O PROJETO PEDAGÓGICO: lidando com as questões da resistência Zilá A.P.Moura e SILVA Segundo TEDESCO (1989), "Se algo caracteriza a ação pedagógica escolar é precisamente o seu arcaísmo, sua fixação ao passado e sua crescente autonomia em relação às mudanças externas." Talvez por esta razão não esteja sendo fácil o trabalho de elaboração de um Projeto Pedagógico para a Pré-escola em Macatuba/SP(*). Resultado de um esforço coletivo de um grupo de profissionais e da Administração Pública Municipal tal Projeto, desde o início enfrentou o cotidiano da sala de aula e a resistência de uma grande maioria de professores. Não se pode afirmar que tal situação persiste, mas seria interessante fazer uma análise do contexto em que a construção vem acontecendo até mesmo para se valorizar devidamente os resultados que se tem obtido. Saindo do curso de formação para o magistério com muitas (de)formações, de modo geral a professora que ingressa na rede, como a grande maioria de suas colegas por este Brasil afora, inicia a construção de sua prática com base, já nos primeiros momentos, na imitação dos modelos que conhece. Esses modelos, geralmente expressam uma prática empírica, intuitiva, superficial, rotineira (SÁ, 1989 NÉBIAS, 1990, SILVA, 1991 e 1993), calcada na mesma característica de imitação que a nova professora imprime agora. Entretanto, enquanto constroem a prática, algumas professoras procuram incorporar soluções consideradas inovadoras como forma de superar os entraves que enfrentam em suas classes. Buscam os cursos de reciclagem e os modismos como fórmulas mágicas que, na maior parte das vezes, dão um verniz "modernoso" àquela prática milenar. Tentam ajustar os princípios formais das teorias aos pressupostos da cotidianeidade. Sua conduta denuncia a mesma fragmentação entre a teoria e a prática que decorre destes cursos de reciclagem. Gostam de "ordem, disciplina, silêncio" e principalmente de atividades "bonitas", demonstrando ao mesmo tempo idéias que expressam um arcaísmo pedagógico e outras que explicitam, em tese, uma adesão virtual a modernas teorias de aprendizagem que poderiam redirecionar seu ensino. Quando descrevem sua prática expressam grande incoerência. Isoladas nas salas de aula, alienam-se em sua atividade, alienam-se das outras pessoas e mergulham em sua "particularidade" (HELLER, 1991) tentando, com isso, justificar os equívocos cometidos. Há uma diferença muito grande entre o que as professoras falam que fazem, entre o que fazem efetivamente e o que pensam que estão fazendo. Sua consciência é fragmentária e parcial, razão pela qual costumam criticar o sistema e o próprio aluno que não aprende apesar de todos os alternativas metodológicas que usam e dos esforços feitos para que ele dê conta de suas tarefas. A maioria delas se define extremamente competente enquanto fala sobre seu trabalho. A intensidade, a entonação e o ritmo que imprimem a seus depoimentos são próprios de uma discurso que expressa uma certeza. Na realidade, entretanto, essas professoras constroem sua própria teoria apanhando aspectos periféricos das teorias que vão conhecendo ao longo do tempo e testando em sala de aula com seus alunos. O que move sua ação é a fé. Tanto quanto nesses casos, há outros em que as professoras têm uma prática intuitiva que vão modelando com as orientações que recebem especialmente de suas colegas mais antigas (às quais aderem também pela fé). Carinhosas, apesar de tudo, responsáveis, trabalham muito, mas cristalizam seus juízos provisórios em preconceitos ou em precedentes que lhes dão segurança. Se outros já agiram assim em situação semelhante porque elas também não podem fazê-lo? Essa atitude, porém, impede as professoras de captarem o novo, irrepetível e único de uma situação de aprendizagem, quando as crianças são outras, os tempos são outros e o próprio sistema escolar sofreu mudanças. Sua postura em relação aos alunos se caracteriza por uma extrema ambivalência, colocando-se ao mesmo tempo autoritárias e paternalistas, agressivas e assistencialistas, conforme sejam obrigadas a conviver diariamente com os problemas de sua própria aprendizagem, sem vislumbrar uma solução viável. Cobram dos pais uma participação efetiva ainda que reconheçam sua ignorância e sua situação subalterna numa sociedade opressora. Manifestam posições preconceituosas na medida em que avaliam o aluno e a família da mesma forma preconceituosa com que seu trabalho é avaliado pela sociedade. Resistem pela inércia e tiram do silêncio e da submissão a sua própria força. Em poucos casos se ouve as professoras falarem da avaliação de suas práticas. Elas sempre acreditam que estão fazendo o mais certo. Quando solicitadas, a avaliação que fazem está mais ligada ao seu próprio trabalho que aos resultados da aprendizagem da criança. Sua crença na prontidão e maturidade do aluno acentua o fracasso das crianças mais lentas mas não gera efeitos negativos em classes com crianças consideradas mais fortes. Por isso as "boas professoras", via de regra, são as mais antigas e sempre podem escolher os grupos considerados melhores. Em sua avaliação nem elas nem as outras pessoas levam em conta que bons alunos nem precisam de bons professores. Aprendem "apesar" deles. Reforçando os aspectos de uma pedagogia mais tradicionalista, seu trabalho se torna mecanicista, o que, com as crianças das classes fortes, provoca apenas um retardamento dos resultados, enquanto que na classes "fracas" acaba eternizando a fraqueza. Na expectativa da família elas geralmente são "boas professoras". São boas porque, em tese, dominam o conhecimento e o transmitem, já que sua classe é "disciplinada" e seus alunos são "obedientes". Nessa avaliação não se leva em conta a aprendizagem do aluno ou o desenvolvimento de sua autonomia para a construção dos novos conhecimentos, mas a maneira como elas conduzem a classe, conseguem a tal "disciplina", propõem tarefas e mantêm a criança ocupada. Mas é pouco provável que elas admitam isso. É pouco provável que as professoras sejam capazes de planejar para que não seja assim, mudando a relação de ensino para uma situação de produção, construção, desenvolvimento, autonomia. E com isto recria-se desde a pré-escola, o estilo livresco, memorístico e repetitivo que trata o conhecimento de forma fragmentada, sem uma visão totalizadora da realidade. Lida-se com "conteúdos" ou com atividades que preenchem o tempo da criança, mantendo-a ocupada e, consequentemente, "acomodada". Sem questionar sua própria competência pedagógica na relação de ensino, as professoras escondem, sob aquela capa de autoritarismo ou paternalismo, sua condição dentro da realidade brasileira e os condicionantes que determinam seu trabalho. Elas gostam de ensinar, consideram importante sua tarefa e tem algum compromisso com ela. Entretanto não conhecem a criança nem dominam conhecimentos que possibilitem ensinar e conduzir a aprendizagem de forma a promover a autonomia do trabalho intelectual do aluno ou mesmo seu próprio crescimento. Embora aparentemente comprometidas com o que fazem, as professoras não se comprometem com os resultados de seu trabalho. Apesar disso essa resistência não significa propriamente um sinal de desinteresse ou acomodação, como se afirma. Pode ser vista, isto sim, como uma defesa salutar de sua identidade ameaçada por forças do poder que vem "de cima", dizendo-lhe como deve conduzir seu saber-fazer como se tudo que já tivesse experimentado fosse errado, inadequado ou incompetente. Sua resistência é, antes de mais nada, a recusa e a negação de seu papel de objeto dentro do sistema, já que esse mecanismo é utilizado em todos os níveis e assegura a cada grupo o sentimento de competência, uma vez que a incompetência é sempre colocada nos outros. Agarradas à sua experiência, elas defendem com garra e rebeldia o seu saber-fazer, ainda que ele expresse concepções milenares e acríticas. Sua cotidianeidade também garante espaço para a imitação, "libertando-as" dos preceitos e das teorias. Estas foram algumas das razões que tornaram tão penosa a viabilização de um projeto dessa natureza. A resistência tornou necessária uma intervenção a partir do diagnóstico da prática. Observando e refletindo sobre como o ensino ocorre na sala de aula e que didática orienta esse ensino, foi preciso aclarar cada modelo e verificar para onde ele apontava. Importam a teoria e a prática. A professora precisava perceber, na teoria, o que estava por trás de sua prática. E o permanente conflito entre a acomodação e a rebeldia da professora expresso em sua resistência, acabou mostrando as muitas possibilidades para o caminho da transformação. A construção de uma nova competência profissional começou a ser conquistada num processo contínuo de aquisição, de maneira reflexiva, crítica, interacional, processando-se articulada com a realidade da criança, um ser social historicamente situado. A prática das professoras, tanto quanto ainda pudesse parecer reprodutiva, não se reduzia à simples reprodução passiva da formação profissional, das experiências anteriores ou das normas oficiais. Com todas as suas imperfeições, foi um processo de construção seletivo, no qual se reproduziram, ratificaram ou rejeitaram a tradição e as concepções vigentes ou se elaboraram novas práticas, de forma individual ou coletiva. Sua posição neste contexto as tornou, ao mesmo tempo, vítima e cúmplice no processo. E a capacitação acabou decorrendo, fundamentalmente, de um compromisso voluntário com a qualidade do próprio trabalho, o que demanda um processo permanente de atualização. E não há um conteúdo específico necessário para que se efetive a capacitação técnica do professor. Seu conhecimento do mundo, dos processos sócioculturais que determinam as diferenças sociais, da lingüística e da psicologia da talvez assegurassem a construção de metodologias que pudessem se adequar a cada situação, cada grupo ou cada criança que estivesse sob sua responsabilidade. Tão importantes quanto os conteúdos a serem aprendidos são os valores que devem ser internalizados para que as professoras assumam efetivamente a tarefa política de educar com eficiência. Responsabilidade com o resultado de seu trabalho e com a qualidade de sua formação, para que possam garantir essa competência, são outros pontos fundamentais. Civismo, respeito pelo ser humano e amor devem também ser lembrados. (CUNHA, 1989). Isso lhes deu condições de avaliar seu próprio trabalho e repensar os resultados que se apresentaram. E fêz, com certeza, que diminuísse o número de professoras que ainda insistem nos pedidos de "receitas" metodológicas, como se estas fossem a solução para os problemas que impedem o sucesso do trabalho. ANDALÓ (1989:361) sugere que a melhor forma de viabilizar uma proposta de mudança parece ser a formação de pequenos grupos de discussão, com coordenadores que tenham uma visão de totalidade do processo educativo, de modo a promover uma reflexão sobre as formas como ele ocorre, em busca de seus pressupostos. Foi assim que resolvemos agir no corrente ano. E percebemos que é da adesão voluntária do professor (que nasce de uma consciência da importância de seu papel social apesar das incongruências expressas pelo sistema), que decorre o compromisso político. E é desse compromisso que está nascendo a competência técnica para o exercício das tarefas da educação na pré-escola. Embora os grupos de estudos tenham surgido primeiramente para atender às necessidades dos professores da pré-escola quanto à elaboração de seu Projeto Pedagógico, percebemos que, por alguma coincidência, acabaram se constituindo em sua maior parte, por professoras que, no corrente ano exercem suas atividades na APAE (*), trabalhando com a educação de crianças especiais, onde as que constituem maioria, na verdade não são portadoras de deficiências, mas têm apenas alguma dificuldade para aprender enquanto pequena porcentagem é portadora de excepcionalidade. Mas foram (e ainda são) muitos os problemas que tivemos que enfrentar. "...buscar o conhecer é praticar a vida, exercê-la, ela perpassando os sentidos, os pensamentos e os afetos. Educador: é quem trabalha essa prática, reflexivamente, nela imerso. Educador é todo aquele que confere e convive com esses conhecimentos "escondidos" dentro de processos humanos. E através disso define o seu ofício." Madalena FREIRE BIBLIOGRAFIA ANDALÓ, Carmem S. de Arruda. Fala professora: repensando o aperfeiçoamento docente, São Paulo: IP/USP, 1989. (Tese, Doutorado) BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Lutar com a palavra, Rio de Janeiro: Graal, 1982. __________ O educador vida e morte: escritos sobre uma espécie em perigo, 4ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1983. CUNHA, Maria Isabel. O bom professor e sua prática. Campinas: Papirus, 1989. EZPELETA, Justa. La escuela y los maestros: entre el supuesto y la deducción. Cuadernos de Investigación Educativa nº 20. México, Centro de Investigación y Estudios Avançados del IPN, 1986. GIROUX, Henry. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis/Rio de Janeiro: Vozes, 1986. HELLER, Agnes. O cotidiano e a história, São Paulo, 1991. HUET, Bernard. Uma reflexão sobre o papel do professor da pré-escola, in: Experiências de desenvolvimento de pessoal na área do ensino pré-escolar no Estado de São Paulo, Idéias, nº 14, São Paulo:FDE, 1988. MARSON, Fernando. 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(Monografia) ___________ A implantação do Ciclo Básico na Região de Jaú/SP: um estudo de caso, São Carlos/SP: UFSCAR, 1986. (mimeo.) __________ Criando a necessidade de ler: Análise de uma experiência, São Carlos/SP: UFSCAR, 1988. (Dissertação, Mestrado) __________ Da fala à escrita: a difícil caminhada, São Paulo: FEUSP, 1991. (mimeo.) __________ A prática pedagógica do professor alfabetizador: o que falta e o que precisa mudar? São Paulo: FEUSP, 1993. (Tese. Doutorado) __________ A reformulação da pré-escola: Projeto Pedagógico da Pré-escola de Macatuba/SP. São Paulo/Macatuba: Secretaria da Educação Municipal de Macatuba, 1993. (Mimeo) |