Porque Crenças Ruins Não Morrem

As crenças são biologicamente preparadas para ser resistentes à mudanças, porque foram designadas para aumentar nossa habilidade de sobreviver. Para mudar as crenças, céticos devem acessar as habilidades de sobrevivência do cérebro discutindo os significados e implicações além dos dados.

Capa da Edição de Novembro de 2000 da Revista Skeptical Inquirer

Gregory W. Lester

As partes crédulas do cérebro estão em óbvia superioridade... Uma noção básica do pensamento crítico e científico é de que as crenças podem estar erradas, por isso muitas vezes é confuso e irritante para cientistas e céticos que as crenças de tantas pessoas não mudem diante de evidências contraditórias. Nos perguntamos como as pessoas podem continuar acreditando em coisas que contradizem os fatos.

Essa confusão pode criar uma terrível tendência da parte dos pensadores céticos de diminuir e menosprezar as pessoas cujas crenças não mudam em face às evidências. Elas podem ser vistas como inferiores, estúpidas ou até malucas. Esta atitude provém da falha dos céticos em compreender o propósito biológico das crenças e a necessidade neurológica de que elas sejam resistentes à mudanças. A verdade é que, por causa de seu rigoroso pensamento, muitos céticos não têm uma compreensão clara ou racional do que são as crenças e porque mesmo as mais erradas não desaparecem facilmente. Entender o propósito biológico das convicções pode ajudar os céticos a serem muito mais eficientes no desafio às crenças irracionais e na divulgação de conclusões científicas.

Biologia e Sobrevivência

A finalidade primária dos nossos cérebros é nos manter vivos. Claro que ele faz muito mais que isso, mas a sobrevivência vai ser sempre seu propósito fundamental e sempre virá em primeiro lugar. Se formos molestados a ponto de nossos corpos terem energia suficiente somente pra suportar a consciência ou o coração batendo, mas não os dois juntos, o cérebro não tem problema em se "apagar" e escolhe nos colocar em coma (sobrevivência na frente da consciência) ao invés de ficar em alerta até a morte (consciência na frente da sobrevivência).

Como cada atividade do cérebro serve fundamentalmente pra isso, a única maneira de entender precisamente qualquer função cerebral é examinar seu valor como instrumento de sobrevivência. Mesmo a dificuldade em se tratar desordens comportamentais como obesidade e vícios pode ser entendida examinando sua relação com a sobrevivência. Qualquer redução no consumo calórico ou na disponibilidade de uma substância na qual um indivíduo é viciado é sempre interpretada pelo cérebro como uma ameaça à sobrevivência. O resultado disso é que o cérebro se defende criando aquelas reações típicas da síndrome de abstinência.

Sentidos e Crenças

As ferramentas primárias do cérebro para garantir nossa sobrevivência são os sentidos. Obviamente, devemos ser hábeis em perceber com precisão o perigo para podermos tomar atitudes que nos mantenham em segurança. Para sobreviver precisamos ver o leão na saída da caverna ou ouvir o intruso invadindo a casa no meio da noite.

Apesar disso, os sentidos sozinhos são inadequados como detectores de perigo porque são limitados em alcance e área. Nós somente podemos ter contato sensorial direto com uma pequena porção do mundo de cada vez. O cérebro considera esse um problema significativo porque mesmo o dia-a-dia requer que estejamos constantemente em movimento, dentro e fora do nosso campo de percepção do mundo como é agora. Entrar em um território que nós nunca vimos ou ouvimos nos coloca na perigosa posição de não ter nenhuma noção dos possíveis perigos. Se eu entrar em um prédio desconhecido em uma parte perigosa da cidade, minhas chances de sobrevivência diminuem porque eu não tenho como saber se o teto está prestes a cair na minha cabeça ou se um atirador está escondido atrás da porta.

É aí que entra a crença. "Crença" é o nome que damos à ferramenta de sobrevivência do cérebro que existe para aumentar a função de identificação de perigos dos nossos sentidos. Crenças estendem o alcance de nossos sentidos de maneira que podemos detectar melhor o perigo e aumentar nossas chances de sobrevivência em território desconhecido. Em essência elas nos servem como detectores de perigo de longo alcance.

Funcionalmente, nossos cérebros tratam as crenças como "mapas" das partes do mundo que não podemos ver no momento. Enquanto estou sentado na minha sala de estar não posso ver meu carro. Apesar de tê-lo estacionado em minha garagem há algum tempo, se eu usar os dados sensoriais imediatos, eu não sei se ele ainda está lá. Por isso, neste momento os dados sensoriais são de muito pouca utilidade para eu encontrar meu carro. Para que eu encontre meu carro com algum grau de eficiência, meu cérebro deve ignorar a informação sensorial atual (a qual, se tomada literalmente, não apenas falha em me ajudar a localizar meu carro como indica que ele não existe mais) e se voltar para seu mapa interno do local de meu carro. Esta é minha crença de que meu carro ainda está no lugar onde o deixei. Se referindo à minha crença ao invés dos dados sensoriais, meu cérebro pode "saber" alguma coisa sobre o mundo com a qual eu não tenha contato imediato. Essa faculdade "estende" o conhecimento e o contato do cérebro com o mundo.

A habilidade de estender o contato com o mundo para além do alcance dos nossos sentidos imediatos aumenta nossas chances de sobreviver. Um homem das cavernas tem muito maiores chances de sobreviver se acreditar que o perigo existe na floresta mesmo que ele não esteja vendo nenhuma ameaça no momento. Um policial estará substancialmente mais seguro se acreditar que alguém parado por infração de trânsito pode ser um psicopata armado apesar de sua aparência inocente.

Além dos Sentidos

Como as crenças não requerem dados sensoriais imediatos para serem eficazes para dar informações ao cérebro, elas têm a função adicional de prover informações sobre o lado da vida que não lida com os sentidos. Esta é a área das abstrações e princípios que envolvem coisas como "razões", "causas" e "significados". Eu não consigo ver a "causa" chamada "zona de baixa pressão" que faz com que a chuva caia torrencialmente na região onde moro, então minha habilidade de acreditar que a baixa pressão é a causa me serve. Se eu fosse depender somente dos meus sentidos para determinar a causa da tempestade, eu nuca poderia saber por quê ela ocorreu. Pelo que eu sei foi produzida por gremlins invisíveis alados que eu teria que acertar com minha espingarda para que o céu clareasse. Portanto a confiança do meu cérebro na "crença" na razão chamada "baixa pressão", ao invés dos dados sensoriais, me ajuda a sobreviver evitando que passe por inúmeros perigos na busca dos pestilentos gremlins da chuva.

A Resistência das Crenças

Tanto os sentidos quanto as crenças são ferramentas para a sobrevivência e evoluíram para alimentar um ao outro, por isso nosso cérebro os considera separados, mas igualmente importantes provedores de informação para sobrevivência. A perda de qualquer deles nos coloca em perigo. Sem nossos sentidos não poderíamos conhecer o mundo perceptível. Sem nossas crenças não poderíamos saber sobre o que está fora do alcance de nossos sentidos nem sobre significados, razões e causas.

Isso significa que as crenças existem para operar independentemente dos dados sensoriais. Na verdade, todo o valor das crenças para a sobrevivência se baseia na sua capacidade de persistir apesar de evidências contraditórias. As crenças não devem mudar facilmente ou simplesmente por causa de evidências que as neguem. Se elas o fizessem não teriam nenhuma utilidade para a sobrevivência. Nosso homem das cavernas não duraria muito se sua crença em perigos potenciais da floresta evaporasse toda vez que ele não visse esses perigos. Um policial que não acreditasse na possibilidade de um assassino se esconder atrás de uma aparência inocente seria facilmente morto.

Para o cérebro não há absolutamente nenhuma necessidade de que os dados e as crenças concordem entre si. Cada uma delas evoluiu para aumentar e melhorar a outra pelo contato com diferentes seções do mundo. Foram preparadas para poderem discordar. É por isso que cientistas podem acreditar em Deus e pessoas que são geralmente razoáveis e racionais podem acreditar em coisas sem evidências dignas de crédito como discos voadores, telepatia e psicocinese.

Quando os dados e as crenças entram em conflito, o cérebro não dá preferência aos dados. É por isso que crenças (mesmo crenças ruins, irracionais, bobas ou loucas) raramente desaparecem diante de evidência contraditória. O cérebro não se importa se a crença concorda com os dados, ele apenas se preocupa se a crença ajuda a sobreviver e ponto final. Então enquanto a parte racional e científica de nosso cérebro pode estar pensando que os dados deveriam confirmar as crenças, em um nível mais fundamental ele nem liga pra isso. Ele é extremamente reticente em reavaliar suas convicções. Como um velho soldado com seu revólver que não consegue acreditar que a guerra realmente acabou, o cérebro se recusa a entregar suas armas mesmo que os fatos desmintam o que ele crê.

Crenças "inconseqüentes"

Mesmo as crenças que não parecem, estão intimamente ligadas à sobrevivência. Isso porque as crenças não ocorrem individualmente ou em um vácuo. Elas se relacionam umas com as outras em uma rede que cria a visão de mundo fundamental do cérebro. É nesse sistema que o cérebro se sustenta para experimentar consistência, controle, coesão e segurança no mundo. Ele deve manter esse sistema intacto para sentir que a sobrevivência está garantida, isto é, "experimentar a sobrevivência".

Isso significa que mesmo crenças inconseqüentes podem ser tão importantes para a "experiência de sobrevivência" do cérebro como as que estão obviamente ligadas à subsistência física. Por isso, tentar mudar qualquer crença, não importa quão pequena ou boba ela possa parecer, pode produzir um efeito cascata por todo o sistema e, em última análise, ameaçar a experiência de sobrevivência do cérebro. É por isso que as pessoas freqüentemente defendem até o fim as menores convicções que sejam ameaçadas. Um criacionista não pode tolerar a precisão dos dados que indicam a realidade da evolução não por causa dos dados em si, mas por que mudar qualquer crença relacionada à Bíblia e à natureza da criação quebrará todo um sistema, uma visão de mundo e, em última análise, a experiência de sobrevivência de seu cérebro.

Implicações para os Céticos

Pensadores críticos devem perceber que, por causa do valor de sobrevivência da credulidade, evidências negativas raramente são suficientes para mudar as crenças, mesmo em pessoas "inteligentes em outros assuntos". Para realmente modificar crenças, céticos devem apelar para seus valores de sobrevivência e não apenas para seus valores de precisão dos dados. Isso envolve alguns fatores:

Primeiro, céticos não devem esperar mudanças de crença simplesmente como resultado dos dados ou pensar que as pessoas são estúpidas porque não mudam de idéia. Devemos evitar nos tornar críticos ou arrogantes em resposta à resistência à mudanças. As pessoas não são necessariamente idiotas só porque suas crenças não concordam com os fatos. Dados são sempre necessários, mas raramente suficientes.

Em segundo lugar, céticos devem aprender a nunca ficar só nos dados, mas também discutir as implicações que a mudança dessas crenças podem ter na visão de mundo e no sistema de convicções das pessoas envolvidas. Infelizmente, ter acesso às crenças das pessoas é muito mais difícil do que simplesmente apresentar evidências contraditórias. Céticos devem discutir o significado de seus dados em face à necessidade do cérebro de manter suas convicções para ter um senso de totalidade, consistência e controle. Céticos devem se acostumar a discutir a filosofia fundamental e a ansiedade existencial que se estabelece quando crenças profundas são abaladas. A tarefa é tão filosófica e psicológica quanto científica.

Terceiro, e talvez mais importante, céticos devem sempre perceber o quanto é difícil para as pessoas verem suas convicções desafiadas. É , quase literalmente, uma ameaça ao senso de sobrevivência de seus cérebros. É completamente normal que as pessoas fiquem na defensiva em situações como essas. O cérebro acha que está lutando pela própria vida. É uma pena que isso possa produzir comportamentos provocativos, hostis e até viciosos, mas é também compreensível.

A lição que os céticos devem aprender é que as pessoas geralmente não têm a intenção de serem teimosas, irracionais, nervosas, grosseiras ou estúpidas quando suas convicções são ameaçadas. É uma luta pela sobrevivência. A única maneira efetiva de lidar com esse tipo de comportamento defensivo é amenizar a luta ao invés de inflamá-la. Ficar sarcástico ou menosprezar o interlocutor só dá mais motivos para que as pessoas se sintam ameaçadas ( "É claro que somos contra os céticos! Olha como são esnobes e hostis!) ao invés de se concentrar na verdade.

Os céticos só poderão ganhar a guerra pelas crenças racionais se continuarem, mesmo contra respostas defensivas, mantendo um comportamento digno e cuidadoso que demonstre respeito e sabedoria. Para que os dados falem alto, os céticos devem sempre manter o controle e não se irritar.

Finalmente, o que deve servir de consolo é que a parte realmente fantástica disso não é que somente algumas crenças se modifiquem ou que as pessoas sejam tão irracionais, mas sim que as crenças de qualquer um podem se modificar. A habilidade que os céticos possuem de alterar suas próprias convições de acordo com os dados é um verdadeiro dom; uma capacidade poderosa, única e preciosa. É genuinamente uma "alta função do cérebro" no sentido em que vai contra algumas das urgências biológicas mais fundamentais. Os céticos devem apreciar o poder e, verdadeiramente, o risco que essa habilidade atrai. Eles possuem uma aptidão que pode ser assustadora, modificadora e capaz de causar dor. Ao projetar essa habilidade nos outros devem ser cuidadosos e sábios. Devem sempre desafiar convicções com cuidado e compaixão.

Céticos devem sempre manter os olhos no objetivo. Devem adotar a visão de longo prazo. Devem tentar vencer a guerra pelas crenças racionais, não entrar numa luta até a morte de uma batalha com uma pessoa em particular sobre uma convicção única. Não são só os dados e os métodos do céticos que tem que ser limpos, diretos e puros, mas também sua conduta e comportamento.

Sobre o autor:

Gregory W. Lester, Ph.D. é professor de psicologia na Universidade de St. Thomas em Houston, Texas, EUA
e clinica em Houston e em Denver, Colorado, EUA.

topo

Este artigo foi publicado por "Skeptical Inquirer", edição de Novembro de 2000.

Toda a responsabilidade pela tradução é de Mauro Roberto de Pennafort

Me escreva

Home

Voltar

Assine meu Livro de Visitas

1