Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

DOM CASMURRO 

da obra de Machado de Assis

 por Daniel de Matos Sampaio Chagas
Bacharel em Direito pela UnB

O Livro

 

Da obra de Machado de Assis, "Dom Casmurro" é, seguramente, o romance mais popular. Publicado há quase um século (1899), traz em si o mais visceral dos relatos sobre um possível adultério. Para a grande maioria dos leitores, a dúvida persiste ainda hoje: "teria Capitu traído Bentinho com o melhor amigo deste, Escobar?".

Várias discussões já foram travadas acerca dessa indagação. Os que sustentam a existência do adultério, afirmam haver no livro elementos narrativos que corroboram a traição de Capitu. O melhor exemplo disso é a semelhança entre Ezequiel - filho de Capitu e Bentinho - e Escobar. Por outro lado, corrente majoritária defende que inexistem provas do adultério, levantando, entre outros argumentos, um principal, que é o fato de ser a história narrada em primeira pessoa, por Bentinho, que bem usufrui dessa conveniência para traçar um verdadeiro libelo acusatório contra Capitu e Escobar.

Capitu é tida por muitos dos admiradores da obra de Machado de Assis, como sua personagem mais enigmática e interessante, que melhor representou a dita "leviandade feminina". Assim acontece principalmente porque quem nos apresenta a ela é Bentinho, homem apaixonado e dono de um ciúme sem proporções. Temos então uma Capitu que exorta nossa imaginação a um inebriante exercício dialético onde, ao final, tentamos desvendar sua índole: leviana ou inocente?

A Obra e seu Autor

Machado de Assis é um dos poucos autores cuja leitura, seja de que livro for, está longe de ser um favor. É um verdadeiro prazer. Realista, mestre no romance psicológico, esmerado observador das angústias e dilemas vivenciados pelo ser humano, Machado é cultuado não apenas no Brasil, mas em diversas partes do mundo (para constatar de forma simples, basta fazer um pequena pesquisa na Internet e descobrir inúmeras páginas de outros países que cuidam de sua obra). Não cansa de repercutir entre seus leitores o estilo sóbrio, reflexivo, bem-humorado e ... (encerro por aqui os elogios, já desnecessários e supérfulos).

De qualquer modo, existem pelo menos três romances de Machado de Assis que podem ser considerados leitura obrigatória (ainda que seja só para o vestibular); são eles: "Dom Casmurro", "Memórias Póstumas de Brás Cubas" e "Quincas Borba". Em cada um deles, são facilmente encontradas passagens que compõem a própria história da literatura.

Interesse Jurídico

Posto que receba muitas críticas, o adultério continua presente no Código Penal, onde é previsto como crime no artigo 240.

A pena, para quem comete o crime, é de quinze dias a seis meses de prisão.

Os que defendem a exclusão do adultério do Código Penal tem em vista a sua tolerabilidade social e o fato de ser uma conduta cujo prática já se tornou usual sem jamais ter tido maiores repercussões penais. Por sinal, é fácil observarmos, em qualquer novela televisiva, histórias onde o adultério, longe de ser reprovável, assume ares de libertação para os personagens, que encontram nele o meio ideal de buscar o "verdadeiro amor" que a vida lhes reservou. É a fuga de um claustro chamado casamento.

Entrementes, é mister considerarmos que a sociedade dita "moderna" ainda não se desvencilhou - e longe está de o fazer - das noções de exclusivismo que, dentre outras razões, levaram o adultério a ser tipificado. Há quem diga que estamos num período caótico da História onde a monogamia, mais do que uma exigência e ordem moral ou religiosa, é uma necessidade vital. A propagação da AIDS funcionou como verdadeiro contendor do chamado "liberalismo sexual" ensaiado com algum sucesso nos anos sessenta e setenta.

Assim, temos um confronto onde, de forma extremada, temos a idéia moderna de que uma pessoa não pode ser incriminada por buscar sua felicidade com "outro alguém" que não aquele com quem se casou versus uma outra idéia onde a fidelidade representa, ora necessidade moral e religiosa, ora condição de sobrevivência e respeito, pelo menos à saúde do cônjuge.

Considerando o adultério a via indireta para a propagação da AIDS, principalmente tendo-se em conta que a relação sexual entre cônjuges é baseada na mútua confiança e, em regra, se dá sem o uso de preservativos, penso que ainda não é chegada a hora de o banirmos do sistema de repressão penal. Por outro lado, ao constatar que se trata de um crime de baixa incidência, quer dizer, poucos são os cônjuges traídos que procuram o aparelho estatal para se queixar da traição; penso também que é o momento de informar a população sobre o procedimento do adultério (o exíguo prazo para a queixa, por exemplo) e garantir o absoluto sigilo, quer da investigação, quer do processo onde se cuide do adultério, de sorte a não expor o traído àquele que, por certo, é o maior de seus medos: o do vexame social.

CURIOSIDADES

O leitor, sobretudo o leigo em direito, deve guardar consigo algumas dúvidas sobre como se dariam as questões jurídicas se Capitu traísse Bentinho com Escobar nos dias de hoje. Vejamos algumas delas:

1) Quanto tempo teria Bentinho para acusar Capitu e Escobar?

Teria exatos trinta dias, contados do momento em que tivesse conhecimento do fato, sob pena de perder o direito (no que, em direito, chamamos "decadência").

2) Que Capitu seria então culpada ("adúltera"), não resta dúvida. Mas e Escobar, também ele seria "adúltero"? E se ele não soubesse que Capitu era casada?

Escobar não seria adúltero, para tanto se pressupõe seja a pessoa casada. Todavia, a lei equipara ao adúltero o amante, impondo a mesma pena, em tese, para ambos. Se Escobar não soubesse que Capitu era casada, não teria cometido crime algum, o adultério é um crime intencional.

3) E se Bentinho flagrasse Capitu e Escobar trocando um beijo no jardim, estaria configurado o adultério?

Pasme, leitor, a doutrina majoritária entende que não, que o adultério só se caracteriza com a conjunção carnal. Todavia, várias são as correntes, inclusive já tendo sido decidido dessa forma, que consideram qualquer ato sexual inequívoco como suficiente para a configuração do crime.

4) Vejamos uma hipótese mais ousada: e se Capitu não gostasse nem de Bentinho e nem de Escobar, partindo para um experiência mais "profunda" com sua amiga Sofia?

Como já vimos na pergunta anterior, a doutrina ainda resiste exigindo a conjunção carnal (coito vaginal) para a configuração do adultério. Isso implica dizer que o homossexualismo ainda pode ter alguma vantagem. Vibrai, leitores amantes do próprio sexo!

5) Mas e se descobríssemos, no curso do processo, que Capitu só traiu Bentinho porque se sentia carente e desprotegida, sobretudo em razão das surras que lhe eram aplicadas pelo marido?

Aqui, teríamos a forte possibilidade do juiz perdoar o adultério de Capitu, tendo em vista que as surras sinalizam que a vida em comum para Capitu vinha se tornando insuportável (ver art. 5º da Lei 6.515). Outro caso em que o juiz poderia perdoar o adultério é aquele em que já houve a separação de fato de casal antes de vislumbrar-se a traição.

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