Jacques Anquetil
 

        A visão de Anquetil em uma bicicleta reforça uma idéia que não "digerimos" muito bem, a da aristocracia natural. Desde o primeiro dia que subiu em um quadro, "Anq" teve um senso de perfeição que a maioria dos ciclistas passa a vida toda procurando atingir. Entre 1950, quando participou de sua primeira prova, e dezenove anos depois, quando encerrou a carreira, Anquetil teve incontáveis quadros embaixo dele, mas aquela pose indefinível estava sempre lá. A aparência era de um cão Greyhound. Seus braços e pernas ficavam estendidos mais de que era de costume nas estradas compactadas da era após a segunda guerra mundial.. A ponta dos pés apontavam para baixo. Apenas alguns anos antes os ciclistas se orgulhavam do seus movimentos rápidos com os pés, mas Jacques foi o primeiro da "escola" das altas relações de velocidade. Sua potência suave determinava a maneira como abordava o esporte. As mãos repousando serenamente nas suas alavancas de freio "Mafac", a sensação de Quincampoix, Normandia, parecia que passeava enquanto os outros lutavam desesperadamente para acompanha-lo.


 

Na tenra idade de dezenove anos (1953), Jacques lançou-se no lado profissional do esporte, convencido que essa ousada manobra seria mais financeiramente compensadora do que colher morangos. Ele não estava errado.
        Sua primeira prova, com as cores da "La Perle", foi o Grand Prix das Nações, a mais famosa e difícil corrida contra-relógio. Com 140 Km, era aproximadamente duas vezes a distância da versão atual. Destemido, "Anq" liderou do início ao fim. A lenda tinha começado.

        Essa lenda foi composta, em grande parte, de magníficas corridas solo contra-relógio e vitórias nas provas de etapas. Significativamente, com apenas duas exceções, não houveram vitórias nas importantes "provas de um dia" (clássicas) na sua lista. Ele temia o perigo do pelotão compacto e os "saltos" explosivos dos seus rivais. Isso tudo era muito, digamos, plebeu.

         Sua natural autoconfiança teria indicado, dois séculos antes, um nascido em Versalhes. Logo após sua primeira vitória no Grand Prix das Nações, Luison Bobet (o melhor ciclista francês na época) se aproximou para cumprimenta-lo. "Uma grande prova. Prazer em conhece-lo" - disse Bobet enquanto estendia a mão. "Mas nós já nos conhecemos" - Anquetil respondeu - "Eu venci você em uma prova de perseguição, no Domingo passado". Os que assistiam o diálogo ficaram chocados, mas os dois "grandes" se entendiam: Anquetil não queria ofender e Bobet sabia disso.

        Em novembro o "Normando" foi à Itália para a corrida do Tropheo Baracchi. No caminho ele visitou o ciclista mais famoso da época, Fausto Coppi. Coppi foi mais do que hospitaleiro. Ele revelou a sua completa maneira de abordar o ciclismo, que enfatizava uma disciplina rigorosa. Fausto concluiu o encontro convidando Anquetil a morar com ele. Quem não teria aceito com entusiasmo? Anquetil certamente ficou sensibilizado, mas, se desculpando, ele saiu. Enquanto se encaminhava para o carro refletiu: "Eu sei que terei que chegar na frente sozinho".

        Em uma carreira que incluiu vitórias nas três maiores provas de etapas (Tour de France - 5, Giro d'Italia - 2, Volta da Espanha - 1), nove Grand Prix das Nações, o Recorde da Hora (duas vezes separadas de onze anos) e uma quantidade quase incontável de outros eventos, é difícil escolher entre os grandes momentos

      

Na maior parte da sua carreira ele venceu provas de etapas de uma forma "quieta", que o público não gostava. Por semanas ele podia ficar próximo a seus "inimigos" e, então, atacar numa etapa contra-relógio. O seu método de "apenas o suficiente" não agradava àqueles que ansiavam por manobras arrojadas. Quando Anquetil estava na sua fase de maior dominação, liderando a Tour de France de 1961 do primeiro ao último dia, ele era acusado de ser o ciclista "que ninguém conseguia ultrapassar, mas que não conseguia ultrapassar ninguém".
        Os organizadores da Tour, sempre sensíveis a críticas, reduziram progressivamente as etapas contra-relógio e aumentaram as de montanha. Em 1963 Jacques sabia que tinha que alterar seus planos. Após os Pirineus e duas etapas contra-relógio, Jacques estava atrás do grande "escalador" espanhol, Frederico Bahamontes. Com os Alpes ainda por vir, os fãs de Anquetil estavam preocupados com o seu ciclista. A maior etapa Alpina, que acabava em Chamonix, apresentava uma nova subida, o inclinado e rochoso "Col de Forclaz", que vinha depois de dois outros "monstros" de primeira categoria. Anquetil e Bahamontes usavam 42X26, relação normalmente vista em bicicleta de cicloturismo. Quando a "Águia de Toledo" fez o seu esperado ataque, apenas um homem foi capaz de segura-lo. Era o novo Jacques Anquetil, pedalando como ele sabia que tinha que pedalar. Jacques estava tão no controle da situação que não tentava responder a cada aceleração do espanhol. Ao contrário, ele manteve um ritmo constante que puxava Bahamontes com tanta segurança como um peixe numa linha de pesca. No topo da escalada Anquetil, estava na verdade determinando o ritmo. Ele sabia que tinha a etapa, e a prova, no bolso. Ele também tinha uma nova popularidade.


       

Apenas um pequeno problema. Ele tinha feito a subida na sua leve bicicleta de contra-relógio, a qual era considerada muito frágil para a agressiva descida na estrada de cascalho. Mas as regras da Tour não permitiam a troca de bicicletas por nenhuma razão, exceto por falhas mecânicas. O astucioso diretor de Anquetil, Raphael Geminiani, tinha uma solução. Com fim da subida a vista Jacques olhou para Geminiani e gritou - "Meu câmbio!". "Merda!" - respondeu Geminiani alto o bastante para que um oficial da Tour, que passava, podesse ouvir - "Ele quebrou seu câmbio!". O mecânico pulou do carro, bicicleta reserva na mão. Enquanto entregava a nova bicicleta a Jacques, o mecânico apanhou um cortador de fios e cortou o cabo do câmbio, fora da vista do oficial. O oficial nada viu e Anquetil seguiu seu caminho. Um perfeito exemplo do lema de sucesso do fundador da Tour de France, Henri Degranges, "Tete et Jambes" ("Cabeça e Pernas").

Daquele dia em diante, Anquetil partiu para vitórias ainda mais criativas. Em 1964 ele tornou-se o único ciclista, além de Fausto Coppi, a vencer o Giro d'Italia e a Tour de France no mesmo ano. Em 1965 ele venceu a Dauphiné-Liberé, uma dura prova de etapas de uma semana de duração, voou através da França na noite do último dia, dormiu por quatro horas, e saiu pedalando às quatro horas da manhã, no escuro e na chuva, para a largada da corrida Bordeaux-Paris, de 585 Km. Você precisa perguntar? Anquetil venceu a prova.
        Jacques participou de sua último prova de etapa importante em 1967. Foi a Giro d'Italia, ele terminou apenas em terceiro lugar, vítima de jovem italiano, Felice Gimondi. Atrás, em sétimo lugar, estava uma outra estrela da nova geração: Eddy Merckx.

        Merckx e Anquetil foram, cada um, mestres de uma geração. Merckx, claro, tentou ganhar tudo, durante todo o tempo. Essa não era a mentalidade de Anquetil. Uma qualidade que eles compartilhavam era a capacidade de suportar o sofrimento dos seus raros dias ruins. É fácil vencer quando você se sente em grande forma e todo mundo está complexado em relação à sua força. Mas perseverar quando o mito acabou, quando o campeão é exposto como um mortal perante todos, então uma real medida do homem é possível.

Anquetil estava em um nível particularmente baixo no final de 1962. Seu treinamento diminuiu após a Tour e, no final de Outubro, ele estava longe de sua melhor forma. Mas o contrato para o Tropheo Baracchi tinha sido assinado; não tinha como fugir da obrigação. O Tropheo é uma prova contra-relógio em dupla e em oito tentativas, Jacques nunca tinha vencido. Alguma coisa em relação a mudança de ritmo enquanto alternava a liderança o estava perturbando. Seu parceiro era Rudi Altig, um formidável ciclista da Alemanha (Como exemplo: Altig bateu Eddy Merckx na etapa contra-relógio de abertura da Tour de France de 1969). Rudi estabeleceu o ritmo desde a largada - pouco abaixo de 47 kph! A equipe mais próxima estava atrasada em torno de cinco minutos, mas o jovem alemão não aliviou um segundo sequer.
        Após 70 Km Jacques não agüentava mais. Precisou de todo o seu talento apenas para se manter no vácuo de Rudi. Quarenta Km, restava quase uma hora de purgatório. Por vinte Km Rudi continuou no seu ritmo infernal. Então, de repente, ele percebeu Jacques perdendo contato. Altig se afastou para o lado, deixando Jacques passar por ele e, então, acelerou até Jacques, "empurrando-o" de volta à velocidade, antes de assumir seu lugar na frente (Tudo isso em 53X13), sempre gritando palavras de encorajamento. Quanto mais Altig sentia que a vitória podia escapar, mais louco ele ficava. Ele "empurrou" Anquetil dúzias de vezes. Foi verdadeiramente sobre-humano.

        Anquetil nunca sonhou em desistir. "Eu estava em um nevoeiro" - ele admitiu mais tarde - "podia destinguir apenas formas vagas. Tudo com que me preocupava era conseguir a máxima proteção atrás da roda de Altig. Na entrada do velódromo, para o fim da prova, era necessário atravessar um túnel em baixo da arquibancada e, então, virar para entrar na pista. Jacques não fez a curva. Ele foi direto de encontro a um poste de telefone. Felizmente, o tempo era tomado na entrada da pista. O cronometro mostrou que a dupla Altig-Anquetil tinha vencido confortavelmente, mas o que Jacques conquistou naquele dia, sem mencionar seus fãs e adversários, foi um reconhecimento de sua capacidade.

 


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