais saliente de que deveria ser assim são as suas deslocações para cidades de maior interesse, muitas vezes para reinos estranhos ou pontos longínquos, e a permanência demorada nesses lugares, o que implicava despesas de vulto, gastos de alto porte, apenas suportáveis por quem fosse muito endinheirado.
Também poderíamos salientar que os compositores de antanho mostravam, por diversas formas, serem portadores de sólidos conhecimentos, somados à sua profunda competência musical, com especial destaque para a cultura literária. O músico compositor era, geralmente, um abalizado filólogo ou pelo menos um bom linguísta.
Com o andar do tempo. este condicionalismo foi-se alterando e os compositores deixaram de pertencer só às classes superiores, passando em muitos casos a ter origem mais humilde, mesmo plebeia.
Não é aceitável, no entanto, a ideia de que proviessem de famílias carentes — salvo talvez muito poucas excepções, de todo ignoradas, mesmo desconhecidas. A iniciativa do estudo da música, a sua duração e o custo real só poderiam ser sustentados e suportados por famílias ou indivíduos de nível económico elevado, que dispusessem de razoável abastança. A música continuava sendo ciência fiduciariamente cara, pecuniariamente dispendiosa e que nem sempre oferecia compensações materiais aliciantes ou vantajosas.
Talvez por isso, o apreço musical foi decaindo. Os músicos chegaram mesmo a ser equiparados aos agentes de diversões, aos profissionais lúdricos, do circo ou do teatro, que vagueavam de terra em terra, oferecendo ao público as suas habilidades.
Os mais competentes conseguiam trabalho fixo nos palácios dos grandes senhores, os quais se já não eram músicos conceituados, compositores ou executantes, pelo menos apreciavam ainda os primores desta arte e cultivavam-na, agora de forma indirecta, protegendo ou pagando bons artistas.
Fala-se com frequência no pouco saber dos músicos, além do que respeitava ao seu ofício, chegando alguns autores a querer fazer-nos acreditar que seriam uns grandes ignorantes — mas esta asserção não pode aceitar-se de forma tão simplista.
O compositor barroco, ao qual costuma ligar-se tão desprestigiante conceito, não seria um sábio consumado, admitamos isso, mas não era de forma alguma nem inculto nem bronco. O mais elementar raciocínio leva-nos a classificá-lo como indivíduo de cultura bastante acima da média do seu tempo. O próprio saber musical sempre foi dote elitista.
Se pensarmos em Bach ou em Haendel, de nenhum modo podemos admitir que não tivessem cultura pelo menos correspondente à média do seu tempo — talvez até um pouco mais elevada. Nós, em boa consciência, não podemos deixar de considerá-los astros de primeira grandeza.
Sem deixarmos de ter João Sebastião Bach como ponto de referência, pensemos que os responsáveis pelo culto luterano, a cujo serviço ele estava ligado, e que de certo modo eram os seus patrões, tinham o compositor em consideração um tanto modesta, quer quanto às suas qualidades de trabalho quer quanto à sua dedicação ao ofício. Talvez até pusessem em dúvida a sua competência... Não faltam indícios, nas suas sinopses biográficas, de que os responsáveis a que ele estava subordinado se não acanhavam muito em lhe atribuir defeitos, por outras palavras, reconhecer falta de qualidades ou o descurado aproveitamento das que poderia realmente possuir.
A enorme obra que nos deixou dilui todas as dúvidas e evidencia o seu mérito, os seus dotes excepcionais; demonstra ser trabalhador incansável e de uma devotação modelar — mas estas qualidades não se coadunavam com a escala de valores adoptada pelos que eram os seus empregadores. Ora o exemplo de Bach pode aplicar-se a muitos outros casos e personagens. O relativo desprestígio de muitos músicos, inclusive compositores de mérito invulgar, prende-se ao conceito de músico-criado, que os autores muitas vezes referem e destacam negativamente, costumando apontar-se como exemplo Mozart e Haydn, que na verdade serviram altos senhores do seu tempo e foram tratados como serviçais.
Mas não devemos esquecer que gozavam de privilégios destacados. O arcebispo que Mozart serviu parece ter sido excessivamente orgulhoso da sua posição, considerando o compositor com menos apreço do que deveria; mas Haydn serviu um patrão que o tinha em elevado conceito, reconhecia que o seu serviçal lhe era muito superior.
Ora, o que se deu com estes deve ter-se repetido com outros... De nenhum modo podemos considerá-los como exemplos únicos e singulares, isto é, casos isolados, sem paralelo e sem repetição.
Raciocinando um pouco, chegaremos à conclusão de que estes empregados exerciam funções muito apreciadas e a própria realidade de serem aceites era já testemunho de grande consideração. Na verdade, eram serviçais, mas diferentes dos outros, como hoje um guarda-livros se não compara com o porteiro e a secretária de confiança não pode ser confundida com a faxineira que executa o serviço de limpeza.
No decorrer do século XIX, os músicos compositores, os instrumentistas ou os cantores conquistaram o foro de profissionais liberais e muitos deles conseguiram êxito económico retumbante, embora esta vantagem os não bafejasse a todos, apenas uns tantos, os de maior mérito, maior sorte ou melhor propagandeados, puderam aproveitá-la.
Deitando um rápido olhar para o panorama mundial de hoje, concluiremos que o resultado material nem sempre é prova segura de qualidade e mérito, não obstante o possa ser algumas vezes. Actualmente, os proventos fiduciários dependem muito da actuação da máquina publicitária e esta tem as suas próprias regras de funcionamento, nem sempre isentas de reparos e críticas, sob o aspecto ético ou moral.
A música dita ligeira obtém frutos copiosos e remunerações principescas que a outra, a música de sabor erudito, mais valiosa e mais exigente, não sonha e nem sequer pretende alcançar — se exceptuarmos as grandes estrelas da interpretação, as grandes vedetas (masculinas ou femininas) do canto ou da perícia instrumental.
Tem também papel de grande importância a força da opinião pública de momento, a que mais ou menos defeituosamente nós costumamos dar a designação de moda. Se determinado tipo de música é geralmente apreciado, os seus praticantes podem obter vantagens que outros tipos, de igual valor ou mesmo superior, de nenhum modo conseguem alcançar.
Todas as gerações, e até os diferentes períodos da mesma geração, formam barreiras opositoras relativamente aos valores da geração ou da etapa antecedente, modificando comportamentos, querendo ser diferentes, apregoando um avanço que nem sempre existe, um aperfeiçoamento muitas vezes duvidoso.
OS GRANDES SENHORES E A MÚSICA
O rei D. Sancho I é considerado um dos nossos primeiros trovadores, e um dos mais primorosos, embora não sejam muitas as trovas conhecidas que indubitavelmente se lhe possam atribuir, admitindo-se que nem todas tenham sido conservadas.
Depois dele, o rei D. Afonso III, o Bolonhês, tornou-se conhecido pelo interesse que dispensava à arte de trovar, mesmo sem ser troveiro reconhecido. Mas o seu filho, D. Dinis, deixou fama sólida de bom trovador, chegando por vezes a chamar-se-lhe "rei poeta". E há autores que até lhe atribuem méritos de compositor, o que talvez não seja pura invencionice, pois os bons trovadores aplicavam ao texto produzido a correspondente ensonação ou ensoação, isto é, a música apropriada. E o conde D. Pedro, filho de D. Dinis, também se celebrizou pelas muitas e belas trovas que elaborou. Daqui se conclui que o versejar e o ensoar eram prendas frequentemente encontradas nas mais destacadas figuras do tempo.
O Mestre de Avis, o nosso rei de boa memória, D. João I, talvez se não tenha dedicado muito à arte de trovar, mas dedicou-se à escrita de conceitos morais e filosóficos, segundo a mentalidade da época, e temos alguns testemunhos que nos dizem ter sólidos conhecimentos musicais. Ora isso era então um impositivo social, uma exigência da sua elevada posição.
Há notícias que dizem serem os seus numerosos filhos, os altos infantes, apreciadores esclarecidos da arte canora, mantendo as suas capelas de cantores vocais e de instrumentistas bem treinados. A sua filha D. Isabel casou com o duque de Borgonha, residente em Dijon, então um dos mais influentes centros musicais da Europa.
Os monarcas que lhe sucederam não deixaram fama de poetas ou compositores, mas mesmo assim são vulgarmente considerados bons apreciadores da música e dos músicos. Podemos pensar em D. Afonso V e D. João II, D. Manuel I e D. João III; os dois primeiros soberanos procuraram dar brilho e boa estruturação à capela real; os dois últimos reis designados incentivaram os nossos poetas e os nossos músicos.
D. Manuel mantinha permanente grupo de músicos, executantes instrumentais, que actuavam enquanto trabalhava e comia, enquanto despachava, recebia visitantes ou descansava. Promovia com frequência audições musicais para seu deleite e prazer dos seus familiares, dos acessores e empregados.
D. João IV é considerado razoável compositor e (na sequência dos seus ascendentes e antecessores) um apaixonado coleccionador de manuscritos e impressos musicais, dizendo-se que possuía uma biblioteca no seu tempo considerada volumosa e excepcionalmente rica.
O seu neto D. João V também demonstrou apreciar a música, sob vários aspectos. Adquiriu dois óptimos carrilhões para o convento de Mafra; dotou a sua igreja com vários órgãos (o inglês William Beckford fala em seis).
Chamou mestres e artistas italianos para ensinarem em Portugal. Fundou algumas escolas para divulgação e aprendizagem da melhor música, não só religiosa mas também profana.
Podemos referir as escolas capuchas, a que funcionou no monastério da Arrábida, a do convento de Mafra, a que estabeleceu em Lisboa, esta ligada à capela real e à sé patriarcal. Apoiou as manifestações mais salientes, tanto os saraus literário-musicais como os espectáculos cénicos — sobretudo as oratórias, mais fáceis e menos dispendiosas, pois a ópera ainda se não tinha imposto entre nós.
Enviou ao estrangeiro jovens que manifestavam possuir dotes invulgares, os conhecidos "pensionistas", encaminhando-os para os melhores centros europeus, pagando-lhes a manutenção e o ensino.
O rei D. José apoiou decididamente os espectáculos de ópera, estabelecendo-se a partir de então uma influência que se prolongou por dilatados tempos, chegando mesmo a dizer-se que abastardou as tradições nacionais, motivando no século seguinte campanhas reformadoras de hábitos adquiridos.
Sabemos que os monarcas lusitanos da dinastia brigantina costumavam dedicar grande atenção à educação artística dos seus filhos, nomeadamente a música, tendo alguns deles conquistado elevada consideração. Recordamos, como exemplo, as filhas de D. João V, particularmente D. Maria Bárbara de Bragança, esposa do rei de Espanha, D. Fernando Vl, que teve como preceptor o famoso compositor do período barroco, José Domingos Scarlatti.
O imperador do Brasil, D. Pedro I (IV de Portugal), foi também um apaixonado pela música, que estudou com interesse e chegou mesmo a compor com certa facilidade. Conhecem-se alguns dos seus trabalhos, sobretudo música religiosa, que denotam saber bem estruturado.
A paixão musical do primeiro imperador do Brasil (esqueçamos propositadamente o nosso D. João IV) levou-o a estudar o melhor que pôde esta matéria, distinguindo-se entre os seus mestres o conhecido Segismundo Neukomm, conterrâneo de Mozart, pois nasceu como ele em Salzburg, e discípulo dos dois famosos irmãos Miguel Haydn e José Haydn.
Apoiado pela família real, deslocou-se para o Brasil o nosso naquele tempo grande compositor Marcos Portugal, que ali terminou os seus dias. O Brasil teve ainda um compositor de mérito raro, o P. José Maurício Nunes Garcia.
Não pode ficar esquecida a célebre e por esse motivo muito importante escola mineira, na região aurífera, que teve compositores competentes, entre os quais sobressaiu José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita.
Recordando os monarcas descendentes do primeiro imperador do Brasil, não podemos deixar de pensar em D. Luís, tradutor da obra shakesperiana, em D. Carlos. cientista e pintor; e em D. Manuel II, pesquisador e escritor, apreciadores da arte musical. Encontramos na família brigantina diversos casos de devotamento comprovado, mérito raro, mesmo fora do comum.
O ensino da Música esteve confiado, desde longa data, aos membros da Igreja. Até a chamada música profana recebeu do clero a sua estruturação, pois sabemos que os trovadores e os troveiros se inspiravam nos modelos eclesiásticos, adaptando-os a condições novas e à finalidade que tinham em vista. Sabiam que era aquele o tipo de música que mais agradava e não poderia esperar-se que tivessem a ousadia de contrariar abertamente a tendência geral dos seus ouvintes, pois isso corresponderia a ostracismo certo e implacável.
Desde muito cedo as universidades europeias introduziram o ensino da Música no seu plano de estudos, ao lado das demais ciências então cultivadas. Se nalguns casos, como por exemplo Salamanca, o ensino ministrado teve o apoio de mestres competentes e dedicados, noutros casos registou-se desleixo completo e desinteresse total — apreciação simplista!
No caso português, é opinião corrente que o ensino desta matéria, feito na Universidade, de pouco serviu para divulgação do saber musical. Outros centros se notabilizaram mais do que o universitário no culto devotado da ciência dos sons.
O estudo era quase sempre ministrado em latim, a língua culta do tempo e também a língua universal para aquela época histórica. Apesar de a preparação em latinidade ser muitas vezes de alto nível, não deixava de ser uma limitação a ter em conta, cerceando muitos estudantes, apresentando-lhes reais dificuldades.
A Universidade de Salamanca viu esse problema e procurou dar-lhe a solução conveniente. Por isso, a partir dos meados do século XVI passou a empregar-se no ensino musical a língua materna, o castelhano.
Aceita-se até que a inovação viesse de trás e que as medidas tomadas consistissem apenas no reconhecimento de condições anteriormente estabelecidas, de um hábito já antigo.
Pouco mais ou menos na mesma altura, foi dado consentimento para que as mulheres ouvissem as aulas. Esta medida, embora registada por estudiosos de confiança, pode ser vista com certa reserva, quanto ao seu valor prático.
Na Universidade de Salamanca como em outros lugares do mundo de então — por exemplo a Universidade de Paris e a catedral de Olivença, então cidade portuguesa — a nomeação dos mestres de música e canto dependia dos escolares, manifestado por meio de votação, que não seria secreta e nem inteiramente livre. Mesmo assim, não deixava de ser uma manifestação democrática de estilo e gosto bem modernos...
Tivemos mestres abalizados em diversos ramos do saber, mesmo indivíduos doutos e altamente considerados. Quase todos eles fizeram os estudos no estrangeiro e por lá continuaram (ou para lá rumaram de novo, pelas razões mais diversas e variadas) como mestres de novas gerações de alunos. Se recorriam às escolas estrangeiras para estudarem, concluiremos que o ensino oferecido no país não oferecia tão seguras garantias de êxito. E, depois de concluídos os estudos, facilmente deduziam que essas mesmas escolas lhes proporcionariam melhores condições para se realizarem. As conveniências materiais e as aspirações culturais desempenharam nisso papel de grande relevo.
A centralização que se processou em paralelo com o estabelecimento do absolutismo régio diminuía o grau de autonomia das universidades, o que entre nós já se sentiu claramente na reforma do ensino promovida no reinado de D. Manuel l, o Rei Venturoso.
A influência da Inquisição, que pouco depois se manifestou com uma notável acuidade, veio reforçar a antiga inclinação, endurecendo posições e tornando mais dificultosa a abertura aos hábitos e costumes liberais. Esta aspiração, no entanto, só bastante tempo depois viria a manifestar-se com clareza e força, capaz de desviar o roteiro do percurso.
A Igreja continuava a ser a única instituição que tinha capacidade para assegurar a educação musical sistematizada, através dos inúmeros estabelecimentos de que dispunha, espalhados por todo o mundo — catedrais, colegiadas, mosteiros e conventos. Até podemos considerar que a Igreja era, pode dizer-se, a única organização que habitualmente "consumia" música, que dava ocupação aos que a produziam.
No aspecto secular e profano, os reis e seus mais chegados acessores e dependentes, as grandes famílias da nobreza, não deixavam de incentivar os estudos musicais, na medida em que viam neles forma de se notabilizarem, de se engrandecerem perante os seus possíveis ou hipotéticos competidores, a fidalguia de menor destaque.
Os reis da dinastia de Avis, os irmãos da ínclita geração, o grande condestável D. Nuno Alvares Pereira, a família dos duques de Bragança e uns tantos mais são prova indesmentível de que houve entre nós quem dedicasse à música grande interesse,
Não saindo de Portugal, recordaremos o que fizeram pela cultura musical os bispos das nossas mais importantes dioceses e os principais centos monásticos do País: — Braga e Porto, Coimbra e Lisboa, Viseu e Évora, o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e a Abadia de Santa Maria de Alcobaça, o Convento de São Vicente de Fora de Lisboa e a Escola dos Santos Reis Magos de Vila Viçosa.
Não deixemos de frisar, no entanto, que a pequena fidalguia e a burguesia, então em período ascendente, pouco se preocupavam com tal problema, e quando o faziam era só para darem ares de progressistas e actualizadas, um nem sempre inocente fingimento.
Houve já quem quisesse aliar a estrutura e valor artístico da música coral alentejana à influência das importantes escolas musicais da sé de Évora e do solar de Vila Viçosa, assim como a beleza e elevação do fado de Coimbra ao prestígio da sua catedral, da sua universidade e (talvez ainda mais) aos estudos promovidos pelos religiosos de Santa Cruz.
Não deixa de ser interessante que nunca ninguém se atrevesse a ligar o fado de Lisboa à influência de nenhuma das suas escolas de música — capela real, seminário patriarcal, São Vicente e outras das suas muitas casas religiosas (ou mais tarde o mosteiro da Arrábida ou o convento de Mafra).
A partir da segunda metade do século XVI, começou a prestar-se atenção a novas formas de usar a música, de acordo com as exigências do tempo e imitando experiências bem sucedidas noutros campos e noutros lugares. Pouco a pouco, a música foi conquistando lugar nas festas da corte e mesmo nos divertimentos populares. Até certas manifestações religiosas, por influência da Reforma, foram evoluindo e modernizando-se. O latim começou a ter como companheiro de igual importância a língua materna dos diferentes povos, europeus ou transmarinos.
A música "exigente" dos que a estudavam a sério começou a ter como concorrente outras modalidades, de mais baixo valor técnico e muito inferiores em qualidades estéticas, mas mais simples e mais facilmente assimiladas. Houve até casos em que se aproveitaram melodias populares, aplicando-lhes a letra que se adaptasse à finalidade em vista, o texto julgado conveniente.
Relativamente a Portugal, fala-se com frequência numa festa no Colégio de Santo Antão, promovida por ocasião da visita a Lisboa do nosso rei D. Filipe II (III de Espanha) durante a qual se empregaram quatro línguas diferentes — latim, português, castelhano e tupi.
Neste caso não estava em vista o entendimento, a compreensão dos textos, mas um simbolismo marcante, sendo o tupi representante e símbolo da importância da expansão territorial ultramarina. Fora realizada mais de um século antes, mas o seu prestígio estava ainda então no auge, no apogeu...
Podemos recordar que muitos dos nossos melhores compositores mostraram estar nas boas graças dos monarcas comuns, ao tempo um dos três Filipes, havendo diversos testemunhos de comprometimento político.
Não devemos considerar essa atitude como servil ou antipatriótica, era apenas a aceitação de um estado de coisas que tanto poderia ser agradável como desagradável, com que se concordasse ou de que se discordasse. No nosso tempo, os partidários das ideias oposicionistas não são nem devem ser considerados incongruentes por colaborarem com as autoridades em projectos ou iniciativas de interesse colectivo. João de Freitas Branco declarou isso mesmo quando escreveu que aqueles músicos portugueses do tempo da dominação filipina que, sem qualquer resistência, serviram e preitearam o rei espanhol não cometeram actos de traição e antipatriotismo.
A base da cultura e da instrução musical continuava a ser o canto, embora acompanhado por instrumentos diversos, aqueles que então eram mais correntes entre nós, os autenticamente peninsulares: — violas e alaúdes, clavicórdios e órgãos, harpas e saltérios, trompas e címbalos.
Fabricavam-se quase sempre nas nossas oficinas. Os descobrimentos puseram à disposição dos artífices madeiras melhores para o seu fabrico. Houve artesãos em todas as regiões do País, tanto na capital como na província, Braga ou Coimbra, Elvas ou Silves.
Sabemos que os clavicórdios portugueses eram em regra de pequeno tamanho mas de sonoridade agradável, de "vibrações suavíssimas", na expressão do musicólogo já citado, João de Freitas Branco. A construção de órgãos chegou a atingir certo desenvolvimento e notória perfeição, sobretudo os chamados positivos ou portativos, que têm essa designação por permitirem ser "postos" onde se deseja, por poderem ser "transportados" de um lugar para outro com grande facilidade. Sabe-se serem "de excelente qualidade, ombreando com os de outros países".
Por motivos diversíssimos, quase não chegaram até aos nossos dias modelos dos instrumentos nesse tempo fabricados em Portugal. As crises económicas nacionais fizeram com que a fabricação de instrumentos fosse sendo posta de parte, que se interrompesse; a sua falta e um tanto a pretensão bem lusitana de ser diferente, o defeito inato e característico do exibicionismo nacional levavam a preferir instrumentos importados.
O bom nível das composições para órgão pode induz-nos a concluir que os artistas seus construtores fossem muito hábeis, pois as manifestações produtivas — artífices organeiros, compositores e executantes musicais — quase sempre manifestavam evidente e indissociável paralelismo.
Os bons compositores de música de órgão incentivavam com a sua produção o fabrico de melhores instrumentos. E o fabrico de instrumentos aperfeiçoados levava os músicos a compor melhores obras, mesmo mais extensas, de maior duração.
Tornou-se conhecido o facto de em Portugal se repetirem experiências feitas noutros lugares, de os artistas nacionais imitarem outros, quase sempre estrangeiros, mais criativos e mais audazes do que os nossos compatriotas. Não pode afirmar-se que procediam assim por falta de qualidades, pois muitos dos nossos compositores e executantes manifestaram ser dotados de qualidades excepcionais, nada desprezíveis. O ambiente social, através das diversas manifestações — de religiosidade e de cultura, económicas ou psíquicas, e ainda muitas outras características — imprimiu as respectivas marcas no campo estético, traduzindo realidades locais — da freguesia ou da cidade, da região geográfica ou do País como um todo.
João de Freitas Branco, na sua História da Música Portuguesa, dedicou grande espaço ao Diário de William Beckford em Portugal e Espanha, o que não deixa de ser estranho numa obra de tese, pois se não integra perfeitamente no estudo que fez, tratando-se de curiosidades laterais, sem influência decisiva no que foi a evolução musical portuguesa. Os dados são por vezes interessantes, mas nem por isso deixam de ser marginais em relação à obra, não podendo esquecer que lhes reservou um espaço excepcionalmente longo.
William Beckford nascera em 1760 e veio a falecer em 1844. Tinha vinte e sete anos quando esteve em Portugal pela primeira vez. Era filho de um multimilionário que possuía plantações na Jamaica e se dedicara ao tráfico de escravos.
Segundo João de Freitas Branco, William Beckford era homem de vasta cultura, de grande sensibilidade artística, possuía invulgares qualidades literárias (pois se trata do autor de Vathek), com excepcional talento musical, tanto para o canto como para a execução instrumental, riquíssimo mas de péssima fama quanto aos costumes individuais.
Fazia-se acompanhar de um séquito semelhante ao de um príncipe, tão numeroso e extravagante eram o conjunto dos seus servidores, onde até se incluíam os membros de uma pequena orquestra.
Trouxera consigo rico conjunto de instrumentos musicais, mesmo cravos e pianos muito aperfeiçoados, mas que já não causaram surpresa em Portugal, por haver entre nós modelos semelhantes; depreende-se isso de ele não fazer referência a qualquer forma de espanto ou admiração dos que os contactaram.
Assistindo a uma festa na igreja dos Mártires, em Lisboa, reconheceu que o altar-mor se parecia com um palco e todo o templo com um teatro, não se estranhando muito que aparecessem os heróis ou as divindades pagãs.
A música não lhe agradou, sendo constituída por fragmentos de música de cena, tendo-se aborrecido muito com a cerimónia. Na sua maneira de entender, a música de igreja que se executava nos templos principais da capital portuguesa assemelhava-se "ao som de animadas gigas e de ruidosos minuetes, muito mais próprios para dançar em estabelecimentos termais do que para ordenar os movimentos de um pontífice e dos seus acólitos",
Não é só desta igreja que ele nos fala, pois se refere também à do convento de Mafra, à do mosteiro dos Jerónimos, à Patriarcal, e outras.
Com referência à visita a Mafra, recorda "a confusa matinada" dos sinos das suas torres, os carrilhões que ele diz terem custado centenas de milhar de cruzados, e eram accionados por um grande virtuoso; depois, dentro da igreja, pôde ouvir o som dos seus nada menos de seis órgãos, "todos de enormes proporções", apresentando a cerimónia imponente solenidade.
Informa-nos que se usava em Lisboa, nas grandes comemorações litúrgicas assim como nas festas da aristocracia, música dos maiores compositores de então, mencionando os nome de Jommelli, de Haydn, de Gluck, de Cimarosa, de Mozart, sem esquecer os portugueses David Perez (este na verdade italiano), João de Sousa Carvalho e Jerónimo Francisco de Lima.
Num soleníssimo Ofício de Mortos, de que não dá a justificativa, diz que os altares estavam cobertos de panejamentos de púrpura e oiro, o coro todo forrado de preto, o cadafalso rodeado de círios e de clérigos. A "Missa de Requiem" de Jommelli foi executada com tal emotividade e perfeição que a custo pôde suster as lágrimas, os próprios cantores empalideciam ao executar as passagens mais impressionantes!
Não poderemos deixar de pensar que William Beckford deveria exagerar um tanto! E tenhamos em vista que ele escreveu sobre apontamentos de ocasião, mas passadas algumas dezenas de anos.
Mencionou naquele escrito alguns nomes que se prendem com o panorama musical português e nos ajudam a fazer um roteiro e a compreendê-lo melhor. Conhecia a obra dos nossos mais famosos compositores, mencionando-os em termos que devemos considerar objectivos e até encomiásticos. Refere os nomes de David Perez (italiano residente em Lisboa mas que ele considera português), João de Sousa Carvalho e Jerónimo Francisco de Lima.
Fala-nos de alguns artistas vocais, quase sempre elogiosamente, sem deixar de encarecer o seu próprio mérito como instrumentista e como cantor. Faz referência a uma tal Maria Justina de Mendonça Scarlatti, que nós relacionamos naturalmente com o compositor José Domingos Scarlatti e que, atendendo aos mais de cem anos que teria, se fosse vivo, poderia ser sua neta, talvez mais provavelmente sua bisneta; era solteira e causou-lhe profunda e agradável impressão; informa Freitas Branco que veio a casar, logo a seguir, com um alto funcionário do Ministério do Reino, não dizendo quem fosse.
Sendo bastante novo, era já viúvo e a presença feminina não deixava de o impressionar. Os seus dotes físicos, a sua elegância, a sua cultura e a sua riqueza despertavam o interesse das mais distintas famílias, nobres e burguesas, prontas a recebê-lo, a seduzi-lo e a cativá-lo.
Sabe-se que se encantou com uma filha dos marqueses de Marialva, D. Henriqueta, e a família não deixaria de considerar a hipótese do casamento, pensando nos avultados bens de que parecia dispor, em face do estadão circundante. Mas a atraente menina casou em breve com o "velho duque de Lafões, o mesmo cujo nome ficou ligado à Academia das Ciências".
Refere-se ainda a Policarpo José António da Silva, dizendo que era compositor, instrumentista e executante vocal com voz de tenor, reconhecendo a sua competência em todas as modalidades registadas. Noutro ponto do relato chega mesmo a classificá-lo como "o primeiro cantor da capela da rainha".
Não se esquece de falar de Gregório Filipe Franchi, português de ascendência italiana, ao qual se referiu em carta individual para um seu conhecido como "talvez o maior cravista da Europa", que João de Freitas Branco atribui a "cegueira afectiva" relacionada com a "má fama" que o acompanhava.
Apresenta-nos como grande cantor o cunhado de Luísa Aguiar Todi, marido da também cantora Isabel de Aguiar, Joaquim de Oliveira, que tinha sido pensionista régio na Itália, conjuntamente com Sousa Carvalho, ao tempo reconhecido como um dos mais conceituados artistas que trabalhavam em Lisboa.
Fala-nos de pessoas de quem nada sabemos, como uma tal Luísa de Almeida, e seu mestre, "um fradinho quadrado de olhos verdes". Torna-se quase impossível saber hoje a quem ele se referia, pois essas pessoas não passam para nós de ilustres desconhecidos.
Reporta-se ao violinista e compositor espanhol José Palomino y Quintana e a um certo Rumi (cujo nome completo não podemos definir), ambos componentes destacados da capela real, artistas de primeira ordem, de acordo com a sua apreciação. Não deixa de ser curioso referir algo do seu relacionamento com o compositor e executante já mencionado, Jerónimo Francisco de Lima. Como se entendiam bem e o inglês era recebido com deferência pela alta sociedade, solicitou-lhe que intercedesse para que pagassem melhor os seus serviços artísticos; William Beckford parece nada ter feito, confessando que detestava pedir favores.
Serviu-se, porém, dos conhecimentos de Jerónimo de Lima para recrutar os músicos que deviam abrilhantar uma festa por ele promovida; tudo leva a crer que tudo fosse tratado sobre o signo da confiança recíproca, tendo depois ficado escandalizado com a conta apresentada, fazendo constar que para o futuro desejaria evitar contratos e mesmo a convivência.
A arte custa dinheiro e muito raramente encontramos disposição para o dispender com ela, mesmo entre aqueles que movimentam alto numerário.
Será difícil saber hoje se a conta era exorbitante ou se ele estava convencido de que iria ser servido "como amigo", gratuitamente. A apreciação mais coerente pode levar-nos a pensar que os artistas portugueses não estavam habituados a cachet alto e por isso não cobrariam exorbitâncias! E nós sabemos que Beckford era invulgarmente rico! As duas coisas não se coadunam, pois colidem entre si!
Reporta-se ele por diversas vezes a festas a que assistiu em diversos palácios de nobres e burgueses endinheirados. Numa delas, em casa dos Marialvas, refere-se a um dos filhos da casa, "um adolescente não de todo deselegante, mas desfigurado por um absurdo rabicho". Quer-nos parecer que no tempo não seria coisa de estranhar e muito menos a quem, como ele, estava habituado a correr mundo!
Quanto aos géneros musicais, Beckford menciona ter ficado preso aos encantos das modinhas brasileiras, então muito em voga, emparelhando em aceitação social com os delicados e aristocráticos minuetes. Podemos concluir que eram as duas modalidades mais executadas nos salões da classe alta alfacinha do final de século XVIII, visto que esteve em Lisboa desde as últimas semanas do ano de 1787.
Chega a dizer que, se conseguisse aguentar dois meses de viagem de barco, se deslocaria ao Brasil para viver no berço das deliciosas modinhas, "baloiçando-se em redes e estirando-se em suaves esteiras, na companhia de jovens coroados de jasmins e de moças que a cada gesto derramassem essência de rosas". Podemos aceitar que fosse e gostasse de ser romântico!
Reconhece que os melhores cultores da música eram os membros do clero ou indivíduos relacionados com aquela classe, o que vem reforçar o que já sabemos e que, sem excepção, todos os estudiosos afirmam. Os clérigos desempenhavam-se do encargo das frequentes, longas e solenes cerimónias do culto, e também animavam com música as reuniões mundanas na residência dos nobres presunçosos e dos comerciantes endinheirados.
Ao recordar uma visita ao Jardim Botânico, na zona de Belém, não se esquece de dizer que encontrou ali um bando de animais de pouca idade, do sexo feminino, chamados em português açafatas, algo entre criadas de quarto e damas de honor.
Entre os componentes do grupo contava-se uma linda irlandesa de quinze anos de idade, recentemente casada com um oficial português, que nesse dia fora em peregrinação a Nossa Senhora do Cabo enquanto ela aproveitava para se pavonear com as açafatas e os sopranos que a ensinavam a gorjear e a falar italiano, tendo qualquer coisa de um ser quimérico deslizando ao longo das alamedas, deixando para trás os sopranos e as açafatas, todas extasiadas perante a sua ligeireza...
Não se esqueceu de falar das casas de espectáculos de então, sendo as principais o Teatro do Salitre (construído em 1782 e demolido em 1879) e o Teatro da Rua dos Condes (demolido em 1882) e que ficavam ambos em locais atingidos pela actual Avenida da Liberdade. Menciona um espectáculo a que assistiram o príncipe herdeiro D. José e seu irmão D. João, o futuro monarca D. João VI, que lhe não pareceram muito interessados por manifestações teatrais.
Não deixou de comentar a atitude do intendente Pina Manque, que a custo liberou os seus pianos e reteve, não sabemos por quanto tempo, as caixas de livros e outros papéis. Embora detestasse pedir favores, neste caso aproveitou-se dos seus conhecimentos para que a polícia liberasse os seus caixotões. Parece ter solicitado a influência do marquês de Marialva, do ministro Martinho de Melo e Castro, dirigiu-se mesmo indirectamente ao próprio intendente Pina Manique, estando decidido a recorrer mesmo à rainha D. Maria I para que lhe fossem entregues os seus apreciados livros, as muito desejadas revistas e os valiosos papéis de música.
Na mesma altura em que o inglês William Beckford esteve em Lisboa, pelo ano de 1787, residiu na mesma cidade o embaixador francês Marc-Marie de Bombelles, que também tomou nota de diversas manifestações da vida social, a coincidirem com as daquele, concordantes ou divergentes.
Salienta que Lisboa tinha particular sedução pela comemoração de aniversários. Fala de alguns da rainha D. Maria I e de outros, curiosos ou simplesmente ridículos. Cita a festa comemorativa do natalício de um sobrinho do marquês de Pombal, então o filho de Sebastião José de Carvalho e Melo, celebrado com grande pompa no palácio de seu tio; e passados poucos dias, no mesmo palacete, a memória do primeiro ano de um ridículo acidente de viação sem consequências graves.
O diplomata simpatizava pouco com o marquês e sua família. Não deixou de dizer que a marquesa chacoteava como um pato e depois de andar três anos pela Europa, Inglaterra, Alemanha e França, tinha maneiras ainda mais desagradavelmente portuguesas do que as cunhadas, que nunca haviam saído do País.
Numa festa de aniversário da soberana anotou que sua esposa impressionara favoravelmente a família real por ter apresentado cumprimentos em língua portuguesa, declarando que ele o não faria porque o obrigaria depois a falar sempre o idioma local, em detrimento da língua francesa.
Noutro aniversário da monarca foram feitos os casamentos de trinta e uma órfãs que o erário público dotara, destinando-as a povoar uma vila algarvia, sem dizer qual fosse. Realizou-se também o baptismo de um preto e de uma preta, a que se seguiu ligeira refeição de cerca de um quarto de hora, e um concerto musical em outro salão, após o qual todo o corpo diplomático se dirigiu apressadamente para o baile e ceia (servida em mesas pequenas) oferecidos pelo agente da Suécia.
Num concerto musical realizado no solar do marquês de Penalva, salienta que duas condessas e uma marquesa cantaram muito bem, os músicos acompanhantes eram excelentes e nunca ouvira música mais bem executada do que em Lisboa.
Não deixa, no entanto, de atirar umas farpas ao dizer que em Portugal era costume convidar umas dezenas de amigos só para os fazer ouvir a mulher, as sobrinhas, as primas, e quanto mais desafinadamente melhor...
Não deixa de mencionar o atraso lusitano ao dizer que no país as ciências eram em geral muito negligenciadas e a música representava papel mais mundano do que cultural.
Fala da cerimónia religiosa de Sexta-Feira Santa, mas pelo que diz enganou-se redondamente, pois o relato coincide com o que deveria fazer-se na vigília pascal, portanto Sábado Santo, vulgarmente designado por Sábado de Aleluia.
Explana considerações a propósito e despropósito das cerimónias religiosas, dizendo que em Portugal o autêntico Carnaval se prolonga pela Quaresma e tem o seu auge na Semana Santa... Embora o não diga, deverá com isso criticar alguma das devoções ou actos de culto que pôde presenciar em Lisboa.
Os ofícios litúrgicos eram demasiado morosos e cansativos, sem que a devoção pudesse ser satisfeita, porque se tratava muito mais de espectáculos do que de orações dirigidas ao Senhor.
Se dissecarmos o seu depoimento, encontraremos nele a seu respeito algo que pode comparar-se aos hábitos portugueses. Numa festa de Natal, à meia-noite, o mais ruivo e mais sujo dos capuchinhos disse-nos as três missas na minha capela, iluminada com requinte; durante a terceira missa, ouvimos umas encantadoras melodias de Natal, tocadas por um bom violino, acompanhado ao piano. Três missas era um exagero; e o capuchinho sujo deve ter sido convidado por ele!
Falando da festa promovida pela Irmandade de Santa Cecília, que era uma associação de músicos, afirma que para ser admitido nela era preciso ser bom sinfonista ou bom cantor e a música que nela se ouviu era de muito bom nível.
Noutro caso, ouvira música de um compositor italiano radicado em Lisboa, que ele considerava português, David Perez, reconhecendo ser de qualidade e alguns trechos lhe proporcionaram grande satisfação, merecendo ainda melhores cantores do que os actuantes. E de outra vez refere um Te Deum de um jovem compositor português que se não digna identificar, reconhecendo que honrava o talento do seu autor.
Num dia final de ano, exactamente em 31 de Dezembro de 1786, assistiu ao Te Deum de acção de graças pelos benefícios concedidos por Deus à nação portuguesa ao longo dos últimos doze meses, sem deixar de dizer, irónica ou sarcasticamente, se um deles não seria a morte do imbecil rei, cujas tolas fantasias a rainha respeitava demasiado.
Aproveita para dizer que a música era muito boa mas muito cara, custando mais de cem mil écus por ano e por uma soma tão considerável seria possível ter muito melhor ainda.
Numa audição do Stabat Mater do já famoso Pergolesi (identificando-o desta vez), reconheceu que foi executado tanto pelas vozes como pelos instrumentos com uma perfeição rara.
E em outra ocasião e noutro ambiente encontrou uma rapariga brasileira que tocou um concerto de flauta com tão surpreendente afinação quanto seguro gosto. Quem seria? Por certo a filha de algum burguês endinheirado e pretencioso!
Nessa mesma festa, em casa de um rico comerciante português, o Senhor Pessoa, constatou que outras mulheres da sociedade da dona da casa cantaram árias italianas e deram-lhe mais prazer do que o que se sentiria ao ouvir cantoras de profissão da corte ou da patriarcal,
Naquele tempo, o pessoal das embaixadas era apreciador de boa música e congregava elementos que a conheciam e praticavam.
O embaixador de Espanha, na sua opinião, era bom músico e, depois dos jantares de gala, retinha os convivas para a ouvirem. A esposa do representante diplomático inglês era bonita, tocava cravo muito bem e dançava com graça insuperável; até diz que foi vendo-a dançar que o marido se enamorou dela. E menciona mesmo uma festa que ele próprio promoveu, durante a qual se ouviu boa música, se assistiu a uma representação teatral, se realizou um concerto sinfónico, houve baile nas alamedas dos jardins, teve ceia seguida por novo baile, mais elegante e sofisticado do que o anterior, o dos jardins, tendo acabado a horas tardias, já depois das quatro da madrugada. Concluía que valeu a pena, pelo seu êxito compensou amplamente dos trabalhos dos preparativos.
João de Freitas Branco termina com este saboroso comentário: — Bem vistas as coisas, estes diplomatas não levavam uma vida muito diferente da dos seus colegas de hoje !
REFORMA RELIGIOSA E RECONQUISTA
A reconquista cristã da Península Ibérica ficou devendo muito ao esforço de guerreiros estranhos a estas terras, quanto à sua origem. Afluíram aqui combatentes do centro e norte da Europa. Os países que ficavam próximos sentiram mais fortemente a atracção bélica. Esta luta interessou muito os senhores feudais da Gália.
Os gauleses desempenharam um papel preponderante. Foram inúmeros os aventureiros que se deslocaram para as Espanhas. Se bastantes tinham em vista apenas feitos guerreiros, a conquista de honra e glória, muitos outros alimentavam objectivos um tanto mais elevados, interessavam-se pelo combate aos infiéis e a consequente difusão da cristandade.
Foi grande a influência exercida pelas congregações religiosas. As mais importantes famílias monásticas projectaram-se desde muito cedo nas terras ibéricas. Merecem destaque muito especial os dois mais conhecidos ramos beneditinos, objecto de esperançosa reforma, o de Cister e o de Cluny.
Fundaram-se bastantes conventos e mosteiros; também não foram poucos os que, vindo de trás, empreenderam a alteração estrutural da sua disciplina, modificação dos costumes e modos de viver, dentro dos claustros.
Houve prelados de origem gaulesa nas mais importantes dioceses de Portugal. Vieram também da Gália os dirigentes mais notáveis das congregações aqui estabelecidas, sobretudo quando se tratava das que adoptaram as novas normas, das que optaram pela modernização, pela reforma das antigas e relaxadas regras.
A reforma de Cister é cerca de um século anterior à cluniacense, prolongando-se no tempo em sobreposição com ela; teve como principal instigador o conhecido Doutor da Igreja, S. Bernardo de Claraval, embora não tenha sido ele quem a iniciou.
A reforma de Cluny ficou-se devendo também a vários indivíduos, sendo o mais conhecido deles S. Hugo de Borgonha, o Grande Prior, (ao lado de S. Odão, S. Odilão e S .Maior). Pode dizer-se que ainda hoje sentimos a sua influência, pois foram os cluniacenses que vulgarizaram a devoção às almas do Purgatório, sendo S. Odilão quem teve a ideia de as lembrar mais notoriamente a 2 de Novembro. Não deixa de ser um exemplo convincente!
Nós, portugueses, não podemos esquecer que S. Hugo e o Conde D. Henrique eram próximos parentes e de idade que se não distanciava muito. Prende-se-lhes de forma bem notória o complicado processo da independência nacional.
Para a colonização e povoamento de vastas regiões geográficas portuguesas, foi largamente utilizada a capacidade de adaptação e o poder de iniciativa dos colonos francos e de outras origens, em grande parte dos casos a entroncar nalguma das oito mais importantes cruzadas orientais. A toponímia lusitana dá-nos disso indicações valiosas, indícios que não podem ser menosprezados.
O período anterior à fundação e estruturação do Condado Portucalense costuma ser designado por período hispânico, por período visigótico ou então por período moçárabe.
Relativamente à música, são muito raros os documentos de que dispomos, e isso tanto em relação à música sacra como à música profana. Tendo em conta a sua raridade, pode concluir-se que, na prática, é como que não existam, poucos dispõem deles e poucas vezes são utilizados.
Tinham decorrido mais de quinhentos anos sobre o final da romanização. Pouco se conhece quanto ao tipo de música em voga; carecemos de bases para sobre elas levantarmos hipóteses, assim como carecemos de manuscritos que permitam avaliar o mérito, a perfeição da música então executada, de peças que nos sirvam de exemplo e modelo. Vários factores contribuíram para que assim acontecesse.
Sabemos, todavia, haver uma tradição musical de longos séculos. Acontece isso em todos os casos de civilização remota e prolongada; acontece de forma idêntica mesmo com povos mais recentemente integrados em costumes que consideramos avançados. actuais, civilizados. A música, tanto a vocal como a instrumental, acompanhou sempre o homem ao longo de toda a sua extensa peregrinação histórica.
Nem sempre é possível documentar factos indubitáveis. A humanidade sempre se interessou pouco por conservar memória dos factos que em cada momento ocorrem.
Podemos encontrar resquícios da actividade musical no período hispânico, por exemplo nalguns desenhos feitos sobre vasos gregos ou nos mosaicos que os romanos tanto apreciavam.
Mas eles mais nos esclarecem sobre os costumes das regiões em que foram produzidos e de onde provieram do que das terras onde foram encontrados, pois se trata muitas vezes de objectos de importação.
Podemos admitir que o período abrangido pela vigência do Condado Portucalense a maior influência corresponde à da vergôntea beneditina que teve a sua raiz em Cluny. A coincidência exacta de datas não pode verificar-se, evidentemente, pois se trata de acções distintas e com objectivos muito diversos, mas que têm entre si alguma afinidade.
A acção da reforma cisterciense começara antes e prolongou-se durante bastante tempo e até teve a sobrepor-se-lhe a sua similar, a reforma cluniacense. Os monges beneditinos de Cluny radicaram-se sobretudo na região de Entre-Douro-e-Minho, ao passo que os frades beneditinos de Cister exerceram a sua principal acção na zona central do País, pouco antes reconquistada aos mouros, Beiras, Estremadura e Alentejo.
Depois que D. Afonso Henriques proclamou a independência de Portugal, tornou-se mais notada a influência dos religiosos de Cister. Embora não renegasse as suas origens, o que está de acordo com a mentalidade feudal e os hábitos da nobreza do seu tempo, e até se orgulhasse do seu parentesco com os Duques de Borgonha e o Grande Prior, S. Hugo, teve a necessidade e viu a vantagem de apoiar-se mais sobre o influência dos monges cistercienses, de regra mais exigente e mais austera, talvez mais adaptada às necessidades da ocasião, e também porque lhe convinha fazer política diferente da anterior, que lhe desse maior espaço e permitisse mais amplos movimentos.
A maior ou menor aceitação que determinado ramo monástico ia encontrando entre nós, por parte dos nossos reis, estava dependente de diversos outros factores, de vários outros interesses, mesmo de outras necessidades. Os estudiosos, contudo, não deixam de registar que começou a declinar o prestígio cluniacense e a crescer de forma bem visível a influência cisterciense.
Tem também certo interesse notar que em outras casas religiosas que seguiam regra distinta da beneditina, como por exemplo a Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, de Santa Cruz de Coimbra e São Vicente de Fora de Lisboa, foram adoptados princípios que lhes eram próprios, de maneira discreta ou mesmo abertamente, reconhecendo as suas vantagens e a sua actualidade. Não deixavam de reconhecer que as inovações introduzidas eram oportunas e que a actualização dos modos de viver e praticar a religião, mesmo no silêncio dos claustros, se tornara premente e mesmo inadiável.
Nos conventos e mosteiros do norte de Portugal, a maior parte deles da regra beneditina, embora houvesse bastantes casas que tinham patronos diferentes de S. Bento, sentia-se haver maior apreço pela arte musical do que nos que iam sendo erigidos na parte sul do território, mais recentes e em que se registava a nítida influência das agremiações castrenses, as Ordens Monástico-Militares.
Resumindo, podemos dizer que os padres e frades cultivavam a música com maior interesse do que os seus correspondentes monges guerreiros, pois estes pensavam sobretudo em acções bélicas, no povoamento e aproveitamento útil das regiões ocupadas.
Embora um tanto menos do que os membros masculinos das congregações, também as religiosas de muitos mosteiros e de quase todos os conventos mostraram interessar-se bastante pela prática da música. No acervo de que os estudiosos dispõem encontram-se provas de assim ter acontecido.
Os clérigos dedicavam-se mais a cultivar a música religiosa, evidentemente, sobretudo o designado cantochão, nas suas principais características, o estilo gregoriano, o estilo ambrosiano (que pouco se vulgarizou entre nós) e o estilo moçárabe, o mais comum devido à convivência forçada de cristãos e sarracenos durante vários séculos em dilatadas regiões ibéricas.
O estilo ambrosiano assim como o moçárabe nada mais eram do que a deturpação do canto gregoriano — aquele enfeitando-o e enriquecendo-o de melismas e este aligeirando a harmonia, simplificando a melodia.
Ao lado do cantochão, nos moldes gregorianos ou nos desvios moçárabes, apresentava-se ainda a música popular local, que nele se inspirava, quase sempre mais simples, menos perfeita, por vezes com clara indumentária de rua, com autêntico sabor profano. As autoridades eclesiásticas toleravam-na quando não vissem inconveniente nisso, condenavam-na e afastavam-na quando os abusos já eram grandes e numerosos, quando os seus defeitos eram exagerados e portanto inaceitáveis. Na História da Música, ao longo dos séculos, encontramos outros exemplos semelhantes.
Considerando os autores que em Portugal escreveram livros de música ou os editaram, nos séculos passados, até ao século XIX, podemos mencionar os seguintes:
André de Escobar
— Arte de música para tanger o instrumento da charamelinha
Agostinho da Cruz (Frei)
— Lira de arco ou arte de tanger rabeca.
— Prado musical para órgão.
— Duas artes, uma de cantochão por estilo novo e outra de órgão com figuras muito curiosas.
António de Abreu
— Escuela para tocar con perfeccion guitarra de cinco y seis ordenes.
António Fernandes
— Arte de música, de canto de órgão e de cantochão e proporções de música divididas harmonicamente.
—Teoria do manicórdio e a sua explicação.
António Florêncio Sarmento
— Princípios elementares da música destinados para as lições da aula da cadeira de música da Universidade de Coimbra.
António da Silva Leite
— Estudo da guitarra em que se expõe o método mais fácil para aprender este instrumento.
Diogo de Alvarado
— Flores de música para instrumentos de tecla e harpa.
Domingos do Rosário (Frei)
— Teatro eclesiástico.
Domingos de S. José (Frei)
— Compêndio de música teórica e prática.
Francisco Inácio Solano
— Novo tratado da música métrica e rítmica, o qual ensina a acompanhar no cravo, órgão ou outro qualquer instrumento, em que se possam regular todas as espécies de que se compõe a harmonia da mesma música.
Gregório Silvestre de Mesa
— A arte de escrever por cifra.
João Rodrigues (Frei)
— Uma arte de música de reformação e perfeição do cantochão e de toda a música cantada e tangida.
José Maurício
— Método de música.
Luís de Milán
— El Maestro.
Manuel Nunes da Silva
— Arte mínima que com semibreve prolação trata em tempo breve os modos da máxima & longa ciência da música.
Manuel Rodrigues Coelho
— Prólogo da obra [Flores de música] aos tangedores e professores do instrumento de tecla.
— Advertências particulares para se tangerem estas obras com perfeição.
Pedro Thalésio
— Arte de canto chão.
Rodrigo Ferreira da Costa
— Princípios de música ou exposição metódica das doutrinas da sua composição e execução.
Tomás Pereira
— Tratado de música prática e especulativa.
Índice Onomástico e Cronológico