Hungria
Ferenk "Pancho" Puskas


O Goleador Húngaro

Um retrato de talento e perseverança

O Real Madrid ganhava do Sevilha de 7 x 0. A partida estava próxima do final. Contudo, para dois jogadores do Real Madrid o desafio ainda não havia terminado. A duas rodadas do fim do campeonato, Alfredo Di Stéfano, grande ídolo da torcida e Ferenc Puskas, goleados recém-contratado, disputavam o título de artilheiro. Cada um deles já havia feito dois gols na partida. No campeonato, o húngaro Puskas achava-se atrás do argentino Di Stéfano por apenas um gol.
Aos 45 minutos do segundo tempo, uma bola longa foi jogada para o lado esquerdo do campo, onde Puskas se encontrava. Ele conseguiu levar vantagem sobre o zagueiro do Sevilha. O espanhol correu como louco, porém Puskas, no canto da área, estacou e dominou a bola, lançando-a para a esquerda. O robusto zagueiro perdeu o equilibrio na inútil tentativa de tomar a bola. O caminho para o gol estava livre para Puskas.
Vários jogadores da defesa e o goleiro se posicionaram no instante em que o goleador do Real Madrid preparava a perna esquerda para o legendário chute. Entretanto, em vez de chutar em direção ao gol, deu um passe e a bola cruzou a área até os pés de Di Stéfano que, livre diante das redes, fez o gol sem hesitar. Os 60 mil torcedores presentes ao Estádio Bernabeu, em Madrid, naquele dia 5 de abril de 1959, celebraram com Di Stéfano, que se tornou o artilheiro do campeonato com 23 gols, dois à frente de Puskas.
Os torcedores também aplaudiram Puskas - não apenas pela técnica sensacional, mas pelo espírito de equipe e pelo que sua presença entre os melhores jogadores daquela época simbolizava: a vitória da força de vontade e perseverança.

FERENC Puskas nasceu em Budapeste, no dia 2 de abril de 1927. O pai, do mesmo nome, era jogador do Kispest, clube onde continuou como treinador depois de se aposentar. A atividade rendia o suficiente para o sustento da família. A esposa, ele, o pai, a filha Éva e o filho viviam numa quitinete, de cuja janela se via um pátio, a 200 metros.
Este pátio, delimitado por um álamo de cada lado, era o Lipták Grund, primeiro campo de futebol na vida do jovem Puskas e centenas de outros meninos da vizinhança. Depois da aula, podiam ser encontrados ali, treinando com bolas de meia. Os que perdiam eram ridicularizados. Assim, os menos competitivos logo ficavam de fota.
Aos 8 meses, Öcsi, apelido de Puskas (que significa Júnior), já chutava a bola com tanta força que a mãe, Margit, temia pelas vidraças. Quando menino, gostava de dormir abraçado à bola. A senhora Puskas - que para ajudar no orçamento familiar passava a ferro camisas numa fábrica de roupas - não castigava o menino. Muitas, vezes, envolvido no jogo, Puskas não aparecia para almoçar. Quando a fome apertava, entrava na cozinha, cortava um pedaço de salsicha e outro de pão, e voltava correndo para perto dos colegas. "Sempre tive tudo de que precisava", relembra Öcsi.
Segundo a irmã Eva, dois anos mais nova, esse "tudo" às vezes incluía uma boa surra dada pelo pai. Certa vez, foi castigado por ter ganho no jogo de cartas toda a mesada de um amigo. A mãe devolveu o dinheiro aos pais o perdedor.
Aos 10 anos, Öcsi já era um dos mais requisitados jogadores do campo vizinho. Os garotos mais velhos escolhiam Öcsi ou o amigo József Bozsik para compor os times. Por isso, os dois jogavam sempre em campos opostos. Mas tornaram-se amigos inseparáveis, no campo e fora dele. Riam muito das comédias de O gordo e o magro, e às vezes eram expulsos do cinema por fazer piadas durante filmes românticos.
"Éramos como irmãos", recorda Puskas. Na volta do cinema, pegavam o bonde num ponto para saltar no seguinte ou brincavam de chutar pedras. Porém, não tinham muito tempo para ficar à toa. Às 8 horas da noite Öcsi geralmente já estava na cama, lendo algum livro de literatura barata, comprado com dinheiro ganho nas apostas durante as peladas.
Numa tarde de outono de 1937, Nándor Szûcs, olheiro do Kispest, foi espiar o jogo no Lipták Grund. Depois chamou Cucu (pronuncia-se Tsu-tsu), apelido de Bozsik, dois anos mais velho que Puskas.
- Tenho vaga para você no juvenil - revelou. - Arrume uma fotografia e venha assinar o contrato.
Öcsi ouviu aquilo e no mesmo instante implorou:
- Deixe-me ir também. Cucu e eu estamos acostumados a jogar juntos.
Szûcs balançou a cabeça:
- Não, você ainda não tem nem 11 anos - disse.
A idade mínima para entrar no time era 12. O menino magrelo não desistiu. Pediu, implorou, argumentou, até que o treinador ergueu os braços.
- Está bem! Se alguém perguntar, diga que tem 12 anos.
A partir daquele dia, Puskas e Bozsik passavam de dez a 15 horas por dia treinando num gramado, sob a direção do pai de Puskas. Jogavam em gol pequeno (trave de apenas um metro de largura, sem goleiro) e faziam exercícios obrigatórios. Öcsi não gostava muito de correr e às vezes mergulhava no canal que havia junto ao campo. Um de seus passatempos favoritos era pôr um bastão enfiado na trave e fazer apostas para ver quem conseguia arrancá-lo com chute. Quando não podiam entrar em campo, ficavam observando a técnica dos jogadores adultos. Aquilo que viam os grandes fazendo 20 vezes, eles depois repetiam 60 vezes. Öcsi gastava as traves praticando chutes em movimento e pênaltis.
Em 1943, quando Puskas fez 16 anos, foi chamado para o time principal do Kispest. Ganhou o menor uniforme. Mesmo assim, ficou parecendo uma camisola no corpo franzino do iniciante. No entanto, não parecia muito à vontade: era pequeno, podia ser facilmente derrubado e não conseguia chutar com o pé direito. Em compensação, tinha velocidade tão explosiva que chegava à frente da maioria dos jogadores, além de ter grande intimidade com a bola. Era capaz de dar passes de 40 metros com precisão telescópica, ou parar a bola e dominá-la com destreza.
Em agosto de 1945, Puskas teve a primeira chance de jogar na Seleção Húngara. Fez a estréia com um gol, numa partida contra a Áustria. Parecia tão seguro na seleção quanto em seu clube.
"Os adversários podem jogar melhor, mas a bola é redonda para todos", dizia ele.
Em 1947, era tratado como celebridade pela imprensa. Neste mesmo ano foi notado pelo Juventus, que tentou levá-lo para a Itália. Não conseguiu. Puskas preferiu continuar jogando em casa, cercado de amigos.
Mas o sucesso meteórico pareceu subir-lhe à cabeça. Cada vez mais, tratava as pessoas com arrogância. Durante o campeonato húngaro de 1947, num jogo contra o Diósgyor, Puskas, capitão do time, desafiou a autoridade do técnico do Kispest, Béla Guttman, e vetou a decisão de substituir o zagueiro central, acusado de jogaro com violência. Pior: em certo jogo da Seleção Húngara contra a Bulgária, em 1948, Puskas derrubou um zagueiro adversário que o havia empurrado. Ferenc Hidas, presidente da Federação Húngara de Futebol, repprendeu Puskas e ameaçou suspendê-lo. Puskas retrucou:
"Serei jogador de futebol por muito mais tempo que você presidente." Por causa disso, Puskas foi suspenso por um ano da Seleção Húngara. Para evitar a punição, não teve outro remédio senão pedir desculpas em público. Embora as autoridades desportivas também estivessem aliviadas ao ver anulada a suspensão do ídolo, para o próprio Puskas o episódio foi uma lição: precisava engolir o orgulho em nome da paixão pelo futebol.
Agora, conhecia os limites. E embora ainda fosse o jogador de maior comando dentro de campo, já não perdia o controle. Com isso, a autoridade aumentou e tornou-se capaz de inspirar e disciplinar os colegas.
"Não vêem que estamos no prejuízo?", gritava para os companheiros, apontando o uniforme nacional, quando as coisas não iam bem.
Em 1950, seu time jogou as semifinais com o nome de Kispest, mas ao vencer o campeonato já se chamava Honvéd (que significa exército). O PArtido Comunista, que naquele ano se consolidava no poder, reorganizou os esportes, criando novas entidades. Os jogadores do Honvéd tornaram-se soldados em massa, recebendo patentes de acordo com o desempenho em campo. Puskas começou como primeiro-tenente e logo se tornou major, mas raramente era visto de uniforme.
O grnade acontecimento daquele ano na vida de Puskas ocorreu no dia 10 de abril, quando se casou com a jogadora de handebol Erzsébet Hunyadvári, 18 anos, depois de dois anos de namoro.
A época feliz também teve seus momentos de tristeza: em 1952, Öcsi perdeu o pai, morto aos 50 anos após doença repentina. O jogador de futebol fez de tudo para salvá-lo, mandando buscar remédios na Itália. Não adiantou. "Meu pai era muito querido, muito calmo", contou Öcsi. "Eu o amava muito."
Erzsébet não deixou que ele ficasse remoendo a dor. Nessa época, freqüentavam teatros, óperas e espetáculos de dança folclórica. Tinham um casamento equilibrado. E o nascimento da primeira filha do casal, Aniko, em 1952, trouxe alegria especial.
No entanto, a principal paixão de Puskas ainda era o futebol, que vivia época de ouro na Hungria. Entre 1947 e 1956, Puskas foi convocado para a Seleção 84 vezes, marcando 83 gols em partidas internacionais. Foi o artilheiro da Liga Húngara por quatro temporadas seguidas, e seu time, Honvéd, foi cinco vezes campeão nacional. A imprensa esportiva internacional da época declarou ser ele o melhor jogador de futebol do mundo.
O "time de ouro", como era conhecida a seleção húngara, ganhou fama e conquistou a medalha de ouro nos jogos olímpicos de Helsinque, no ano de 1952. Em 1953, venceu a Inglaterra pelo incrível placar de 6 a 3 em pleno estádio Wembley, acabando com nove anos de invencibilidade dos ingleses "dentro de casa". Em cinco anos, o time perdeu apenas uma vez: justamente a final da Copa do Mundo de 1954, em Berna, contra a Alemanha - apesar de ter vencido os alemães por 8 a 3 nas semifinais.
Öcsi jamais engoliu aquela derrota. Embora tivesse aprendido a lidar com o próprio orgulho, o time precisou retornar a Hungria sem muito alarde, em razão das ameaças anônimas. A casa de Puskas teve de ser vigiada 24 horas por dia e seus parentes saíam à rua acompanhados por seguranças. A comissão técnica começou a achar que havia algo errado com Puskas. Em 1955, ele ficou no banco de reservas durante quatro partidas. Parecia ter perdido o velho brilho nas jogadas e tornava-se mais lento em campo devido ao excesso de peso. Aparentemente, a estrela de Puskas se apagava.
Em novembro de 1956, quando o Hovéd se encontrava no exterior participando da Copa da Europa, espalhou-se a notícia de que as tropas soviéticas estavam brutalmente difundindo a revolução. Puskas e outros jogadores pediram à Federação Húngara de Futebol permissão para viajar à América Latina, onde participariam de uma turnê para qual haviam sido convidados. A autorização foi negada. Mas o time decidiu ir. A Federação reagiu, anunciando suspensões contra os jogadores, e procurou a FIFA, pedindo confirmação para as punições.
A maioria dos jogadores decidiu voltar para a casa após a turnê na América do Sul. Puskas, sem dúvida, teria feito o mesmo, porém voltou atrás quando ficou sabendo da campanha de difamação que a imprensa comunista vinha fazendo contra ele - campanha esta que a propaganda oficial húngara manteria pelo resto da carreira do jogador.
No início, Puskas não se importou com a suspensão de um ano e meio que recebeu da FIFA. O principal era já ter mulher e filha a salvo em Bordighera, Riviera Italiana. Entretanto, logo começaria a desesperar-se, por não poder ganhar dinheiro nem treinar. Ainda por cima, desenvolveu uma úlcera de estômago, que precisava de tratamento. A família vivia numa pequena pensão e os gastos com alimentação e moradia rapidamente acabaram com suas economias.
O maior goleador do mundo e sua família encontravam-se à mercê da caridade dos amigos. Puskas contava os dias para o fim da punição. Aos 31 anos, com 18 quilos acima do peso ideal, pensava: Será que ainda existe um bom time no mundo capaz de me aceitar?
Existia. Em abril de 1958, o Real Madrid ofereceu-lhe um contreato, Puskas ficou exultante com a proposta. Poucos dias depois, quando a temperatura em Madrid era de 25 graus, vestiu meias grossas, dois ou três pares de calças sobrepostas e cinco suéters. Por seis semanas correu exaustiuvamente, sozinho. As glórias do passado não significam nasa, pensava, a cada passo. Estou lutando por meu futuro.
Seis semanas depois, apresentou-se ao Real Madrid e começou a treinar sem reclamar. Quem o encorajava era a família. Os amigos estavam longe e ele, sem entender a língua, sentia-se um estranho na cidade. Sujeitava-se a tudo em sua nova posição. Durante sua passagem pelo Real Madrid só comia frutas e vegetais, não tocava numa gota de álcool, dormia e acordava no horário.
Os sacríficios valeram a pena. Pancho, como os torcedores espanhóis passariam a chamá-lo, conseguiu cidadania, fez novos amigos e retribuiu a confiança do Real Madrid, tornando-se artilheiro por quatro temporadas. Dez anos mais tarde, em maio de 1969, participou do jogo de sua despedida.
Depois de aposentado como jogador, Puskás ainda trabalhou como técnico e supervisor em vários lugares do mundo.

MAS AINDA FALTAVA algo em sua vida: a terra natal. Em 1976, a mãe de Öcsi morreu. Porém o jogador não obteve permissão para ir ao enterro. O mesmo aconteceu em 1978, quando foi impedido de ir à Hungria para o funeral do amigo de infânica Cucu (que havia retornado em 1957).
Desde 1989, o casal Puskas tem dividido seu tempo entre a Hungria e Benidorm, na Espanha. Sua filha, Aniko, e as duas netas, Elizabeth e Réka, hoje na faixa dos 20 anos, moram em San Sebastian. "Elas adoram quando vamos à Hungria por que trazemos hurka e kolbász (salsichas húngaras)", conta Öcsi.
Dia 20 de janeiro de 1997. Ferenc Puskas está cercado de celebridades no hall do Hotel Bayerischer Hof, Munique. Parece um pouco nervoso na roupa impecável, enquanto amigos e personalidades do esporte se aproximan para comprimentá-lo. Quando seu nome é chamado, dirige-se ao pódio para receber o troféu da Federação Internacional da História e Estatística do Futebol, por seu 511 gols em 533 partidas de campeonatos nacionais e internacionais - 94 na frente dos demais jogadores.
Para Öcsi Puskas, garoto valente do campinho do Kispest que nunca teve muita paciência com sentimentalismos, este é momento raro: encontra-se visivelmente emocionado enquanto os flashes são detonados à sua volta. Dá um largo sorriso e, orgulhoso, recebe o prêmio, símbolo de talento, força de vontade e perseverança.



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