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Martins dos Santos 
 
 
 
 
 
LADO A LADO
(Textos autobiográficos)
 
 
 
 
 
 
 
  Braga - 1998

 
 
ÍNDICE
 
  • José Martins dos Santos
  • Patrocínia Gonçalves
  • Em Portugal
  • Em Angola
  • Descolonização
  • No Brasil
  • Novas condições de vida
  •  
     
     
     
     

    José Martins dos Santos
     

    Sou natural da aldeia de Pêra do Moço, sede da freguesia de igual nome, no distrito e concelho da Guarda. A região carece de interesse artístico ou folclórico. Nunca aqui residiram famílias fidalgas, pelo que não há casas apalaçadas; quanto a monumentos ou imóveis de interesse público, apenas merece referência um dólmen localizado nas proximidades, dentro dos seus limites geográficos. Em relação ao folclore, esta região é de uma pobreza impressionante.

    Nasci no primeiro ano do segundo quartel do século XX. No momento, a família doméstica contava seis pessoas. Chamo-lhe assim porque a minha família próxima, no espaço geográfico, contava mais três, que representavam papel similar ao das primeiras, pois os laços de parentesco eram praticamente idênticos.

    A família que eu chamo doméstica, porque vivíamos na mesma casa, era constituída por meus pais, António dos Santos e Matilde da Purificação, por meu irmão Joaquim, que estava perto de completar cinco anos, por meus avós paternos, Domingos dos Santos e Ana Marques, e por um tio-avô paterno-paterno, José dos Santos, ao tempo com mais de setenta e cinco invernos e que faleceu passados cinco anos. Depois de mim, nasceu outro irmão, Manuel; presentemente, em Julho de 1996, só nós dois pertencemos ao número dos vivos.

    As três pessoas acima mencionadas eram os meus tios maternos, Piedade, Ascensão e António, que desempenharam junto de nós atribuições educativas nada inferiores aos restantes, e nos dedicaram testemunhos de amor que também lhes correspondiam, e muito particularmente as mulheres.

    Todas as famílias têm algo que as caracteriza e a minha não constituía excepção. O meu tio-avô José era cego; perdera a visão já adulto, com vinte ou vinte e um anos, devido a um ataque de varíola que, segundo dizia meu avô Domingos, tinha morto dois dos seus irmãos. Menciono o pormenor porque eles tinham pelo menos dois irmãos do segundo casamento de meu bisavô Manuel dos Santos. A sua primeira mulher, portanto minha bisavó, chamara-se Máxima Maria e era natural da Menoita, uma anexa da mesma freguesia.

    Havia ainda na minha família outra pessoa defeituosa física, meu pai. Tinha sofrido, quando muito criança, com quinze meses de idade, um ataque de paralisia infantil que lhe diminuiu consideravelmente a capacidade de movimento da perna esquerda e um pouco do braço desse lado.

    Sabemos hoje, pela descrição que ouvimos e pelas consequências que pudemos verificar, tratar-se com toda a probabilidade de paralisia infantil, pois meu avô sempre disse que tinha sido "apanhado por uns ares" e tratado com massagens e banhos, caseiros e termais; quanto a estes, ouvi referir Alcafache, Cró e Manteigas. Deduzo disso que, dadas as condições do tempo e da família, o tratamento não foi descurado de todo, não pondo a hipótese de se tratar de doença incurável.

    Posso referir que meus avós paternos tiveram mais seis filhos, que morreram muito crianças, pela primeira e segunda infâncias, todos eles escorreitos.

    Referi-me a três tios maternos que me acompanharam nos primeiros tempos de vida. Falo assim porque, pouco antes de eu completar dez anos, o tio António e a tia Ascensão, então já casados, resolveram deslocar-se para o Brasil, onde estavam os restantes quatro irmãos -- Manuel, Maria Teresa, José e Joaquim. Os dois primeiros nunca os conheci; os dois últimos vim a conhecê-los quando eu andava já a rondar os cinquenta anos, nas condições que a seu tempo mencionarei.

    O tio António faleceu meia dúzia de anos depois, deixando cinco filhos, e a tia Ascensão faleceu estando perto de completar seis decénios de residência no Brasil, na cidade de São Paulo. Andava pelos noventa e cinco anos de idade. Veio uma vez a Portugal; os irmãos nunca mais voltaram. A minha mãe (assim como meu pai) e a tia Piedade faleceram em Pêra do Moço.

    Cultivavam-se entre nós as amizades baseadas no parentesco. Considerávamos família próxima [era assim que a designávamos] os tios-avós paternos e seus filhos: — o tio Jerónimo e filho (Joaquim), a tia Teresa e filho (Luís), que conheci já viúvos, e os netos da tia Maria Máxima, que já não conheci assim como não conheci o marido (Diogo) nem o filho (José Diogo). Todos morreram cedo.

    Tanto quanto posso garantir, os meus tios-avós maternos viviam no Jarmelo, quase todos numa pequena aldeia chamada Montes. Como a povoação ficava a alguma distância [dizia-se que uma légua], eu não os conheci pessoalmente. Por isso não posso dizer sequer como se chamavam e nem se eram vivos ou já tinham falecido.

    Recordo que, sendo muito pequeno, estive uma vez em casa da tia Catarina [no falar comum diziam, como Luís de Camões, ti-Caterina] e tenho dela a lembrança de que, não tendo filhos, fez testamento e deixou os seus parcos haveres aos sobrinhos que residissem em Portugal, em quinhões iguais. Quando faleceu o seu viúvo, que ficara com o usufruto, alguns parentes pretendiam que o tio António e a tia Ascensão, ao tempo já no Brasil, não recebessem a herança; mas, como ainda estavam em Portugal quando a tia faleceu, acabaram por receber aquilo a que tinham direito. Lembro que meu pai, também herdeiro, foi o seu mais decidido defensor. Entre os meus ascendentes paternos (não conheci os maternos) notou-se sempre acendrado sentido de justiça.

    Os meus avós maternos morreram ambos antes de eu ter nascido. A avó Maria Matilde deve ter falecido mais de trinta anos antes do meu nascimento; o avô Joaquim da Silva Cairrão morreu uns três ou quatro, talvez meia dúzia de anos antes de eu nascer. Soube que a causa da morte foi um ataque de asma, que o sufocou. Era irmão da minha avó Ana Marques. Logo, meu pai e minha mãe eram primos coirmãos.

    Não posso deixar de falar, e de forma muito especial, nos meus tios-avós maternos-maternos. Sei que eram dois, mas eu só conheci um, Joaquim Martins, casado com Emília Costa, que foram os meus padrinhos de Baptismo; residiam com sua filha única, Maria da Trindade Costa, numa interessante propriedade agrícola situada a meio caminho entre Alvendre e Avelãs de Ambom, a Quinta da Granja.

    Outra família residia aqui, uma irmã da madrinha Emília, dona de cerca de metade da propriedade, com o marido e dois filhos, Maria da Conceição e José; este casou cedo e emigrou para o Brasil.

    Passei ali bons tempos da minha infância. Gostava muito dessas temporadas, pois era tratado com mais mimo ainda do que em casa de meus pais. Eu era para aqueles bons amigos o meu Menino Jesus onde te porei. O padrinho era o que aparentava ser mais exigente, mas na verdade tinha ali seis amigos que se desfaziam em gentilezas e agrados. E eu a lucrar com isso!

    A Maria da Trindade manifestou sempre de maneira indubitável a grande amizade que nos dedicava; quando se sentiu perto da morte, fez-nos herdeiros de boa parte dos seus bens, a mim e aos meus irmãos.

    Também na minha aldeia era alvo de muita dedicação. Tinha entrada franca num bom número de residências, todas as dos meus parentes, todas onde houvesse crianças da minha idade, e as dos numerosos amigos de meus pais e avós. Entrava em todas essas casas com o à-vontade com que entrava na nossa e nas de minhas tias e do meu tio.

    Diga-se que o tio António e a tia Ascensão casaram quando eu era ainda muito pequeno; entraram desta forma no agregado familiar os tios Manuel Marques e Maria Pires. Partiram juntos para o Brasil, em Maio de 1936. Esta última é, no momento, a única sobrevivente.

    O ambiente da minha família era marcado pela austeridade. Tinha-se em grande conta o bom nome, a boa fama; respeitavam-se escrupulosamente os direitos alheios, tendo a preocupação de não prejudicar ninguém; havia mesmo a clara intenção de ajudar — nos trabalhos agrícolas, com o apoio monetário, com o auxílio alimentar.

    Viveram-se nesses tempos anos de dificuldade — más colheitas agrícolas, Guerra da Espanha, Guerra Mundial. Pelos meses de Abril, Maio e Junho, em muitas famílias acabavam-se as reservas de mantimentos, que consistiam sobretudo em batatas e centeio. Não possuíam capacidade económica para comprarem aquilo de que tinham absoluta necessidade. Não era motivo de admiração que alguém pedisse emprestados uns cestos de batatas ou uns alqueires de centeio para alimentar a família. Meu avô Domingos dispunha sempre de algumas reservas para emprestar, recebendo igual peso ou volume por ocasião da colheita. Havia outros proprietários abastados que procediam de forma igual ou idêntica; era palpável o espírito de solidariedade.

    Vendo a atitude a mais de meio século de distância, não será despropositado dizer que entregava a mercadoria em tempo de carestia e a recebia em ocasião de abundância, portanto, de menor valia. Lembro o comentário que frequentemente fazia: — Quando se empresta dinheiro (o que fazia muitas vezes) recebe-se igual valor; quando se emprestam géneros recebem-se de menos valor e pior qualidade. Mas isso nunca o fez mudar de atitude. Os menos favorecidos, os mais pobres, precisavam de se alimentar. A mentalidade católica e o sentimento humano fomentavam a fraternidade, a comparticipação nas dificuldades.

    Reconheceu isto, em voz alta, o coveiro que o sepultou; pedia que Deus lhe desse o eterno descanso e pagasse o bem feito, pois muitas vezes lhe tinha matado a fome! Pessoa simples, rude, mas agradecida! Desconhecia o que é o orgulho!

    Tenho de reconhecer que, na minha família, a autoridade efectiva foi exercida por meu avô e um tanto também por minha avó; meus pais ocuparam sempre um lugar menos destacado do que meus avós, que só por causa da idade e das doenças deixaram aos mais novos o poder de decisão. Tenho de reconhecer que minha mãe era muito tímida e deixava aos outros o encargo de resolver problemas e tomar atitudes; sofreu de uma doença que proporcionou tal situação; primeiramente, quem resolvia era a tia e sogra, e depois passou a ser respeitada e seguida a opinião da irmã Piedade.

    Meu pai, que era filho de família com alguns recursos, viveu sempre na sua casa, sem necessidade de sair dela. Não aconteceu a mesma coisa com minha mãe e seus irmãos, que precisaram de ajudar na manutenção da família desde muito cedo. As condições agravaram-se ainda com o falecimento prematuro da mãe comum, minha avó Maria Matilde. Direi, como exemplo elucidativo, que o tio António foi criado em casa de seu tio e meu avô Domingos e minha mãe foi para casa dos seus padrinhos de Baptismo (não interessa agora dizer quem eram) onde acabou de se criar a troco de pequenos serviços que em tenra idade poderia prestar, certamente a tomar conta de outras crianças, segundo era costume nesse tempo. Depois de crescida, foi prestar serviço doméstico em várias casas.

    Contava que trabalhara na Quinta do Ferrinho, nos arrabaldes da Guarda, e nas residências da família Sacadura e do P. Carlos da Paixão Borrego, da mesma cidade, fazendo boas referências a todos os seus patrões.

    A forma de chamar as pessoas, quer dizer, a maneira de as identificar, tinha características muito próprias, não havendo relutância em salientar as particularidades de cada um, mesmo deficiências físicas. O meu tio-avô era conhecido por José Cego e o meu pai designado por António Coxo (Coixo, na pronúncia regional). Embora não muito frequentes, não deixava de haver alcunhas, por vezes incisivas.

    Era corrente a união de dois nomes pessoais para indicar um habitante. Eu mesmo era chamado José Domingos (passando-se o mesmo com os meus irmãos), juntando o meu nome ao do meu avô. O meu irmão deixou de ter o nome de Joaquim Domingos quando casou, passando a ser chamado Joaquim da Cândida (nome de minha cunhada).

    Ao longo de toda a vida, fui identificado deste modo: -- José Domingos, em novo e na minha região; Martins, enquanto estudante; Professor Martins, tanto em Gouveia como Benespera e Tortosendo; Martins dos Santos, em Luanda, por ser o nome que usava nos meus escritos; Senhor José, no Brasil; e ultimamente tenho ouvido que me tratam por Senhor Santos, aqui em Braga, onde me encontro agora. Se a iniciativa e a culpa fossem minhas, bem merecia ser condenado pelo crime de "falsa identidade".

    Afirmei atrás que a minha família tinha em grande conta o bom nome, a reputação. Outra característica era a profunda religiosidade que ali se vivia. Minha mãe assistia à missa quase todos os dias e comungava ainda mais frequentemente, podendo dizer-se o mesmo da tia Piedade; os restantes membros também eram habituais nos actos do culto, nomeadamente na reza do terço, diariamente, na igreja matriz, que nos ficava mesmo em frente, e ainda outro em casa, durante o serão do inverno.

    Nos meses frios, tínhamos o aquecimento fornecido por grande fogueira, na lareira da cozinha, onde se reunia a família e até os visitantes e amigos. Ali comíamos as refeições, tanto nós como os trabalhadores que connosco colaboravam.

    Nas longas seroadas, de Novembro a Março, quando a conversa se esgotava, havia o recurso da leitura, de que quase sempre eu me encarregava (antes tinha sido meu irmão mais velho). Liam-se livros de fundo religioso, gozando preferência muito especial a "História Bíblica" de um famoso prelado brasileiro, D.António Macedo da Costa, bispo da diocese do Pará, figura que algumas dezenas de anos mais tarde vim a conhecer e a apreciar melhor. Tenho a certeza de ter sido este o primeiro livro que eu li. Teve várias edições, tanto no Brasil como em Portugal.

    Mas as nossas leituras de inverno não punham de parte as obras de ficção, os romances, de diversos autores. Lia-se o que aparecia, pois se recorria muito a livros emprestados pelos conhecidos, algumas vezes até de aldeias vizinhas, pois éramos todos amigos. Pode afirmar-se que era geral o apreço pela leitura em toda a região.

    A propósito, informarei que foi criada na minha aldeia uma escola primária, nos últimos anos de vigência da Monarquia; deduzo isso do que ouvia dizer a meu pai, que se orgulhava de ter sido o primeiro aluno da freguesia a prestar provas no exame de instrução primária — era assim que ele sempre se referia a este ensino. Falava do seu professor com grande apreço e simpatia. Dizia que, quando fez o exame, contava aproximadamente quinze anos de idade.

    Guardava cuidadosamente boa parte dos seus livros escolares e também os que serviram para meu tio António, que igualmente frequentou a escola. O seu conteúdo não desmerecia, eram muito bem elaborados.

    Conservava parte do seu estojo de desenho, por exemplo um lindo compasso de latão, objecto que no meu tempo só servia para os anos seguintes, no desenho geométrico. Se o tinha, deveria ter sido usado! Aqueles tempos não comportavam desperdícios!

    Aproveito para dizer que anteriormente tinha funcionado ali uma escola, mas com pouco aproveitamento. Residiu outrora na aldeia um sacerdote muito velhinho que servia de coadjutor ao pároco; era o P. Agostinho, conhecido pela denominação de Padre Mestre, sinal de que se ocupou no ensino. Refiro isto recordando coisas que o avô Domingos relatava, como óptimo conversador que era. Ele mesmo começara a aprender a ler, embora não conseguisse a alfabetização mais rudimentar.

    Sei também, por referências acidentais, que trabalhou ali uma professora; amimava muito meu pai, quando criança, chegando a levá-lo consigo em tempo de férias.

    Residia em casa contígua à de meu avô, que mais tarde a adquiriu e as unificou (ali nasci eu e três dos meus filhos); quando meu pai faleceu tornou a separar-se, tendo a parte primitiva passado a ser minha propriedade.

    Quanto a divertimentos, haveria muito a dizer, mas também se pode resumir a pouca coisa. A criançada tinha os seus jogos e brinquedos, em regra movimentados, que variavam segundo a época do ano. Muitos deles são os que ainda hoje interessam as nossas crianças. Os jovens solteiros praticavam os jogos tradicionais mistos, que despertavam maior interesse, e os rapazes também se divertiam fazendo "rondas", que eram deslocações pelas ruas, tocando os seus instrumentos e cantando quadras conhecidas ou improvisadas.

    Gostando embora de música, nunca aprendi a tocar qualquer instrumento, nunca me atrevi a cantar nessas rondas, e nunca consegui aprender a dançar. Daqui se conclui que a minha capacidade artística era bastante limitada. E posso informar que isso ocorreu também com meus irmãos.

    A freguesia é constituída pela sua sede, Pêra do Moço, Martianes e Guilhafonso, para nordeste, Verdugal, Rapoula e Menoita (com o pequeno aglomerado Amial) para o sul e sudoeste.

    Falávamos dos divertimentos praticados pelos adolescentes e jovens. Vamos referir neste ponto algo sobre as festas religiosas, que constituíam uma diversão muito especial. Não havia a tradição de festas anuais inadiáveis e inalteráveis, embora cada uma das aldeias tivesse a sua devoção específica.

    Em Guilhafonso festejava-se Santo António; em Martianes fazia-se a festa de Nossa Senhora das Necessidades; em Verdugal, honrava-se Jesus Cristo, sob a denominação pouco exacta de São Salvador; na Rapoula, São Marcos; e na Menoita, Santa Bárbara. Em Pêra do Moço honrava-se São Sebastião, não no seu dia próprio, 20 de Janeiro, mas no terceiro domingo de Maio; cremos que as condições atmosféricas estavam na base desta alteração; a festa era realizada só de anos a anos. Todavia, o padroeiro da paróquia é São João Baptista, lembrado no dia 24 de Junho.

    A minha família fazia-se representar sempre na festa de S. Marcos, pois o meu padrinho do Crisma residia na povoação respectiva, Rapoula. Não assistirem alguns membros da família, sobretudo os afilhados, eu e o meu irmão Manuel, seria desconsideração. Uma vez fui escalado, como habitualmente, para assistir; pus a condição de me comprarem fato novo, pois o antigo estava já pouco decente e muito velho; como não fui atendido, deixei de ir à festa. Hoje penso que foi a primeira manifestação do pouco apreço pelas festividades, quaisquer que elas sejam, que em toda a vida me caracterizou.

    O Natal, provavelmente devido ao clima, era festejado com pouco brilho externo. A Páscoa tinha uma celebração mais primorosa, talvez por ocorrer sempre em plena Primavera.

    Todavia, a grande festa da família era a matança do porco. Na nossa casa realizava-se sempre durante o mês de Janeiro, o mais frio do ano. Dava ocasião para que as famílias e algumas vezes os amigos pudessem confraternizar, num ambiente de sincera estima.

    O Entrudo, designação dada ao Carnaval, praticamente não tinha significado. Limitava-se a visitas familiares e de amigos, iniciadas ao fim da tarde e que se estendiam pela noite fora, terminando sempre ao aproximar-se a meia-noite. Saía-se de uma casa, onde se petiscara e bebericara, para entrar logo noutra, repetindo o que se fazia em todas...

    Naquela região havia a tradição de representações teatrais. A programação do espectáculo era feita com intervalos muito grandes entre os actos, de forma que viesse a terminar já bem perto do amanhecer; havia a preocupação de preencher a noite quase toda. Assisti a estas funções em Guilhafonso, Verdugal, Rapoula e Menoita, para só falar da minha freguesia. Presenciei-as em muitas outras aldeias.

    A população activa desta região ocupava-se, exclusivamente, na agricultura e na pecuária. Gastei nisso os primeiros anos da minha vida, pois meus avós e depois meus pais cultivavam campos cuja extensão era considerável para os parâmetros locais e estou convencido de que não pensavam que viéssemos a exercer outra actividade. Pela minha parte, sou obrigado a confessar que nunca me seduziu este modo de vida.

    Também quero dizer, a propósito, que, quando fiz o exame da quarta classe, a minha professora informou meu pai que eu poderia ter êxito nos estudos, tendo igual opinião o pároco da freguesia, chegando a sugerir o meu ingresso no seminário diocesano, mas a ideia não foi aceite pela família; só se via jeito numa dinastia de agricultores.

    O meu interesse prendia-se já então aos livros, que devorava incansavelmente, gastando na sua compra o pouco dinheiro de que podia dispor; até mandava vir livros do Porto, pelo correio. Como aproveitava todos os momentos oportunos e inoportunos para ler, descurando outras obrigações, esse facto era classificado como manifestação de preguiça, não faltando críticas e remoques; tinha fama de mandrião e indolente. Mas não era assim!

    Em Pêra do Moço representaram-se, no meu tempo, dois dramas de Almeida Garrett, sendo apresentado da primeira vez O Alfageme de Santarém e da segunda vez Frei Luís de Sousa; foi minha a iniciativa da realização, tendo um bom grupo a apoiar-me, pois sem isso nada conseguiria. Posso confessar, pois é verdade, que a realização do nosso casamento se prende de perto com a representação do Alfageme de Santarém, em que eu e a Patrocínia fazíamos, na linguagem teatral, a parte de apaixonados.

    A representação da mencionada peça de Almeida Garrett, O Alfageme de Santarém, teve na minha vida uma influência que não pode ser menosprezada.

    Eu representava o papel de jovem apaixonado cujas aspirações se tornaram irrealizáveis. As palavras sem sentido que tinha de proferir começaram, lentamente, a atrair-me para a figura que comigo contracenava, a Patrocínia; a impossibilidade que a peça exigia fez com que, talvez inconscientemente, se pusesse a hipótese de a neutralizar. E a simpatia mútua ia crescendo com o passar dos dias.

    Quando o cuidado dos ensaios parou, outro cuidado nasceu, o de dar continuidade a uma situação que eu desejava prolongar. Nasceu assim, quase imperceptivelmente, um vulgar namorico que também parecia sem condições de continuar. Para de alguma forma dar prosseguimento a um devaneio, entusiasmei outros a ensaiar nova peça teatral; a escolha recaiu sobre um melodrama acabado de editar e que considerava de maneira muito singular o fenómeno das aparições de Fátima. O seu título era O Milagre da Serra, e o autor João Correia de Oliveira. Como se reconheceu pequeno para encher a noite, juntou-se-lhe então o Frei Luís de Sousa, uma das mais exigentes peças da nossa literatura.

    Não faltou quem fizesse ver quão grande era a temeridade. O objectivo era arranjar pretexto para continuar o devaneio; contudo, e apesar do atractivo que oferecia, a Patrocínia negou-se a colaborar. Porque muitos estavam de acordo, e um pouco por caturrice minha, a iniciativa realizou-se, com figura de muito menor valor e prestígio. Todos no grupo lamentávamos a decisão (no íntimo, eu mais que nenhum, evidentemente).

    O incipiente namoro foi-se arrastando durante alguns meses, em conversações que não ultrapassavam a barreira das banalidades; mas o interesse mantinha-se, alimentava-se remota esperança. Até que, cerca de três meses sobre o espectáculo, pusemos à nossa própria consideração a gravidade, importância e seriedade do problema, com o objectivo de encontrar uma solução prática razoável. Estava em causa o nosso futuro.

    A Patrocínia defendia a ideia de eu ir estudar; sabia que gostava de actividades intelectualizadas (não me atreverei a dizer intelectuais, pois não eram); estava convencida de que tinha capacidade de aprendizagem bastante para enfrentar o estudo; parecia ser iniciativa mais segura do que outras que poderiam tentar-se, por exemplo a emigração para a África ou para o Brasil.

    Comprometeu-se a falar com um professor que me leccionasse, seu conhecido, amigo e antigo mestre, em cuja residência estivera alojada. Tendo pesado os prós e os contras, decidi-me. Iria estudar, logo que se iniciasse o ano lectivo, daí a menos de dois meses.

    Comuniquei a resolução a meu pai, que se não mostrou nada entusiasmado; os seus planos prendiam-se à agricultura e não via futuro noutro campo de acção; os poucos estudantes mais recentes, naturais da nossa aldeia, tinham dado fraca conta do objectivo, ainda que um pouco mais longe houvesse exemplos de êxito.

    Embora a situação me desagradasse, mantive a minha posição. A Patrocínia falou ao seu amigo e mestre, o senhor Augusto Bernardo Marques, que acedeu à solicitação. No dia aprazado, deixei a minha aldeia, fui para a Guarda.

    Se consegui lugar diferente no tablado social e base cultural mais ou menos consistente, os factos mencionados foram o motor imprescindível para vencer a inércia...

    No meu primeiro ano de estudo preparei-me para o exame do primeiro ciclo liceal, correspondente ao que depois se chamou ciclo preparatório; abrangia a matéria das duas primeiras anuidades. Na prova escrita, feita como aluno externo adulto (tinha já vinte e dois anos completos), obtive classificação que me dispensava de prestar provas orais.

    Veio o ano lectivo seguinte, que iniciei com maior optimismo. O segundo ciclo liceal abrangia a matéria de três anuidades, e teria de fazer tudo ou nada. No decorrer dos meses, foi publicada uma determinação do Governo que permitia fazer provas por secções, Letras (Português, Francês, Inglês e História) ou Ciências (Geografia, Ciências Naturais, Físico-Química, Matemática e Desenho).

    Embora me sentisse pouco preparado nalgumas matérias, como tinha feito o estudo possível, entendi que deveria tentar e requeri exame tanto para Letras como para Ciências. Fiz provas escritas, tendo sido classificado, isto é, dispensado de fazer provas orais de Letras e admitido às de Ciências, nas quais consegui a aprovação.

    Embora o desejasse e tivesse condições de, com mais dois anos de estudo, tentar a admissão na Universidade, as limitações económicas e a idade aconselhavam-me que devia arrumar a bagagem, pelo que me decidi a tentar o ingresso na Escola do Magistério Primário da Guarda. Fiz provas escritas sendo solteiro e provas orais já casado.

    Aproximando-se o final do ano lectivo anterior, de comum acordo, a Patrocínia comunicou à família (e eu à minha, mas mais tarde) que, se ficasse aprovado no exame do curso geral dos liceus, iríamos casar em férias; caso contrário não casaríamos. Esta posição tinha dois objectivos em vista: — casássemos ou não, seria com plano pre-estabelecido e não solução improvisada; e o matrimónio permitia-me usar pequeno espólio monetário de que a Patrocínia dispunha, para completar o curso pretendido.

    O ambiente estudantil da cidade da Guarda era bastante favorável. Os trabalhos escolares eram, em regra, levados a sério, tanto pelos professores como pelos alunos. O relacionamento entre os estudantes era bom. Fazia-se o estudo de maneira positiva, como verdadeira preparação para enfrentar as exigências da vida; viam-se e recebiam-se os resultados com certa apreensão, mas não com pavor.

    Entre os diversos professores que tive, três deles merecem referência muitíssimo especial: — Augusto Bernardo Marques, que me ensinou Francês e Português, D.Branca Costa Alves, com quem estudei Inglês, e Dr. Manuel Elísio Dias Vieira, director da Escola do Magistério e professor de Psicologia.

    Vou agora tratar de minudências sem grande importância mas que podem ajudar a fazer ideia mais exacta do ambiente em que me criei e passei a infância e a juventude.

    Referi algures o bom relacionamento que havia com todos os parentes que residiam em Pêra do Moço. Posso dizer agora que acontecia a mesma coisa com os que residiam no Jarmelo, quase todos eles nos Montes. Visitavam-nos frequentemente e meu pai (sobretudo ele) deslocava-se ali com muita frequência, para contactar a vasta parentela.

    Afirmei que meus pais eram primos coirmãos; pois antes já outra minha tia materna tinha feito o casamento com um primo coirmão. Se outra coisa não representa, servirá para demonstrar que os parentes se davam muito bem uns com os outros. Esses casamentos não foram feitos com a finalidade de defender interesses materiais...

    A minha avó Ana Marques era, como todos os restantes familiares, muito amiga da sobrinhada. No entanto, parecia ter predilecção particular por duas sobrinhas (sendo uma delas a minha tia Ascensão) e isso pela circunstância de terem ficado órfãs desde muito pequeninas. Nunca dei conta que as restantes se mostrassem ofendidas, uma vez que a todas elas dedicava grande afeição, facto notório e comprovado. Predilecção não é injustiça!

    Falei atrás, embora brevemente, das festas religiosas em que tomávamos parte. A mais destacada e que, por isso mesmo, despertava maior interesse era a de Nossa Senhora da Lagoa (na região denominada "da Alagoa", forma também aceitável), que se venera na sua ermida de Argomil, como se lia nas estampas que a representavam. Como se pode deduzir, esta festa não pertencia à freguesia, mas a outra (Pomares, do concelho de Pinhel) sendo realizada por uma aldeia anexa, a acima referida.

    Era objecto de muita devoção, sobretudo por parte dos pastores de ovelhas que no dia da festa ali levavam os seus rebanhos. O pastor corria à sua frente; os assistentes impediam os animais de correrem juntos, só uma ovelha atrás da outra; conseguiam que a piara fizesse cordão a toda a volta da ermida, bastante grande; o pegureiro saltava fora e os animais continuavam a correr indefinidamente... Mas o pastor logo se lhes mostrava e acabava a correria louca... Tinha interesse em mostrar um rebanho que os entendidos admirassem e não estafar os animais! A sua "religiosidade" era pretexto para exibição.

    Nossa Senhora da Lagoa conquistara a devoção de muitos habitantes do vale do Mondego, nas proximidades de Celorico da Beira. Muitos chegavam na véspera à tarde e dormiam na minha aldeia. No dia seguinte, o dia da festa, 8 de Setembro, visitavam a capela, cumpriam as promessas e voltavam para as suas casas. Eu estranhava que, vindo de tão longe, não assistissem à festa, que só ocorria a partir do meio-dia e que para nós durava toda a tarde.

    Posso referir que a apresentação da peça de teatro O Alfageme de Santarém, a qual bastante tem a ver com a minha vida futura, como disse, se efectuou na noite que a antecedia e que, por coincidência, era de domingo.

    A ermida fica no alto de uma serra pouco elevada e avista-se perfeitamente de Pêra do Moço (o que não acontece com a aldeia a que pertence, Argomil), motivo de orgulho para os seus habitantes.

    Como não podia deixar de ser (passe o lugar comum), localiza-se aqui uma lenda que tem dezenas de versões em todo o mundo. Resume-se no seguinte: — Uns pastores de Argomil, que guardavam os rebanhos já um pouco fora dos limites da sua aldeia, encontraram uma imagem de Nossa Senhora; levaram-na consigo e os seus conterrâneos trataram de lhe preparar um oratório; a imagem voltava ao lugar inicial, mas os de Argomil não desistiram; por fim fixou-se na ermida, mas como castigo alagou o espaço em que deveria ficar a sua capela, formando-se uma pequena lagoa sazonal, isto é, apenas durante o inverno... Que falta de lógica!

    Para terminar, direi somente que no dia da festa se fazia uma pequena feira de artigos de armarinho e de fruta (a região produz pouca), de que se destacavam figos, pêssegos, melancias e melões. Não faltava o vinho, que tinha grande consumo, pois era ainda verão e quase sempre estava muito calor...

    As feiras despertavam certo entusiasmo na maior parte dos habitantes. Faziam-se negócios de compra ou de venda (animais, artigos agrícolas, ferramentas, roupa e calçado), encontravam-se os amigos e conhecidos, os namorados podiam conversar longamente. Não deixava de ser um acontecimento, que, pessoalmente, nunca me seduziu.

    As mais importantes eram as mensais, de Gagos, Pínzio ou Freixedas, e as anuais da Guarda (S. João e S. Francisco), Pinhel (Todos os Santos) e Freixedas (S. Antão). As de Viseu e Trancoso (S. Bartolomeu), devido à distância, já não despertavam interesse, pelo menos na minha família.

    Dissemos que por aqueles tempos se verificaram maus anos agrícolas e tivemos de assistir a dois conflitos bélicos lamentáveis, a Guerra Civil da Espanha e a Segunda Guerra Mundial.

    Havia falta de muitos artigos e produtos. Adoptou-se o sistema do racionamento, sendo necessário conseguir as senhas para poder comprar aquilo de que se carecia, sobretudo alimentos e combustíveis. Os poucos automóveis desse tempo eram movidos a gás, levando na parte traseira o aparelho produtor, o gasogénio. Nas aldeias havia o recurso da produção alimentícia própria, familiar, que ajudava a ladear certas dificuldades. A situação de pobreza era real e bastante generalizada.

    Os meus avós e os meus pais chamavam frequentemente trabalhadores para fazerem serviços agrícolas diversos. Não era raro que outros trabalhadores se lhes juntassem, por sua iniciativa — o seu objectivo era garantir uma refeição farta, abundante. Muitas vezes, ao aproximar-se a hora de comer, meu pai me mandava ir a casa para avisar que o número de comensais era bastante superior ao previsto. Minha mãe e a tia Piedade não eram pessoas alarmistas, mas nesses momentos mostravam grande preocupação, perante a necessidade de dar de comer a tantas pessoas e não quererem que a comida fosse insuficiente, que não chegasse, pois isso era desprestigiante.

    Como alguns estudiosos já salientaram relativamente a outras aldeias das Beiras, os trabalhadores não auferiam salário, pois se tratava de troca de serviços, a cava e a sacha pela lavra.

    Quando eu nasci, o pároco da freguesia era o P. Celestino Gomes de Almeida, que foi quem me baptizou. Não posso calcular quanto tempo esteve no exercício daquelas funções.

    Depois dele, talvez aí por 1930, veio o P. Manuel Salcedas, de quem me recordo já e que bastantes anos depois vim a encontrar na Covilhã, onde eu trabalhei e de onde ele era natural. Este sacerdote, para o tempo, tinha mentalidade muito avançada. Estando no princípio do reinado do automóvel, ele possuía já um; funcionava mal e era de fraca potência. Deve ter sido o primeiro da região. Manteve-se em Pêra do Moço uns dois anos.

    Em seguida, tomou conta do cargo o P. Antonino Dias Saraiva. Nos seus muitos tempos livres distraía-se tocando violino. Chamavam-lhe "Padre Guedelha", porque só tinha cabelo nas laterais da cabeça, muito longo e que deitava para o outro lado, disfarçando a calva. Tinha alguma dificuldade em pregar, pelo que deixava de fazer a homilia das missas dominicais. Mostrava ser excepcionalmente piedoso.

    Fiz no seu tempo a Primeira Comunhão e recebi o Crisma — este das mãos do Bispo de Bargala, D.José Augusto da Rocha Noronha, que poucas semanas depois, numa aldeia da região, caiu de um cavalo e veio a falecer.

    O P. Antonino era muito amigo da família e, como eu me comportava um tanto estabanadamente, tratava-me por "Zé Mau", sem que isso me fizesse mossa. Mais me arreliava que os meus companheiros e condiscípulos me chamassem "Olhos de Gato", devido à cor azulada da íris, o único na região. O P. Antonino manteve-se na paróquia cerca de uma dúzia de anos, tendo saído em 1944; criou certo descontentamento por não respeitar o horário dos actos do culto, realizando-os com grande atraso.

    Foi substituído pelo P. Alberto Gonçalves. Iniciou ali a sua actividade em Agosto de 1945 e manteve-se até Julho de 1994, quando morreu. Faltava um ano para completar meio século de permanência. A vinda deste padre teve profunda influência na minha vida, nomeadamente porque cinco anos mais tarde contraí consórcio com a Patrocínia, a irmã que o acompanhava. Dedicámos um ao outro uma estima invulgar, amizade verdadeiramente fraterna.

     

     

     
    Patrocínia Gonçalves
     

    Nasci no último ano do segundo decénio do século XX, na freguesia de Casal de Cinza, do concelho e distrito da Guarda. O lugar do meu nascimento foi a anexa Creado, que dista cerca de um quilómetro da sede da paróquia. Foram meus pais José Joaquim Gonçalves e Águeda Maria. Não conheci nenhum dos meus avós, quer paternos quer maternos, pois eram todos já falecidos.

    A minha família era constituída por oito irmãos, três homens e cinco mulheres, ocupando eu o penúltimo lugar. A mais nova foi a Anunciação, nascida quatro anos mais tarde. A mais velha de todos era a Prazeres, nascida logo no começo do século, seguida do Messias e do António, da Maria Joaquina, da Clara e do Alberto.

    Neste momento, Julho de 1996, somos três: — a Clara, eu e a Anunciação. A Maria Joaquina foi a primeira que morreu, ainda bastante nova, com cerca de vinte e oito anos de idade, vitimada pela febre tifóide. Minha mãe faleceu também relativamente cedo, creio que pouco depois de ter completado quarenta e cinco anos. Eu contava nessa altura cerca de nove anos de idade.

    Não falando do facto de ter ficado órfã desde muito pequena, posso dizer que tive uma infância normal no ambiente em que nasci. Até a falta da mãe foi esbatida pelos cuidados de assistência de que a Prazeres se encarregou. Como a minha mãe era doente, ela tinha já tomado conta dos deveres de dona de casa, que manteve até aos últimos anos de vida.

    Minha mãe era filha única e também ficou órfã bastante cedo. Sabemos que possuía um património razoável, para os parâmetros da região, a que correspondia a designação de pessoa abastada. Teve a sorte de encontrar marido que soube acompanhá-la e compreendê-la.

    Meu pai não era natural de Casal de Cinza, mas de uma aldeia próxima, Espinhal, da freguesia do Rochoso, também do concelho e distrito da Guarda. Integrou-se no ambiente local e passou a ser pessoa de consideração, mesmo de destaque, a quem todos votavam apreço e guardavam muito respeito. Tendo bom relacionamento com todos, dedicava especial amizade a outro proprietário rural, o Senhor Cerca, também pai de numerosos filhos, dois dos quais fizeram casamento — Manuel e Clara.

    Sendo bastante novo quando enviuvou, nunca mais pensou em fazer segundo casamento, e o seu comportamento foi modelar sob todos os aspectos. Aliás, era exigente em relação aos costumes e forma de proceder de quantos estavam sob a sua autoridade.

    Fui por ele castigada duas vezes, a primeira por ter colhido flores em propriedade alheia e ter estragado a planta, e a segunda por ter ido, sem autorização, em noite de S. Pedro, a um baile nocturno.

    Dos oito filhos, quatro fizeram alguns estudos e desses só eu fiquei pelo caminho. Adiante falarei mais pormenorizadamente sobre isso. Os dois estudantes homens fizeram o estudo no seminário diocesano e foram padres. A Anunciação tirou o curso do magistério primário.

    O Messias teve a oportunidade de continuar a estudar fora de Portugal, tendo-se deslocado para Roma, onde frequentou a Universidade Gregoriana. Havia uma bolsa de estudos mantida por família fidalga (parece que os Marqueses da Graciosa) e foi-lhe oferecida. Esteve sete anos na Itália e nunca veio visitar a família, ao longo de tão dilatado período. Não compreendo o motivo, pois as viagens não eram assim tão caras e nem demoravam assim tanto tempo!

    Quando foi para o estrangeiro, eu deveria ser muito pequena, pois não tenho disso a menor recordação. Quando voltou, era uma criança espigadota, dizem-me que bastante bonita e muito loira. O Messias gostava muito de se divertir comigo, por vezes até de me arreliar. Como eu era muito palradora, chamava-ma cigarra, e manteve essa designação por toda a vida. Fez com que meu pai se decidisse a mandar-me para o colégio, a fim de tentar estudar, o que não acontecera com as três irmãs mais velhas.

    O Alberto seguiu em parte as pegadas do irmão e foi para o seminário. Apesar de, em teoria, o seminário ser o mesmo, na prática era muito diferente. Nesta altura funcionava no regime de internato, tal como hoje.

    O Messias ainda esteve hospedado numa república da meia dúzia delas existentes no Fundão, subterfúgio que o bispo diocesano encontrou para ladear a lei que proibia o funcionamento do seminário mas não podia proibir que as famílias recebessem hóspedes. Escolheu-se o Fundão porque no distrito de Castelo Branco havia mais tolerância religiosa do que no distrito da Guarda. Belmonte, Covilhã, Penamacor e Fundão pertencem a diocese e distrito diferentes.

    Frequentei a escola primária que então havia na minha aldeia e que alguns anos depois fechou, pois não havia crianças que a justificassem, tendo-se mantido a da sede da freguesia, apesar de a de Creado dar maior comodidade aos alunos. Parece que houve aqui evidente interesse político, segundo diziam.

    Tendo feito o exame de segundo grau, como então se chamava o exame da quarta classe, fui levada para o Colégio de Nossa Senhora de Lurdes, onde meu irmão tinha bom relacionamento. Receando um tanto o desconhecido, não deixei de fazer uma choradeira, que não evitou a minha admissão como aluna interna.

    Atendendo a que era a "mana" do Dr. Messias, fui tratada com todo mimo; era muito alegre e, para as boas freiras que me aturavam, eu tinha muita graça. Tudo o que dissesse, qualquer comentário provocava hilariedade. Mantive-me ali uns três anos, talvez quatro, não sei bem.

    Verificando que o estudo no colégio feminino, o colégio das freiras, como vulgarmente era designado, não me dava os indispensáveis conhecimentos, resolveram transferir-me para o Colégio Internato Académico, onde o Messias tinha interesses, sendo professor e director.

    Fiquei hospedada com a Anunciação em casa do Sr. Augusto Bernardo Marques, grande amigo da família e quase nosso vizinho, pois era natural de Pousade. Tinha duas filhas da nossa idade e ele mesmo foi nosso professor, pois leccionava naquele estabelecimento de ensino e era mestre invulgarmente competente no estudo de Línguas.

    A esposa era doente de ciúmes, acreditando cegamente que o marido tinha amantes, o que não correspondia à verdade. Se não fosse esse inconveniente, ofereceria condições verdadeiramente modelares, tanto sob o aspecto cultural como moral.

    Nesta altura eu já me interessava por aprender, mas faltavam-me as bases. O tempo que passei com as freiras e a tolerância com que me trataram tinham produzido o seu fruto natural, não tinha alicerces que permitissem a recuperação.

    Em dado momento, os meus dois "encarregados de educação" admitiram que o melhor seria desistir e voltar para casa, para junto da família. Durante algum tempo, não posso dizer quantos meses, ali estive sem ocupação definida, ajudando na arrumação da moradia onde vivíamos.

    O P. Alberto celebrou a primeira missa nos meados de 1940. Foi encarregado das paróquias de Vela, onde residiria, Vale de Estrela e Aldeia do Bispo. Não havia quem se encarregasse dos serviços domésticos, tendo experimentado um rapazola e uma velhota, com fracos resultados. Como não tinha função definida e estava livre, resolveram que eu fosse encarregar-me dos trabalhos domésticos, em casa de meu irmão Alberto. Fui, embora com certa relutância, pois as irmãs dos padres quase sempre ficavam solteironas e se faziam devotas. E eu não estava decidida a ser nenhuma destas coisas!

    Na Vela encontrei um ambiente social muito agradável. Havia um núcleo de raparigas interessantíssimas, com as quais estabeleci óptimo relacionamento. Também fiz amizade com pessoas mais velhas e já com a vida estabilizada, tanto da própria aldeia como dos arredores.

    Viviam-se nesse tempo as dificuldades provenientes da Segunda Guerra Mundial. Havia enormes carências, particularmente de géneros alimentícios. Senti certas privações, como toda a gente sentiu. Meu pai algumas vezes nos remeteu alimentos, inclusive o pão que em casa fabricava; encontrávamo-nos na Guarda, para os receber.

    Surgiram, no entanto, problemas na actividade paroquial, e meu irmão transferiu a residência, com o conhecimento e consentimento do prelado diocesano, para a Aldeia do Bispo, onde também conquistei sinceras amizades, e igualmente em Vale de Estrela.

    Não recordo com exactidão quanto tempo me quedei nas duas localidades, talvez de dois a três anos na Vela e pouco mais de um ano em Aldeia do Bispo (da Guarda).

    Em meados de Agosto de 1945, meu irmão Alberto (era padre havia cinco anos) foi transferido para Pêra do Moço, onde então fervilhava uma desagradável questiúncula paroquial. O novo pároco viu-se envolvido nela e tomou atitudes que revoltaram uns tantos habitantes; outros, porém, souberam compreendê-lo e apoiaram-no decididamente. Com o tempo, conseguiu resolver as divergências e criar grandes amigos em todos. Ficou ali para o resto da vida, quarenta e nove anos. Eu acompanhei-o e ali casei. Meu pai alicerçara a economia doméstica sobre a agricultura e a pecuária. As terras produziam sobretudo batatas, vendendo anualmente umas poucas toneladas desse produto. Tinha umas tantas vacas, podendo vender todos os anos dois, três ou quatro bezerros. Quase todos ou mesmo todos os anos se deslocava a Trancoso, por ocasião de feira anual, para vender a cria da égua, por certo a verba mais volumosa do orçamento familiar.

    Não podemos deixar de falar no muito que todos nós ficámos devendo à Prazeres. Substituiu minha mãe ainda antes do seu falecimento, como dona de casa, e desempenhou o papel de mãe em relação aos irmãos, sobretudo os mais novos. Renunciou ao casamento para melhor poder servir a família.

    Pessoalmente, devo confessar que sempre se interessou pela solução dos meus problemas. Até com os meus namoros se preocupava, como se estivesse em causa o seu próprio futuro.

    Atendia-nos nas visitas e estadias de férias, tanto a mim como a meu marido e filhos; alguns passavam na sua residência longas temporadas. Apreciava sobretudo o Tomás de Aquino. Até veio a falecer no dia do seu aniversário.

    Todos os irmãos se relacionaram estreitamente com ela, e talvez o Messias mais do que ninguém, atendendo a que eram de idade muito próxima. Vivendo no seminário, considerou sempre a antiga casa paterna (agora da irmã) como seu real e verdadeiro lar.

    Disse acima que a minha irmã se interessava pelos meus namorados. Namoro a sério só tive o último, os outros não passavam de devaneios mais ou menos episódicos. Em princípio, via-se sempre ao longe a hipótese de casamento.

    O meu primeiro namorico ocorreu no tempo em que estive em casa de meu pai, depois de deixar de estudar. O rapaz vivia em Lisboa, mas estava relacionado com a minha freguesia, onde seus pais compraram uma propriedade agrícola; da parte das duas famílias via-se o sonho com boas perspectivas.

    Outro namorado que tive era aviador e estava aquartelado nas proximidades da Ota; conhecemo-nos por intermédio de outro oficial da aviação. Como os seus sentimentos religiosos eram diferentes dos meus e dos da minha família, deixei de me interessar por ele.

    Tive terceiro namoro com um rapaz que estava empregado no comércio, em Lisboa, e cheguei a entusiasmar-me, mas depois esfriei. Era deficiente físico, tendo-lhe sido amputada a mão direita.

    Estes "derriços" ocorreram já em Pêra do Moço. Aconteceu que levou a melhor, nesta disputa, o que parecia ter menos condições mas tinha a vantagem de estar perto, pois as nossas casas distanciavam apenas duas dezenas de metros.

    Meu irmão Alberto fixou-se em Pêra do Moço exactamente nos dias em que terminou a Segunda Guerra Mundial, Agosto de 1945. Os organismos caritativos internacionais desencadearam uma campanha de auxílio às crianças vítimas da guerra, colocando alguns milhares delas em países e famílias que quisessem recebê-las.

    O Alberto aceitou a ideia e comprometeu-se a receber uma dessas crianças. Veio para junto de nós uma menina muito bonita e simpática, a quem dediquei grande afeição. O período de estadia era, segundo creio, de aproximadamente meio ano. Quando esta partiu, com grande desgosto nosso, veio um rapazinho, igualmente muito bonito e simpático. Foi substituído por outro menino, este menos cativante e menos saudável do que os primeiros. Fechou a série a mesma menina primeiramente recebida, que estava connosco por ocasião do nosso casamento.

     

     

     

    Em Portugal
     

    Celebrámos o nosso casamento no dia 28 de Setembro de 1950, na capela pública de Creado. Como ao tempo estava em vigor a Concordata de 1940, não fizemos casamento civil, pois o católico produzia os seus efeitos legais. O pai da Patrocínia tinha sido atacado por uma doença do aparelho circulatório que lhe prejudicava os movimentos; mostrou desejo de fazermos o casamento ali, para mais facilmente poder assistir, pois a sua casa ficava mesmo junto da capelinha, e nós fizemos-lhe a vontade. Não houve festa, tendo assistido somente os familiares mais próximos.

    Vivemos os dois primeiros anos na Guarda, onde eu frequentei a Escola do Magistério Primário. No segundo ano de permanência, esteve connosco um sobrinho da Patrocínia, António Monteiro Cerca de Carvalho, que frequentava o primeiro ano dos liceus. Quando concluí o curso, em Julho de 1952, tinham nascido já dois dos nossos filhos, Jorge Fernando e Cristina Maria.

    Terminei o estudo com boa classificação. Nos últimos tempos dera-se um acontecimento que me favoreceu no conceito dos meus professores, sobretudo o director. Se tivesse ocorrido mais cedo, mais teria aproveitado; naquele momento, o estudo estava concluído e fora classificado. Introduzira-se o costume de os alunos fazerem breves palestras, sobre tema livre, e eu falei no dia 15 de Maio de 1952. Dissertei sobre "A Igreja e a Questão Social". Tive o cuidado de elaborar demorada e conscientemente o trabalho apresentado. Um colega exibiu uma intervenção desastrosa, que fugia bastante ao assunto versado; o professor moderador tratou-o com rispidez e em voz exaltada. O director do estabelecimento veio ver o que ocorria. O aluno foi convidado a apresentar os seus pontos de vista em nova palestra e saiu-se mal. O meu trabalho, bem documentado, foi minuciosamente analisado e mereceu óptimas referências. A minha principal fonte de consulta tinha sido a revista "Lumen"; o ponto central do trabalho consistia em sustentar que as doutrinas comunistas nem sempre se opunham às da Igreja Católica. Nesse tempo, o comunismo era considerado o supra-sumo da maldade, sustentar algo que se assemelhasse à sua defesa era um tanto temerário; mas eu nada tive a recear, pelo contrário, ganhei em consideração.

    Era a minha segunda palestra. A primeira passara sem nada de anormal a marcá-la. Tratara de apresentar breves notas biobibliográficas dos escritores relacionados com a Guarda.

    Em férias, antes de ser colocado, recebi convite do Instituto Aurélio da Costa Ferreira para me especializar no ensino de alunos deficientes, a que particularmente atendia. Não aceitei, o que deverá ter sido um enorme erro...

    Trabalhei pela primeira vez na então vila e hoje cidade de Gouveia, onde conquistei boas amizades. Uma das individualidades com quem convivi foi, durante bastante tempo, ministro de Salazar, tendo sido também, antes disso, governador civil da Guarda. Comecei ali a colaborar assiduamente na imprensa regional, num dos semanários locais.

    Trabalhava há menos de um mês quando faleceu o pai da Patrocínia, um tanto ou quanto imprevistamente.

    Os professores eventuais, nesse tempo, eram contratados para cada ano lectivo e, por isso, não ganhavam ordenado durante as férias grandes. Decidi-me a concorrer no primeiro concurso em que pude candidatar-me; fui colocado em Benespera, concelho da Guarda, onde trabalhei no meu segundo ano de actividade.

    Nasceu-nos aqui o terceiro filho, Eugénio José. A nossa família foi ainda aumentada com a presença de um afilhado, José Correia, natural de Guilhafonso, atendendo à solicitação de seu pai, baseado não sei já em que razões.

    Durante a nossa estadia em Benespera, a Cristina, então muito pequena ainda, foi atacada por uma pneumonia que atingiu os dois pulmões. Foi tratada, sem hospitalização, sob os eficientes cuidados de um médico que então residia em Pêra do Moço, o Dr. Filinto dos Reis Novais.

    O meio era pequeno, pobre e atrasado, e em vista disso concorri a outras escolas, na primeira oportunidade, tendo sido colocado em Tortosendo e obtive também o primeiro lugar para o Teixoso, uma e outra no concelho da Covilhã. Eram duas povoações já com certo desenvolvimento.

    Estive no Tortosendo mais de uma dúzia de anos. Esta vila, naquele tempo, apresentava características muito peculiares. Para simplificar, direi que a sua economia tinha como fulcro a indústria têxtil; sob o aspecto social, havia o núcleo dos fiéis católicos, a que eu me agreguei, e o grupo dos não praticantes, que mutuamente se opunham. No entanto, não chegava a haver rivalidade aberta, apenas antagonismo. Isso teve como resultado que me não integrasse perfeitamente no ambiente social, na primeira meia dúzia de anos. Depois as coisas transformaram-se...

    Com o tempo, devido a circunstâncias diversas, e até como consequência das minhas funções (além de professor, eu era o responsável pelo Posto de Registo Civil), fui-me entendendo com os elementos não praticantes e fiz com alguns deles boa e fecunda amizade. Passei a gostar do ambiente!

    Os meus colegas docentes aproveitavam as horas disponíveis para ensinarem alguns alunos do liceu, mediante pagamento módico, dividido entre si. Integrei-me no grupo, pois precisava de ganhar alguns escudos a mais, para manter a família.

    Enquanto residimos no Tortosendo, foram nascendo os restantes seis filhos, por esta ordem: -- Tomás de Aquino, um nado-morto, Luís Alberto, José António, Matilde (recebeu este nome por a minha mãe ter falecido pouco antes), João de Brito e Paula Maria.

    Com alguma graça e um pouco de cinismo, pois por vezes torna-se expressiva certa dose de impudência, tenho dito algumas vezes que, em todo o período de casamento nunca tivemos nem aborto nem uma cena de ciúmes.

    A nossa grande família foi ainda acrescentada por dois sobrinhos. Pouco depois de ali me ter colocado, recebemos o Vítor Manuel, filho do meu irmão Joaquim, que tinha dificuldade em se preparar para o exame de segundo grau (quarta classe), não sei já por que motivo, e de que eu me encarreguei. Alguns anos depois, recebemos a Maria Joaquina, sobrinha da Patrocínia, que se manteve connosco coisa de dois anos, necessários para fazer o primeiro ciclo liceal, e que foi também minha aluna, no Externato de Nossa Senhora dos Remédios.

    Na devida altura, a Patrocínia esqueceu-se de referir que, em Pêra do Moço, antes do casamento, recebera uma irmã da Maria Joaquina, a Estela, para se preparar para o exame de quarta classe, e também a sua própria irmã Anunciação, que foi colocada como professora na escola local. Tinha a sina de família numerosa!

    O Seminário Missionário do Verbo Divino, estabelecido naquela vila, precisou de um professor e fez-me o convite, que aceitei. Foi uma medida em parte acertada e em boa parte prejudicial, conforme se considere o momento ou se pondere o futuro. Deixei o ensino oficial e entrei no seu quadro docente, a que pertenci durante uns cinco anos.

    Neste interim, pôs-se a hipótese da fundação de um estabelecimento de ensino particular onde fossem ministrados os estudos liceais. O promotor da iniciativa, P. José Antunes, viu-se perante o dilema de encontrar sócios para financiarem o projecto ou desistir... Procurou-me e fez-me o convite para ser seu sócio — pelo menos com dez por cento do capital, dizia ele.

    Desloquei-me à minha aldeia e conversei com o P. Alberto, irmão da Patrocínia. Entusiasmou-me e quis ser ele mesmo a financiar o colégio; foi combinado entre nós que eu só ficaria sócio se me fosse atribuída a quota de um quinto, vinte por cento. Ele encarregava-se de metade do investimento. Essa nova posição deixou o P. Antunes mais optimista, verdadeiramente eufórico, tendo conseguido o investimento que ainda faltava com maior facilidade. Assim nasceu o Externato de Nossa Senhora dos Remédios.

    A pedra fundamental, como pode ler-se na inscrição aposta, foi lançada no dia 11 de Maio de 1961. Era dia de aniversário da Patrocínia.

    Ao lavrar a escritura, não apareceu o nome do P. Alberto, tendo eu subscrito a quota de um quinto da empresa. Durante mais de trinta e três anos de vida a situação manteve-se sem que nada fosse alterado. E assim continuou... e continua!

    O singelo enunciado das partes constituintes da sociedade ajudará a compreender a génese da empresa. Pela ordem de integração, apresentam-se assim: — Trinta e cinco por cento para o P. Antunes; quinze por cento de uma sobrinha; vinte por cento meus; e três quotas de dez por cento de três colegas sacerdotes.

    O fundador do colégio faleceu de morte súbita, pouco tempo depois. Pouco antes tinha falecido um professor, em desastre de viação. Destes factos nasceram acúleos.

    O Seminário do Verbo Divino despediu-me inesperadamente e sem motivo justo. O facto de se negar a passar-me certidão de serviço prestado (que foi pedida por várias vezes e por pessoas distintas) é testemunho de que tenho motivos para considerar os seus responsáveis pouco escrupulosos. Refiro-me aos responsáveis com quem eu contactei, não a outros, evidentemente.

    A minha saída do seminário foi mal compreendida, talvez até mesmo intencionalmente aproveitada, pelos meus sócios do externato. Não deixava de haver padres dos dois lados! A culpa das discordâncias seria de todos, mas ainda hoje estou convencido de não ser eu o maior culpado.

    Desgostoso, tomei a decisão de sair de Portugal e concorri ao quadro de professores de Angola, tendo sido colocado. Mas já antes havia requerido nomeação legal sem concurso, que me não foi concedida.

    Tive oportunidade de contactar em Luanda o responsável por este despacho; confirmou ter sido uma atitude meramente burocrática, que poderia ter sido outra -- mas não deixou de me causar volumoso prejuízo, dolorosa expectativa e prolongada ansiedade!

    Por esta altura, pus a mim mesmo a hipótese de me estabelecer noutra localidade, tendo feito várias diligências infrutíferas. Apresentou-se como mais viável a fundação de um colégio em Oleiros, distrito de Castelo Branco — "onde se perde a capa, aí se vai procurá-la", diz o adágio popular. Ainda se contactaram diversas individualidades concelhias, tendo apenas obtido apoio de um padre que ali trabalhava, mas não foi o suficiente. A Câmara Municipal, com que mais se contava, não manifestou o mínimo empenho na concretização do plano. Pensou-se também em Pampilhosa da Serra, mas as condições locais mostraram-se aqui ainda menos favoráveis. Os interessados eram o P. Alberto, o Dr. Abílio Costa (de Codeceiro, mas então a trabalhar em Tortosendo) e eu. Tentou-se a sua organização com um pequeno grupo de estudantes, matriculados no ensino individual, tal como acontecera em Tortosendo, mas fomos levados a abandonar o projecto.

    Nos longos meses em que esperei a colocação numa escola de Angola, e estava sem ocupação definida, procurei alargar os meus conhecimentos em relação àquele território, lendo numerosos livros e coligindo apontamentos. Foi esta a génese do meu trabalho "A História de Angola", cujo original ficou na tipografia para impressão quando eu parti para Luanda. A decisão de preferir Angola a outro território transmarino deve-se já a leituras anteriores, conhecendo-o melhor...

    Nos últimos dias de Janeiro de 1967, tive conhecimento da minha nomeação. Desloquei-me à capital para ultimar os preparativos burocráticos e, em 5 de Fevereiro, saíamos do Tortosendo a caminho de Lisboa, onde embarcaríamos para Angola.

    No dia imediato aconteceu que, tendo-nos deslocado de táxi para o Hospital do Ultramar, a fim de todos sermos vacinados contra a febre amarela, deixámos no carro uma pasta com todos os nossos documentos, toda a papelada de toda a família, nada menos de onze pessoas.

    Nunca, em toda a vida, me senti tão acabrunhado, tão abatido. Fiquei verdadeiramente aniquilado, mesmo destroçado, sem saber que fazer, sem saber o que aconteceria... Caía sobre mim um peso insuportável. O que havia a fazer? Como devia proceder? Que iria acontecer?

    O bom e consciencioso motorista apareceu algum tempo depois, por sua iniciativa, para nos entregar aquele não pequeno tesouro. Ainda hoje alimento em mim indestrutível e indescritível sentimento de gratidão para com esse "grande e nobre desconhecido".

    Saí de Lisboa, com destino a Luanda, no dia 7 de Fevereiro de 1967, terça-feira de Carnaval. Acompanhavam-me a Patrocínia e os nossos nove filhos. Sem que eu nada pedisse (sei que houve quem o sugerisse, de moto próprio), fizeram-nos embarcar (só nós) em primeira classe, que ia sem passageiros, embora por lei nos competisse viajar em segunda classe.

    Registe-se que saímos do Tortosendo com um excepcional nevão, que nalguns pontos atingiu mais de um metro de altura, e chegámos a Luanda no período mais quente do ano, uma diferença de temperatura difícil de suportar...

    Já disse que, com o tempo, fiz amigos entre os moradores não praticantes da religião, em Tortosendo. Os praticantes continuaram a ser amigos, apenas reconheci não ser justo manter essa discriminação. Prova o apreço em que era tido o facto de, no momento da saída, ter sido aberta uma inscrição para a compra de uma lembrança e um jantar de homenagem, no melhor restaurante da região, tendo comparecido quarenta amigos, todos do sexo masculino; o maior defeito social do Tortosendo de então era, sem dúvida, o seu acentuado machismo. Registe-se que nem o seminário nem o externato se fizeram representar. E nem todos os meus amigos puderam ou quiseram inscrever-se.

    * * *

    Estando presa ao cuidado dos filhos, a Patrocínia mal podia sair de casa. Por isso, logo que a televisão começou a funcionar, tratei de mandar instalar um aparelho; ao tempo, poucas famílias o possuíam. O receptor de rádio foi a nossa primeira aquisição, logo que recebi o meu primeiro vencimento, quando em Gouveia.

    Para aliviar até onde fosse possível a realização das tarefas domésticas, logo que me foi possível, adquiri a máquina de lavar roupa, recentemente comercializada, ao tempo luxo de poucos, e também a máquina de fazer malhas, que permitia diminuir bastante o custo dos agasalhos de que a família carecia para enfrentar os rigores do inverno. Era preciso encarar a vida com realismo!

    Eu fazia por vezes, tendo sempre em vista o meu trabalho e aperfeiçoamento intelectual, alguns gastos extraordinários com a aquisição de livros, muitos e caros. Também me decidi a comprar uma boa máquina de escrever, a que dei grande e prolongado uso.

    A Patrocínia gostou muito da nossa fixação em Tortosendo. Residiam ali várias das suas amigas do colégio das freiras, duas delas minhas colegas de actividade, com quem mantivemos óptimo relacionamento.

    A nossa família mantinha já relações de amizade, sobretudo através do Dr. Messias, com o Dr. Mendes Fernandes, sua mãe e suas primas, com quem nos relacionámos muito, pois éramos vizinhos.

    Junto de nós residia uma senhora viúva, D. Piedade Moura, com quem mantínhamos convívio um tanto cerimonioso, mas que depois mostrou dedicar-nos grande e perdurável amizade, que só a morte cortou, mais de vinte anos sobre a data da saída.

    As nossas limitadas condições económicas não nos permitiam larguezas. Só uma vez fizemos uma estadia à beira-mar, aproveitando as facilidades oferecidas pela Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, na colónia de férias da Foz do Arelho, nos arredores de Caldas da Rainha. As nossas férias eram passadas na aldeia, por motivo de economia, pois a subsistência era em boa parte garantida — primeiro em Pêra do Moço e depois em Creado — pelos nossos familiares ali residentes.

    Vem a propósito explicar que eu fui, durante alguns anos, professor único de um grupo de estudantes empregados de uma, ao tempo, importante firma, a Sociedade de Fabricantes. Vários deles conseguiram aprovação no primeiro ciclo liceal (Ciclo Preparatório). Esse curso era mantido a expensas da fábrica, mas dependia de uma ramificação daquele organismo — o Centro de Alegria no Trabalho, organizado para beneficiar operários e trabalhadores da empresa. Precisava de ganhar o pão dos meus filhos e para tanto tinha de trabalhar das oito às vinte e duas horas, com pequenos e indispensáveis intervalos.

    As únicas manifestações de "gastos supérfluos", se assim os considerarmos, consistiram nalgumas deslocações à Espanha, Salamanca ou Madrid, só ou com amigos, algumas vezes acompanhado pelos dois filhos mais velhos. Também me desloquei algumas poucas vezes a Lisboa, sempre com algum objectivo em vista; a primeira viagem foi efectuada para assistir a um congresso internacional sobre orientação profissional.

    Por todos ou quase todos esses anos fui escrevendo na revista "Horizonte" ( de Gouveia) nos semanários "Notícias da Covilhã" e "Reconquista" (de Castelo Branco) e no diário "Novidades", publicado em Lisboa, neste como correspondente regional. Publiquei primeiramente o opúsculo "Marquês de Pombal" e depois disso o livrinho "História de Portugal".

    A crónica familiar desse período pode registar um parto difícil de minha esposa, já mencionado, e a intervenção cirúrgica de urgência para extracção do apêndice íleo-cecal, da Cristina, então criança de uns sete anos. Poderíamos referir ligeiros episódios, por vezes caricatos. O José António fez enorme corte num pé, andando descalço num campo vizinho, com um vidro de garrafa. O Eugénio ingeriu lixívia que um farmacêutico, por engano, vendeu como se fosse óleo de fígado de bacalhau. O Jorge introduziu um feijão numa narina, que só o médico conseguiu extrair. Aconteceu outra vez a mesma coisa com um pedaço de borracha. A Cristina engoliu um alfinete de bordadeira, que o médico esperou ser expelido naturalmente, para evitar a cirurgia. A Matilde bebeu essência de terebintina (aguarrás), e teve de ser levada urgentemente ao hospital, para lavagem do estômago.

    Parece muito? Lembremos que tratamos do que se passou com onze pessoas no prazo de doze anos. A média é bastante baixa.

    No campo da saúde, a ocorrência mais saliente foi o ataque de paralisia infantil que atingiu o João de Brito. Esteve hospitalizado numa das melhores casas de Coimbra, a Clínica de Santa Teresa, durante cerca de quatro meses. Quando adoeceu, tinha pouco mais de um ano. Infelizmente, a recuperação foi mínima. O nascimento da Paula Maria ocorreu durante o internamento do João.

    Durante a minha longa estadia em Tortosendo, tomei parte em diversas iniciativas, na qualidade de cidadão radicado na comunidade.

    Como professor e colaborador dos jornais, acompanhei a construção e entrada em funcionamento da Cantina Escolar, que apoiei e de certo modo incentivei. Fui o primeiro professor a encarregar-se de assistir às refeições, em regime rotativo com os demais colegas.

    Como membro da Conferência de São Vicente de Paulo, acompanhei a construção de diversas moradias doadas a famílias carentes e edificadas com donativos diversos. Algumas foram inteiramente financiadas por pessoas ricas, da localidade e de fora dela; outras foram construídas com dádivas de centenas de contribuintes. Chegou a levantar-se um pequeno bairro em que boa parte das casas eram do Património dos Pobres, creio que algumas dezenas delas. Pelo menos uma vez tivemos ali a presença do famoso Padre Américo [P. Américo Monteiro de Aguiar], tendo aproveitado a oportunidade para com ele gravar uma entrevista. Faleceu alguns anos mais tarde em desastre de automóvel. De outra vez, presidiu à cerimónia o meu cunhado Cónego Messias, em representação do prelado da diocese.

     

     

     

    Em Angola
     

    Embarcámos em Lisboa, no Cais de Sodré, no velho e pequeno navio "Rita Maria", na sua última viagem antes de ser abatido ao nosso contingente naval. Ao longo do percurso, as suas máquinas pararam por duas vezes, sendo necessário efectuar o conserto, o que demorou bastantes horas de trabalho. Isso justificaria o seu afastamento.

    Aproximámo-nos de Cabinda, para receber carga, disseram-nos que alimentos, mas o barco não atracou, ficou bastante longe da terra. Recebeu a visita de elementos locais, tendo sido este o nosso primeiro contacto com a população angolana.

    Estávamos em frente do porto de Luanda ao anoitecer do dia 19 de Fevereiro de 1967, tendo desembarcado na manhã do dia seguinte. Alguns conhecidos nossos de Tortosendo [uns ali radicados e outros em viagem de negócios] aguardavam-nos à descida do barco, acompanhados de outros indivíduos de quem nada sabíamos e que só nos conheciam por referências feitas pelos amigos. Era a primeira manifestação da fraternidade existente em terras de Angola.

    Logo que pudemos desembaraçar-nos, fomos tomar conta do alojamento no hotel, e imediatamente ocupámos as mesas de um café para cordialmente podermos confraternizar.

    O meu primeiro cuidado foi apresentar-me aos meus superiores. Marcaram-me a data em que eu deveria ir tomar conhecimento do destino que me seria designado. Soube nesse momento que teria de ir ocupar o lugar de director da Escola de Artes e Ofícios de Vila Pereira d'Eça, no sul.

    Como tinha quatro filhos matriculados no liceu, apoiei-me no que a lei determinava e solicitei colocação em cidade provida desse ensino. Isso fez com que ficasse colocado em Luanda, tendo sido encarregado das funções de director da Escola Primária 294. Saliento este pormenor, porque a nomeação efectiva demorou creio que mais de um ano.

    Apresentei-me na escola no dia 22 de Fevereiro. Oficialmente, tinha sido criada no dia 11 desse mês; foi o resultado do desdobramento de outra, com muitos alunos e professores, a funcionar em edifícios afastados. Fiz-me acompanhar pelo director da escola fraccionada. Como o número de professores ultrapassava o previsto na lei, ficava desobrigado de funções docentes.

    O consequente cuidado, como pai de família, foi apresentar as transferências dos meus filhos mais velhos na secretaria do Liceu Nacional de Salvador Correia, para onde, em teoria, tinham sido transferidos do Liceu da Covilhã. Ao pedir o documento, era necessário indicar um destino concreto, que poderia ser necessário alterar. Neste caso, deu certo. Devido à viagem, não obtiveram classificação no segundo período escolar, mas nem por isso deixaram de obter a promoção ao ano imediato, com exame ou sem ele.

    O problema dos alunos do ensino primário foi resolvido em família, pode dizer-se, pois frequentariam o estabelecimento de que passei a ser o director. Foi a solução mais fácil que encontrei.

    Outro cuidado que logo me solicitou a atenção foi o de encontrar casa para residência, tendo arrendado uma no Bairro da Cuca, perto da fábrica de cerveja que lhe dava o nome. Uma declaração escrita do meu superior jerárquico serviu de caução pelo pagamento do aluguer.

    Depois de me informar devidamente, dirigi-me a um estabelecimento que comerciava mobiliário usado. Encontrei ali uma mobília de sala de jantar que tinha mesa com dois metros de extensão e que nos servia. Tinha ainda mobília de quarto de igual estilo — quer dizer, de nenhum estilo conhecido. Pude mobilar a casa gastando uma quantia insignificante e ficando bem servido, atendendo às condições e circunstâncias. Para acomodar os numerosos filhos, recorreu-se a beliches, baratos e que poupavam espaço.

    Embarcámos com a intenção de, logo que possível, comprar casa para morarmos. Encontrei ali novos amigos que me orientaram. Convenceram-me que a melhor solução seria adquirir um apartamento num bairro construído por um organismo oficial, a Junta Provincial de Habitação, que entre outras vantagens contava as de ser negócio sério e ter preço mais baixo. Inscrevi-me, tendo-me sido atribuído um deles, passados alguns meses, com quatro quartos.

    Sabia estarem a ser construídos apartamentos maiores do que esse; não o aceitei e, requeri que me fosse atribuído outro. Assim aconteceu, mas somente meio ano depois. A minha numerosa família dava-me o direito de escolha. Este tinha cinco quartos de dormir. Ocupei a nova moradia ao completar quinze meses de permanência. Paguei o que pude e tinha indicado, ficando a saldar o restante em prestações mensais que eram menores do que o correspondente aluguer.

    No dia da mudança, com o entusiasmo e a emoção, a Patrocínia não pôde deixar de choramingar, dizendo que só sairia dali para o cemitério. Como se enganou nesta previsão!

    Importa, porém, que recuemos no tempo e voltemos ao princípio...

    Quando tomei conta da escola, como estava em funcionamento normal, pouco tinha que fazer. Mesmo nos anos seguintes, exceptuando as épocas de exames e os períodos de matrículas, o serviço burocrático não era de maneira alguma absorvente, deixava-me tempo livre para outras ocupações.

    Antes de prosseguir, quero salientar que me dei muito bem com o pessoal que trabalhava comigo, tanto os professores (quase todo o corpo docente era constituído por senhoras) como os encarregados da vigilância e da limpeza. Foi este o meu único posto de trabalho. Quando saí, ainda ali estavam elementos que encontrei à chegada. E nunca tive problemas sérios a incomodar-me. Tenho de todo aquele grupo lisonjeiras e gratas recordações.

    Trabalharam comigo elementos naturais de Angola, de Portugal, dos Açores, de São Tomé e de Goa. Como se dizia nesse tempo, a escola era uma prova de óptimo relacionamento pluricontinental e multirracial.

    Grande parte dos alunos residia nos musseques denominados Sambizanga e Lixeira (este nome vinha da proximidade do aterro sanitário). Os seus pais tratavam-me com muita consideração. Quando era necessário, eu percorria as suas labirínticas ruelas com toda a naturalidade. Quando se aproximou a data da independência, fui aconselhado a evitá-las, pois residiam ali muitos que me não conheciam [ex-combatentes, militantes dos movimentos de libertação, vindos do mato] e isso oferecia perigo. Nunca tive nada a recear nesta zona da cidade. Esforçava-me por simplificar os trâmites burocráticos na medida do possível, ao contrário de outros funcionários que, em vez de facilitar, complicam... E essa minha actuação era compreendida e apreciada.

    Recordo, neste ponto, um caso eloquente e interessante, ocorrido nos últimos tempos da minha estadia. Precisei de ir ao palácio governamental e aí, enquanto aguardava a pessoa que precisava contactar, fui abordado por um indivíduo que me fez entrar na chamada "Sala Vip", tratando-me com extremos de gentileza. Verifiquei ser pessoa que encontrara algures, não recordando onde. Tive o cuidado de me informar e então verifiquei ser o pai de uma criança que passara anos no mato e precisava de se integrar no esquema escolar legal. Cumprindo o meu dever, pois queria matriculá-la na Escola Primária 294, fiz-lhe ver que a solução era rápida e fácil, quase instantânea. Não me assistia o direito de dificultar!

    Devo dizer que a quase totalidade dos alunos era de cor escura; não eram muitos os mestiços [em Angola o vocábulo "mulato" era repudiado, mesmo ofensivo]; frequentavam-na poucas crianças brancas, quase todas filhas dos professores.

    Tendo bom relacionamento entre todos nós, por vezes falava-se da convivência racial; as posições de cada um, embora próximas, não coincidiam perfeitamente. Recordo que um dia me perguntaram se aceitaria o casamento com mulher preta. Dei novo aspecto à questão e disse:

    — Imaginemos que eu tinha de escolher, aqui na escola, uma entre duas senhoras, a Maria Teresa, branca, e a Maria Manuela, preta. Qual entendem que eu preferiria?

    A conclusão que tiraram coincidia com o que eu pretendia sugerir, atendendo a razões evidentes, de todos conhecidas.

    Profissionalmente, além do pessoal da escola, tinha de contactar com os funcionários da Direcção Escolar Distrital, pois era o elo de ligação entre todos nós, e a Repartição de Fazenda, onde apresentava e recebia a folha de vencimentos, depois de devidamente processada e liberada, depois de as verbas serem registadas pelos Serviços de Contabilidade. As relações que entre nós havia eram perfeitas e, sobretudo nos Serviços de Educação, até se traduziam por sólida amizade.

    Uma das minhas obrigações consistia em tratar de abastecer a escola com material de trabalho. Os alunos pagavam, quase sempre no acto da matrícula, uma pequena quantia destinada à aquisição de todo o material utilizado ao longo do ano. Quase todos pagavam, de boa vontade, mas havia quem, por dificuldades financeiras, não pudesse contribuir e havia os que, intencionalmente, não colaboravam. A escola fornecia o material a todos, sem excepção, menos os livros. Evitava-se que algum aluno fosse às aulas sem o material necessário. A verba recolhida chegava para isso. No início do ano escolar, as papelarias apresentavam a concurso os seus preços. As autoridades elaboravam a lista pelos mais baixos. Por acordo, todas as casas comerciais faziam preço igual, o constante daquela lista. Os directores das escolas compravam onde lhes desse mais jeito...

    Escolhi como fornecedora, em todo o período da minha permanência, uma das melhores casas do ramo. Ali fiz bons amigos; ali adquiria também tudo aquilo de que eu e os meus filhos carecíamos. Querendo mostrar-se gentis comigo, ofereceram-me o "Dicionário de Literatura", de Jacinto do Prado Coelho, obra que muito tenho utilizado, que frequentemente consulto e ainda conservo. Facilmente souberam que eu a cobiçava!

    Já disse que o trabalho da escola não era absorvente, deixando-me tempo livre que poderia empregar noutras ocupações. Boa parte desse tempo era dedicado à pesquisa histórica, que muito me atraía, que muito me seduzia.

    Frequentava habitualmente a biblioteca do Museu de Angola e o Arquivo Histórico, que lhe estava anexo. Todo o seu pouco numeroso pessoal me tratava com alta consideração e facilitava o meu trabalho. Posso dizer que foi o organismo cultural que mais vezes visitei. Ali recolhi a maior parte dos dados para elaborar os meus escritos.

    Também frequentava assiduamente a Biblioteca Municipal da Luanda, onde captei a confiança do principal responsável, pois sabia qual o motivo que ali me levava.

    Aproveitei ainda, em larga escala, a Biblioteca Nacional, a qual substituiu a Biblioteca dos Serviços de Educação, que se tornou inoperante. O seu director, Carmo Vaz, era natural de Goa e dotado de rara cultura; escreveu o prefácio do meu livro "Primeiras Letras em Angola".

    Como curiosidade, referirei que promoveu ali uma exposição temática sobre Angola e pediu-me alguns exemplares dos livros que publiquei. Um deles, "A História de Angola", foi escamoteado por algum dos visitantes...

    Aproveitarei o ensejo para dizer que, bastantes anos depois, emprestei (em lugares, ocasiões e a pessoas diferentes) os originais de dois trabalhos elaborados [os seus títulos poderiam ser "Portugal e Espanha" e "Educação, Ensino e Cultura em Angola"]. Aconteceu que ambos se extraviaram e os responsáveis deram a mesma desculpa, a de que tinham sido perdidos. Ainda bem que eu tinha outra cópia em meu poder!

    Logo que me radiquei em Luanda, comecei a recolher elementos que se prendessem com o desenvolvimento cultural angolano. Na obra que deixara na editora, em Lisboa, esse assunto não era desenvolvido, por falta de informações. Quando já tinha razoável volume de dados, contactei com o Secretário da Educação, Dr. Pinheiro da Silva, que me ofereceu apoio e me incentivou.

    Aproveitou a oportunidade para me pedir que suspendesse aquele trabalho e me debruçasse sobre a monografia do Liceu Salvador Correia, que ia completar cinquenta anos de actividade e se programava comemorar dignamente. Assim fiz e daí nasceu o livro daquele título.

    Ainda objectei que o liceu tinha pessoal mais qualificado do que eu. Retorquiu que só em parte concordava, pois era gente na verdade competente mas que apenas sabia dar aulas, faltava-lhe o entusiasmo e a dedicação.

    O outro livro, "História do Ensino em Angola", foi impresso no ano seguinte; e pouco depois dele foi também editado o que recebeu o título de "Patronos das Escolas de Angola".

    Nesta altura da minha permanência, verifiquei que muito poderia aproveitar com uma estadia em Lisboa, a fim de consultar os documentos do Arquivo Histórico Ultramarino. Apresentei a sugestão ao governador-geral Rebocho Vaz, que a patrocinou. Desse trabalho saiu o livro "Primeiras Letras em Angola", já mencionado, e que para a sua edição teve o apoio da Câmara Municipal de Luanda.

    Com alguma prática de escrever para os jornais e revistas, quando me fixei em Luanda pensei que a minha colaboração poderia interessar a algum dos quatro jornais diários ali publicados. Ao apreciar as suas características e a minha capacidade, concluí que um entre todos se adaptava melhor. Escrevi três artigos cujo assunto me pareceu interessante e apresentei a sugestão de vir a colaborar, entregando-os ao responsável. Pouco depois veio a resposta — não havia disponibilidade, o corpo redactorial estava completo... No entanto, publicaram os meus artigos, até com invulgar realce, nada pagando por eles...

    O tempo, porém, foi passando. Um dia, recebo recado para contactar com determinada pessoa. Com surpresa minha, foi-me dito que tinha lido coisas por mim escritas e que gostaria de me ter como colaborador literário. Assim comecei a longa série de escritos publicados pela "Revista de Angola". O que mensalmente auferia era um reforço oportuno à debilidade do orçamento doméstico.

    Os meses continuaram a suceder-se e, mais uma vez sem o suspeitar, recebi o convite para me encarregar de uma série de comentários no semanário católico "O Apostolado". Era mais uma achega para a economia doméstica.

    O meu melhor relacionamento, em Luanda, era com as pessoas que comigo contactavam nas bibliotecas e no arquivo histórico, quer funcionários quer estudiosos. Contactei diversos pesquisadores nacionais e estrangeiros, alguns com valiosa obra produzida. Entre os meus amigos recordo, a título de exemplo, José Redinha, Mário Milheiros, Mesquitela Lima, Joaquim Carvalho, Canas Martins, Antero Simões.

    Como redactor da "Revista de Angola" era enviado com frequência a reuniões e festas diversas, nas quais fazia amizades e mantinha bom relacionamento. Um trabalho de que frequentemente era encarregado (e o que mais gostava de fazer) consistia em contactar para entrevistas personalidades destacadas e que pudessem dizer coisas interessantes. Devo ter efectuado dezenas de entrevistas com individualidades nacionais e estrangeiras (estas sempre a pesquisadores com os quais estabeleci contacto no Arquivo Histórico de Angola). Lembro que entrevistei o P. Carlos Estermann e o Prof. Dr. Silva Rego, assim como os componentes do Duo Ouro Negro. No entanto, o meu melhor furo foi conseguir entrevistar o famoso pianista, natural de Angola, José Sequeira Costa, nome conhecido em todo o mundo

    Os meus trabalhos jornalísticos levaram-me um dia à Emissora Oficial de Angola, onde se estava a organizar um agrupamento coral, que era preparado por cidadão brasileiro. Tinha a missão de auscultar o empreendimento, a fim de lhe fazer os comentários adequados. Entusiasmei-me e inscrevi-me como componente; inscreveram-se também os meus filhos Tomás e Cristina. O coral fez a sua primeira e única apresentação numa festa beneficente. Logo a seguir, o dirigente responsável eclipsou-se... Foi acusado de se ter apoderado de certa importância, não muito elevada, e abandonado o território. Assim morreu a iniciativa...

    Contava bons amigos entre os muitos metropolitanos ali radicados. No entanto, a convivência mais estreita era com os conterrâneos, amigos e conhecidos de longa data.

    Deu-se um dia comigo um facto curioso. Estava no ponto de paragem dos maximbombos (ónibus, no Brasil, autocarros, em Portugal) e encontrei ali uma senhora, com uma criança de uns dez anos. Procurei divertir-me com o menino e que ele se divertisse comigo. A mãe dirigiu-se-me para perguntar se eu era beirão, da Guarda, de Pêra do Moço. Perante a minha resposta, afirmativa, inquiriu se eu era o "José Domingos". Não me reconhecendo pela fisionomia, nem eu a ela, reconheceu-me pelo timbre de voz. Tínhamos nascido na mesma aldeia e éramos quase da mesma idade. Não nos víamos há muito tempo. Quis conhecer a minha família, e ficámos a conviver até que os acontecimentos nos forçaram a sair.

    Além da senhora a quem acabo de me referir, Maria Rosa, e marido, António Xavier, mantínhamos relações muito amistosas com o major aviador Lopes Marques e esposa, Maria Amélia (irmã de minha cunhada Cândida), Joaquim Marcos e mulher, Maria Teresa (irmã do que veio a ser o meu primeiro genro). Alguns anos depois, juntou-se-nos uma sobrinha, Maria de Lurdes, que residiu em casa da sua tia Maria Amélia, atrás referida [acompanhara-me quando em 1971 vim a Portugal]. O grupo foi ainda ampliado com o nascimento de algumas crianças, a filha do casal Marcos e o neto do major, filho do Manuel Emílio.

    Residindo à beira-mar, era frequente atingir as praias, mesmo sem intenção, no que nós designávamos "passeio dos tristes", quer dizer, deslocações para queimar o tempo. Quase sempre isso acontecia nas laterais da Ilha de Luanda. Era frequente passar as manhãs ou as tardes junto ao mar, preferindo nós a região de Belas, que oferecia segurança, tinha sombra e dispunha de esplanadas com cadeiras e mesas, onde se podiam tomar refrescos diversos, enquanto se lia o jornal...

    Uma vez por outra, ia-se até ao Cacuaco, onde se petiscavam baratos e saborosos "frutos do mar"; e era frequente atingirmos, na estrada do interior, a cidade de Viana, onde dispúnhamos de agradáveis esplanadas e onde algumas vezes assistíamos à missa na bela igreja de São Francisco de Assis, cuja principal característica era as paredes serem de gradeamento.

    Também visitávamos por vezes a fortaleza de São Miguel e a de São Pedro do Penedo. Quando havia predisposição, íamos até à Barra do Cuanza, ao Caxito, a Catete. Numa das deslocações a esta vila, na viagem de regresso, incendiou-se o motor do carro e tivemos de ser rebocados por um vizinho, que conduzia um "jeep" com potência suficiente para nos arrastar ao longo de algumas dezenas de quilómetros.

    Durante a permanência em Luanda saí por duas vezes da cidade, em serviço que aceitei gostosamente, pois me permitia conhecer novas terras e novas gentes, recebendo ainda um suplemento de vencimento, as chamadas "ajudas de custo". Trabalhei durante um mês em Dalatando (ao tempo a cidade designava-se Salazar), num curso de preparação intensiva de professores [monitores, assim eram denominados]. Também fui fazer serviço de exames ao leste, no Moxico (Luso) e em Cazombo.

    Durante a permanência em Dalatando, convidaram-me a visitar a belíssima queda de água do rio Lucala, em Duque de Bragança, e passámos também pela interessante cidade de Malanje.

    Na deslocação ao leste ocorreram dois factos idênticos que me impressionaram a seu modo. O pequeno avião fez escala em Vila Teixeira de Sousa; quando descia para a pista, ouvi gritar o meu nome; era um meu antigo aluno de Tortosendo, ali destacado como militar; alguns dias depois, na Missão de São Bento, fui atendido por umas freiras que connosco tinham viajado no "Rita Maria", de nacionalidade austríaca ou alemã.

    Nos oito anos e meio de estadia, desloquei-me três vezes a Portugal. A primeira vez foi em Julho de 1971, com o apoio do Governo-Geral, para fazer pesquisas no Arquivo Histórico Ultramarino; a segunda vez foi em Julho de 1973, em gozo de licença graciosa, sendo acompanhado pela Patrocínia e por cinco filhos — Cristina, Tomás, Matilde, João e Paula [estabelecemo-nos em Pêra do Moço, na residência paroquial, com o P. Alberto]; e a terceira vez foi em Janeiro de 1975, resolução momentânea, a fim de me encontrar com meu irmão Manuel, que não via há mais de vinte e um anos, e foi então que se pôs a hipótese da nossa deslocação para o Brasil, pois se estava a desenrolar o complexo processo de descolonização.

    Já referi que na minha viagem de Julho-Agosto de 1971 viajou comigo para Luanda a minha sobrinha Maria de Lurdes. Também influí para que um amigo, o Dr. Joaquim Alexandre, se decidisse a ir leccionar num estabelecimento de ensino secundário de Angola, onde se manteve até à independência.

    A nossa casa do Bairro do Caputo ficava próximo da sede da Paróquia de Cristo-Rei. Trabalhavam ali os missionários do Verbo Divino, um dos quais fora meu aluno. Entendíamo-nos bem. Em determinada altura, eles e outros sacerdotes organizaram um grupo que se reunia para preparar a pregação nas missas de domingo — padres, seminaristas, freiras e leigos. Convidaram-me para fazer parte, e aceitei. Gostei da experiência, pois algo aprendi. Verifiquei que as homilías eram preparadas com grande seriedade. Um dos elementos mais destacados dizia que não deviam ser muito breves nem muito extensas, nunca menos de cinco mas nunca mais de oito minutos. Estou convencido de que estava certo.

    A Patrocínia formou um razoável grupo de amigas, com quem passava, quase todas as tardes, algumas horas de convívio, em conversa amena. Desde a hora do almoço até que chegasse a hora de jantar, ocupavam o tempo a tagarelar e com trabalhos de agulha. Constituíam diversos grupinhos entre os quais faziam rotação ocasional, espontânea... Isso acontecia sobretudo no Caputo; na última residência, no Bairro da Samba, encontrou novas amizades, mas que duraram menos tempo...

    Eu tinha esperança de continuar em Angola. Gostei muito desta terra e tive motivos para isso. Passei ali o melhor período da minha vida. Fiz bons amigos, as condições económicas melhoraram, os filhos estavam a estudar com bons resultados, fazia trabalho de que gostava.

    Chegou um momento em que se tornou necessário tomar uma decisão. Eu sentia ainda a ferida que me fez emigrar...

    Decidimos então, por unanimidade [eu, a Patrocínia e o Jorge], deslocarmo-nos para o Brasil. O Eugénio José e o Tomás de Aquino, que estudavam no Lubango, optaram por ficar. E eu tinha vontade de ficar também...

    Contactei uma agência de viagens e embarcámos no primeiro avião da ponte aérea Angola-Brasil, ou seja Luanda-São Paulo.

    Assim terminou esta fase saliente da minha vida, foi este o fim de uma etapa bem marcante da minha existência. Pode dizer-se que em pouco tempo elaborei trabalhos de certo vulto, aumentei os meus conhecimentos sobretudo quanto à acção civilizadora que os portugueses desenvolveram em Angola. Criei ambiente intelectual propício a iniciativas futuras, pelo bom relacionamento com outros elementos do panorama cultural. Tinha vencido a etapa da preparação, estava em condições de daí em diante produzir mais e melhor, concretizando planos arquitectados ao longo deste tempo.

    O colapso da independência de Angola apanhou-me exactamente quando me preparava para mais largos voos. Embarquei levando comigo material de pesquisa que poderá dar ainda obra de volume considerável.

     

     

     

    Descolonização
     

    Causou certa surpresa a eclosão da revolução de 25 de Abril de 1974. Ao princípio pensou-se que os diversos problemas fossem solucionados dentro de limites razoáveis, atendendo aos interesses colectivos. No entanto, as coisas tomaram rumo bem diferente do que se poderia antever. Creio que ninguém previu o que aconteceu!

    Relatando apenas o que diz respeito ao agregado familiar, direi que um domingo, talvez em Outubro daquele ano, regressando da missa, na igreja da Terra Nova, fui atacado por um grupo de rapazolas, um dos quais me atingiu com duas facadas no braço esquerdo, mas consegui fugir-lhe. Tive de fazer tratamento no Hospital Universitário e, por mera coincidência, fui atendido por uma médica de cor que residia em apartamento do mesmo prédio em que nós morávamos, nesse dia de serviço ou plantão. Registe-se que, dadas as condições que se viviam, os hospitais atendiam sem atender a qualquer formalidade burocrática. Muito há a aprender com situações calamitosas!

    Passadas poucas semanas, em Novembro do mesmo ano, numa noite de sábado, fomos atacados por numeroso grupo, isto é, manifestava-se ruidosamente em frente das nossas casas, não concretamente a minha, pois estava em causa a permanência de brancos. De luzes apagadas, ouvi que se propunham incendiar o meu automóvel; um vizinho do mesmo prédio, preto, convenceu-os de que o proprietário era outro africano, evitando a sua destruição...

    Um agente da Polícia de Segurança Pública, de naturalidade goesa, também ali residente, teve a iniciativa e a possibilidade de contactar o exército, que enviou um carro com soldados armados, para proteger a sua família na retirada e poder atravessar as barreiras estabelecidas. Aproveitámos o ensejo e retirámos também, abandonando definitivamente aquela moradia, que pensávamos seria nossa por toda a vida. Fomos pedir abrigo a casa de alguns amigos, para não ficarmos ao relento, nós e as crianças.

    No dia seguinte procurámos alojamento. Encontrámos apenas um apartamento livre, em zona da cidade livre de distúrbios, e ali nos acomodámos nos últimos dez meses de permanência no território. No momento, dois dos nossos filhos [Eugénio e Tomás] estavam em Sá da Bandeira (Lubango), frequentando a Faculdade de História, e a Cristina trabalhava em Portugal. O Jorge era já professor e estava colocado na cidade de Luanda, vivendo connosco.

    Na manhã do dia seguinte, juntámo-nos com alguns amigos e voltámos a casa (só os homens adultos) a fim de retirarmos o indispensável para nos mantermos. O ambiente era desolador, sob todos os aspectos. Fizemos isso correndo sério e eminente risco de sermos maltratados.

    Alguns dias depois, tendo conseguido melhor transporte, com conhecimento das autoridades militares e o apoio de um soldado armado de metralhadora, fomos buscar mais coisas, mobília, louça e roupa. Eu ainda lá voltei, em período mais tranquilo; a esposa e os filhos nunca mais pisaram a soleira da porta. Uma família africana, mais ou menos conhecida, ocupou-a e fez dela a sua residência; nos primeiros meses pagou-nos aluguer simbólico, mas a partir de certo momento deixei de o receber.

    Os dez meses que separam a nossa "fuga" nocturna do Bairro do Caputo do embarque para o Brasil são caracterizados por um viver estranho, um tanto ou quanto irresponsável, indeciso. Tanto se trabalhava como se faltava ao serviço; assistimos a combates violentos, tendo necessidade de procurar abrigo em pontos menos expostos, mas também se passaram outros, sangrentos, a pequena distância, tranquilamente sentados na esplanada do café.

    Saliente-se, para conhecimento de quem nunca passou por estes apertos, que durante um combate, mesmo que corramos perigo, não sentimos medo, apenas e simplesmente procuramos defesa, talvez mais eficientes condições de ataque, sendo combatentes -- que nunca fui. Passado o perigo, quando a situação entra em acalmia, então sim, temos medo do que poderia ter acontecido.

    Aproveito para dizer que um dia, estando ainda na nossa casa do Bairro do Caputo, se travou combate entre duas forças militares, mesmo em frente das nossas janelas. Imprudentemente, e porque não estávamos implicados, mantivemo-nos na varanda. Em dado momento, uma bala furou o vidro de uma janela, a poucos centímetros do meu ombro. Não tenho a menor dúvida de que levava endereço certo! Imediatamente nos atirámos ao chão e rastejámos para o interior da residência. O desprezo do perigo podia ter saído caro!

    Nos combates nocturnos era curioso acompanhar o trajecto de determinadas balas, que deixavam um sulco luminoso. Os meus filhos identificavam pelo estampido o tipo de armas utilizadas. Nunca consegui distingui-los.

    Começaram a escassear os alimentos. Uma das grandes preocupações era tomar lugar na fila da padaria, para comprar o pão quotidiano. Cada um podia adquirir apenas dez unidades de cinquenta gramas. Se fosse preciso comprar mais, tinha de ir outra ou outras pessoas. Começava a juntar-se gente antes das três horas da manhã e a venda só se iniciava pelas sete horas. Como as primeiras fornadas eram insuficientes, os não atendidos tinham de esperar pelas seguintes, que demoravam até próximo do meio-dia. O ambiente que ali se vivia era descontraído e até mesmo divertido. Aparecem sempre aqueles que conseguem tirar partido de situações anormais. Já nos conhecíamos uns aos outros, tratavamo-nos como família. Pertencíamos, de facto, à numerosa família dos excluídos... dos marginalizados.

    Também no comércio comum iam faltando artigos. Cheguei a ver lojas sem nada para vender. A circunstância de o dinheiro local não ter valor fora do território fazia com que qualquer de nós comprasse tudo o que encontrasse e agradasse, mesmo sem necessidade à vista.

    Logo que os alimentos e artigos de comércio começaram a escassear, a cooperativa dos funcionários limitou as compras a determinado volume ou peso. Como me sobrava tempo livre, todos os dias fazia compras, estocando as aquisições. Quando saímos, não faltou quem ficasse com elas...

    O pavor do desconhecido era o pior. Não faltavam rumores alarmistas. Se muitos se não concretizaram, não foram poucos os que tiveram realização. O elemento feminino era o mais afectado. A Patrocínia chegou a viver situações de pânico; um dia, em que teve uma crise nervosa, levámo-la ao Posto de Saúde, onde foi medicamentada sem que se apercebesse, e nunca mais veio a recordar o que acontecera.

     
     
     
     
     

    No Brasil
     

    Tomámos o avião da VARIG, no aeroporto de Luanda, pelo meio-dia de 22 de Setembro desse ano de 1975. Aterrámos no Rio de Janeiro, onde trocámos de aparelho, creio que para um dos aviões da ponte aérea São Paulo — Rio. Chegámos ao aeroporto de Congonhas perto das dez horas da noite, horário local. Aguardavam-nos meu irmão Manuel, os tios Joaquim e José, que não conhecera ainda, vários primos, sobrinhos e amigos.

    Eu tinha tido o cuidado de avisar por telegrama a nossa chegada e o número de pessoas, no caso oito familiares. Havia chegado a tempo (em Angola não se sabia se as comunicações internacionais funcionavam) e antes de o telegrama ser entregue já a TELESP avisara por telefone.

    Trazíamos volumosa bagagem, preenchendo o peso que nos competia transportar e pagando razoável importância de excesso de carga. Verificou-se que determinados volumes não poderiam ser transportados nos diversos automóveis, pelo que um amigo, Armando Videira, solicitou a presença de uma carrinha da sua empresa, na qual já foi possível carregar tudo.

    Fomos acomodados em casa de meu irmão, podendo calcular quanto seria difícil arranjar condições de alojamento para a sua família, cinco pessoas, a que se juntou o grande contingente de mais oito imigrantes.

    Nos dias seguintes começaram a visitar-nos os nossos muitos parentes e diversas pessoas conhecidas e desconhecidas. Juntava-se ao interesse de ver e cumprimentar um conterrâneo a curiosidade nascida das emocionantes notícias ao tempo difundidas acerca do que estava sucedendo em Angola

    Como curiosidade, posso referir que completámos vinte e cinco anos de casamento no primeiro domingo passado em São Paulo.

    Entrámos no Brasil na qualidade de turistas. Começámos logo a tratar da fixação, que não foi tarefa fácil. Eram já muitas dezenas os indivíduos que cuidavam do mesmo assunto. As autoridades brasileiras organizaram, em São Paulo, uma equipa denominada "força-tarefa", tendo o objectivo de apressar e simplificar. Os refugiados de Angola foram até dispensados do pagamento de certos emolumentos, que nós e outros, chegados mais cedo, tínhamos já quitado.

    Não poderá dizer-se que tudo correu sobre carris. No entanto, registe-se que nos foi imediatamente fornecida a carteira de trabalho, documento indispensável para conseguir emprego e suficiente para comprovar a identidade e a situação

    Posso dizer que, tendo entrado no Brasil a 22 de Setembro de 1975, só recebi os documentos a autorizar a permanência definitiva em 27 de Janeiro de 1977 — por coincidência, o dia em que meu pai faleceu, em Portugal.

    Entrámos no Brasil com a quantia de dinheiro permitida aos turistas, que não dava sequer para turismo de miséria. Acrescentemos que só tinham direito à transferência os maiores de dezoito anos. Nós éramos oito, mas quatro não tinham ainda aquela idade. A inteligência dos governantes deixa muito a desejar!

    O problema da habitação foi resolvido com relativa facilidade. Alugámos casa mesmo junto da de meu irmão. Curiosamente, em cada uma das quatro faces do quarteirão, quadrado, vivia uma família de parentes — a minha, a de meu irmão, a de meu tio José, e a de sua filha Yolanda, mais conhecida por Yone, pela ordem indicada. Podíamos visitar-nos sem atravessar a rua. Vivíamos no Bairro das Perdizes, em São Paulo. Ocupámos esta casa no dia 1 de Outubro seguinte.

    Não posso deixar de referir que, atendendo à nossa situação, recebemos invulgar e inesperado apoio dos muitos parentes, de conhecidos e amigos, e até de pessoas inteiramente desconhecidas. Confessarei, gratamente, que a nossa casa recebeu tudo aquilo de que carecia — mobiliário, louça e até tapetes e cortinados. Eram mobílias fora de uso, outras que foram substituídas na ocasião, e recebemos até coisas compradas expressamente para nos oferecerem, mesmo de elevado custo. Os anos passados não trouxeram o esquecimento nem diminuíram a gratidão.

    Os filhos, em condições de se empregarem, facilmente encontraram trabalho. Eu, pessoalmente, devido à idade, tive maiores óbices, mesmo grandes dificuldades. O que eles iam ganhando permitia que a família sobrevivesse sem carências diminuentes ou humilhantes.

    O pior estava para chegar. Já referi que os nossos filhos Eugénio José e Tomás de Aquino, a estudar em Sá da Bandeira, tinham optado por se conservarem em Angola.

    Eu tinha vago conhecimento de que o Eugénio se alistara nas forças militares de um dos movimentos. Pareceu-me uma resolução pouco sensata, intrometendo-se mais do que o necessário em questões internas e em que nós apenas poderíamos colher dissabores. Não tinha sido pedido o meu parecer. Estava a mil quilómetros de distância. Mesmo que me deslocasse para o dissuadir, ele não acederia. Ao tempo, as viagens eram temerárias.

    Estávamos já a residir na Rua Bartira, quando chegou a primeira informação, por telefonema dirigido a meu irmão, proveniente de Portugal. Não sei como, a nossa família recebera comunicação de que um dos filhos tinha falecido. Passando por diversas etapas, chegou-nos deformada, sem indicações concretas. Nem chegámos a saber ao certo qual deles tinha morrido, nem como nem onde. Apesar de tudo, aguardávamos notícias mais exactas, até a de que se tratasse de um equívoco — nunca mais recebidas. Vivemos momentos de horrífica ansiedade.

    Algum tempo depois, chegou outra comunicação tão angustiante como a primeira, só que mais explícita, não sei já por que meio, parece-me que igualmente pelo telefone. Os dois filhos que quiseram continuar em Angola estavam mortos.

    O Tomás de Aquino, tendo conhecimento da nossa saída rumo ao Brasil, aproveitara o lugar disponível num automóvel que viria para Luanda, com a intenção de nos ver e se despedir. Disseram-nos que o condutor, creio que uma senhora ou menina, carecia de prática de condução, não sei se isso era exacto ou falso. O certo é que, logo à saída da cidade, tiveram um desastre, sendo o Tomás de Aquino vítima mortal. A condutora do veículo [fizeram-nos acreditar que iam só dois passageiros] ficou gravemente ferida; nunca soubemos quem era e se conseguiu salvar a vida. Acontecera o acidente no dia 19 de Setembro.

    O Eugénio José, que se alistara como combatente, acompanhou uma coluna militar, disseram-nos que à região de Matala. Ali encontrou a morte, em circunstâncias indefinidas, nunca conhecidas em pormenor, em dia incerto dos meados de Outubro desse mesmo ano de 1975.

    Foi golpe duríssimo para todos, mas sobretudo para a Patrocínia. O sistema nervoso, que já apresentava problemas, foi profundamente afectado. Envelheceu precocemente. Durante muitos meses arrastou uma amargura deprimente. Mais de uma vez saiu de casa sem rumo, chegando a quase não saber dar indicação da residência. A situação agravava-se com o facto de, durante toda a tarde, ficar sozinha em casa. Teve o apoio e compreensão de familiares e amigos. Quem mais de perto a acompanhou, apenas pela vontade de ajudar, foi uma conterrânea de Guilhafonso, que residia muito perto de nós, indo a Patrocínia para sua casa ou indo ela para a nossa — D. Genoveva Alves, casada com um meu condiscípulo da escola primária, João Alves.

    Renovo constantemente este drama familiar ao ter conhecimento dos casos trágicos diariamente ocorridos e de que o jornal, o rádio ou a televisão nos dão notícia. Nunca deixo de me ver no espírito e na angústia de cada um dos atingidos!

    Pondo de lado diversas experiências e tentativas, pode dizer-se que os meus filhos encontraram ocupação numa rede de comércio varejista, Sé Supermercados, onde cinco deles trabalharam, alguns vários anos. O Jorge, depois de trabalhar poucos meses sem vínculo patronal [como autonomista], empregou-se na Auto Viação Urubupungá e aí se manteve enquanto não voltou a Portugal. Por mim, depois de muito calcorrear, fui admitido na Laminação de Nossa Senhora do O, dos mesmos sócios, e ali me mantive exactamente seis meses.

    Diz-se que a sociedade, transformando-se constantemente, sofre viragem completa no período de vinte e cinco anos. Lembro que dois dos sócios das empresas referidas eram, no momento em quer nós casámos, um quarto de século antes, empregados do meu sogro; agora era eu e um filho, e alguns anos depois uma filha, Matilde, seus empregados. Nada há de vergonhoso nisso. Nunca considerei o facto como degradação.

    Não deixarei de dizer que, neste meio-ano em que ali trabalhei, os piores dias foram os do pagamento mensal. O que auferia não era suficiente para pagar a renda de casa, excluindo a água e a electricidade. Isso fazia-me sofrer.

    Passaram-se dois anos. A Cristina, já casada, foi visitar-nos. Eu procurava casa para comprar, pois o contrato de arrendamento estava a findar e era-me exigida uma importância que considerava exagerada. Pagando mais alguma coisa, poderia quitar a prestação mensal.

    Um conterrâneo convidou-nos para almoçar. No decorrer da conversação, disse que estava a concluir a construção de uma casa que tencionava vender. Fomos visitá-la e fácil foi fechar negócio. Pagaria cerca de quarenta por cento, a entrada, em três meses, e o restante em mais três anos, sem juros nem correcção monetária. O preço era elevado no momento da aquisição mas tornou-se muito barato no momento de pagar, devido à inflação registada e de que eu estava livre. Fica localizada no município de Osasco, no bairro designado por Vila Iara, junto à divisa com São Paulo.

    Já que falo nisto, direi que, por sugestão da Patrocínia, comprei mais duas moradias. A primeira foi para os filhos; pagámo-la em comum, pois eles tinham ganho a quase totalidade do custo da primeira; o negócio foi efectuado nos moldes da anterior, só que em dezasseis prestações. A última foi adquirida alguns anos mais tarde, para que o João de Brito pudesse casar. Ao comprar a segunda, a Patrocínia [agora já refeita dos transtornos de saúde] pensava que serviria para algum dos filhos mais velhos; veio a servir exactamente para a mais nova de todos.

    Depois de trabalhar durante seis meses na Laminação de Nossa Senhora do O, empreguei-me numa panificadora que meu irmão e outros amigos acabavam de comprar. Ganhava um pouco mais e era trabalho mais agradável. Ao fim de sete anos, um dos sócios saiu e propuseram-me que eu ficasse com parte da quota em venda; assim aconteceu, mantendo-me na nova posição durante mais dez anos. Estávamos na primeira quinzena de Outubro de 1983. Não havia ainda decorrido um mês desde que o Jorge e a Matilde deixaram o país.

    A família de Portugal foi desaparecendo pouco a pouco — meu pai, a Prazeres, o Cónego Messias; mais tarde, a tia Piedade, o António, e antes dele a esposa (Nazaré); por último, o P. Alberto, este em 1994, e o Joaquim, já neste ano de 1996. A família do Brasil, mais numerosa, registou maior número de falecimentos, mais de uma dúzia de parentes.

    Em 1981, os irmãos vivos ofereceram à Patrocínia, com verba tirada de uma conta comum, o bilhete de passagem, ida e volta, pela TAP. Foi esta a primeira vez que deixou o Brasil, rumando de São Paulo para Lisboa.

    Voltou cheia de entusiasmo. E então o Jorge e a Matilde, ambos a trabalhar na Auto Viação Urubupungá, decidiram passar as férias em Portugal. Tendo regressado em Março de 1983, em Setembro seguinte transferiam-se ambos, regressando com carácter definitivo, ele colocado como professor e ela tendo o objectivo de prosseguir os estudos interrompidos.

    A Patrocínia voltou a Portugal em Fevereiro de 1985. Nos mesmos dias chegavam ao Brasil o P. Alberto, o Joaquim e a Cândida. Na viagem de regresso, sentiu-se doente e teve de ser assistida por um médico que ocasionalmente fazia o mesmo trajecto.

    Em Abril de 1990, em Setembro de 1991, em Maio de 1993, em Maio de 1995 e em Abril de 1996 viemos os dois. Durante a estadia de 93, veio também o José António; na de 95, o João e a Arlene; e em 96 novamente o José António com a Aparecida. Como pode ver-se, bastante dinheiro temos deixado nas empresas de aviação, boas quantias temos pago nas agências de viagens.

    Durante a estadia de seis meses, de Maio a Novembro de 1995, tomámos a resolução de adquirir um apartamento em Braga. A Patrocínia sempre sonhara com a fixação em Portugal. Pusemos a Guarda de parte, devido aos rigores do seu inverno. Esteve primeiramente em vista comprar um que fica junto ao da Matilde; depois, tendo visitado outro, ao lado da casa do Jorge, optámos por ele.

    Fica em melhor situação, relativamente à cidade, ao comércio e centros de interesse; estava em fase de conclusão, enquanto o primeiro era usado; ficávamos com liberdade de escolha dos móveis, pois aquele estava já mobilado; o preço era praticamente o mesmo; a construção é de qualidade bastante superior...

    Ocupámo-lo no dia 22 de Setembro de 1995. Nesse dia completavam-se vinte anos sobre a data da entrada no Brasil, como atrás referi.

    Quando cheguei ao Brasil, eu era um viciado pela leitura, consequência de hábitos que vinham de longe. Comecei por frequentar as suas livrarias, verificando estarem pouco fornidas de obras de interesse. Os autores melhor representados eram José Mauro de Vasconcelos, Erico Veríssimo e Jorge Amado. O primeiro desapareceu dos escaparates e o segundo foi-se escondendo; só o terceiro se manteve como autor de obras de grande divulgação.

    Alguns anos depois, por motivos diversos, comecei a interessar-me pelas gravações de música sacra, sobretudo católica, ortodoxa, reformada ou anglicana. Registou-se nesses anos extraordinário interesse por música religiosa, em todo o mundo, com a prensagem de milhares de títulos. Consegui facilmente um acervo de várias centenas de discos e fitas. Eu e o Luís Alberto fomos os quase únicos ouvintes deste género de música.

    Tornei-me frequentador habitual de algumas casas de espectáculos, dando particular preferência ao belíssimo Teatro Municipal e ao pobre mas muito agradável Teatro do SESI (mantido pela Federação das Indústrias), pois apresentavam bons programas a preços reduzidos e muitas vezes até com entrada gratuita.

    Por iniciativa do Jorge e do Luís, passei a receber diariamente a "Folha de S. Paulo", como assinante. Viciei-me na sua leitura. Trata-se de uma publicação digna de apreço, um jornal de nível excepcional.

    Vivendo no Brasil mais do dobro do tempo que passei em Angola, as manifestações de actividade foram incomparavelmente menores. Quase deixei de escrever, nada publiquei na imprensa; não frequentei as bibliotecas e arquivos, não me relacionei com pessoas cultas (exceptuando a musicóloga Nilceia Baroncelli); não me integrei em organismos filantrópicos, não colaborei em serviços religiosos. Nunca me despertou o interesse, mas também nunca ninguém me dirigiu um convite. Culturalmente, ganhei apenas num pormenor, alarguei um pouco os meus conhecimentos de História da Música. Isso é um quase nada para tanto tempo!

     

     

     
    Novas Condições de Vida
     
     
     

    Transportes e Comunicações

    Nestas sete últimas décadas do século XX, que está prestes a extinguir-se, grandes e profundas alterações se registaram no modo de viver e nas condições gerais da existência. Poderá afirmar-se que, em muitos aspectos, se avançou tanto neste período como em muitos séculos de história.

    Comecemos por avaliar o que foi a evolução dos meios de transporte e das comunicações. As diferenças poderão ser aqui mais evidentes e mais perfeitamente apreendidas do que noutros sectores da vida social.

    Em 1925, ainda a maior parte do transporte de mercadorias era feita em carros de tracção animal, exceptuando as grandes distâncias, nas quais se aproveitava a rede ferroviária, que nem sempre ficava perto. Com a vulgarização dos motores de explosão, começaram a abundar os automóveis e camionetas. Estas eram simplesmente pequenos veículos de quatro rodas. Aqueles que alicerçavam o ganha-pão no transporte de mercadorias viram a inovação como uma catástrofe social. A previsão não se concretizou

    A rede de estradas portuguesas foi praticamente estabelecida na década que vai de 1931 a 1940. Dois motivos nos levarão a compreender isso. Tinha-se conseguido, poucos anos antes, uma situação política e administrativa estável e, consequentemente, começaram a aparecer os meios fiduciários necessários ao empreendimento; acrescentemos a isto a realidade de então começar a divulgação dos transportes motorizados.

    As primeiras estradas lançadas, muito estreitas, de que ainda temos algumas amostras, circundavam as serranias em curvas fechadas e o seu piso era de brita miúda, as conhecidas estradas macadamizadas, nome derivado de um famoso engenheiro que as divulgou, Mac Adam. O lançamento do piso era feito quase inteiramente por trabalhadores braçais, que cavavam o leito, e o acabamento, o calcamento, efectuado com pesado cilindro de pedra, de tracção animal. A Junta Autónoma das Estradas conserva alguns, como relíquia, em diversos pontos do País.

    A abertura das estradas e a realização de outros trabalhos inseriu-se também no esquema de protecção e assistência social, em tempo de crise e de miséria. Funcionou nesses anos um organismo que para mim corresponde à primeira sigla decorada, a C.A.P.I., letras iniciais de Campanha de Auxílio aos Pobres no Inverno. Tornavam-se necessárias as estradas e também a campanha.

    Antes disso, as actuais estradas nacionais eram de terra calcada, com rilheiras bem marcadas e quase intransponíveis lamaçais no tempo de chuva. Recordo que, no meu tempo de muito criança, juntavam-se sempre vários donos de carros que transportassem batatas para o comboio, pois em certos pontos era necessário pôr duas juntas de vacas (ou bois) a puxar o veículo.

    O transporte rápido de automóvel era pouco mais de um sonho e as viagens de avião poderiam considerar-se quase uma fantasia. Recordemos que a primeira viagem aérea de Lisboa ao Rio de Janeiro, em 1922, efectuada por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, demorou quase três meses e empregaram três aparelhos. Em 1961, ao começar a guerra em Angola, a viagem de avião ainda demorava vários dias. Menos de dez anos depois, passou a realizar-se em voo único de poucas horas.

    Havia telefone, mas o seu uso tornava-se difícil, porque eram poucos os aparelhos e a técnica ainda muito rudimentar. Já depois de 1970, para fazer um telefonema entre Angola e Portugal, esperava-se por vezes durante algumas horas até que a telefonista conseguisse ligação.

    Os preços a pagar eram, comparativamente, muito caros. Nas pesquisas feitas em documentos conservados nos nossos arquivos, concluí que, um século antes, em 1870, um professor primário de Angola (onde os salários eram mais altos), se fizesse a viagem em primeira classe, entre Lisboa e Luanda, teria de pagar preço correspondente ao seu vencimento anual. Como exemplo, parece bem eloquente.

     

     

    Vestuário e Calçado

    Os homens adultos, sobretudo os mais velhos, no meu tempo de criança, usavam calças de surrobeco e blusas de raxa, panos grosseiros de lã, adaptados ao tempo frio. Ao fazer a compra de tecidos havia a preocupação da durabilidade. De inverno, punham na cabeça um garruço (ou garrusso, não conheço a ortografia nem o seu étimo), muito semelhante ao barrete dos pegadores de touros; apresentava a vantagem de se enfiar mais ou menos profundamente. A cor geral era de um cinzento muito escuro, quase preto.

    O agasalho mais eficiente era constituído pelo capote alentejano (não sei se a designação seria exacta), com gola de pele de raposa ou de tecido peludo. Havia também quem se agasalhasse com o xaile-manta, que eu próprio usei. Os sobretudos eram considerados moda de gente da cidade, mas em breve se vulgarizaram. Os mais antigos usavam o varino, espécie de capote provido de mangas; o nome nada tem a ver com as varinas, vendedeiras de peixe originárias de Ovar, prendendo-se a vara, antiga medida de comprimento , que correspondia a 1,10 m.

    O calçado de inverno eram os conhecidos tamancos, com protecção de ferragens, para aumentar a duração. No verão, usavam-se as botas de atanado, com piso de sola. Era eu muito pequeno quando começaram a usar-se os pneus velhos para o piso do calçado de cote, que os mais idosos raramente adoptavam. As chamadas empenas das botas, quer dizer, as faces laterais [o dicionário de meu uso não regista o termo, nesta acepção], eram aproveitadas, quando já velhas, para fazer tamancos "novos", aplicando-lhe piso de madeira de salgueiro. Expliquemos que era bom isolante do frio e da humidade. Os mais abastados usavam, particularmente ao domingo, as conhecidas e tão depreciadas "botas de elástico", bem parecidas com as que algumas senhoras usam hoje.

    De inverno, os homens vestiam ceroulas, quase sempre de flanela, que eram atadas à canela com dois pedaços de nastro, fita branca. A camisa, outrora de linho, passou a ser de algodão, o "pano cru", pois era branqueado em casa. Tinha corte que se aproximava das nossas blusas, com botões só em parte da sua altura; para baixo era fechada por costura. O peito, ou peitilho, que lhe aplicavam no lugar correspondente, assim como os punhos e o colarinho eram de um tecido mais fino, designado popelina. Os homens antigos não usavam colarinho duplo, como o nosso de hoje, mas colar simples, sem virada, como certo modelo que há meia dúzia de anos ainda começou a vulgarizar-se (e que no Brasil tinha o nome de "colarinho português"). A camisa dos dias grandes, por exemplo o do casamento, era ricamente bordada e só se vestia em festas de muita cerimónia. Nos punhos usavam-se abotoaduras de ouro ou prata; e no colarinho viam-se botões de ouro ou de osso, cuja forma se assemelhava à das abotoaduras.

    O chapéu de feltro era um apêndice que ninguém dispensava e que se começava a usar desde bastante pequeno. Deve atribuir-se à imitação dos senhores da cidade o uso da bengala, que nunca se dispensava nas festas e nas feiras — por vezes tinha aplicação nas zaragatas que frequentemente se armavam...
     
     
     

    Fiação e Tecelagem

    Quando eu era pequeno, ainda se cultivava na nossa região o linho com que se fabricavam os respectivos panos caseiros. Constituía, porém, um como que resto de tradição, tendo sido abandonada a sua cultura. Recordo ainda alguns episódios que se prendiam com a tradicional manufactura — sementeira, colheita, extracção da semente, demolha, o acto de maçar, espadelar e assedar. Não recordo se minha avó, minha mãe e minhas tias fiavam a pequena produção; lembro-me de ver rodopiar o fuso, mas não como ocupação muito prolongada.

    Minha tia Piedade ocupava-se durante boa parte do ano nos trabalhos de tecelagem. Com o fio do linho fazia pano para toalhas de mesa e toalhas de rosto; e com o de fibras mais grosseiras, estopa e tomentos, tecia, respectivamente, lençóis e sacos para transportar cereais.

    Havia quem tecesse lindas e valiosas colchas. Sei que ela sabia fazer esses trabalhos, mas não lhes dedicava muito tempo; deveria ter motivos para isso. O que mais a ocupava era a tecelagem das colchas de retalhos (que nós designávamos "mantas de farrapos") aproveitando desta forma os restos das roupas que ficavam incapazes de uso, sobretudo os de algodão, pois só aproveitava os de lã se fossem de tecido fino.

    Os trapos de lã, de tecido grosso, eram vendidos aos farrapeiros. Tinha fama um comprador chamado Dominguiso, que depois vim a saber ser o nome da aldeia da sua naturalidade, uma freguesia do concelho da Covilhã. Comprava também peles de coelho, ferro velho e, no Estio, o lenticão [que é o grão deformado e alterado do centeio, donde se extrai não sei que produto químico].

    A figura do farrapeiro era invocada para manter as crianças em sossego, sob a ameaça do "homem do saco".

    Quando professor em Tortosendo, pude verificar que esses restos eram transformados em pasta, novamente fiados, e serviam para fabricar cobertores.
     
     

    Confecção e Costura

    Na minha infância, a roupa era toda talhada sob medida. Não se generalizara ainda o comércio de roupas feitas. Entre as profissões que se espalhavam pelas zonas rurais, a de alfaiate era uma das mais prestigiadas, embora muitas vezes a perfeição do corte e dos acabamentos deixasse a desejar. Nas cidades a coisa corria rumo paralelo, com a diferença do preço e da qualidade.

    Nunca tive a preocupação de bem vestir. Todavia, já depois de casado mandei fazer vários fatos (na Guarda e em Tortosendo) e até camisas, estas numa conceituada modista de Santo Tirso. Outros tempos, outros costumes, outras condições de vida!

    Em casa de meus avós e meus pais, a roupa branca era confeccionada por minha tia Piedade, utilizando a máquina de costura de minha mãe, que poucas vezes se servia dela. Fazia-nos as camisas e as ceroulas, e ainda as cuecas que só os sobrinhos vestiam e apenas no verão. Pode dizer-se que era bastante primorosa no que fazia.

    Vendo as coisas a mais de meio século de distância, concluo que era no conserto da roupa, as calças, que ela mostrava uma habilidade incomum. O tecido corroía-se de forma desigual, mais nos joelhos. Aplicava-lhes então uns rectângulos de tecido igual ou semelhante, a partir das costuras primitivas e de mais duas, horizontais. O resultado era satisfatório, bem mais agradável do que os grosseiros remendos que outros usavam. Pessoalmente, apreciava esta sua destreza, esta aptidão engenhosa. Poderíamos concluir que as peças de roupa confeccionadas com mais de um tecido não são novidade, pois vêm do tempo de Arlequim. Até eu as usei, sob o aspecto acabado de referir.

    * * *

    A minha região nunca se destacou pela presença de artistas manuais, pois havia apenas alguns poucos, quase indispensáveis segundo os modos de viver de então. Só nos últimos tempos, se tornaram conhecidas as peças de cutelaria fabricadas no Verdugal, por artesãos da minha idade e meus companheiros nos bancos da escola.

    Os ferreiros trabalhavam de preferência de madrugada, diziam que para não serem incomodados pelos que se aproximavam do fogo a fim de lhe sentirem o agradável calor. Os sapateiros, por sua vez, faziam prolongados serões, dizendo-se que o trabalho rendia mais do que nas madrugadas. Os carpinteiros, ao contrário, não faziam serões nem madrugadas, pois era frequente exercerem a profissão ao ar livre. O trabalho de pedreiro era quase sempre ocasional, pois nem sempre se construíam casas ou levantavam paredes. O mesmo se pode dizer dos caiadores, pois a pintura e caiação das casas só se fazia de longe em longe, muitas vezes nos dias que antecediam as festas locais.

    As actuais calças de ganga ou caqui eram então quase exclusivamente usadas por pedreiros e pintores (caiadores), devido a serem resistentes e de baixo preço. Sabe-se que começaram a vulgarizar-se como forma de protesto contra os hábitos burgueses, como contestação aos costumes sociais. Se ganharam por um lado, perderam a parada por outro! São hoje mais que burguesas!

    Mais constante era o trabalho dos latoeiros, que faziam de novo ou consertavam vasilhas de lata (folha-de-flandres) ou de zinco — regadores, baldes, caldeiros, cântaros, funis, candeias de petróleo... Uma das artes destes profissionais era a de deitar "gatos" nas peças de louça que se partissem sem se estilhaçarem. Hoje, em que a louça antiga é altamente apreciada, ainda é possível achar casos em que se fez este conserto, a aplicação de garras ou ganchos de arame zincado; a colagem era feita com massa de farinha de trigo.

    Falámos atrás dos carpinteiros. Não podemos esquecer certas modalidades do seu trabalho, variantes profissionais que muitas vezes se acumulavam no mesmo indivíduo. Pensemos nos marceneiros, que fabricavam as peças de mobília que perfaziam o recheio doméstico, umas vezes singelas e outras vezes trabalhadas; pensemos nos tanoeiros, que faziam as pipas, tonéis e ancoretas, e se dizia ser a mais exigente modalidade de carpintaria; pensemos também nos fabricantes de artefactos de lavoura, carros e arados, grades e cancelas; pensemos ainda nos serradores que dos grossos troncos de carvalho, castanheiro e pinheiro tiravam traves ou vigas, tábuas ou caibros, ripas ou costaneiras, de acordo com a matéria prima e as necessidades previstas. Ao tempo, esse trabalho ainda era manual, sendo precisos dois homens para o realizar em boas condições e com rendimento.

    O vocábulo genérico daqueles que trabalham a madeira, carpinteiro, designa etimologicamente o operário fabricante de carros — rodados e chedas (ou chedeiros).

    Não deixarei de dizer que o meu avô materno era um bom artífice em todas estas modalidades; o tio António ainda quis aprender, mas não chegou a dominar os segredos da arte. Armar uma pipa ou o rodado de um carro eram trabalhos de oficiais competentes, não de qualquer amador. Dentro das suas limitações, meu pai também se empregava em fazer artefactos da lavoura, com notória perfeição.
     
     
     

    Vida Agrícola

    Boa parte dos trabalhos agrícolas eram manuais. Nesse tempo ainda não havia tractores. Nas cavas, nas sachas e nas malhas, os trabalhadores eram distinguidos por "direitos" e "esquerdos", colocando-se sempre segundo esta característica. Não se toleravam excepções, tendo em vista evitar acidentes pela possibilidade de involuntariamente serem atingidos outros trabalhadores com pancadas perigosas.

    Era considerado direito aquele que manobrava a ferramenta tendo a mão direita afastada do corpo; era considerado esquerdo o de posição contrária. Consequentemente, os primeiros ficavam todos do lado direito e os outros todos do lado esquerdo. Sabemos que, com isso, se pretendia garantir a segurança de todos. Tal como na quase igualdade de homens e mulheres, assim era quase igual o número de trabalhadores direitos e esquerdos. Eu incluía-me entre estes.

    Em casa de meus pais e avós, um trabalho agrícola despertava particular atenção, o corte de erva para o feno. Vinham fazer esse serviço alguns nossos parentes dos Montes, considerados bons gadanheiros. Era um dia de trabalho exaustivo, mas também dia de festa e alegria. Um deles, primo coirmão de meus pais, contava os acontecimentos com graça especial, os ouvintes "riam a bandeiras despregadas". Apesar de ter idade bastante, nunca consegui trabalhar com a gadanha, por falta de força física e por não conseguir usar aquele instrumento em posição conveniente.

    A ceifa era também manual. Contratavam-se por uma semana algumas dezenas de ceifeiras, encabeçadas por poucos homens, os manajeiros; elas ceifavam e eles enfeixavam o centeio, fazendo molhos que juntavam em pequenos montes, os rolheiros. Transportados para as eiras, formavam as medas.

    Na minha infância, a malha ainda era manual. Seis ou oito homens, metade de cada lado e uns em frente dos outros, batiam compassadamente com os pírtigos dos manguais sobre as paveias estendidas, que algumas raparigas colocavam a jeito, quando necessário. A limpeza do grão era feita por máquina movida a braços, a tarara. Pouco depois apareceu a malhadeira simples, depois mais aperfeiçoada, até se atingir a eficiência das actuais.

    A pecuária sempre exerceu papel de relevo e foi o ramo que melhor se adaptou às condições modernas. Na minha família o interesse da exploração fixou-se sempre no gado vacum, desprezando o ovino, caprino e cavalar. No entanto, havia na aldeia vários rebanhos de ovelhas e pessoas que muito sabiam e gostavam da sua criação. No inverno, pastavam de dia e dormiam nas lojas; no verão, pastavam de madrugada e ao escurecer, e dormiam nas "malhadas", redutos diariamente transferidos, no campo, a fim de estrumarem o solo. No inverno, por vezes os lobos faziam estragos, matando e comendo as reses. Os cães de guarda dos rebanhos eram protegidos por coleira de ferro com bicos, pois os lobos procuram dominá-los, mordendo-lhes o pescoço.

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    A enumeração dos inventos e aperfeiçoamentos registados nestes três quartos de século daria uma lista bastante extensa. Não vamos referir senão os mais importantes.

    As pneumonias eram doenças que frequentemente levavam à morte. Pode dizer-se a mesma coisa da febre intestinal. Era muito frequente um tumor epidérmico, o carbúnculo, que precisava de ser queimado com pontas de fogo [não se usava a anestesia] ou com um produto químico, que não posso identificar; evitava-se a morte, se fosse detectado a tempo. Meu irmão Joaquim teve um, queimado quimicamente, sem dor, mas que deixou indelével cicatriz. Havia por vezes grande mortandade nos rebanhos, provocada pelo carbúnculo; não sei se o das pessoas tinha origem no dos animais. Talvez tivesse. Esta doença parece ter sido erradicada.

    A grande evolução começou com a divulgação dos antibióticos. Veio depois disso a vulgarização dos medicamentos injectáveis. Seguiram-se os transplantes de órgãos. Podemos recordar outros tipos de cirurgia hoje correntes e então raramente efectuados. A descoberta da penicilina fez uma revolução...

    Os tecidos eram outrora confeccionados com fios de lã ou algodão, nalguns casos o linho. Hoje grande parte deles é fabricada com fios sintéticos, de vários tipos, e que por vezes mal se distinguem dos naturais, sendo frequente que sobre estes apresentem evidentes vantagens. Seria praticamente impossível fazer as nossas roupas apenas com fibras animais e vegetais, que se tornariam insuficientes.

    O calçado de antigamente era feito a partir de peles. Hoje, particularmente para os pisos, usamos produtos artificiais, de maior duração e mais baratos. A sola de outros tempos começou por ser substituída pela borracha; esta em breve passou a ser sintética; até os grosseiros e pesados pneus foram postos de lado, por terem aparecido substitutos que oferecem maiores vantagens.

    O antigo transporte de mercadorias, em carros de tracção animal, é efectuado em velozes e potentes camiões e carretas. A lavra das terras deixou de ser feita por animais para ser feita por arados mecânicos. Os outrora abundantes cavalos são hoje muito raros, considerados artigo de luxo, e os pacientes e humildes jumentos ou burros estão ameaçados de extinção, pois deixaram de nos interessar os valiosos serviços que nos prestavam.

    O abastecimento alimentar baseava-se muito nos produtos agrícolas locais, ou pelo menos nacionais, e tinham época de produção bem definida. Hoje conseguimos produzir em estufas praticamente tudo em todo o ano, e contamos com o abastecimento a partir das mais remotas regiões do globo.

    A televisão e o rádio põem-nos em contacto com todo o mundo, a qualquer momento do dia ou da noite. Conversamos com os nossos familiares, estejam onde estiverem, a partir de estações telefónicas que se apoiam nos numerosos satélites artificiais que giram em torno da Terra, com ligações momentâneas e de baixo custo. Podemos telefonar de casa ou do carro, da rua e do avião.

    A rega das hortas era quase sempre feita com água tirada dos poços, por meio de picotas. Foi serviço que muitas vezes fiz. As plantações maiores, de batata ou de milho, eram regadas com água puxada pelas noras, engenhos de tracção animal. Só mais tarde, aí pelos meados do século, começaram a aparecer os motores de explosão que utilizavam o petróleo como combustível..

    A iluminação era conseguida pela combustão do petróleo, em casos muito raros o acetileno. Eram sistemas pouco eficientes e incómodos. Hoje dispomos da energia eléctrica -- barata, sempre pronta, que se acende e apaga instantaneamente e à distância, se quisermos até automaticamente.

    O aquecimento doméstico era feito com lenha ou carvão. Na cozinha havia a lareira e na sala tinha-se a braseira. Hoje tanto podemos usar o gás como o petróleo, a energia solar ou a electricidade. Pouco se pensava em refrigeração, hoje comum. Há até possibilidade de instalar um aparelho regulador do frio, do calor e da humidade atmosférica.

    Podemos lavar a roupa e a louça em máquinas eficientíssimas. Os frigoríficos, hoje banais, têm uma existência de meio século. Os aparelhos e inventos mencionados são, quase todos eles, do mesmo período ou mesmo mais novos.

    Trabalhava eu em Gouveia quando vi o primeiro fogão a gás e o correspondente botijão. Foi em Benespera que vi o primeiro frigorífico, que trabalhava com uma lamparina de petróleo.

    Os fogões de micro-ondas permitem cozinhar ou apenas aquecer a comida quase num momento, tudo regulado por meio de registos facílimos de manobrar.

    Dispondo de recursos a distância, podemos receber dinheiro contado sem auxílio estranho, por processos electrónicos e mecânicos.

    No final de tudo isto, concluiremos que muitas e muitas coisas falta ainda descobrir e aproveitar.

    Muito se conseguiu sob os aspectos técnico e económico. Alguma coisa se perdeu sob os aspectos social, familiar e individual, pois as formas de relacionamento eram mais estreitas e não havia os atractivos e a dispersão de que hoje dispomos. Actualmente contamos muito com as máquinas e os aparelhos; naquele tempo contava-se apenas com as pessoas.

    Reconheço as diferenças e procuro aceitá-las. Não quero deixar-me prender pelo inconformismo; procuro não me deixar subjugar pelo saudosismo. A nostalgia ainda me não dominou; a melancolia ainda me não venceu!

     

     

     

     

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