Milagres

Robert Todd Carrol

Um milagre é "uma transgressão de uma lei da Natureza pela vontade de uma Divindade, ou a interposição de um agente invisível." (Hume, p. 123n). Teólogos das religiões do Antigo e Novo Testamento consideram apenas Deus como capaz de vencer as leis da Natureza e executar verdadeiros milagres. Contudo, admitem que outros possam fazer coisas que desafiem as leis da natureza; tais atos são atribuídos a poderes diabólicos e são chamados "falsos milagres". Muitos que estão fora do contexto das religiões baseadas na Bíblia acreditam na possibilidade de transgredir as leis da natureza através de atos de vontade em consonância com poderes ocultos ou paranormais. Mas geralmente referem-se a estas transgressões não como milagres mas como mágicas.

Todas as religiões registram milagres. Como Hume notou, as religiões estabeleceram-se sobre os seus milagres. Mas, se é assim, cancelam-se umas às outras. Hume compara o decidir entre religiões com base nos seus milagres com a tarefa de um juiz que deve avaliar testemunhos contraditórios mas igualmente confiáveis. 

Mais esclarecedor é o fato de que quanto mais antigo e bárbaro é um povo, maior a tendência para milagres e prodígios florescerem.

Hume era um historiador, bem como filósofo, e não lhe passou despercebido o fato de que quanto mais recuamos na história, mais relatos temos de milagres. E, apesar de haver muita gente hoje que acredita em milagres, é pouco provável que qualquer historiador do século vinte encha os seus livros de relatos miraculosos. É improvável que um único relato destes encontre lugar em tais livros.

Hume estava consciente de que independentemente de quão cientifica ou racional uma civilização se tornasse, a crença em milagres nunca seria erradicada. A natureza humana curva-se ante o maravilhoso. Vaidade e ilusão levaram a mais de uma fraude piedosa suportando a causa sagrada e meritória com grandes embelezamentos e mentiras acerca de feitos miraculosos. (Hume, p. 136)

O principal argumento de Hume contudo, foi modelado a partir da argumentação feita por John Tillotson, que se tornou Arcebispo de Canterbury. Tillotson e outros como William Chillingworth antes dele e o seu contemporâneo Bispo Edward Stillingfleet argumentaram com o que chamaram uma defesa de "senso comum" do Cristianismo, isto é, Anglicanismo. O argumento de Tillotson contra a doutrina Católica da Consubstanciação ou "a real presença" era simples e direta. A idéia contradiz os sentidos de que o pão e o vinho usados nas cerimônias são mudados em algo que é pão e vinho para os sentidos mas que realmente será o corpo e sangue de Cristo. Se parece pão, cheira a pão, tem gosto de pão, então é pão. Desistir disto é abdicar de todo o conhecimento baseado na experiência. Qualquer coisa pode ser outra que não o que os sentidos mostram. Este argumento nada tem a ver com o argumento cético da incerteza do conhecimento dos sentidos. Isto é um argumento acerca da crença razoável. Se os Católicos tivessem razão acerca da consubstanciação, então um livro podia ser um bispo. Os acidentes de uma coisa não dariam pistas para a sua substância. Tudo o que vemos pode ser completamente não relacionado com o que parece ser. Tal mundo não seria razoável. Se não se pode confiar nos sentidos num caso, não se pode confiá-los em caso nenhum. Acreditar na consubstanciação é abandonar a base de todo o conhecimento: a experiência dos sentidos.

Hume começa o seu ensaio sobre milagres elogiando a argumentação de Tillotson como sendo "tão conciso, elegante e forte como qualquer argumento o pode ser contra uma doutrina tão pouco merecedora de uma refutação séria." Continua afirmando que pensa ter

descoberto um argumento de tal natureza que, se certo, pode ser um eterno verificar de todo o tipo de superstições, e conseqüentemente será útil enquanto o mundo durar; até ao fim, presumo, os relatos de milagres e profecias serão encontrados na história, sagrada e profana. [Hume, p. 118]

O seu argumento é um paradigma de simplicidade e elegância:

Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como uma experiência firme e inalterável estabeleceu essas leis, a prova contra um milagre, da própria natureza do fato, é tão inteira quanto qualquer argumento a partir da experiência pode ser imaginado.[p. 122.]

Ou pondo ainda mais sucintamente:

Tem de... existir uma experiência uniforme contra qualquer acontecimento miraculoso, pois de outro modo o acontecimento não mereceria aquela apelação.[p. 122]

A implicação lógica deste argumento é que

nenhum testemunho é suficiente para estabelecer um milagre a menos que aquele fosse de um tipo tal que a sua falsidade fosse ainda mais miraculosa que o fato que tenta estabelecer. [p. 123]

O que Hume fez foi pegar no argumento anglicano do senso comum contra a doutrina católica da consubstanciação e aplicá-lo aos milagres, base de todas as seitas católicas. As leis da natureza não se estabeleceram por ocasionais ou freqüentes experiências similares, mas por uma experiência uniforme. É "mais que provável," diz Hume, que todos os homens morram, que o chumbo não fique suspenso no ar, que o fogo consuma madeira e a água o extinga. Se alguém afirmar a Hume que um homem conseguir manter chumbo suspenso no ar por um ato de vontade, Hume perguntar-se-ia se "a falsidade do testemunho é mais miraculoso que o fato que relata." Se assim for, ele acredita no testemunho. Contudo, ele não acredita que um milagre pudesse ser estabelecido com base nesta evidência.

Considere o fato de que a uniformidade da experiência das pessoas em todo o mundo lhe diz que uma vez uma perna amputada, ela não volta a crescer. O que pensaria se um amigo seu, um cientista de elevada integridade, lhe dissesse que quando estava de férias em Espanha encontrou um homem que não tinha pernas mas agora caminha com dois magníficos membros inferiores. Diz-lhe que um homem santo esfregou um óleo nos tocos e as pernas cresceram. O homem vive numa pequena aldeia e todos os aldeões atestam o "milagre." O seu amigo está convencido de que um milagre ocorreu. Em que você acredita? Acreditar neste milagre seria rejeitar o principio da uniformidade da experiência, em que as leis da natureza se baseiam. Seria rejeitar uma asserção fundamental de toda a ciência, de que as leis da natureza são invioláveis. O milagre não pode ser aceito sem abandonar um principio básico do conhecimento empírico: que coisas iguais em circunstâncias iguais produzem resultados iguais.

Claro que há outra constante que não devemos esquecer: a tendência das pessoas em todos os tempos desejarem algo de maravilhoso, de se iludirem com isso, de fabricarem, de embelezarem e de acreditarem nas suas invenções com paixão. Isso quer dizer que os milagres acontecem? Claro que não. Significa que quando alguém relata um milagre a probabilidade de estar enganada, iludida ou enganando é muito superior à do milagre ter realmente acontecido. Acreditar num milagre, como dizia Hume, não é um ato de razão mas de fé.

Bibliografia:

"Miracles" na Stanford Encyclopedia of Philosophy

Hume, David. An Inquiry Concerning Human Understanding, ch. x "Of Miracles," (1748), Bobbs-Merrill, edição da Library of Liberal Arts.

Texto originalmente publicado em Skeptics Dictionary, de autoria de Robert Todd Carrol

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