Ministério Público da União
Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

13ª e 14ª Promotorias de Justiça Criminal de Brasília

 

Os Três Juízes Criminais

André Vinícius de Almeida
Promotor de Justiça do MPDFT

A doutrina processual penal moderna identifica dois grandes modelos vigentes nos diversos ordenamentos processuais penais: inquisitório e acusatório.

De um modo geral, tanto mais inquisitório é um sistema quanto mais se confundem as funções de acusador e julgador. O reverso também é verdadeiro, pois, na proporção em que se distinguem as atividades acusatória e julgadora, mais acusatório é aquele sistema.

Ainda como critério diferenciador pode-se falar na existência ou não de um órgão estatal com atribuição exclusiva para conduzir ou acompanhar as investigações destinadas à produção de prova dirigida a amparar a formulação de uma acusação penal, por ele próprio iniciada perante agente estatal com função exclusive de julgar o pedido de imposição de sanção penal.

Neste aspecto, é forçoso reconhecer ser este o sistema vigente no país, mormente após a edição da Carta Magna de 1988.

Cumpre, todavia, esclarecer que o princípio acusatório é "sempre uma noção utópica, na medida em que representa um ideal a ser alcançado e não uma realidade posta", como bem sustenta Fauzi Hassan Choukr (Garantias Constitucionais na Investigação Criminal, Editora Revista dos Tribunais, página 34, nota 37).

Assim é que se encontra sempre sendo reformulado e aprimorado no sentido de permitir alcançar a finalidade última da separação das referidas tarefas, que outra não é que a perfeita salvaguarda das garantias individuais.

Recentemente, no Distrito Federal, por ato do Corregedor de Justiça, vedou-se a distribuição direta de autos de inquérito policial ao Judiciário, com o que deverão ser encaminhados diretamente ao Ministério Público, titular exclusivo da ação penal pública (Constituição Federal, artigo 129, inciso I), instituição perante a qual terão tramitação até a propositura da ação penal ou o pleito de arquivamento.

Trata-se de medida que, reconhecendo revogado o artigo 16 do Código de Processo Penal, na esteira de entendimento doutrinário e jurisprudencial, objetiva afastar o Magistrado, futuro julgador, da prova nitidamente inquisitória, de mero caráter administrativo e dirigida exclusivamente à formação da "opinio delicti" do "Parquet".

Aquela determinação - que, diga-se, não é novidade desta Unidade Federativa e nem da Justiça Estadual Comum - estabelece ainda serem exceções os pedidos de produção de prova cautelar que invadam a esfera da liberdade ou inviolabilidade de domicílio, ou as representações por custódia preventiva. Em suma, o julgador só tomará conhecimento da matéria discutida nos autos de inquérito policial ou peças de informação quando sua intervenção foi indispensável para assegurar a observância às garantias e liberdades individuais.

Ainda tendente a afastar o Magistrado da prova inquisitorial é que se tem firmado entendimento pretoriano orientado no sentido de que não mais é lícito ao Julgador determinar a instauração de inquérito policial, devendo, ao contrário, provocar a atuação do Membro do "Parquet", porquanto o início de investigação policial passa a ser ato exclusivo da autoridade policial, "ex officio" ou por requisição do Ministério Público.

Cumpre esclarecer, porém, ainda serem insuficientes as medidas tomadas para estabelecer, no país, um sistema acusatório puro.

Dentre aquelas mais eficazes, como demonstram os modelos alienígenas que as adotaram, estão a ausência de controle judicial do pedido de arquivamento de inquérito policial (feito hierarquicamente ou por intervenção do ofendido), a separação fascicular dos autos do inquérito policial e dos autos da ação penal (permanecendo nestes apenas aquelas provas técnicas e as medidas cautelares), e a submissão da acusação a um juízo prévio de admissibilidade de sua viabilidade, momento único de avaliação da justa causa.

Abre-se, assim, espaço para a co-existência, no modelo processual penal pátrio, dos três juízes criminais:
    1) o magistrado que examinará, exclusivamente, os pedidos de produção de prova cautelar, quando necessário para salvaguardar garantias individuais, e representações de custódia preventiva ou temporária;
    2) o juiz que examinará a denúncia, confrontando-a com as provas inquisitoriais e que, recebendo aquela, determinará a separação dos autos;
    3) o juiz julgador, perante o qual se dará a instrução criminal acusatória, contraditória, e que proferirá decisão de mérito.

Dois, pois, os modelos em discussão.

De um lado, o sistema vigente, em que o Julgador tem ligeiro contato com a produção de prova inquisitorial, quando aprecia representações por prisão cautelar, quebra de sigilo bancário ou de comunicação telefônica, ou busca e apreensão, circunstância esta que tem o condão de prevenir a sua competência. Em um segundo momento, aprofunda-se no exame da prova inquisitorial, ao examinar a acusação que lhe é apresentada. Por fim, recebida esta, passa a instruir criminalmente o feito até final sentença. Inafastável, assim, a conclusão de que há contaminação da prova produzida em juízo por aquela de caráter nitidamente inquisitório, não contraditória, em prejuízo da ampla defesa.

De outro lado, a sistemática ora proposta, em que, para cada um dos momentos anteriormente destacados, tem-se um Magistrado distinto.

Inicialmente, há de oficiar um Juiz com competência exclusiva para apreciar os pleitos que, formulados durante as investigações, versem sobre matéria pertinente a direitos e garantias individuais, tais como pedidos de prisão provisória.

Formulada a acusação, esta é dirigida a um outro Magistrado que, funcionando como uma autêntica "Chambre d´Accusation" francesa, promoverá o seu cotejo com as provas contidas nas peças de informação, avaliando a existência das condições da ação, dentre as quais a justa causa para a deflagração da ação penal.

Instaurada a relação processual, com o recebimento da inicial de denúncia ou queixa crime, determinar-se-á a separação fascicular dos autos, permanecendo naqueles da ação penal tão somente a acusação acompanhada de provas técnicas e cautelares. Neste momento intervém um terceiro Magistrado, perante o qual serão produzidas as provas, agora plenamente contraditórias e desvinculadas da colheita administrativa procedida pela autoridade policial ou pelo Ministério Público.

Sobre a questão dissertou Fauzi Hassan Choukr: "para flexibilizar a atuação da justiça criminal dentro das idéias de garantismo e eficiência, é de todo recomendável a criação de uma fase intermediária entre o oferecimento da inicial e seu recebimento para que seja exercitada a verificação da probable cause, como pode ter sido um dia a intenção do legislador (até porque prevista para os casos dos arts. 513 e ss. Do CPP). Na verdade, a introdução desse momento configura aspiração nos movimentos de aprimoramento dos códigos processuais penais" (op. cit. , página 69).

A proposta é realidade já em diversos países, tais como na Alemanha, Áustria, Bélgica, Portugal, Argentina (Código Provincial de Tucumã), Estados Unidos da América, e mesmo em ordenamentos nitidamente inquisitórios, como é o caso da França (inspirador da figura do Juizado de Instrução) e de alguns estados árabes (mormente aqueles de colonização francesa).

Note-se, ainda, que o Código-Modelo para Ibero-América, de caráter sobretudo acadêmico, prevê uma audiência de verificação da admissibilidade da persecução penal "stricto sensu" (artigo 267 e seguintes).

Com isso, valoriza-se sobretudo o princípio do contraditório que, mesmo vigente hodiernamente no país, mesmo de fundo constitucional, ainda é violado quando proferidas condenações com fulcro em prova produzida exclusivamente no âmbito da repartição policial, v.g., reiteradas decisões do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, que, conquanto não constituindo entendimento consolidado naquela corte, esclarecem que "a confissão policial acompanhada de apreensão da res furtiva com o réu e a ausência de retratação em juízo constitui prova suficiente para embasar o decreto condenatório" (RJD, 10/125), eventualmente acolhidas por outros tribunais (TAPR, RT 475/359).

Aguardamos, outrossim, que os movimentos orientados no sentido do estabelecimento de maior pureza em nosso sistema acusatório possam sensibilizar e motivar o legislador pátrio para que nossa reforma processual penal possa agasalhar a proposta ora posta em discussão.

 

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